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As Significações de Profissionais que Atuam no Programa Saúde na Escola (PSE) Acerca das Dificuldades de Aprendizagem: Patologização e Medicalização do Fracasso Escolar

The Meanings that Professionals who Work in the School Health Program (SHP) Give to Learning Difficulties: Pathologization and Medicalization of School Failure

Las Significaciones de Profesionales que Actúan en el Programa Salud en la Escuela (PSE) Acerca de las Dificultades de Aprendizaje: Patologización y Medicación del Fracaso Escolar

Resumos

Este artigo tem como objetivo identificar as significações que os profissionais que atuam como articuladores no Programa Saúde na Escola (PSE) têm acerca das dificuldades de aprendizagem geradoras do fracasso escolar. Participaram da pesquisa dez profissionais que atuam como articuladores do PSE, sendo cinco vinculados à Educação e os demais à Saúde. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas, gravadas com a autorização dos participantes e analisados com base no método de análise de conteúdo temática. Os resultados indicaram que os entrevistados compreendem as dificuldades de aprendizagem como decorrentes principalmente da família pobre e/ou desestruturada e de problemas do aluno. As práticas pedagógicas e políticas educacionais também apareceram, com menor destaque, como corroboradoras desse fenômeno. Destarte, há uma compreensão do PSE como um programa que pode contribuir para a superação das dificuldades de aprendizagem por meio do diagnóstico e medicalização, evidenciando uma compreensão reducionista do processo.

Dificuldades de aprendizagem; Medicalização; Programa Saúde na Escola


This article aims to identify the meanings that professionals who act as articulators in School Health Programs (SHP) give to learning difficulties that generate school failure. Ten professionals who act as articulators of SHPs participated in this study: five education professionals and five health professionals. Data were collected through semi-structured interviews recorded with the permission of the participants. They were analyzed based on the thematic content analysis method. The results indicated that respondents understand learning difficulties as arising mainly from poor and/or dysfunctional families and students' problems. Pedagogical practices and educational policies have also appeared, with less emphasis, as corroborating this phenomenon. Therefore, the School Health Program is understood as a program that can contribute to overcoming learning difficulties through their diagnosis and medicalization, showing a reductive understanding of this phenomenon.

Learning difficulties; Medicalization; School Health Program


Este artículo tiene el objetivo de identificar las significaciones que tienen los profesionales que actúan en el Programa Salud en la Escuela (PSE) acerca de las dificultades de aprendizaje generadoras del fracaso escolar. Participaron del estudio 10 profesionales que actúan como articuladores del PSE, de los cuales 5 están vinculados a la educación y los otros 5 a la salud. Los datos fueron obtenidos por medio de entrevistas semiestructuradas, grabadas con la autorización de los participantes y analizadas basándose en el método de análisis temático del contenido. Los resultados indicaron que los entrevistados entienden las dificultades de aprendizaje debido principalmente a la familia pobre y/o desestructurada y a problemas del alumno. Las prácticas pedagógicas y políticas educativas también aparecieron, con menor destaque, corroborando ese fenómeno. De esta manera, se comprende que el PSE es un programa que puede contribuir para la superación de las dificultades de aprendizaje por medio del diagnóstico y medicalización, mostrando una comprensión reduccionista del proceso.

Dificultades de aprendizaje; Medicalización; Programa Salud en la Escuela


Introdução

Este estudo tem a finalidade de apresentar os resultados de uma pesquisa realizada junto a profissionais que atuam como articuladores1 1 Articuladores são profissionais lotados em escolas públicas e em Unidades Básicas de Saúde responsáveis pelo levantamento e encaminhamento das demandas escolares ao PSE e que participam periodicamente das reuniões do Grupo de Trabalho Intersetorial, nas quais são tratadas questões emergentes da análise do fluxo entre a demanda e o encaminhamento. entre Unidades Básicas de Saúde e escolas na implementação do Programa Saúde na Escola (instituído pelo decreto presidencial e interministerial 6.286 de 2007) (Brasil, 2007Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria-Executiva. Departamento de Apoio à Descentralização. Coordenação de Apoio à Gestão Descentralizada. Regulamento dos pactos pela vida e de gestão (Série A. Normas e Manuais Técnicos). Brasília. 2006. ). Objetivou-se conhecer as significações dos profissionais acerca das dificuldades de aprendizagem escolar e a relação dessas significações com os encaminhamentos via PSE.

Durante décadas seguidas, autores da área de conhecimento atualmente reconhecida como Psicologia Escolar e Educacional trataram de delimitar e esclarecer as interfaces da relação entre Psicologia e Educação e, como parte constituinte dessa, a questão do fracasso escolar. Muitas teorias explicativas dessa relação foram criadas, bem como muitas políticas educacionais voltadas à tentativa de superação desse fenômeno.

A análise do fracasso escolar no campo da psicologia foi fortemente marcada por um viés unidirecional, focado ora na dimensão da aprendizagem, ora na do ensino. Em estudo clássico, Patto (2000)Patto, M. H. S. (1997). Da psicologia do desprivilegiado à Psicologia do oprimido. In M. H. S. Patto (Org.), Introdução à psicologia escolar (3. ed., pp. 257-279). São Paulo: Casa do Psicólogo. afirma que já no fim da década de 1970 houve uma fratura nesse discurso, quando alguns projetos de pesquisa desenvolvidos por profissionais de Psicologia do estado de São Paulo propuseram investigar a participação do sistema escolar no resultado do baixo rendimento dos estudantes de escolas públicas. Na maior parte do território brasileiro, entretanto, somente a partir da década de 1990 é que a natureza dialética da relação entre ensino e aprendizagem e suas implicações na produção do fracasso escolar foi acolhida como objeto de estudos e de intervenção nesse campo (Feijó, 2000). Um estudo de revisão de literatura sobre fracasso escolar realizado por Angelucci, Kalmus, Paparelli e Patto (2004) identificou que, apesar de coexistirem perspectivas distintas entre os vários trabalhos analisados pelos autores, há o predomínio de perspectivas psicologizantes e tecnicistas que remetem a uma individualização dos processos, o que facilitaria a medicalização por tornar o fracasso escolar responsabilidade única do aluno.

A culpabilização do aluno pelos problemas de aprendizagem produtores do fracasso escolar, especialmente o proveniente de camadas populares, de acordo com Proença (2004), é um fenômeno presente há muitas décadas. O aluno é responsabilizado por apresentar problemas psicológicos, biológicos, orgânicos e, mais recentemente, socioculturais. Segundo a autora, essas explicações apresentam um caráter ideológico e evidenciador do preconceito em relação à pobreza no Brasil. Fazendo uma crítica a essa perspectiva por meio da análise dos processos que constituem o cotidiano escolar, a autora concluiu que

[...] existe um complexo universo de questões institucionais, políticas, individuais, estruturais e de funcionamento presentes na vida escolar que conduzem ao seu fracasso, mantendo altos índices de exclusão, principalmente de crianças e adolescentes de camadas mais pobres de nossa sociedade (Souza, 2010, p. 59).

Embora as concepções reducionistas de Psicologia Escolar ainda estejam presentes, muito se tem avançado na relação entre Psicologia e Educação (Angelucci et al., 2004; Antunes, 2008Antunes, M. A. M. (2008). Psicologia escolar e educacional: história, compromissos e perspectivas. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), 12(2), 469-475 Recuperado em 10 de abril de 2011 da SciELO(Scientific Eletronic Library Online): http://www.scielo.br/scielo/
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; Tondin, Dedonatti & Bonamigo, 2010Tondin, C. F., Dedonatti, D., & Bonamigo, I. S. (2010). Psicologia escolar na rede pública de educação dos Municípios de Santa Catarina. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, 14(1), 65-72. Recuperado em 12 de fevereiro de 2011 da SciELO (Scientific Electronic Library Online): http://www.scielo.br/scielo/
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; Soares & Araujo, 2010Soares, P. G., & Araujo, C. M. M. (2010). Práticas emergentes em Psicologia Escolar: a mediação no desenvolvimento de competências dos educadores sociais. Revista Semestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional (ABRAPEE), 14(1), 45-54. Recuperado em 12 de fevereiro de 2011 da SciELO (Scientific Electronic Library Online): http://www.scielo.br/scielo/
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). Os pesquisadores da área têm se dedicado a produzir conhecimentos acerca de temáticas como: processos de ensino e aprendizagem, desenvolvimento humano, escolarização em seus diversos níveis, inclusão de pessoas com deficiências, políticas públicas em educação, gestão psicoeducacional em instituições, avaliação psicológica, história da Psicologia Escolar, formação continuada de professores, dentre outros temas (ABRAPEE, 2012).

Em outro campo, a Psicologia vem reconstruindo sua relação com a área da Saúde no Brasil, especialmente a da Saúde Coletiva. Isso ocorre tanto por meio do abandono dos saberes focados no entendimento unidirecional do sofrimento psíquico, como por meio da construção de práticas que diferem daquela voltada ao atendimento clínico individual. Essa mudança vem sendo fortemente impulsionada pelas exigências de inclusão e de adequação dos cursos da área da Saúde ao ideário do Sistema Único de Saúde (SUS), preconizada no Pacto pela Vida, em defesa do SUS (Brasil, 2006).

Embora tenham ocorrido mudanças na produção do conhecimento da Psicologia nos campos da Educação e da Saúde, os psicólogos ainda continuam sendo solicitados a realizar práticas voltadas ao diagnóstico e à medicalização. Isso exige deles um posicionamento ético-político, voltado ao rompimento dessas práticas, e a criação de estratégias de intervenção promotoras dos direitos humanos nas diversas políticas em que direta ou indiretamente eles se inserem.

Um programa em que o psicólogo tem sido convidado a participar por meio de sua inserção no NASF é o PSE. Trata-se de um programa intersetorial envolvendo os ministérios da Saúde e da Educação (instituído pelo decreto presidencial e interministerial 6.286 de 2007). Esse visa "contribuir para a formação integral dos estudantes da rede pública de educação básica por meio de ações de prevenção, promoção e atenção à saúde" (Brasil, 2007). Seu objetivo é propiciar ações de promoção à saúde previstas no Plano Nacional de Educação (PNE) a partir da operacionalização de cinco componentes: avaliação das condições de saúde (clínica e psicossocial); promoção da saúde e prevenção das doenças e agravos; educação permanente e capacitação de profissionais da Educação e Saúde e de jovens para o PSE; monitoramento e avaliação da saúde dos estudantes; e monitoramento e avaliação do PSE.

O decreto presidencial e interministerial que institui o PSE não prevê ações próprias à intervenção de psicólogos no programa, embora esses profissionais constituam as equipes multiprofissionais vinculadas a atividades do Programa Saúde na Família das Unidades Básicas de Saúde. O mais próximo de uma referência a aspectos psicológicos a serem considerados pelo PSE encontra-se delineado no item VII do artigo quarto do referido decreto, no qual se define - como uma das ações de atenção, promoção, prevenção e assistência à saúde do escolar - a avaliação psicossocial.

O presente estudo surgiu após a inserção de estagiários do curso de Psicologia em escolas em que o PSE vinha sendo implementado. A partir das observações realizadas nessas unidades educativas, percebeu-se que, com a possibilidade de encaminhar demandas escolares às Unidades Básicas de Saúde, os profissionais da Educação passaram a explicitar mais comumente expectativas de avaliação e atendimento clínico às dificuldades de aprendizagem também no contexto escolar. Constatou-se ainda que, em alguns casos, essa expectativa encontrava eco no fato de que havia psicólogos trabalhando junto aos Núcleos de Atenção à Saúde da Família (NASF), os quais integravam equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF), atuantes nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) vinculadas ao PSE. Em síntese, percebeu-se que os trabalhadores da Educação, embora isso não esteja previsto ou indicado no PSE, entendiam ser necessário incluir no conjunto de ações previstas pelo PSE o modus operandi e os saberes próprios da Psicologia.

Considerando-se que os encaminhamentos via PSE seguem o fluxo escola-Unidade Básica de Saúde, tem-se como um dos destinos possíveis dessa demanda o seu acolhimento por parte de profissionais da Medicina e da Psicologia e a consequente reativação da medicalização do fracasso escolar. Autores como Bittencourt (2010)Bittencourt, S. C. (2010). Medicamentos psicoativos utilizados na infância: uma abordagem a partir da ética da responsabilidade de Hans Jones. In S. Caponi, M. Verdi, F. Brzozowski, & F. Hellmann (Orgs.), Medicalização da vida, ética, saúde pública e indústria farmacêutica (pp. 201-213). Palhoça: UNISUL. e Moysés e Collares (2010) destacam com propriedade as consequências que a política da medicalização pode trazer para as crianças, enfatizando a patologização de todos aqueles alunos que não se enquadram nos padrões desejados.

A pesquisa realizada por Cabral e Sawaya (2001)Cabral, E., & Sawaya, S. M. (2001). Concepção e atuação profissional diante das queixas escolares: os psicólogos nos serviços púbicos de saúde. Estudos em Psicologia, 6(2), 143-155. Recuperado em 25 de julho de 2011 da SciELO (Scientific Electronic Library Online): http://www.scielo.br/scielo/
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junto a profissionais que atuam nos serviços públicos de saúde do município de Ribeirão Preto também justifica a preocupação com a medicalização do fracasso escolar. Os resultados obtidos pelas autoras mostraram que mesmo os profissionais psicólogos ainda compreendem a queixa escolar como um problema do aluno pobre e de sua família, passível de ser analisado e tratado fora do contexto escolar. Embora os entrevistados apontem a participação da escola na produção das dificuldades escolares, o foco de intervenção ainda é o atendimento individualizado dos alunos e dos seus familiares. As autoras destacam que, apesar dos avanços teórico-metodológicos presentes nas novas compreensões das queixas escolares, eles ainda não se fazem suficientemente presentes na atuação desses profissionais.

As informações identificadas por Cabral e Sawaya (2001) alertam para o risco de que, via PSE, se intensifique e concretize a reprodução de uma perspectiva medicalizante de encaminhamento à queixa escolar pautada em uma visão liberal de Educação ainda presente na contemporaneidade (Souza, 2010). Na perspectiva da Psicologia Escolar crítica, isso representa um retrocesso, tanto do ponto de vista científico como ideológico. Em relação ao aspecto científico, porque autores pertencentes a um coletivo de pensamento reconhecido na produção da pesquisa acadêmica e da prática social vêm apontando há décadas para a ineficácia da abordagem individual e medicamentosa das dificuldades de aprendizagem (Patto, 2000). No que se refere à questão ideológica, porque representa um contrassenso às próprias políticas públicas governamentais, que vêm buscando implementar os princípios da territorialidade (pertencimento), intersetorialidade (corresponsabilidade), educação integral (o sujeito na sua totalidade) e saúde integral (a busca de autonomia e do autocuidado), além do controle social dessas políticas.

Diante disso, destaca-se a necessidade de se conhecer as significações dos profissionais que integram o PSE acerca das dificuldades de aprendizagem para, a partir disso, caso essas reproduzam a perspectiva da patologização e medicalização das queixas escolares, obter subsídios para o desenvolvimento de estratégias voltadas a sua modificação.

Acredita-se que o estudo dessas concepções e dos significados a elas vinculados é relevante para a produção de conhecimentos nesse campo de saber, voltados à construção de uma escola que consiga cumprir a função social de possibilitar que os alunos se apropriem dos conhecimentos historicamente produzidos pela humanidade (Facci, 2009Facci, M. G. D. (2009). Intervenção do psicólogo na formação de professores: contribuições da psicologia histórico-cutural. In C. M. Marinho-Araujo (Org.), Psicologia escolar: novos cenários e contextos de pesquisa, formação e prática (pp. 107-131). Campinas: Alínea.; Meira, 2003Meira, M. E. M. (2003). Construindo uma concepção crítica de Psicologia Escolar: contribuições da pedagogia histórico-crítica e da psicologia sócio-histórica. In M. E. M. Meira & M. A. M. Antunes (Orgs.), Psicologia escolar: teorias críticas (pp. 13-77). São Paulo: Casa do Psicólogo.; Rego, 2002Rego, T. C. (2002). Configurações sociais e singularidades: o impacto da escola na constituição do sujeito. In M. K. Oliveira (Org.), Psicologia, educação e temáticas da vida contemporânea. São Paulo: Moderna.). A produção de conhecimentos no campo da Educação também pode corroborar a construção de práticas educativas destinadas à valorização da diversidade de modos de ser e aprender, potencializando a configuração de um processo educativo voltado à garantia dos direitos humanos.

Método

Esta pesquisa é um estudo qualitativo e de cunho exploratório. Como forma de responder ao objetivo proposto, foram entrevistados dez profissionais que atuam como articuladores no PSE. Como o município é dividido em cinco distritos sanitários que abrangem as diferentes áreas de seu território, optou-se por escolher um profissional da Saúde e um profissional da Educação de cada distrito. Os profissionais da Educação atuavam nas funções de professor, coordenador pedagógico, assistente técnico-pedagógico e auxiliar de laboratório. Os profissionais da Saúde desempenhavam as funções de enfermeiro, técnico de enfermagem e médico.

Quanto à formação dos profissionais da Educação, todos apresentavam nível superior completo, sendo que dois deles tinham pós-graduação em nível de especialização. Já no que se refere à formação dos profissionais da Saúde, havia um com nível técnico, dois graduados, um pós-graduado em nível de especialização e um com mestrado.

Utilizou-se como instrumento de coleta de informações a técnica de entrevista semiestruturada com base em um roteiro que atendia aos objetivos da pesquisa, além de observações das atividades do Grupo de Trabalho Intersetorial (GTI), que envolvia os profissionais das duas áreas. As observações foram realizadas ao longo de todas as etapas da pesquisa, registradas em diário de campo e serviram para subsidiar a construção do roteiro de entrevista. As entrevistas foram realizadas entre agosto e outubro de 2011, gravadas com o consentimento dos participantes e posteriormente transcritas para a realização da análise. Para evitar a identificação dos participantes, foram atribuídos nomes fictícios.

Quanto ao procedimento de análise de informações, optou-se pela técnica de análise temática com base em Minayo (2004)Minayo, M. C. S. (2004). O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (8. ed.). São Paulo: Hucitec.. Essa envolveu as seguintes etapas: transcrição textual das entrevistas, pré-análise do material coletado, leitura e releitura das transcrições e sistematização das respostas dos sujeitos em núcleos temáticos.

Destaca-se que na etapa de análise das informações buscou-se compreender as significações que os sujeitos têm sobre o PSE, considerando que essas são mediadoras do modo como pensam, sentem e agem, portanto, do modo como implementam essa política no cotidiano.

Resultados e discussão

A análise das informações indicou dois eixos centrais. Um deles aponta a compreensão que os entrevistados têm das dificuldades de aprendizagem geradoras do fracasso escolar. O outro evidencia a compreensão do PSE como um programa voltado à medicalização dessas dificuldades. No primeiro eixo, a compreensão dos articuladores do PSE abrangeu três explicações para a origem desse fenômeno. São elas: a) as dificuldades de aprendizagem como decorrentes da família pobre e/ou desestruturada; b) as dificuldades de aprendizagem como decorrentes de problemas do aluno; e c) a escola e as políticas públicas como co-produtoras das dificuldades de aprendizagem. O outro eixo de análise refere-se à compreensão do papel do PSE como um agente que pode contribuir para o diagnóstico e medicalização das dificuldades de aprendizagem.

As dificuldades de aprendizagem como decorrentes da família pobre e/ou desestruturada

Nesta unidade temática destacar-se-á a compreensão de que as dificuldades de aprendizagem produtoras do fracasso escolar são decorrentes de problemas familiares. Entre as problemáticas mais citadas, salientam-se a pobreza, a falta de instrução dos pais e o ambiente familiar tolhedor do desenvolvimento emocional da criança.

Na visão de alguns articuladores, as dificuldades financeiras obstaculizam os pais a levarem os filhos para os serviços de saúde, intervenção considerada fundamental para a compreensão das dificuldades de aprendizagem. Fabíola, articuladora da Saúde, ressalta tal aspecto em sua fala, afirmando que tem encaminhado muitas crianças para um serviço de avaliação do desenvolvimento infantil vinculado ao PSE, mas "[...] a mãe não leva, abandona. [...] Então, a gente vê que realmente tem um problema, só que a família não [...] Às vezes, não tem condições financeiras de ir levar a criança até o serviço de avaliação".

A visão de que a família encontra dificuldades para orientar os filhos na lição de casa e demais aspectos relacionados à vida escolar do filho e para estabelecer regras e limites a eles também ficou evidente na fala de alguns entrevistados. Um dos depoimentos que sintetizam essa questão:

É difícil uma criança que não tem esse olhar da família, mesmo que seja pequeno. De repente, o pai ou a mãe não sabem nem resolver aquilo que está sendo pedido na lição de casa, mas eles: "Filho, vamos fazer", não sei o quê, tem horário para as coisas, tem limite, isso vai dar um desempenho infinitamente melhor na escola porque a criança sabe ter limite, ela sabe que tem que fazer o horário. Agora, a criança que é criada solta, ela também vai achar que faz o que quer da escola (Marcela, articuladora da Educação).

Pode-se perceber que os profissionais entrevistados têm uma expectativa em relação ao modo como os pais devem educar os filhos, tanto no que se refere à aprendizagem dos conteúdos escolares como também ao estabelecimento de regras e limites. Corroborando as questões acima apresentadas, Thin (2006)Thin, D. (2006). Para uma análise das relações entre famílias populares e escola: confrontação entre lógicas socializadoras. Revista Brasileira de Educação, 11(32), 211-225. Recuperado em 11 de maio de 2011 da SciELO (Scientific Eletronic Library Online): http://www.scielo.br/scielo/
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pontua que muitas vezes as práticas pedagógicas dos pais se distanciam das práticas dos educadores, levando esses a considerarem aqueles como "fracos" do ponto de vista da autoridade que exercem sobre as crianças, sendo "muito rígidos" ou "muito permissivos". Essa "fraqueza" seria a nascente dos problemas de comportamento apresentados por crianças provenientes de camadas populares. O autor acima acresce, ainda, a temporalidade como fator que interfere na relação entre escola e família. Em algumas famílias, a relação com o tempo não se dá através de calendários, agendas, relógios e todos esses mediadores temporais presentes na escola.

Outra explicação sobre as dificuldades de aprendizagem como decorrentes da família identificada neste estudo refere-se à compreensão de que essas famílias são descomprometidas em relação ao desempenho escolar dos filhos. Ou seja, em vez de associar as dificuldades de aprendizagem como decorrentes de problemas sociais da família, os articuladores, ancorados em um discurso normatizador, culpabilizam-na pelas dificuldades de aprendizagem de seus filhos. Os depoimentos abaixo reiteram tal compreensão:

[a dificuldade de aprendizagem] muitas vezes é culpa da família, né? Não tem aquele estímulo desde o início, não tem procurado antes. Só aparece quando a criança entra na escola (Maria, articuladora da Educação). [...] É a família que não participa da vida do menino na escola, não vai pegar boletim, não vai às reuniões de pais (Martha, articuladora da Educação). Porque, para mim, tem muitos pais que tanto faz como tanto fez, a criança aí ou não, aprendeu ou não aprendeu. Tanto faz. Porque ele também não estudou, mas trabalha e consegue seu sustento (Fabíola, articuladora da Saúde).

Essa explicação do fracasso escolar como decorrente da falta de compromisso dos pais com a educação de seus filhos também foi identificada por Patto (2000). As considerações apresentadas pela autora apontam a importância de sair do plano das generalizações e conhecer a realidade das famílias, bem como o significado que elas atribuem ao contexto educativo. Nesse sentido, Ribeiro e Andrade (2006)Ribeiro, D. F., & Andrade, A. S. (2006). A assimetria na relação entre família e escola pública. Paidéia, 16(35), 385-394. Recuperado em 10 de abril de 2011 da SciELO (Scientific Eletronic Library Online): http://www.scielo.br/scielo/
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realizaram um estudo junto aos profissionais de uma escola e às famílias. Esse mostrou que os primeiros também tinham, na sua maioria, uma visão da família como descomprometida com a vida escolar dos filhos. Todavia, ao ouvirem os pais, os autores constataram que mesmo os que não tiveram acesso à escolarização significavam o estudo como importante para o sucesso dos filhos.

Outro dado interessante que a presente pesquisa mostrou é que os articuladores veem o agente de Saúde e a equipe do PSE de modo geral como profissionais que operam em uma relação hierárquica e vertical na qual acabam "fiscalizando" a família da criança, passando essas informações para a escola e, por meio disso, produzindo verdades voltadas à justificação da não aprendizagem dos alunos. O depoimento abaixo expressa a visão dos participantes da pesquisa que corrobora essa percepção:

E essa parceria com o Centro de Saúde ajuda bastante, porque o Centro tem as agentes de Saúde que visitam a família, visitam a casa dessa criança. Então, às vezes, na reunião do Posto, eu fico descobrindo que aquele menino mora numa casa que é uma boca de fumo, que é entra e sai dia e noite de gente que vai comprar droga, e esse menino é aquele que dorme na sala de aula, provavelmente porque na casa dele à noite é um entra e sai o tempo inteiro, ele não está com um sono tranquilo. Então a gente começa a resgatar, começa a descobrir todo o modo social da criança que a escola muitas vezes não tem como ver. Porque se a criança não falar, ninguém mais da família vai chegar para contar uma situação que se passa na casa da família (Martha, articuladora da Educação).

O depoimento acima aponta que há, entre os articuladores do PSE, uma preocupação em conhecer o contexto social em que o aluno está inserido. Todavia, esse conhecimento é utilizado para justificar o comportamento e a aprendizagem dele em sala de aula. Além disso, evidencia-se, tanto na fala acima como nos demais depoimentos obtidos na pesquisa, que os articuladores do PSE percebem os pais como incapazes de participar da vida escolar dos filhos de forma satisfatória, para alavancar a aprendizagem deles.

Os depoimentos apresentados nesse tópico também ratificam a informação já identificada por Ribeiro e Andrade (2006) de que a escola tem produzido uma relação assimétrica com a família, predominantemente caracterizada como desestruturada e carente culturalmente. Além disso, a escola tem apresentado dificuldades para considerar que suas práticas podem também produzir fracasso escolar. Ressalta-se, no entanto, que esse processo de culpabilização da família ganha força com a parceria da escola com as Unidades Básicas de Saúde via PSE.

Ademais, a compreensão do fracasso escolar das crianças atendidas pelo PSE parece bastante ancorada na Teoria da Carência Cultural, predominante no Brasil desde a década de 1970 e ainda presente na contemporaneidade. Essa teoria compreende que o fracasso escolar dos alunos de camadas populares se deve a deficiências ou déficits culturais decorrentes de suas precárias condições de vida. Ou seja, o ambiente carente em que as crianças vivem gera deficiências de diversas ordens que impossibilitam o bom desempenho na escola (Sawaya, 2002). Nessa perspectiva, o padrão de mensuração da família utilizado foi, e ainda hoje é, segundo Patto (1997), o padrão cultural da classe dominante.

Em síntese, o presente estudo mostrou que muitos articuladores, com base em um modelo idealizado de família, culpabilizam os pais das crianças pelas dificuldades de aprendizagem geradoras do fracasso escolar. Há uma ideia preconcebida de que fatores como pobreza, falta de instrução formal dos pais e demais elementos presentes nas comunidades em que as famílias habitam são componentes que obstaculizam o desenvolvimento cognitivo e emocional da criança. No próximo tópico será mostrado como essas dificuldades de aprendizagem também são buscadas nos alunos.

As dificuldades de aprendizagem como decorrentes de problemas do aluno

Outra significação que emergiu nos depoimentos dos entrevistados refere-se à compreensão de que as dificuldades de aprendizagem geradoras do fracasso escolar são decorrentes de problemas do aluno. Alguns dos problemas citados apresentam uma aproximação maior com as questões de ordem biológica, sendo que os mais citados foram as dificuldades de visão e de audição e a desnutrição.

Todavia, a maioria dos depoimentos relacionou as dificuldades de aprendizagem geradoras do fracasso escolar a questões psicológicas. A explicação de que os problemas emocionais interferem na capacidade de aprendizagem foi uma constante, pois "se esse lado emocional não é muito bom, assim, não está muito equilibrado, desequilibrou de alguma forma seja lá qual for, afeta no aprendizado. Ela não consegue ter atenção, concentração. E o emocional interfere, sim" (Flávia, articuladora da Educação).

As características ligadas ao emocional mais presentes nas falas dos educadores foram: agitação; agressividade; hiperatividade; apatia; dificuldade de concentração, memorização e interpretação; e déficit de atenção. Relaciona-se alguns depoimentos que elucidam a compreensão das dificuldades de aprendizagem geradoras do fracasso escolar das crianças na perspectiva dos articuladores.

A dificuldade de aprendizagem aparece na Matemática ou na linguagem ou na interpretação, nos cálculos [...]. De que eles não interpretam ou é muito hiperativo. Não acompanha, não consegue terminar uma atividade. Ou não consegue se concentrar. A queixa maior é mais em relação a isso. É agitado e não se concentra. E não consegue terminar a tarefa. E lê e não entende, a questão da interpretação. Mais nesse sentido. (Maria, articuladora da Educação). Olha, o que mais aparece na verdade são relatos. Então tem muito assim: dificuldade de concentração. Essa palavra tem em quase todos os encaminhamentos [...] Aluno com comportamento agressivo dentro da sala de aula aparece como justificativa de não aprendizagem também. Aluno que faz bagunça mesmo, que quer chamar a atenção, que incomoda os colegas dentro de sala de aula é bem frequente. Acho que essas são as principais queixas que vêm quando tem algum relato de dificuldade de aprendizagem (Cássia, articuladora da Saúde).

Alguns aspectos devem ser problematizados em relação aos depoimentos apresentados. Uma questão refere-se à dificuldade de os articuladores, tanto da Educação como também da Saúde, considerarem as diferenças de modos de aprender como inerentes à diversidade humana. Há preocupação em garantir uma certa homogeneidade dos modos de ser e de aprender dos alunos. Essa acaba tendo como efeito o encaminhamento deles para diagnóstico e avaliação via PSE, com possibilidade efetiva de medicalização da queixa como forma de superá-la.

Autores como Rocha (2000)Rocha, M. L. (2000). Educação em Tempos de Tédio: um desafio a micropolítica. In E. Tanamachi, M. L. Rocha & M. Proença (Orgs.), Psicologia e educação: desafios teóricos-práticos (pp. 185-207). São Paulo: Casa do Psicólogo. e Varela (2004)Varela, J. (2004). O estatuto do saber pedagógico. In T. T. Silva (Org.), O sujeito da educação: estudos foucaultianos (pp. 87-96). Petrópolis: Vozes. explicam a busca pela homogeneização dos alunos como decorrente do processo de pedagogização do conhecimento que, entre outras coisas, contribuiu para a emergência dos especialistas em Educação, entre eles o pedagogo e o psicólogo educacional. Segundo as autoras, a partir do aperfeiçoamento da ciência pedagógica, a expectativa de aprendizagem no contexto escolar tornou-se cada vez mais linear. Como veremos no próximo tópico, hoje o discurso médico corrobora o aperfeiçoamento desse processo.

Outra questão bastante presente nos depoimentos dos profissionais entrevistados refere-se a uma certa individualização das dificuldades de aprendizagem e consequente fracasso escolar. Sawaya (2002, p. 108), ao estudar essa compreensão na Psicologia, destaca que ela busca "nas diferenças individuais dos alunos as justificativas para as suas dificuldades escolares, considerando-os portadores de características incompatíveis com a aprendizagem e o ajustamento escolar".

Outro aspecto refere-se à diversidade de expectativas apresentadas nos depoimentos dos articuladores do PSE, muitas vezes até contraditórias. Ao mesmo tempo que se desqualifica a apatia de alguns alunos, espera-se que eles não sejam agitados. Esse dado aparece no depoimento de Martha, articuladora da Educação, quando ela destaca a necessidade de o profissional do PSE "entender por que o aluninho tal da turma tal não está acompanhando como os demais; casos de hiperatividade, casos de crianças apáticas que não se envolvem quando o professor tenta envolver e ele não participa".

Por fim, destaca-se que os depoimentos apontaram questões individuais como determinantes das dificuldades de aprendizagem. Esse processo produz a negação da diversidade de modos de ser e de aprender, bem como a naturalização de um fenômeno social e político.

A escola e as políticas educacionais como coprodutoras das dificuldades de aprendizagem

Algumas falas dos articuladores, sem deixar de culpabilizar a criança e sua família, apontaram o contexto escolar também como produtor das dificuldades de aprendizagem geradoras do fracasso escolar. Embora fiquem apenas no plano das constatações, gerando pouco ou nenhum eco no trabalho de articulação escola/Unidade de Saúde, essas falas indicam um movimento de rompimento com outras que ficam centradas somente na criança e sua família. O depoimento de Maria, articuladora da Educação, é representativo dessa visão:

A dificuldade da criança não é só dela. Acho que devido ao ambiente onde ela está, né? Depende do ambiente da família onde ela vive, da escola, dos profissionais que trabalham em sala de aula, do envolvimento do professor com a criança, a metodologia que ele utiliza, os meios que ele utiliza para fazer com que a criança aprenda mais; principalmente, em casa também, a família. Tem que envolver todo o contexto, né?

As informações obtidas mostraram que os articuladores do PSE atribuem um papel central ao diagnóstico como elemento determinante para o encaminhamento das dificuldades de aprendizagem. Todavia, reconhecem que essa informação não é suficiente para o rompimento das dificuldades de aprendizagem. Martha, articuladora da Educação, destacou que "só saber que ele [aluno] é diferente por causa disso ou daquilo não vai mudar nada, se continuar se fazendo tudo do jeito que já se fazia. A gente só vai continuar constatando o insucesso da criança".

Embora se considere um avanço a percepção de que as metodologias de ensino utilizadas pelos professores em sala de aula também produzem dificuldades de aprendizagem e, consequentemente, o fracasso escolar, essa visão é criticada por autores como Angelucci et al. (2004) e Moysés e Collares (2010). Esses autores ressaltam que sair da dimensão da culpabilização do aluno e da família para a responsabilização do professor também caracteriza-se como uma visão reducionista do fenômeno. De acordo com Angelucci et al. (2004), as políticas educacionais e o projeto social brasileiro devem ser considerados na compreensão do fracasso escolar.

A percepção acerca da importância de se oferecer formação para que os profissionais estejam mais habilitados para lidar com as dificuldades de aprendizagem também foi um elemento que apareceu timidamente nas falas dos articuladores da Educação e da Saúde. Conforme Alexandra, articuladora da Educação, "a dificuldade de aprendizagem deve ser trabalhada dentro da unidade [escolar] e os professores devem ser instrumentalizados para isso".

Uma das articuladoras entrevistadas relacionou as dificuldades de aprendizagem com questões estruturais, entre elas a ausência de um programa de reforço extraclasse. Quanto aos fatores geradores das dificuldades de aprendizagem, ela destacou que na escola em que atua como articuladora da Saúde algumas crianças necessitam de reforço extraclasse desde o primeiro ano. Todavia esse serviço é oferecido somente a partir do terceiro ano. Na visão dela, os entraves "são muito amplos. Então, muitas coisas você não consegue mudar, não consegue intervir" (Cássia, articuladora da Saúde).

Portanto, os depoimentos evidenciaram que o olhar dos entrevistados desta pesquisa para as dificuldades de aprendizagem ainda é muito voltado para a responsabilização prioritariamente da família, do aluno e, eventualmente, dos profissionais da escola. A percepção de que fatores estruturais também determinam a manutenção do fenômeno e da necessidade de se investir em políticas educacionais de formação e no aperfeiçoamento dos serviços surgiu, mas de forma incipiente, nas falas dos sujeitos da pesquisa.

O PSE e seu papel na medicalização das dificuldades de aprendizagem

A pesquisa mostrou que o PSE contribui para a manutenção do discurso de medicalização das dificuldades de aprendizagem. Medicalizar, de acordo com Moysés e Collares (2010), significa transformar questões coletivas, de ordem social e política, em problemas individuais, biológicos. Mediante esse processo, gera-se uma desresponsabilização das diversas instâncias de poder produtoras e perpetuadoras de tais problemas. Portanto, a medicalização da vida pode ser considerada uma biopolítica de controle da população (Guarido, 2010Guarido, R. (2010). A biologização da vida e algumas implicações do discurso médico sobre a educação. In Conselho Regional de Psicologia de São Paulo; Grupo Interinstitucional Queixa Escolar (Orgs.), Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais em problemas individuais (pp. 27-39). São Paulo: Casa do Psicólogo.).

Partindo da premissa de que as dificuldades de aprendizagem estão principalmente nas crianças e em sua família, os articuladores do PSE depositam sua resolutividade na possibilidade de encaminhamento desses sujeitos aos profissionais da Saúde. Nesse sentido, mediante o encaminhamento da criança para o PSE, segundo a articuladora da Educação Maria, é possível "melhorar pelo menos a qualidade, não só da educação, mas a qualidade de vida da criança", pois ocorrerá "o acompanhamento que a criança necessita para tentar realmente superar esse problema".

Os depoimentos de todos os entrevistados evidenciaram uma crença muito forte de que a parceria da escola com a Saúde é fundamental para a resolutividade das dificuldades de aprendizagem. É o que relata Martha, articuladora da Educação: "Então é uma necessidade que a escola já tinha e quando apareceu esse programa a escola quis trazer, organizar e trazer esse programa para a escola".

Os profissionais mais requisitados para problemas dessa ordem foram o psicólogo, o médico e o assistente social. Destaca-se também o encaminhamento para um serviço prestado na universidade pública do município em que essa pesquisa foi realizada, denominado Núcleo Desenvolver, que conta com uma equipe multidisciplinar constituída por neuropediatra, pediatra, psicólogo, fonoaudiólogo, profissional da Educação Física, pedagogo e assistente social. Esse serviço é apontado como avançado por abranger todas as variáveis envolvidas nas dificuldades de aprendizagem, como se pode observar na fala de Martha, articuladora de Educação: "Ah, essa criança vai pra o Núcleo Desenvolver [...] E eles também sabem para onde encaminhar porque são da Saúde, então sabem direitinho para que lado vão encaminhar. Isso é bom".

Portanto, as informações obtidas na pesquisa mostraram que, via PSE, o discurso biomédico insere-se no cotidiano escolar por meio de uma prática voltada ao diagnóstico e à medicalização da diversidade de modos de ser e de aprender. Dessa forma, perpetua-se um processo histórico de homogeneização dos sujeitos e subjetividades e exclusão de quem não se enquadra nas normas legitimadas pelo conhecimento científico.

Considerações finais

As questões discutidas a partir das falas dos sujeitos confirmam que ainda não é possível comemorar a superação da ideia de que a resolução das dificuldades de aprendizagem expressas no processo educativo por crianças e adolescentes seja possível sem recorrer à medicalização.

As entrevistas propiciaram, em relação à preocupação inicial deste estudo, a obtenção de respostas que mostram que as explicações que relacionam as dificuldades escolares com questões individuais estão naturalizadas tanto no contexto da Saúde quanto no da Educação. Se conhecer essas naturalizações acerca das dificuldades de aprendizagem no campo da Educação já nos deixava preocupados, constatar que são compartilhadas pelos profissionais da Saúde em tempos de PSE acende o "alerta vermelho" dos profissionais da Psicologia Escolar.

É necessário que educadores e profissionais da Saúde sejam instrumentalizados para a compreensão das dificuldades de aprendizagem a partir de uma perspectiva ética e política. Essa destaca que a compreensão desse fenômeno deve resultar de uma observação cuidadosa do cotidiano escolar, das práticas de sala de aula e das políticas educacionais.

Entende-se que o PSE representa um novo chamado da escola, agora autorizado pela Saúde Pública, à mediação da Psicologia nos problemas de aprendizagem. Ocupar esse lugar na perspectiva da medicalização representaria um retrocesso histórico frente à luta de representantes dessa categoria profissional vinculados a uma perspectiva crítica de Educação e de Psicologia. Transcender essa perspectiva requer um posicionamento da Psicologia quanto aos objetivos da Educação Escolar e ao papel social da escola que supere a perspectiva tecnicista dos diagnósticos unilaterais e inclua uma análise e síntese das derivações institucionais da queixa escolar.

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  • 1 Articuladores são profissionais lotados em escolas públicas e em Unidades Básicas de Saúde responsáveis pelo levantamento e encaminhamento das demandas escolares ao PSE e que participam periodicamente das reuniões do Grupo de Trabalho Intersetorial, nas quais são tratadas questões emergentes da análise do fluxo entre a demanda e o encaminhamento.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2015

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2012
  • Aceito
    16 Out 2013
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