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Economia Criativa, a Web 2.0 e o Vírus da Exposição de Talentos

Creative Economy, the Web 2.0 and the Virus of Talent Exposition

Economía Creativa, la Web 2.0 y el Virus de la Exposición de Talentos

Resumos

A "economia criativa" é um dos vários desenvolvimentos da economia mundial impulsionados pelas tecnologias de informação e comunicação. Os ambientes fáceis de usar da Web 2.0 permitiram que usuários ao redor do mundo expusessem seus talentos on-line e que muitos alcançassem sucesso e profissionalização meteóricos. Dada a novidade deste fenômeno, a presente pesquisa propôs-se a explorar, por meio de entrevistas abertas e análise qualitativa dos depoimentos coletados, o que está acontecendo do ponto de vista de jovens brasileiros, entre 18 e 30 anos de idade que expõem algum produto seu on-line. O papel exercido pelos vários casos de sucesso conhecidos sobre seus projetos de profissionalização foi o ponto de partida dessa exploração. Os resultados revelaram que o "boom" da autoexposição de talentos não se deve somente à influência desses sucessos ou ao desejo de se profissionalizar, mas principalmente à contagiante circulação de ideias e comportamentos no ambiente inovador da Internet.

Criatividade; Internet; Jovens; Aptidão


The "creative economy" is one of the many developments of world economy that is boosted by the information and communications technologies. The friendly environments to use Web 2.0 allowed many users across the world to expose online their talents and many achieved meteoric success and professionalization. Given the newness of this phenomenon, this survey proposed to explore, through open interviews and qualitative analysis of collected statements, what is happening from young Brazilians' point of view, 18-30 yrs old, who exhibit online some of their own products. The starting point for the exploration was the role played by several known cases of success over their professionalization projects. The findings showed that the "boom" of talents' self-exposing is due not only to the influence of those successes or to the desire of becoming Professional, but mainly to the contagious circulation of ideas and behavior in the internet innovative environment.

creativity; Internet; Young adult; Creativity; Skill


La "economía creativa" es uno de los varios desarrollos de la economía mundial impulsados por las tecnologías de información y comunicación. Los ambientes fáciles de usar de la Web 2.0 permitieron que usuarios alrededor del mundo expusiesen sus talentos on-line y que muchos alcanzasen éxito y profesionalización meteóricos. Dada la novedad de este fenómeno, la presente pesquisa se propuso a explorar, por medio de entrevistas abiertas y análisis cualitativo de las declaraciones colectadas, lo que está aconteciendo desde el punto de vista de jóvenes brasileños, entre 18 y 30 años de edad que exponen algún producto suyo online. El papel ejercido por los varios casos de éxito conocidos sobre sus proyectos de profesio-nalización fue el punto de partida de esa explotación. Los resultados revelaron que el "boom" de la autoexposición de talentos no se debe solamente a la influencia de esos éxitos o al deseo de profesionalizarse, sino principalmente a la contagiante circulación de ideas y comportamientos en el ambiente innovador de la Internet.

Creatividad; Internet; Jóvenes; Creatividad; Aptitud


Há mais de uma década vimos presenciando a difusão de um contexto econômico singular, no qual a criatividade desempenha o papel de força motriz enquanto a World Wide Web oferece ambientes e ferramentas para a geração e circulação de produtos. É a chamada "economia criativa".

No contexto dessa nova economia, encontra-se um fenômeno recente, que ainda não foi examinado em detalhe. Trata-se do sucesso - on e off-line - de jovens que expõem seus talentos em diversos ambientes virtuais (blogs, YouTube, MySpace, etc.) e transformam-se em profissionais praticamente da noite para o dia. Dado que tal inserção no mercado de trabalho vem acontecendo com frequência, julgou-se importante compreender as motivações, dos usuários, a dinâmica da autoex-posição do que produzem bem como as consequências desta. O ponto de partida eleito para tanto foi a investigação do papel exercido pelos casos de sucesso amplamente divulgados pela mídia sobre os projetos de profissionalização de outros jovens, principalmente daqueles que também expõem algo de sua autoria on-line. Para tanto, foi realizada a pesquisa exploratória que será apresentada ao longo deste artigo.

Antes, porém, será feita uma breve e imprescindível descrição da "economia criativa" e do papel que nela desempenham a criatividade e a evolução das tecnologias de informação e telecomunicação, as "TICs" (Florida, 2005Florida, R. (2005). Cities and the creative class. New York: Routledge.; Howkins, 2001Howkins, J. (2001). The creative economy: How people make money from ideas. Lodon: Penguin.; Hartley, 2005)Hartley, J. (2005). Creative industries. In J. Hartley (Org.), Creative industries (pp. 1-40). Malden, MA.: Blackwell.. Serão também fornecidos alguns exemplos de sucesso on-line amplamente conhecidos pelo público brasileiro em geral (Nicolaci-da-Costa, 2011)Nicolaci-da-Costa, A. M. (2011). O talento jovem, a Internet e o mercado de trabalho da "economia criativa". Psicologia e Sociedade, 23(3), 552-561. doi: 10.1590/S0102-71822011000300013.

Transformações na economia mundial: a economia criativa

Nas últimas décadas do século XX e na primeira deste século, a economia mundial testemunhou muitas transformações, dentre as quais se destaca o rápido crescimento da economia criativa. Em 2008, a UNCTAD (United Nations Conference on Trade and Development) apontava que, no período 2000-2005, o comércio de bens e serviços criativos havia tido um resultado sem precedentes: um aumento médio anual de 8,7%. Antes mesmo que esses resultados fossem publicados, Florida (2005)Florida, R. (2005). Cities and the creative class. New York: Routledge. já apontava que a criatividade havia se transformado na força motriz de todo um importante setor da economia mundial. Então, afirmava, um terço dos trabalhadores nas nações industriais avançadas tinha empregos no setor criativo.

Hartley (2005)Hartley, J. (2005). Creative industries. In J. Hartley (Org.), Creative industries (pp. 1-40). Malden, MA.: Blackwell. procura analisar as razões desse crescimento. Segundo ele, na última década do século XX, fechou-se um importante ciclo de mudança na economia mundial. A indústria manufatureira perdeu o seu papel central e o valor começou a ser gerado, não mais exclusivamente pelo processamento de matérias-primas, mas pelo processamento da informação. Ainda de acordo com Hartley, o papel da tecnologia - então, mais especificamente das tecnologias de informação (TIs) - foi central nessa mudança, dando origem àquela que acabou sendo conhecida como a "Sociedade Informacional" (Castells, 2004Castells, M. (2004). A galáxia da Internet: Reflexões sobre Internet, negócios e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.). Naquele período, a sociedade como um todo foi invadida pela informação baseada em código.

Para Hartley, a mudança da liderança da IBM para a Microsoft ilustra bem o fechamento desse ciclo. Com a construção de computadores de grande porte - os "mainframes" -para o uso de organizações e empresas, a IBM, dominou os primeiros estágios do desenvolvimento da computação. Com o passar do tempo, contudo, ela foi tornada obsoleta pela Microsoft, que popularizou a concepção de computadores pessoais e, sem fabricá-los, inovou ao tornar a propriedade do sistema operacional que esses computadores usavam mais importante do que sua fabricação. De acordo com Hartley, essa mudança indicava uma transformação muito mais ampla nas regras da economia mundial. A manufatura cedera lugar à informação como fonte geradora de riqueza.

Dando continuidade à sua análise, Hartley (2005)Hartley, J. (2005). Creative industries. In J. Hartley (Org.), Creative industries (pp. 1-40). Malden, MA.: Blackwell. identifica uma sucessão de quatro estágios dentro do escopo do que chama de "economia da informação". São eles: o da infraestrutura, o da conectividade, o do conteúdo e o da criatividade. Vejamos.

Uma vez feita a passagem da manufatura para a informação como fonte geradora de riqueza, houve, em um primeiro momento, um grande investimento em infraestrutura por parte de empresas, organizações governamentais e educacionais ao redor do mundo. O objetivo era colocar um computador pessoal em cada mesa de trabalho. O nível de investimento nessa fase foi surpreendente e muito bem-sucedido.

Em médio prazo, no entanto, somente infra-estrutura mostrou-se insuficiente. As tecnologias de telecomunicação somaram-se às de informação e passou-se a falar de "TlCs". Surgiu a conectividade. A interatividade se tornou possível e, imediatamente, necessária. Nessa fase, o objetivo, novamente muito bem-sucedido, passou a ser a ampliação da interatividade por meio de infinitas conexões.

A conectividade fez com que a Internet prometesse um futuro rico e cheio de oportunidades. Por isso, ainda segundo Hartley (2005)Hartley, J. (2005). Creative industries. In J. Hartley (Org.), Creative industries (pp. 1-40). Malden, MA.: Blackwell., passou a atrair investimentos de outros setores, o que, por sua vez, teve como resultado a supervalorização das ações das empresas "pontocom" e de alta tecnologia. Essa euforia, contudo, teve fôlego curto. A bolha "pontocom" estourou no início do milênio, as ações despencaram e, a partir de então, ficou claro que a conectividade não era mais a chave para o enriquecimento.

A informação em si mesma havia deixado de ser força motriz da economia informacional e a conectividade não atendia aos desejos dos milhões de usuários ao redor do mundo, que estavam interessados em ideias, conhecimentos e experiências. Logo ficou evidente, entretanto, que, embora tivesse perdido o poder de mover a economia informacional, a conectividade havia gerado infinitas e desconhecidas possibilidades para a produção de conteúdo. Foi, então, que, mais uma vez de acordo com Hartley (2005)Hartley, J. (2005). Creative industries. In J. Hartley (Org.), Creative industries (pp. 1-40). Malden, MA.: Blackwell., a criatividade se tornou um importante ativo de mercado. Emergia a economia criativa. A moeda mais valiosa havia deixado de ser o dinheiro. As ideias e a propriedade intelectual passaram a mover a economia.

O registro da emergência do novo contexto econômico feito por outro de seus analistas - Howkins (2001)Howkins, J. (2001). The creative economy: How people make money from ideas. Lodon: Penguin. - é particularmente elucidativo. Este afirma:

A economia criativa foi trazida à luz pelas tecnologias da informação e comunicação. As novas tecnologias digitais criaram novas oportunidades para conteúdo; um universo cibe-respacial (... ) faminto por texto, imagens e histórias. Os baixos custos da tecnologia digital permitem que as pessoas produzam, distribuam e per-mutem seu próprio material ... cada vez de forma mais ampla e penetrante (...). (Howkins, 2001Howkins, J. (2001). The creative economy: How people make money from ideas. Lodon: Penguin.. p. 16, tradução nossa)

Hartley (2005)Hartley, J. (2005). Creative industries. In J. Hartley (Org.), Creative industries (pp. 1-40). Malden, MA.: Blackwell. adiciona que a economia criativa é uma economia caracterizada por sua leveza, pois os bens que nela circulam são, em grande parte, intangíveis: dados, software, notícias, entretenimento, propaganda, etc. Esses bens intangíveis novamente mantêm uma íntima relação com as TICs, pois, nestas, eles encontram um grande espaço de produção, circulação, distribuição e negociação.

Frente a essa necessidade de saciar a fome de conteúdo de um universo ciberespacial, descrita por Howkins (2001)Howkins, J. (2001). The creative economy: How people make money from ideas. Lodon: Penguin., a criatividade começou a desempenhar um papel fundamental na nova economia. Tendo, na visão de especialistas, uma relação íntima com "imaginação, insight, invenção, inovação, intuição, inspiração, iluminação e originalidade", bem como com uma "disposição para pensar diferente e para 'brincar' com ideias" (Alencar, 2005Alencar, E. M. L. S. (2005). A gerência da criatividade. São Paulo: Makron Books., p. 3), a criatividade encontrou espaço fecundo para se desenvolver nos ambientes recém-construídos da chamada Web 2.0 (O'Reilly, 2005O'Reilly, T. (2005). What is Web 2.0. Recuperado de http://oreilly.com/web2/archive/what-is-web-20.html.
http://oreilly.com/web2/archive/what-is-...
). Isso porque a Web 2.0 marcou um novo momento a partir do qual os usuários passaram, eles próprios, a poder produzir conteúdo (mesmo sem nada entender da linguagem de computadores). Os ambientes se tornaram amigáveis (fáceis de usar) permitindo que qualquer um pudesse disponibilizar conteúdos de diversos tipos, desenvolvê-los, divulgá-los, compartilhá-los, comentá-los, alterá-los, etc. A consequência foi uma explosão da produção de conteúdo.

Esses ambientes amigáveis, resultado das iniciativas criativas de seus desenvolvedores, são tantos que será possível mencionar superficialmente apenas alguns amplamente conhecidos no Brasil.

Dentre eles, os blogs se destacam como os mais antigos. Tendo tornado a publicação de textos on-line acessível à população leiga, passaram a ser amplamente utilizados e já geraram várias carreiras de sucesso. Uma delas foi a do escritor Daniel Galera que, tendo começado a publicar textos literários em um blog (http://www.ranchocarne.org), ganhou o reconhecimento do público e da crítica. Um bom indicador de seu sucesso é o fato de ter conquistado o Prêmio Machado de Assis de Romance da Fundação Biblioteca Nacional com seu livro Cordilheira, no ano de 2008. Foi também a partir de um blog (http://kibeloco.com.br/platb/kibeloco) que Antonio Tabet se tornou um humorista de renome. Kibeloco começou como um espaço para partilhar tiradas humorísticas com amigos e é, hoje, uma referência do humor on-line em todo o Brasil. Tabet tornou-se roteirista do Caldeirão do Huck, um dos programas de maior audiência da TV Globo.

A Web 2.0 também presenciou a emergência de vários sites que albergam redes de relacionamento: Orkut, Facebook, MySpace, etc. Todos se tornaram muito populares em um ou outro momento e geraram diferentes tipos de conteúdo. O MySpace, no entanto, tornou-se particularmente atraente para músicos, compositores, cantores, etc. por sua capacidade distintiva de hospedar MP3. Foi colocando suas músicas nessa rede que a banda Bonde doRolê (http://www.myspace.com/bondedorole) iniciou sua trajetória internacional e, em apenas um ano, foi eleita pela revista Rolling Stonecomo uma das 10 bandas a serem acompanhadas no mundo inteiro. A rápida trajetória de sucesso da jovem cantora e compositora Mallu Magalhães (http://www.myspace.com/mallumagalhaes) teve início análogo.

Outro fenômeno de sucesso musical, desta feita resultado da exposição no YouTube, é o da Banda Mais Bonita da Cidade, cujo clipe Oração (http://www.youtube.com/watch?v=QW0i1 U4u0KE) obteve mais de 2 milhões de acessos em uma semana, tornando popular essa desconhecida banda paranaense. Além deste, o YouTube já gerou vários outros sucessos bastante conhecidos, como, por exemplo, o de PC Siqueira (http://www.you-tube.com/user/maspoxavida) e o de Felipe Neto (http://www.youtube.com/user/felipe-neto), que usam esse espaço para postar regularmente vídeos com comentários sobre assuntos diversos.

O Twitter é um caso à parte. É um misto de rede social (com menos funcionalidades e perfis mais compactos do que as outras redes) e servidor para postagem de textos breves (de, no máximo, 140 caracteres). É extremamente eficaz na rápida divulgação de mensagens e de links para conteúdos hospedados em outras plataformas da Web. Leo Cardoso, no entanto, não necessitou desses links. Os 140 caracteres do Twitter foram suficientes para que ele tornasse seu personagem @Ocriadorextremamente popular (tem mais de 700.000 seguidores). Mais popular ainda é o comediante Rafinha Bastos. Seus mais de 3 milhões de seguidores no Twitter chegaram a lhe render uma entrevista no New York Times (http://www.ny-times. com/2011/08/07/arts/televi si on/rafi nha-bastos-brazilian-comedian.html?_r=2&ref=arts). Nessa entrevista, Rafinha declarou ser um produto da Internet, pois: "A Internet possibilitou que eu construísse minha carreira como eu desejava".

A pergunta que norteou a presente exploração dessas formas emergentes de profissionalização tinha exatamente a ver com a frequência pela qual esses casos vêm ganhando espaço na mídia. Antes de tudo, parecia importante conhecer qual a influência que o crescente número de carreiras iniciadas on-line está exercendo sobre os projetos de jovens que estão ingressando no mercado de trabalho ou procurando uma melhor colocação neste.1 1 Essa pergunta, no entanto, não era feita diretamente, mas sim indiretamente, por meio de várias perguntas que faziam parte de um roteiro bem mais abrangente, como será mostrado abaixo.

A Pesquisa

A pesquisa, devidamente aprovada pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), foi integralmente norteada pelos princípios e procedimentos do Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS), um método qualitativo especificamente elaborado para estudos exploratórios (Nicolaci-da-Costa, 2007Nicolaci-da-Costa, A. M. (2007). O campo da pesquisa qualitativa e o Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). Psicologia. Reflexão e Crítica, 20(1), 65-73. doi: 10.1 590/S0102-79722007000100009.
https://doi.org/10.1590/S0102-7972200700...
).

Participantes

Todos os participantes da pesquisa foram recrutados a partir de dois únicos critérios: (a) terem entre 18 e 30 anos de idade e (b) exporem algum produto de sua autoria on-line.

Duas observações complementares sobre o recrutamento dos participantes são importantes. Como as entrevistas foram feitas online, o local de moradia desses jovens era de pouca importância, pois, na Internet, a distância geográfica é irrelevante. Devido ao fato de que os participantes foram recrutados principalmente por manterem alguma forma de exposição de seus talentos on-line, questões relativas ao seu pertencimento de classe também não nos pareceram cruciais para a seleção. Em princípio, a partir das exposições on-line com as quais já havíamos tido contato, acreditávamos (corretamente, como constatamos ao longo da pesquisa) que seu nível educacional/intelectual seria relativamente homogêneo.

Foram recrutados vinte participantes a partir da indicação de amigos, conhecidos e outros entrevistados. O pequeno número de participantes em uma pesquisa qualitativa é consensual na literatura (Nicolaci-da-Costa, 2007Nicolaci-da-Costa, A. M. (2007). O campo da pesquisa qualitativa e o Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). Psicologia. Reflexão e Crítica, 20(1), 65-73. doi: 10.1 590/S0102-79722007000100009.
https://doi.org/10.1590/S0102-7972200700...
; Nicolaci-da-Costa, Romão-Dias, & Di Luccio, 2009Nicolaci-da-Costa, A. M., Romão-Dias, D., & Di Luccio, F. (2009). O uso de entrevistas on-line no Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). Psicologia. Reflexão e Crítica, 22(1), 36-43. doi: 10.1590/S010279722009000100006).

Coleta de Dados

No MEDS, a coleta de dados é feita principalmente por meio de entrevistas abertas em contextos informais (Nicolaci-da-Costa, 2007Nicolaci-da-Costa, A. M. (2007). O campo da pesquisa qualitativa e o Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). Psicologia. Reflexão e Crítica, 20(1), 65-73. doi: 10.1 590/S0102-79722007000100009.
https://doi.org/10.1590/S0102-7972200700...
). Tendo em vista que contextos informais existem tanto na vida "real" quanto na "virtual", essas entrevistas podem ser levadas a cabo presencialmente ou on-line.

No caso dessa pesquisa, a coleta de dados foi feita por meio de entrevistas individuais realizadas on-line (Nicolaci-da-Costa et al., 2009Nicolaci-da-Costa, A. M., Romão-Dias, D., & Di Luccio, F. (2009). O uso de entrevistas on-line no Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). Psicologia. Reflexão e Crítica, 22(1), 36-43. doi: 10.1590/S010279722009000100006) por meio do programa de bate-papo em tempo real MSN Messenger, com o qual todos estavam muito familiarizados. O uso de entrevistas on-line tornou a pesquisa interessante e natural para os participantes, que demonstraram estar muito à vontade. Tal como estipulado pelo MEDS, não houve qualquer solicitação para que alterassem sua rotina de conversa on-line (deixando de executar outras tarefas durante a entrevista, por exemplo).

Todas as entrevistas tiveram como base um roteiro estruturado construído especialmente para a pesquisa. Esse roteiro era composto por itens a partir dos quais deveriam ser formuladas as perguntas durante a própria entrevista de modo a preservar as características de conversas informais. Embora estruturado, o roteiro era usado de forma flexível durante as entrevistas, o que significa dizer que a ordem dos itens podia ser alterada de modo a manter o fluxo de associações do entrevistado.

O roteiro era dividido em duas partes. A primeira era composta de perguntas objetivas sobre cada um dos participantes, tais como: idade, ocupação (se era estudante, o que estudava), o que expunha on-line. Já a segunda parte era composta por itens/perguntas de cunho mais investigativo e subjetivo.

A segunda parte era dividida em cinco blocos temáticos que se sucediam de forma percebida como natural pelos entrevistados como pôde ser constatado nas várias entrevistas-piloto usadas para testá-lo. Bloco I: Perguntas genéricas sobre o uso que o(a) entrevistado(a) faz da Internet.

Há quanto tempo usa a Internet; quanto tempo costuma passar no computador; o que faz na Internet; que tipo de site frequenta; o que gosta de ver/acessar/xeretar/etc.; como chega àquilo que interessa; se usa mecanismos de busca (quais, por quê).

Bloco II: Perguntas sobre o que o(a) entrevistado (a) expõe on-line e sobre como divulga o que expõe. Por que resolveu expor X on-line; que tipo de retorno essa exposição dá; se essa exposição envolve custos de produção e divulgação; como divulga; se tem muitas visitas/frequentadores; como contabiliza isso; se expõe mais alguma coisa em algum outro lugar (em caso positivo, onde, por quê); se já tentou fazer uma divulgação maciça daquilo que expõe on-line (em caso positivo, como fez; em caso negativo, perguntar se conhece alguém que tenha conseguido um bom resultado através de divulgação maciça); caso conheça alguém que tenha feito sucesso desse modo, se sabe dizer como ele/ela fez essa divulgação.

Bloco III: Opiniões do(a) entrevistado(a) sobre sucesso. O que é sucesso; se acha que pode haver outras definições de sucesso; em caso de resposta positiva, perguntar quais; se está feliz com os resultados que vem tendo (em caso positivo, por quê; em caso negativo, se gostaria de fazer sucesso e por quê); se faz alguma coisa para ter sucesso; por que acha que algumas pessoas fazem tanto sucesso/se tornam tão populares; pedir para contar algum caso que conheça; como acha que isso acontece; se acha que esses sucessos acontecem por acaso ou são produzidos por alguma forma de marketing (mesmo que seja marketing amador); por que acha isso.

Bloco IV: Opiniões do(a) entrevistado(a) sobre profissionalização.Se acha que a Internet oferece formas alternativas de profissionalização, por quê; quais são as vantagens e desvantagens dessas formas alternativas em comparação com as formas de profissionalização tradicionais; se acha que uma forma exclui a outra, por quê.

Bloco V: Opiniões do(a) entrevistado(a) sobre criatividade. Se acha que a Internet torna as pessoas mais criativas, por quê; se acha que a internet incentiva a exposição da criatividade, por quê; qual é a importância da criatividade nos dias de hoje, por quê.

Análise dos Dados

Todos os depoimentos foram salvos e copiados em arquivos do Microsoft Word para facilitar seu manuseio. Seguindo as técnicas do MEDS, primeiramente foi levada a cabo a análise interparticipantes, na qual todas as respostas de todos os entrevistados(as) foram reunidas a partir dos itens/perguntas feitos. As respostas a cada item foram analisadas como um bloco. Desse modo, obteve-se uma visão de conjunto que possibilitou a identificação e categorização das respostas recorrentes nos discursos dos entrevistados. Na segunda etapa - a da análise intraparticipantes -foram examinadas as respostas de cada um dos participantes em busca de possíveis inconsistências ou contradições reveladoras de algum discurso subjacente.

Resultados

Observações preliminares

Antes de passar aos resultados propriamente ditos, é necessário fornecer ao leitor algumas informações básicas a respeito dos participantes, dos ambientes da Web dos quais eles faziam uso e também dos custos envolvidos em suas exposições on-line.

Comecemos pelo perfil dos jovens que participaram da pesquisa. A partir dos critérios estabelecidos, foram recrutados vinte jovens cujas idades variavam entre 19 e 29 (a média de idade era de 23 anos). Em sua maioria, esses jovens (15) eram estudantes. Os demais trabalhavam como técnico de informática, fotógrafo, publicitário, designer e escritor (no caso, um autointitulado "blogueiro profissional").

No que diz respeito aos ambientes da Web, o amigável ambiente dos blogs com sua hospedagem grátis se destacou como o mais usado para diversas finalidades (espaço de desabafo sob a forma de poesia, comentários sobre seriados, tutoriais de informática, publicação de contos, dicas de fotografia, etc.). Em segundo lugar, vinham os sites (que requerem mais de conhecimento de linguagem HTML e cuja hospedagem em servidores não é disponibilizada gratuitamente como no caso dos blogs). Com muito menor fre-quência eram utilizados fóruns (principalmente para discutir assuntos relativos à informática) e portfólios (para fins profissionais). O YouTube era usado por apenas dois entrevistados (que nele exibiam vídeos produzidos para a faculdade) e o MySpace era usado por somente um entrevistado (para postar músicas de sua banda).

A exposição do conteúdo gerado por esses jovens geralmente não envolvia custos além do acesso à Internet (que todos já tinham). As exceções foram os casos em que havia necessidade de servidores dedicados que pudessem receber um alto número de e-mails, e/ou daqueles que haviam comprado domínio próprio (tipo "meunome.com"). Mesmo nesses casos, o custos não eram altos. Os custos de produção existiam somente quando os entrevistados disponibilizavam on-line fotos, gravações ou vídeos que faziam off-line, no mais das vezes como trabalhos para a faculdade (em geral, eram custos que teriam de qualquer modo). A divulgação também não envolvia custos. Envolvia, sim, criatividade e dedicação, como ficará claro abaixo.

Feitas essas observações preliminares, examinemos de perto o que a pesquisa revelou. Dado que os resultados foram muitos e muito ricos, seguem-se apenas aqueles mais marcantes, subdivididos em categorias para facilitar a compreensão.

Como começaram e quais as suas expectativas

Todos os entrevistados conheciam casos de sucesso profissional iniciados na Web. Nenhum deles, no entanto, associou o início de sua aventura on-line à influência exercida por eles.

Na realidade, nem todos começaram a sério. Alguns, como Tomás2 2 De modo a preservar a privacidade dos entrevistados, todos os nomes e apelidos serão trocados. (23 anos, que parou de estudar), começaram de brincadeira: "[Comecei] a partir desse site, que antes era voltado só para os meus amigos da escola, onde eu publicava as fotos das besteiras que a gente fazia... Aí a escola acabou e eu comecei a falar de outros assuntos, ... acabou começando a ganhar muitos visitantes e eu decidi sair expandindo, tornando-se o que é hoje [um site de 'cultura pop' de muito sucesso]."3 3 Todos os depoimentos serão reproduzidos exatamente como foram redigidos pelos entrevistados. Serão mantidos os erros gramaticais e ortográficos, as gírias, as abreviações e todas as demais características da linguagem on-line.

Outros, como Eduardo e Carlos, no início queriam principalmente desabafar. Eduardo (19 anos, estudante de Comunicação) dizia: "queria um lugar para desabafar... só que eu criava minicontos em cima do que eu realmente vivia".Já Carlos (24, estudante de Sistemas de Informação) declarava: tinha"necessidade de me expressr [expressar]/ ... de compartilhar o q sinto co [com] pessoas q sentem o msmo [mesmo]"

Outros, ainda, admitiam que havia levado tempo para encararem aquilo a sério. Otávio (23, mestrando de Comunicação) é um exemplo. Diz: "Levou tempo até eu resolver levar o blog a sério, inicialmente foi só para colocar meus textos...".

Foram poucos aqueles que começaram a expor on-line com o desejo consciente de se profissionalizar. Bruno, Amanda e Danilo encontram-se nessa categoria.

Bruno (21 anos, estudante de Computação) aproveitou um nicho de mercado em sua pequena cidade natal e criou um site de cobertura de festas e eventos já com a finalidade explícita de ganhar dinheiro. Amanda (21 anos, estudante de Psicologia) afirmava estar: "procurando transformar [seu] hobbie [fotografia] em profissão. o blog seria um espaço para expor meu trabalho...". Já Danilo (29 anos, designer gráfico), dizia: "[Fiz o blog] pra ver se alguma empresa boa se interessa por [meus desenhos]".

De qualquer modo, todos desejavam leitores e visitas para o que expunham. Mesmo aqueles que alegavam não almejar popularidade se contradiziam ao revelar que contabilizavam os acessos que tinham. Por conta dessa contabilização (que todos faziam de um modo ou de outro), os entrevistados logo descobriram que expor somente não lhes trazia nenhum resultado. A "alma do negócio", perceberam, era a divulgação.

Como faziam a divulgação do que expunham

Aqueles que achavam que expor bastava logo aprenderam que disponibilizar conteúdo online não é suficiente para que este seja visto. O já mencionado Danilo admitia isso explicitamente: "Achei que era só por o blog no ar que já afria [faria] sucesso intantãneo [instantâneo], mas não é bem assim." Carlos (24, estudante de Informática) também não divulgava seu blog de poesias e se ressentia porque tinha poucos acessos. Como justificativa, dizia que poesia não é "assunto para vender".

Esses dois entrevistados eram, contudo, exceções em meio aos participantes da pesquisa. Todos os outros faziam divulgação ativa (com maior ou menor competência) daquilo que expunham. Como dizia Sérgio (22 anos, fotógrafo), na hora de divulgar,"vale de tudo, msn, skype, orkut e comunidades...". Helena (25 anos, estudante de Comunicação) parecia ter a mesma opinião. Para divulgar os vídeos que postava no YouTube, revelava "[coloco links]em todas as comunidades relacionadas no orkut (...) mando pra todo mundo da lista de email (...) coloco nos meus perfis dos sites de relacionamento, (...) no meu status do google, msn etc, vou nos vídeos do youtube que tem a ver e respondo [com o meu] vídeo, faço comentários e peço pras pessoas assistirem..../ enfim, sou bem cara de pau às vezes!!"

Além de usar muitas dessas estratégias, Otávio (23 anos, mestrando de Comunicação) procurava otimizar seu site para ganhar mais visitas por meio das buscas do Google. Segundo ele, isso envolvia "muitas coisas diferentes, desde mexer no html do site para torná-lo mais "relevante" para o google, até o uso das palavras-chave para aparecer nas primeiras posições no título das postagens." Dizia que "esse negócio de otimizar pro google é pano pra manga", mas indicava vários tutoriais on-line.

Outro entrevistado que procurava otimizar o posicionamento do seu site para as buscas do Google era Tomás (23 anos, que tem o bem-sucedido site de "cultura pop"). Essa, contudo, não era a única estratégia que usava para divulgá-lo. Tomás confiava bastante no boca a boca das pessoas que gostavam do site (pudera, tinha 25.000 acessos diários!). E ia além. Dizia: "eu facilito a coisa toda quando o assunto é acompanhar as atualizações... Tipo, você pode acompanhar por email, pelo leitor de feed, pelo facebook, pelo twitter e por aí vai... ".

Eram, no entanto, Amanda e Eduardo, de apenas 21 e 19 anos, respectivamente, que adotavam as formas mais criativas de divulgação dentre os participantes, lançando mão de várias estratégias simultâneas e conscientemente articuladas.

Amanda sabia que só expor seu trabalho não chamava visitas. Declarava: "por isso resolvi não só expor fotos [este é o seu grande investimento], como também escrever sobre fotografia. assim, pessoas que gostam do assunto, visitam...". Como fazia para divulgar seus blogs e site?"coloco na mensagem pessoal ou nick do msn... fica no meu perfil do Orkut, do facebook... falo a respeito pra um amigo ou outro.. mas o principal meio é pelo twitter [que tem penetração infinitamente maior do que as outras redes]." E como era a divulgação no Twitter? "Toda vez que eu posto um texto novo no blog, eu posto lá no twitter o link com o título do post... tenho duas contas de twitter... uma em que só posto em inglês coisas relacionadas a design... sigo e tenho seguidores interessados em design [ela fazia projetos de webdesign para estrangeiros e com o dinheiro que ganhava investia em fotografia]... e uma em português só pra postar sobre fotografias.. e com seguidores relacionados a isso... muitos visitam o blog e até retwittam o meu post... por isso o twitter é meu meio principal de divulgação".

Para Eduardo, o escritor de 19 anos que já tinha 3 livros publicados, o Twitter também era o principal meio de divulgação. Quando deu início ao seu blog, ele criava minicontos "e muitas [pessoas] começaram a visitar... tinha post com 140 comments [comentários]...". Em sua nova fase, ele não liberava comentários no blog. Esperto, ele usava o blog "como uma plataforma paralela ao twitter...". Isso quer dizer que os comentários eram feitos no Twitter que, como foi mencionado acima, tem uma penetração muito superior à de qualquer blog! Também fazia promoções. A propósito do lançamento de seu último livro, ele revelou: "Eu fiz uma semana de preparação, fui colocando coisas que iam atiçando as pessoas/ aí coloquei o livro/ e as pessoas foram retweetando/ fiz dois dias de divulgação só/ e na semana do lançamento do livro fisico fiz uma promoção, os 5 primeiros que dessem rt [retweet] ganhavam o livro...".

O tipo de retorno que obtinham

O retorno que tinham dependia tanto do que expunham quanto do investimento e da eficácia da divulgação que faziam. Se esse retorno os satisfazia ou não dependia também da sua definição de sucesso.

Dado que, na maior parte das vezes, a definição de sucesso dos entrevistados remetia à satisfação pessoal com um trabalho bem feito pelo qual receberiam remuneração financeira (imediata ou futuramente), quase todos se declararam satisfeitos com os resultados que vinham tendo. Para alguns, isso significava dizer que já estavam tendo retorno financeiro constante, como no caso de Tomás, cujo site de "cultura pop" dava um bom rendimento a partir de anúncios do Google AdSense. Para outros, como nos casos de Amanda (aquela que queria transformar o hobby de fotografia em profissão) e de Bruno (que criou um canal para a divulgação de eventos na sua cidade), significava que já estavam consistentemente conseguindo clientes na qualidade de fotógrafa profissional ou de promotor de eventos, respectivamente.

E havia vários outros tipos de retorno. Um deles era a popularidade associada ao reconhecimento. Para Eduardo, com seus parcos 19 anos, a exposição de seus escritos online havia propiciado a publicação de três livros "físicos", que, por sua vez, "além de alguns trocados", tinham atraído a valiosa atenção de vários jornais e facultado uma participação na Feira Literária Internacional de Parati (Flip). Popularidade também era o

retorno que Renato (27 anos, estudante de Psicologia) e seus companheiros recebiam por conta da exposição que faziam de sua banda no MySpace e nas redes sociais. Segundo Renato, essa exposição "permite que pessoas de todo o Brasil conheçam a banda (...) Fãs da Bahia, Acre, Rondonia [Rondônia] (... ) perguntam quando vamos tocar por lá."

Outros tinham obtido retorno pontual. No caso de Sérgio (22 anos, fotógrafo), este veio sob a forma da venda de um guia de jogos escrito por ele mesmo para o site de uma empresa especializada. Enquanto isso, Alexandre (26 anos, estudante de Comunicação Audiovisual) e seus amigos e parceiros tinham sido contratados para um trabalho por uma produtora a partir de um vídeo de sua autoria exposto no YouTube.

E eles estavam dispostos a esperar. Otávio (23 anos, mestando de Comunicação) ainda não tinha tido resultados satisfatórios a partir do seu blog, mas mostrava que não ia parar, pois já tinha uma boa quantidade de leitores, embora o retorno financeiro fosse "desconsiderável/ pelo menos por enquanto". O mesmo pode ser dito de Fernando (25 anos, que tem um blog no qual escreve "des-compromissadamente"). O blog ainda não fez sucesso, mas, segundo ele, dá sinais (um total de 17.000 acessos) de que "o caminho está certo".

Acham que a Internet gera alternativas de profissionalização?

O material apresentado ao longo das últimas seções torna evidente que sim. Os jovens entrevistados achavam que a Internet oferece formas alternativas de profissionalização, formas estas nas quais estavam investindo. Tomás, o jovem de 23 anos que tinha um site de "cultura pop" bem-sucedido, é, talvez, o melhor exemplo. Disse acreditar que a Internet gera alternativas de profissionalização e completou: "acho até que sou uma delas.

Comecei sem grandes pretensões... E hoje em dia vivo disso".

Na maior parte dos casos, eles consideravam que as formas tradicionais e aquelas geradas pela Internet podem coexistir e, até mesmo, se complementar. Como apontou Sérgio (22 anos, fotógrafo): "se você não tiver experiência fora da internet... como vai poder aplicar isso na internet... e vice versa".

As divergências entre eles corriam por conta das vantagens e desvantagens que percebiam existir nessas novas formas de profissionalização. Entre as vantagens, foram frequentemente mencionadas: a comodidade de poder trabalhar em casa em horários flexíveis, a de ser independente e prescindir de intermediários, a de não precisar de espaço físico para expor o que quisessem e a possibilidade única de errar e poder começar de novo sem que haja maiores consequências.

Já entre as desvantagens, apareceram as de não adquirir tanta experiência concreta como em campo e a ausência do diploma necessário para ser admitido em uma empresa (talvez por isso muitos não largavam a faculdade). A principal desvantagem apontada pelos participantes foi, no entanto, a de maior de instabilidade/insegurança quanto ao retorno financeiro. Para Otávio (23 anos, estudante de Comunicação): "a internet é um meio muito mutável... [há] uma série de coisas que, de uma hora para outra, podem fazer secar aquele dinheiro que você teria todo mês...". Mas alguns tinham consciência de que a autonomia acarreta insegurança tanto na Rede quanto fora dela.

Qual o papel que a criatividade exerce na construção dessas alternativas?

A grande maioria dos participantes acreditava que a Internet incentiva a exposição da criatividade. Tomás (23 anos, blogueiro), por exemplo, afirmou que isso acontece"Porque [se] tem espaço para expor ,,, sem precisar passar por um intermediário que detém o controle ou poder da informação". Renato (27 anos, estudante de Psicologia) lembrou que, além disso, na Internet "vc (...) encontra programas que vão lhe auxiliar a concretizar seus projetos (...),muitos tutoriais online e exemplos". Para Bruno (21 anos, estudante de Computação): "todo mundo quer mostrar seu trabalho [criativo] na internet (... ) porque a criatividade não faz você ser "mais um", mas "um" na multidão. Faz você queimar alguns neurônios e fazer algo diferente usando outros trabalhos como fonte de inspiração". Eduardo (19, estudante de comunicação) foi ainda mais contundente. Na sua opinião, a criatividade "é tudo/ absolutamente tudo". É aquilo que faz alguém se sobressair na multidão porque "é muito nego pra tudo/ pra tudo nessa vida/desde lançar algo [se referia a livros] até entrar no metrô/ é sempre muita gente /... / o mundo é dos criativos".

Discussão

Quando a pesquisa foi iniciada, parecia muito provável que os incontáveis jovens que disponibilizavam os produtos de seu talento on-line estivessem sofrendo os impactos diretos do sucesso e da profissionalização meteórica que inúmeros outros jovens haviam alcançado a partir de exposições análogas. Dado que esses casos eram frequentemente divulgados pela mídia impressa e on-line, uma possibilidade era a de que estavam tentando emulá-los. Os resultados da presente investigação, no entanto, oferecem uma visão bem mais complexa - e substanciada - do conjunto de influências que parece ter incidido pelo menos sobre os jovens que dela participaram.

Todos conheciam casos de sucesso, porém, para nossa surpresa, nenhum associou sua iniciativa de expor on-line à influência de nenhum deles. Como foi apresentado anteriormente, a grande maioria dos participantes da pesquisa afirmou haver começado a expor on-line "descompromissadamente", "por brincadeira", "sem levar a sério" o que estavam fazendo. Tais afirmações indicam que eles estavam postando conteúdo como uma forma de fazer algo novo (um entrevistado chegou a mencionar o combate ao ócio) e de explorar os novos ambientes da Web 2.0, comportamentos esses que não apresentavam nenhuma novidade tendo em vista que caracterizam o uso que jovens vêm fazendo da Internet desde os primordios desta (Nicolaci-da-Costa, 1998Nicolaci-da-Costa, A. M. (1998). Na malha da Rede: Os impactos íntimos da Internet. Rio de Janeiro: Campus.).

Esses achados contradiziam nossas expectativas iniciais e, por isso mesmo, nos levaram a formular novas perguntas. A exploração de novos ambientes e o espírito brincalhão não nos pareciam ser suficientes para gerar a explosão da produção criativa que vimos discutindo. O que mais poderia estar por trás dessa explosão?

De modo a fornecer respostas para essa pergunta, tornou-se necessário retroceder um pouco e analisar o potencial da própria Internet como um ambiente que estimula a produção e a circulação da criatividade. E, para tanto, foi indispensável retroceder ainda um pouco mais e retomar o que é dito na literatura especializada sobre ambientes ou contextos sociais que promovem a produção da criatividade. Vejamos.

Não é de hoje que estudiosos como Alencar (2005)Alencar, E. M. L. S. (2005). A gerência da criatividade. São Paulo: Makron Books., Arieti (1976)Arieti, S. (1976). Creativity: The magic synthesis. New York: Basic Books., De Masi (2002)De Masi, D. (2002). Criatividade e grupos criativos. (Vol. 2: Fantasia e concretude). Rio de Janeiro: Sextante. e Hartley (2005)Hartley, J. (2005). Creative industries. In J. Hartley (Org.), Creative industries (pp. 1-40). Malden, MA.: Blackwell. asseveram que ambientes (ou contextos sociais) que oferecem certas condições e oportunidades podem promover a criatividade.

Entre aquelas mencionadas por esses autores, destacam-se várias que são particularmente relevantes para a presente discussão. São elas: a oportunidade de acesso ao patrimônio cultural; o contexto propício para o desenvolvimento da agilidade, das relações informais e da espontaneidade; o fomento do interesse por diferentes pontos de vista; a possibilidade de trocas de ideias e de influência ou "contaminação" recíprocas; o encorajamento da busca entusiástica do aprendizado, da inovação, da vitalidade e do sucesso; o estímulo à capacidade de não ter medo de arriscar e errar; a facilidade de acesso à infraestrutura, às ferramentas e aos materiais necessários para o desenvolvimento de um projeto ou de um produto e o reconhecimento social da criatividade.

Vale lembrar que a Internet vem oferecendo a maior parte desses estímulos e oportunidades desde os seus primeiros momentos (Nicolaci-da-Costa, 1998Nicolaci-da-Costa, A. M. (1998). Na malha da Rede: Os impactos íntimos da Internet. Rio de Janeiro: Campus.). Apenas o acesso à infraestrutura e às ferramentas e materiais necessários (que, na Internet, podem ser de diversos tipos) bem como o reconhecimento social da criatividade surgiram, ou se tornaram mais evidentes, recentemente, em decorrência da Web 2.0.

Todos esses fatores de promoção da criatividade são importantes em um ou outro momento do processo de produção e exposição dos talentos individuais que vimos discutindo e todos são fundamentais para o enorme incremento da produção e exposição de conteúdo criativo dos últimos anos - e para o consequente surgimento de formas alternativas de profissionalização. De modo a poder examinar o papel por eles desempenhado, quando considerados individualmente ou em conjunto, é útil, porém, que adotemos pelo menos dois pontos de vista complementares: o dos desenvolvedores de ambientes e ferramentas para a Web e o dos usuários desta.

Adotemos, inicialmente, o ponto de vista dos desenvolvedores. Foram suas iniciativas criativas (muitas vezes, individuais) que geraram ambientes amigáveis (a infraestrutura) e ofertaram as ferramentas e os materiais (de diversos tipos) para que incontáveis usuários ao redor do mundo pudessem utilizá-los para postar na Web conteúdo criativo de sua própria autoria.

Já a criatividade dos usuários comuns, como nossos resultados revelam, deve ser subdividida em dois tipos de manifestação.

A primeira é obviamente a geração de conteúdos criativos dos mais variados tipos. Tal geração pressupõe a presença de outras características da Web acima mencionadas sem as quais não seria possível. Antes de tudo, certamente requer a busca do aprendizado, da inovação e do sucesso tão claramente evidenciada por vários dos nossos entrevistados. Requer também a capacidade de não ter medo de arriscar e errar, revelada explicitamente por alguns participantes da pesquisa e tornada evidente no caso de praticamente todos. Requer infraestrutura e o acesso à esta, às ferramentas e aos materiais necessários para a tarefa a ser executada, ferramentas e materiais esses que foram gerados e disponibilizados (no mais das vezes, gratuitamente) por incontáveis programadores e desenvolvedores de ambientes. Por último, requer que haja o reconhecimento social da criatividade, que é o que todos desejam e muitos alcançam.

No que diz respeito à divulgação, a criatividade dos entrevistados é fomentada pela facilidade de circulação da informação, característica da Internet, potencializada pelas várias redes sociais que se entrecruzam e multiplicam as possibilidades de tornar popular o totalmente desconhecido.

Quando a geração de conteúdo é criativa e sua divulgação eficaz, as portas podem se abrir para formas alternativas de ingresso no mercado de trabalho, como nossos resultados mostram. Não se deve, no entanto, atribuir exclusivamente a essa conjugação de fatores, ou capacidades individuais, a responsabilidade pela recente explosão de criatividade. A verdadeira responsável parece ser a própria Internet, principalmente em sua versão 2.0.

De fato, nossos resultados sugerem fortemente que aquilo que levou nossos entrevistados a expor seus talentos on-line - na maior parte das vezes, como foi visto, sem o objetivo explícito de conseguir uma posição no mercado de trabalho - foi exatamente o próprio ambiente inovador da Web e, talvez, principalmente, as trocas de ideias características do dia a dia on-line que, mais do que a capacidade de influenciar, têm um poder de "contaminação" análogo ao de um vírus. Em meio a tudo isso, seguramente circulavam links e informações sobre aqueles que vimos chamando de "casos de sucesso". Assim sendo, muito provavelmente, foi um conjunto de aspectos característicos da "Grande Rede" que acabou gerando a explosão de criatividade analisada ao longo deste artigo bem como a profissionalização de muitos jovens dela decorrente.

Referências

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  • De Masi, D. (2002). Criatividade e grupos criativos. (Vol. 2: Fantasia e concretude). Rio de Janeiro: Sextante.
  • Florida, R. (2005). Cities and the creative class. New York: Routledge.
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  • Nicolaci-da-Costa, A. M. (2007). O campo da pesquisa qualitativa e o Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). Psicologia. Reflexão e Crítica, 20(1), 65-73. doi: 10.1 590/S0102-79722007000100009.
    » https://doi.org/10.1590/S0102-79722007000100009
  • Nicolaci-da-Costa, A. M. (2011). O talento jovem, a Internet e o mercado de trabalho da "economia criativa". Psicologia e Sociedade, 23(3), 552-561. doi: 10.1590/S0102-71822011000300013
  • Nicolaci-da-Costa, A. M., Romão-Dias, D., & Di Luccio, F. (2009). O uso de entrevistas on-line no Método de Explicitação do Discurso Subjacente (MEDS). Psicologia. Reflexão e Crítica, 22(1), 36-43. doi: 10.1590/S010279722009000100006
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  • 1
    Essa pergunta, no entanto, não era feita diretamente, mas sim indiretamente, por meio de várias perguntas que faziam parte de um roteiro bem mais abrangente, como será mostrado abaixo.
  • 2
    De modo a preservar a privacidade dos entrevistados, todos os nomes e apelidos serão trocados.
  • 3
    Todos os depoimentos serão reproduzidos exatamente como foram redigidos pelos entrevistados. Serão mantidos os erros gramaticais e ortográficos, as gírias, as abreviações e todas as demais características da linguagem on-line.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    22 Mar 2013
  • Revisado
    26 Fev 2014
  • Aceito
    18 Set 2014
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