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Relato de Experiência em Acompanhamento Cognitivo com um Paciente com Esclerose Múltipla

Cognitive Monitoring of a Patient with Multiple Sclerosis

Informe de Experiencia en Supervisión Cognitiva en un Paciente con Esclerosis Multiple

Resumos

A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crônica e autoimune, caracterizada por desmielinização, inflamação e neurodegeneração do Sistema Nervoso Central. Entre 30 e 50% dos indivíduos com EM apresentam comprometimento cognitivo. O processo de reabilitação cognitiva visa capacitar o paciente a conviver, reduzir e/ou superar os déficits cognitivos decorrentes da doença. Este trabalho relata a experiência de uma estagiária de Psicologia ao participar de um projeto de extensão universitária de acompanhamento cognitivo a um paciente com EM. Inicialmente o paciente foi submetido à avaliação neuropsicológica, identificando funções cognitivas preservadas e déficits. Foram observados déficits na recordação tardia, compreensão léxica, compreensão aritmética e aprendizagem numérica. Posteriormente, o paciente recebeu acompanhamento cognitivo semanal pelo período de seis meses. Após o período do acompanhamento, foi feita a reavaliação neuropsicológica. Observou-se melhora significativa na capacidade de recordação tardia e na aprendizagem aritmética, que deixaram de consistir em déficits. Além disso, houve abrandamento do déficit na compreensão aritmética. Os demais resultados permaneceram sem alterações. O trabalho mostra o impacto positivo que o acompanhamento cognitivo pode trazer ao paciente com EM e como a experiência de extensão pode auxiliar na formação dos estudantes de Psicologia.

Esclerose Múltipla; Terapia Cognitiva; Esclerose Múltipla; Reabilitação


Multiple sclerosis (MS) is a chronic, autoimmune disease characterized by demyelination, inflammation, and neurodegeneration of the central nervous system. Between 30% and 50% of individuals with MS have cognitive impairment. Thus, the process of cognitive rehabilitation aims to enable the patient to live, reduce, and/or overcome the cognitive deficits of the disease. This study reports the experience of an undergraduate psychology extension project that implemented cognitive monitoring with a patient suffering from MS. Initially, the patient submitted to a neuropsychological assessment that identified deficits and preserved cognitive functions. The evaluation also showed deficits in long-term memory, lexical comprehension, arithmetic understanding, and learning. Subsequently, the patient received weekly cognitive monitoring for a period of six months. After the monitoring period, the patient made a neuropsychological reassessment in which a significant improvement in long-term memory and arithmetic understanding was found. Although the other results remained unchanged, this study shows that cognitive monitoring can have a positive impact on patients with MS. It also shows how the experience of an extension project can assist in the training of psychology students.

Multiple Sclerosis; Cognitive Therapy; Multiple Sclerosis; Reahabilitation


La esclerosis múltiple (EM) es una enfermedad crónica, autoinmune, caracterizada por la desmielinización, la inflamación y la neurodegeneración del sistema nervioso central. Entre el 30 y el 50% de las personas con EM tienen deterioro cognitivo. El proceso de rehabilitación cognitiva tiene como objetivo capacitar al paciente para vivir, reducir y/o superar los déficits cognitivos resultantes de la enfermedad. En este trabajo se presenta la experiencia de una estudiante de psicología al participar en proyecto de extensión universitario de supervisión cognitiva de un paciente con EM. Inicialmente, el paciente fue sometido a la evaluación neuropsicológica, para identificación de los déficits y de las funciones cognitivas preservadas. Se observaron déficits en la memoria tardía, la comprensión léxica, la comprensión numérica aritmética y en el aprendizaje. Posteriormente, el paciente recibió monitoreo cognitivo por semana durante un período de seis meses. Después del período de seguimiento, se hizo reevaluación neuropsicológica. Hubo una mejora significativa en la capacidad de memoria tardía y la aritmética, que ya no consiste en déficits. Además, hubo reducción del déficit en la comprensión aritmética. Los otros resultados se mantuvieron sin cambios. El trabajo muestra el impacto positivo que el monitoreo cognitivo puede aportar a los pacientes con EM y cómo la experiencia de extensión puede ayudar en la formación de los estudiantes de psicología.

Esclerosis Múltiple; Terapia Cognitiva; Esclerosis Múltiple; Rehabilitación


Introdução

A Esclerose Múltipla (EM) é uma doença crônica e autoimune que se caracteriza pela desmielinização, inflamação e neurodegeneração do Sistema Nervoso Central (Moreira, Felipe, Mendes, & Tilbery, 2000Moreira, M. A., Felipe, E., Mendes, M. F., & Tilbery, C. P. (2000). Esclerose múltipla: estudo descritivo de suas formas clínicas em 302 casos. Arquivos de Neuro-psiquiatria, 58(2B): 460-466. doi:10.1590/S0004-282X2000000300010). Com isso, a condução dos impulsos nervosos é prejudicada, acarretando sintomas físicos e cognitivos (Barroso, Ribeiro, Fonseca, & Silva, 2013Barroso, S. M., Ribeiro, S. B. F., Fonseca, M. C. I., & Silva, D. P. (2013). Dificuldades na avaliação neuropsicológica de pacientes com esclerose múltipla. Revista Neurociências,21(1), 53-59. doi:10.4181/RNC.2013.21.784.7p). Esta doença possui causa ainda desconhecida, porém, alguns modelos etiológicos apresentam hipóteses de interação de mecanismos genéticos e ambientais, que se relacionam com a EM, como radiação ultravioleta, vitamina D, infecções virais e tabagismo (Pereira, 2013)Pereira, A. G. (2013). Evolução das funções cognitivas psíquicas e motoras dos pacientes portadores de esclerose múltipla. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS..

O Brasil é considerado um país com média prevalência de EM, com a estimativa de 15/100.000 habitantes (Callegaro et al., 2001Callegaro, D., Goldbaum, M., Morais, L., Tilbery, C. P., Moreira, M. A., Gabbai, A. A. et al. (2001). The prevalence of multiple sclerosis in the city of São Paulo, Brazil, 1997. Acta Neurologica Scandinavica, 104(4), 208-213. doi:10.1034/j.1600-0404.2001.00372.x) e a EM afeta três vezes mais mulheres que homens (Ribeiro, Maia, Ribeiro, Cardoso, & Silva, 2011Ribeiro, S. B. F., Maia, D. F., Ribeiro, J. B., Cardoso, F. A. G., & Silva, C. (2011). Clinical and epidemiological profile of patients with multiple sclerosis in Uberaba, Minas Gerais, Brazil. Arquivos de Neuro-psiquiatria, 69(2A), 184-187. doi:10.1590/S0004-282X2011000200008). O surgimento da doença ocorre mais comumente entre os 20-40 anos, sendo rara a manifestação antes dos 15 anos e depois dos 50 anos (O'Connor, 2002)O'Connor, P. (2002). Key issues in the diagnosis and treatment of multiple sclerosis. Neurology, Canada, 59(6 suppl 3), 1-33. doi:10.1212/WNL.59.6_suppl_3.S1.

As manifestações clínicas e a evolução da doença são diversas, o que dificulta o prognóstico dos pacientes. Os principais sintomas da doença são: comprometimentos motores (tremores, dores, paralisias, etc.), alterações emocionais (depressão, ansiedade e estresse) e comprometimento cognitivo (déficits de memória, velocidade de processamento, atenção, funções executivas, etc.). (Alves et al., 2014Alves, B. C. A., Angeloni, R. V., Azzalis, L. A., Pereira, E. C., Perazzo, F. F., Rosa, P. C. P. et al. (2014). Esclerose múltipla: revisão dos principais tratamentos da doença. Saúde e Meio Ambiente,3(2), 19-34.; Ribeiro et al., 2011Ribeiro, S. B. F., Maia, D. F., Ribeiro, J. B., Cardoso, F. A. G., & Silva, C. (2011). Clinical and epidemiological profile of patients with multiple sclerosis in Uberaba, Minas Gerais, Brazil. Arquivos de Neuro-psiquiatria, 69(2A), 184-187. doi:10.1590/S0004-282X2011000200008). A fadiga (não relacionada à fraqueza) e a piora dos sintomas durante a exposição às altas temperaturas estão frequentemente presentes nos pacientes com EM (Barroso et al., 2013Barroso, S. M., Ribeiro, S. B. F., Fonseca, M. C. I., & Silva, D. P. (2013). Dificuldades na avaliação neuropsicológica de pacientes com esclerose múltipla. Revista Neurociências,21(1), 53-59. doi:10.4181/RNC.2013.21.784.7p; Lima, Haase & Lana-Peixoto, 2007Lima, E. P., Haase, V. G., & Lana-Peixoto, M. A. (2007) Heterogeneidade neuropsicológica na esclerose múlipla. Psicologia: Reflexão e Crítica, 21(1), 100-109. doi:10.1590/S0102-79722008000100013). O impacto da doença afeta várias áreas da vida do paciente com EM, além do impacto nas condições físicas e cognitivas, as relações familiares, sociais, a qualidade de vida e de trabalho também sofrem mudanças, por isso a importância de aliar o tratamento medicamentoso com o psicológico (Morales et al., 2007)Morales, R. R., Morales, N. M. O., Rocha, F. C. G., Fenelon, S. B., Pinto, R. M. C., & Silva, C. H. M. (2007). Health-related quality of life in multiple sclerosis. Arquivos de Neuro-psiquiatria, 65(2B), 454-460. doi:10.1590/S0004-282X2007000300018.

Existem quatro formas distintas de evolução da doença (Lima, Rodrigures, Vasconcelos, Lana-Peixoto, & Haase, 2008Lima, E. P., Rodrigues, J. L., Vasconcelos, A. G., Lana-Peixoto, M. A., & Haase, V. G. (2008). Heterogeneidade dos déficits cognitivo e motor na esclerose múltipla: um estudo com a MSFC. Psico (Porto Alegre),39(3), 371-381.), sendo elas: 1. Forma recorrente remitente: os sintomas costumam acentuar-se por um período (surto) e, em seguida, há uma melhora gradual. No início da doença pode haver recuperação total, porém, com as crises constantes, alguns déficits podem ser acumulados; 2. Forma Progressiva Secundária: caracteriza-se por um início na forma recorrente remitente, seguido por comprometimentos progressivos, sem melhora dos sintomas; 3. Forma Progressiva Primária: o comprometimento progressivo ocorre desde o início da doença, os sintomas aparecem aos poucos e não há presença de surtos; 4. Forma Progressiva com Surtos: caracteriza-se pela piora progressiva desde o começo da doença, com exacerbação dos sintomas em surtos evidentes, podendo ou não haver a recuperação total das funções afetadas. SegundoPereira (2013)Pereira, A. G. (2013). Evolução das funções cognitivas psíquicas e motoras dos pacientes portadores de esclerose múltipla. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS., a forma mais frequente da manifestação da EM é a forma recorrente remitente, que representa cerca de 85% dos diagnósticos da doença e a forma menos frequente é a Forma Progressiva com Surtos, que representa cerca de 5% dos casos.

O objetivo principal do tratamento da EM é retardar ou evitar que o sistema imunológico destrua ainda mais a bainha de mielina (Pereira, 2013Pereira, A. G. (2013). Evolução das funções cognitivas psíquicas e motoras dos pacientes portadores de esclerose múltipla. Tese de Doutorado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.). O tratamento ideal para doença é multidisciplinar, visto que além de tratar a causa (autoimunidade e degeneração), as consequências também devem ser cuidadas (depressão, ansiedade, fadiga, tremor, paresias, perdas cognitivas, etc.). Para abarcar todos os níveis de cuidado é essencial que participem do tratamento os vários profissionais da área da saúde (Almeida, Rocha, Nascimento, & Campelo., 2007Almeida, L. H. R. B., Rocha, F. C., Nascimento, F. C. L., & Campelo, L. M. (2007). Ensinando e aprendendo com portadores de Esclerose Múltipla: relato de experiência. Revista Brasileira de Enfermagem, 60(4), 460-463. doi;10.1590/S0034-71672007000400020).

O tratamento medicamentoso é especialmente baseado no uso de medicamentos glicocorticóides e imunomoduladores. Esses medicamentos atuam em diferentes etapas da patogênese das lesões no sistema nervoso dos pacientes, visando minimizar o surgimento de novas lesões (Moreira et al., 2002Moreira, M. A., Lana-Peixoto, M. A., Callegaro, D., Haussen, S. R., Gama, P. D., Gabbai, A. A. et al. (2002). Consenso expandido do BCTRIMS para o tratamento da esclerose múltipla: I. As evidências para o uso de glicocorticóides e imunomoduladores. Arquivos de Neuro-psiquiatria, 60(3B), 875-880. doi:10.1590/S0004-282X2002000500035). O Sistema Único de Saúde disponibiliza gratuitamente os imunomoduladores na rede pública de saúde (Corso, Gondim, D'Almeida, & Albuquerque, 2013Corso, N. A. A., Gondim, A. P. S., D'Almeida, P. C. R., Albuquerque, M. G. F. (2013). Sistematização da Assistência de Enfermagem para acompanhamento ambulatorial de pacientes com esclerose múltipla. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 47(3), 750-755. doi:10.1590/S0080-623420130000300032). Como a EM acarreta em perdas físicas e cognitivas entre seus sintomas, tratamentos paralelos ao medicamentoso são importantes. O acompanhamento por fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais auxiliam na recuperação de surtos e manutenção da independência funcional dos pacientes. O acompanhamento emocional e cognitivo feito por psicólogos e neuropsicólogos permite cuidar da preservação da autoestima e minimizar os déficits cognitivos que surgem em decorrência das lesões (Humphries, 2012)Humphries, C. (2012). Progressive multiple sclerosis: the treatment gap. Nature, 484, S10. doi:10.1038/nature11108. Outras intervenções podem ser igualmente benéficas para as pessoas com esclerose múltipla e seus familiares.

Estudos apontam que em 50 a 60% das pessoas com EM há presença de déficits cognitivos, sendo que os mais frequentes são déficit de memória, atenção e abstração (Caputo, 2001Caputo, B. V. (2001) Alterações neuropsicológicas na esclerose múltipla. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências Médicas da UNICAMP, Campinas, SP.). Devido a essa constatação, cresce a cada ano a quantidade de estudos que investigam as dificuldades cognitivas desses pacientes, a fim de desenvolver intervenções que possam diminuir os prejuízos dos mesmos (Lima et al., 2008Lima, E. P., Rodrigues, J. L., Vasconcelos, A. G., Lana-Peixoto, M. A., & Haase, V. G. (2008). Heterogeneidade dos déficits cognitivo e motor na esclerose múltipla: um estudo com a MSFC. Psico (Porto Alegre),39(3), 371-381.). Um instrumento importante para avaliar os déficits cognitivos é a avaliação neuropsicológica, visto que essa avaliação permite obter uma visão abrangente sobre as funções executivas, alterações de personalidade, déficits de memória, atenção, velocidade de processamento e de linguagem. Tais informações podem ser úteis para auxiliar no diagnóstico clínico, além de contribuir para a definição de intervenções e planos de reabilitação específicos para pacientes com doenças crônicas, como a EM (Paes, Alvarenga, Vasconcelos, Negreiros, & Landeira-Fernández, 2009Paes, R. A., Alvarenga, R. M. P., Vasconcelos, C. C. F., Negreiros, M. A., & Landeira-Fernández. J. (2009). Neuropsicología de la esclerosis múltiple primaria progresiva. Revista de Neurologia,49(7), 343-348.).

A reabilitação cognitiva tem como objetivo melhorar a qualidade de vida dos pacientes, aprimorando o aproveitamento das funções totalmente ou parcialmente preservadas, por meio do ensino de aprendizagem de novas habilidades, adaptação às perdas irreversíveis e criação de estratégias compensatórias. A reabilitação possibilita ao paciente uma conscientização acerca de suas capacidades ainda preservadas, levando a uma mudança na auto-observação, contribuindo para uma aceitação da sua realidade (Pontes & Hubner, 2008Pontes, L. M. M., & Hubner, M. M. C. (2008). A reabilitação neuropsicológica sob a ótica da psicologia comportamental. Revista de Psiquiatria Clínica, 35(1), 6-12. doi:10.1590/S0101-60832008000100002). Treinamentos cognitivos podem ter focos e duração diferenciados, podendo ser realizados em diversos contextos e para várias finalidades. Existem treinamentos holísticos, também chamados de reabilitação neuropsicológica, que visam auxiliar os pacientes na manutenção de sua independência por meio do treinamento de hábitos e atividades que antes do adoecimento realizava de maneira independente. Outros treinamentos são mais focais e visam recuperar habilidades de tomadas de decisão considerando pistas ambientais, ou na manutenção de capacidades como a de memorização e encadeamento de pensamento. O treino é feito por meio de atividades programadas, com acompanhamento de um neuropsicólogo e grau progressivo de dificuldade (Abrisqueta-Gomez, 2012)Abrisqueta-Gomez, J. (2012). Reabilitação neuropsicológica: abordagem interdisciplinar e modelos conceituais na prática clínica. Porto Alegre, RS: Artmed.. Como é uma prática contínua, ainda acarreta um custo considerável, sendo a alternativa para muitos pacientes contar com o apoio de profissionais em formação nos níveis da graduação ou pós-graduação. O presente trabalho relata a experiência de uma estagiária do curso de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro vivenciada durante um projeto de extensão universitária, onde foi feito o processo de reabilitação cognitiva com um paciente com Esclerose Múltipla.

Contextualizando a experiência de extensão universitária

A graduação é um período em que os estudantes entram em contato com saberes heterogêneos e se preparam para uma carreira profissional posterior (Fernandes, Silva, Machado, & Moreira, 2012Fernandes, M. C., Silva, L. M. S., Machado, A. L. G., & Moreira, T. M. M. (2012). Universidade e a extensão universitária: a visão dos moradores das comunidades circunvizinhas. Educação em Revista,28(4), 169-194. doi:10.1590/S0102-46982012000400007). Uma das formas de investir nesse processo é a participação em projetos de extensão. O termo "extensão universitária" surgiu na legislação educacional brasileira em 1931, no primeiro Estatuto das Universidades Brasileiras, para nomear o oferecimento de cursos e conferências por pessoas vinculadas à Universidade para pessoas sem essa vinculação (Paula, 2013)Paula, J. A. (2013). A extensão universitária: história, conceito e propostas. Interfaces,1(1), 5-23. e se torna obrigatória entre as tarefas das Instituições de Ensino Superior do Brasil por meio da Lei nº 5.540/68, em 1968 (Arroyo, & Rocha, 2010Arroyo, D. M. P., & Rocha, M. S. P. M. L. (2010). Meta-avaliação de uma extensão universitária: estudo de caso. Avaliação (Campinas), 15(2), 131-157. doi:10.1590/S1414-40772010000200008).

Entende-se extensão universitária como uma ação integrante do processo formativo acadêmico, unida ao ensino e a pesquisa, em que o estudante realiza atividades práticas, pautado pelo conhecimento teórico adquirido em seu curso de formação. É um momento que possibilita trocas entre os saberes acadêmicos e vivenciais e a ampliação das relações da universidade com a realidade social que a circunscreve. A extensão é um espaço de reflexão crítica para repensar ações acadêmicas frente às demandas sociais e à formação de profissionais protagonistas de transformações sociais (Forproex, 2006Fórum de Pró-reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras - FORPROEX. (2006). Indissociabilidade ensino-pesquisa-extensão e a flexibilização curricular: uma visão da extensão. Brasília, DF: Ministério da Educação e Cultura.).

A extensão, por seu caráter prático, trabalha com o conhecimento e exige uma postura ativa e responsável dos estagiários. Segundo Fernandes et al. (2012)Fernandes, M. C., Silva, L. M. S., Machado, A. L. G., & Moreira, T. M. M. (2012). Universidade e a extensão universitária: a visão dos moradores das comunidades circunvizinhas. Educação em Revista,28(4), 169-194. doi:10.1590/S0102-46982012000400007, a extensão reivindica a reflexão crítica de cada um sobre o ato mesmo de conhecer, por isso é que, no processo de aprendizagem, somente aprende verdadeiramente aquele que se apossa do aprendido. Para que a extensão atinja esses objetivos, existem vários formatos possíveis, sendo o mais usual a realização de algum tipo de intervenção comunitária supervisionada por um professor responsável. Geralmente os projetos são propostos por professores, dentro de sua área de interesse de atuação e os estudantes que também tem interesse nessa área concorrem a uma vaga voluntária ou com incentivo de bolsa, ficando por um período de um ano vinculados ao projeto.

Segundo Saraiva (2007)Saraiva, J. L. (2007). Papel da extensão universitária na formação de estudantes e professores. Brasília Médica,44(3), 220-225., a extensão possibilita ao acadêmico a experiência de vivências significativas e reflexões acerca das grandes questões da atualidade. Essa confluência entre a reflexão, o conhecimento acadêmico e a prática com pessoas reais ainda durante a graduação pode contribuir para uma formação compromissada com as necessidades nacionais, regionais e locais.Fernandes et al. (2012)Fernandes, M. C., Silva, L. M. S., Machado, A. L. G., & Moreira, T. M. M. (2012). Universidade e a extensão universitária: a visão dos moradores das comunidades circunvizinhas. Educação em Revista,28(4), 169-194. doi:10.1590/S0102-46982012000400007 indicam, ainda, que os três fundamentos da universidade, isto é, ensino, pesquisa e extensão, propiciam experiências a discentes e docentes, mas a extensão faz a associação paralela imediata entre o conhecimento científico e o popular, tendo uma riqueza ímpar na formação dos futuros profissionais.

O projeto de extensão no qual se baseia a presente experiência, intitulado "Acompanhamento Neuropsicológico a pacientes com Esclerose Múltipla", foi realizado ao longo do ano de 2012 e a equipe era composta por seis estudantes do curso de Psicologia e uma professora do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Triângulo Mineiro. Como esse projeto se desenvolve em paralelo com atividades de pesquisa, todas as atividades foram aprovadas por um Comitê de Ética em Pesquisa (CEP UFTM 1633/2010). As estagiárias faziam três tipos de atividades: 1. Desenvolver atividades cognitivas em grupo na sala de espera de pacientes com EM aguardando para atendimento do Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Triângulo Mineiro (HC-UFTM); 2. Fazer avaliações neuropsicológicas dos pacientes com EM do HC-UFTM; e 3. Realizar um treinamento cognitivo pelo período de seis meses com os pacientes com EM identificados com déficits cognitivos.

O projeto foi organizado para durar um ano. Nos primeiros dois meses foram feitas reuniões semanais com a equipe selecionada, nas quais foram discutidos textos selecionados sobre a EM, sobre neuropsicologia e avaliação neuropsicológica. Durante as reuniões as estagiárias também foram treinadas para saber utilizar a bateria de testes que seria usada como instrumento na etapa de avaliação dos pacientes com EM.

Após essa preparação, as estagiárias organizaram sua dedicação semanal para realizar duas tarefas: 1. Comparecer semanalmente nos horários das salas de espera dos pacientes com EM; 2. Realizar avaliações neuropsicológicas em horários previamente agendados com os pacientes com EM.

O trabalho na sala de espera visava, principalmente, criar a cultura de fazer algum tipo de atividade de estimulação nos pacientes que não podiam participar das demais etapas do projeto de extensão, por residirem em outras cidades e não terem disponibilidade de tempo. Serviram, ainda, para auxiliar os pacientes a se exercitar cognitivamente enquanto aguardavam atendimento, pois devido ao sistema de marcação de horários do HC todos precisavam chegar até as 12 horas para retirar sua senha de atendimento, mas os atendimentos só iniciavam as 14 horas. Assim, esse período de duas horas passou a ser ocupado com atividades cognitivas grupais e obteve bomfeedback dos participantes. Os feedbacks eram obtidos verbalmente após as atividades semanais, quando os participantes também sugeriam novas atividades para próximos encontros. Foram escolhidas atividades como "Stop", jogo da memória, identificação de músicas só pela melodia ou por trechos curtos, entre outras.

As avaliações eram agendadas para dois dias, com intervalo máximo de uma semana entre os dois encontros. Todas as estagiárias trabalharam com a mesma bateria padronizada de avaliação, composta pelos testes Questionário sobre a saúde do paciente (Santos et al., 2013Santos, I. S., Tavares, B. F., Munhoz, T. N., Almeida, L. S. P., Silva, N. T. B., Tams, B. D. et al. (2013). Sensibilidade e especificidade do Patient Health Questionnaire-9 (PHQ-9) entre adultos da população geral.Cadernos de Saúde Pública, 29(8), 1533-1543. doi:10.1590/0102-311X00144612), que avalia sintomas depressivos; Bateria de Avaliação da Memória de Trabalho (Wood, Carvalho, Rothe-Neves, & Haase, 2001Wood, G. M. O., Carvalho, M. R. S., Rothe-Neves, R., & Haase, V. G. (2001). Validação da Bateria de Avaliação da Memória de Trabalho (BAMT-UFMG).Psicologia: Reflexão e Crítica, 14(2), 325-341. doi:10.1590/S0102-79722001000200008);Multiple Sclerosis Functional Composite Measure (Tilbery et al., 2005)Tilbery, C. P., Mendes, M. F., Thomaz, R. B., Oliveira, B. E. S., Kelian, G. L. R., Busch, R. et al. (2005). Padronização da Multiple Sclerosis Functional Composite Measure (MSFC) na população brasileira. Arquivos de Neuro-Psiquiatria, 63(1), 127-132. doi:10.1590/S0004-282X2005000100023, que avalia funções executivas; Teste do Desenho do Relógio (Atalaia-Silva & Lourenço, 2008Atalaia-Silva, K. C., & Lourenço, R. A. (2008). Tradução, adaptação e validação de construto do Teste do Relógio aplicado entre idosos no Brasil. Revista de Saúde Pública, 42(5): 930-937. doi:10.1590/S0034-89102008000500020; Sunderland et al., 1989Sunderland, T., Hill, J. L., Mellow, A. M., Lawlor, B. A., Brian, A., Gundersheimer, J. et al. (1989). Clock drawing in Alzheimer's disease: a novel measure of dementia severity. Journal of American Geriatric Association,37(8), 725-729. doi:10.1111/j.1532-5415.1989.tb02233.x;); Questionário de Queixa Subjetiva de Memória Short-Care (Tobiansky, Blizard, Livingston, & Mann, 1995Tobiansky, R., Blizard, R., Livingston, G., & Mann, A. (1995). The Gospeal Oak Study stage IV: the clinical relevance of subjective memory impairment in older people. Psychological Medicine,25(4), 779-786. doi:10.1017/S0033291700035029); e Lista de Palavras – Recordação Imediata e Recordação Tardia, Testes Práticos de Função Frontal da Bateria CERAD (Bertolucci, Okamoto, Toniolo Neto, Ramos, & Brucki, 1998Bertolucci, P. H. F., Okamoto, I. H., Toniolo Neto, J., Ramos, L. R., & Brucki, S. M. D. (1998). Desempenho da população brasileira na bateria neuropsicológica do Consortium to Establish a Eegistry for Alzheimer's Disease (CERAD). Revista de Psiquiatria Clínica,25(2), 80-83.;Bertoluci et al., 2001Bertolucci, P. H. F., Okamoto, I. H., Brucki, S. M. D., Siviero, M. O., Toniolo Neto, J., & Ramos, L. R. (2001). Applicability of the CERAD neuropsychological battery to Brazilian elderly. Arquivos de Neuro-psiquiatria, 59(3A), 532-536. doi:10.1590/S0004-282X2001000400009).

As estagiárias treinaram a aplicação dos instrumentos entre elas, sendo auxiliadas pela professora quando tinham dúvidas ou faziam algo de forma errada ou incompleta. As estagiárias também aplicaram em uma pessoa de sua convivência pessoal, não vinculada ao projeto, para ver como responderiam a dúvidas surgidas no momento da aplicação. O contato com os pacientes e o agendamento das avaliações eram feitos pelas estagiárias, nos encontros na sala de espera ou por telefone, por meio dos contatos constantes dos prontuários dos pacientes.

Todos os pacientes com EM que realizavam acompanhamento clínico no HC durante o ano de 2012 foram convidados a participar do projeto e como não houve recusas, todos foram avaliados, individualmente, no Serviço Escola da Universidade ou na residência dos pacientes, conforme sua preferência ou condição de mobilidade. No total, 32 pacientes foram avaliados. Os pacientes nos quais foi identificado qualquer déficit cognitivo foram convidados a participar do programa de treinamento cognitivo por um período de seis meses. Os déficits foram avaliados segundo os valores normativos dos testes utilizados e nas provas clínicas os déficits foram identificados por meio da presença de dois ou mais desvios-padrão abaixo da média dos valores do grupo controle da mesma cidade nas provas clínicas, avaliado anteriormente pela mesma equipe que avaliou os pacientes. O foco do acompanhamento proposto era manter as funções cognitivas que estivessem preservadas nos pacientes com EM e tentar minimizar os impactos que os déficits já instalados poderiam causar ao cotidiano dos pacientes. Como não seria possível fazer o acompanhamento contínuo, durante o prazo de treinamento, a estagiária adotava uma postura psicoeducativa, de forma que o paciente entendesse que tipo de atividade procurar, o que elas trabalham e como incluir essas atividades em seu cotidiano poderia colaborar com a manutenção de suas habilidades cognitivas. Semanalmente era feita a checagem das atividades realizadas pelo participante e era conversado com ele que tipo de função cognitiva a atividade exigia e no que poderia colaborar.

Os encontros de supervisão continuaram acontecendo semanalmente e a cada encontro as novas avaliações feitas eram discutidas e as tarefas de reabilitação dos casos também. As atividades de extensão foram todas ricas como forma de aprendizado, mas a escolhida para receber destaque nesse relato de experiência foi o processo de treinamento cognitivo. O caso acompanhado pela estagiária, as avaliações e atividades realizadas encontram-se apresentadas em sequência.

Apresentação do caso

O paciente

O paciente com EM acompanhado nesse trabalho será aqui nomeado pelo nome fictício de Celso. Ele frequentava o HC e foi contatado pela estagiária durante uma atividade da sala de espera do HC. Foi explicado a Celso qual era o objetivo do projeto e ele aceitou realizar a avaliação neuropsicológica.

Em conversa inicial, Celso informou que estava com 42 anos, havia cursado ensino médio completo, tinha diagnóstico de EM do tipo remitente recorrente, tendo sido diagnosticado quatro anos antes. Relatou que era aposentado por invalidez, estava divorciado e morava com a mãe, a irmã e com suas duas filhas (de 11 e 9 anos). A ex-esposa havia abandonado a família e ele voltou a viver com a mãe, para que esta auxiliasse na criação das filhas.

Contou, ainda, que o primeiro sintoma percebido foi dormência do lado direito do corpo e que após muitos exames foi diagnosticado com EM. Celso informou que já havia sofrido quatro surtos, tendo sido internado em todos eles. O primeiro e o segundo surtos ocorreram em menos de um ano, em 2008, e foi no final desse ano, após as duas internações, que Celso foi diagnosticado. No terceiro surto, teve sua visão alterada temporariamente. O quarto surto ocorreu três anos após o primeiro, no ano de 2011. Estava há mais de um ano sem novos surtos quando começaram os encontros com a estagiária.

Avaliação neuropsicológica

A primeira avaliação neuropsicológica foi realizada em duas sessões durante o mês de maio de 2012, com duração média de uma hora e meia cada. Com base nessa avaliação, foi possível concluir que a capacidade de memorização imediata e as funções executivas básicas de Celso estavam preservadas e não foram identificados sinais de depressão. Porém, foram encontrados déficits na recordação tardia, compreensão léxica, compreensão aritmética e aprendizagem numérica. Em decorrência dos déficits encontrados, sugeriu-se a Celso participar do acompanhamento cognitivo. Após seu consentimento, definiu-se encontros individuais semanais ao longo de seis meses, realizados nas dependências do Serviço Escola da universidade, em sala individual, com boa iluminação e baixo ruído.

Acompanhamento cognitivo

Os encontros ocorreram uma vez por semana, com duração de cerca de uma hora cada, ao longo de seis meses. Em cada sessão trabalhava-se entre duas e três atividades focadas na manutenção de suas capacidades preservadas ou nos déficits identificados. Essas atividades eram escolhidas e preparadas pela estagiária e discutidas com a supervisora do projeto antes dos encontros semanais com Celso. A ideia presente ao longo de todo o trabalho era que ele fosse progressivo, ou seja, que começasse com atividades mais simples e gradualmente fosse aumentado nível de dificuldade das atividades. Além disso, buscou-se usar o máximo do caráter lúdico possível para que as atividades se tornassem mais prazerosas e que as atividades propostas fizessem sentido na realidade de vida do paciente em acompanhamento.

Durante os encontros, além das atividades programadas, eram retomadas as atividades realizadas pelo paciente em casa. Essas atividades eram definidas semanalmente pela estagiária e entregues por escrito, para que Celso as fizesse diariamente, sozinho ou com o apoio das filhas. Após a realização das atividades, seguia-se uma conversa a respeito da utilidade de cada tarefa executada e sobre quais funções cognitivas haviam sido utilizadas em sua realização. Além disso, pedia-se a Celso que desse uma nota entre zero e dez para a dificuldade encontrada na realização das atividades e a estagiária também pontuava a dificuldade que percebia em Celso na execução das tarefas.

O acompanhamento teve início no dia 11 de setembro de 2012 e terminou dia 7 de março de 2013. Estavam previstas 22 sessões de reabilitação com Celso, mas devido às faltas dele e a feriados, o número de encontros foi reduzido para dez. Para ficar mais claro como aconteciam os encontros, as atividades trabalhadas na primeira sessão e a avaliação do paciente e da estagiária estão descritas a seguir e um resumo de todas as atividades e funções trabalhadas ao longo dos encontros com Celso está apresentado no Quadro 1.

Quadro 1
Resumo das sessões de reabilitação cognitiva

Reavaliação e impacto do acompanhamento para Celso

Após o término das sessões de reabilitação foram agendados outros dois encontros com Celso, para reavaliá-lo e verificar a eficácia do acompanhamento neuropsicológico. Na reavaliação seguiu-se o mesmo procedimento da avaliação inicial, anteriormente descrito.

Durante a reavaliação foi possível perceber que Celso apresentou maior facilidade em realizar os subtestes que envolviam resolução e compreensão aritmética na primeira parte da avaliação. Observou-se, também, avanços nos subtestes que envolviam memória. Ao comparar os resultados das duas avaliações percebeu-se melhora significativa na capacidade de recordação tardia e aprendizagem aritmética, que deixaram de consistir em déficits. Além disso, houve abrandamento do déficit na compreensão aritmética. Os demais resultados permaneceram sem alterações.

A última sessão com Celso (13ª) foi destinada à realização da entrevista de devolutiva do trabalho e, também, a expor a ele as comparações com a primeira avaliação. Foram frisadas as melhoras, o impacto positivo da realização do acompanhamento e da mudança de hábitos. Foi ressaltada, ainda, a importância de persistir na realização da prática de exercícios cognitivos diariamente, para manutenção e preservação das habilidades cognitivas. Foi apontado que as atividades trabalhadas são todas simples de serem incluídas no cotidiano familiar, que podem ser desempenhadas de forma independente ou em grupos e que podem contribuir para manter as habilidades cognitivas preservadas e minimizar déficits existentes, além de servir como forma de interação com as filhas do paciente.

Segundo Celso, a reabilitação foi muito importante para ele, pois conseguiu perceber algumas melhoras, tanto físicas quanto cognitivas. A deambulação estava melhor, devido às suas caminhadas diárias, incentivadas pela estagiária. Celso relatou também ter percebido que sua memória havia melhorado, embora não soubesse especificar o tipo de memória, visto que estava se esquecendo menos de seus compromissos e de informações importantes. Além disso, relatou que esse processo possibilitou uma proximidade maior com suas filhas, visto que para exercitar suas funções cognitivas, passou a auxiliar mais as filhas com as tarefas da escola e também a brincar diariamente com elas. Diante da percepção de sua melhora, Celso se propôs a continuar praticando os exercícios cognitivos diariamente, mesmo sem o acompanhamento semanal com a estagiária. O trabalho foi encerrado com a estagiária agradecendo pelo tempo que passaram juntos e se colocando a disposição caso Celso desejasse novas orientações em outros momentos.

Impacto da experiência para a estagiária

Inicialmente o receio e a insegurança foram algumas dificuldades vivenciadas pela estagiária, visto que era uma atividade nova e seria seu primeiro contato com a comunidade externa à faculdade. A incerteza sobre como o paciente receberia as propostas das atividades, quais exercícios seriam mais adequados e até mesmo se ele conseguiria executá-los, foram algumas das questões que causaram apreensão. Porém, a partir do primeiro encontro com Celso, esses sentimentos foram desaparecendo. Ele se mostrava sempre muito solícito, interessado no trabalho que era feito e disposto a realizar todas as atividades que lhe eram pedidas.

Semanalmente era necessário buscar atividades para trabalhar na reabilitação e por vezes discutir sobre como os jogos infantis são mais do que mera diversão, servindo para desenvolver ou manter habilidades cognitivas necessárias à vida adulta. Esse foi um momento em que observamos que os livros disponíveis sobre neuropsicologia fornecem bom embasamento teórico e falam muito sobre o processo de reabilitação, mas não apresentam claramente descrito como esse processo pode acontecer (Abrisqueta-Gomez, 2012Abrisqueta-Gomez, J. (2012). Reabilitação neuropsicológica: abordagem interdisciplinar e modelos conceituais na prática clínica. Porto Alegre, RS: Artmed.; Andrade, Santos, & Bueno, 2004Andrade, M. V., Santos, F. H., & Bueno, O. F. A. (2004).Neuropsicologia hoje. São Paulo, SP: Artes Médicas.; Fuentes, Malloy-Diniz, Camargo, & Cosenza, 2008Fuentes, D., Malloy-Diniz, L. F., Camargo, C. H. P., & Cosenza, R. M. (2008). Neuropsicologia: teoria e prática. São Paulo, SP: ArtMed.; Sohlberg & Mateer, 2009Sohlberg, M. M., & Mateer, C. A. (2009). Reabilitação cognitiva: uma abordagem neuropsicológica integrativa (M. C. Brandão, Trad.). São Paulo, SP: Santos. (Obra original publicada em 2001).;).

Foi possível perceber também como é difícil avaliar a dificuldade de uma tarefa se não aprendermos a nos colocar na perspectiva do outro. Muitas vezes as atividades selecionadas pela equipe do projeto pareciam simples para as estagiárias, mas, ao conversar, víamos onde haveria dificuldades que não haviam sido originalmente pensadas. Além disso, percebeu-se a necessidade de trabalhar com atividades que englobam interesses do paciente, isso motiva e permite que memórias emocionais e de longo prazo colaborem com os objetivos atuais. Com Celso, por exemplo, por não ser uma pessoa ligada nas comemorações das datas festivas, a atividade com as músicas não despertou o lado emocional, perdendo em riqueza.

A experiência foi muito gratificante e os resultados foram positivos e animadores. Cabe salientar que esses resultados foram fruto do empenho e determinação de Celso, que se envolveu na reabilitação cognitiva, compreendendo os benefícios que esta poderia trazer para sua vida. Mesmo não realizando algumas das tarefas de casa que foram propostas, foi possível perceber que ele mudou seus hábitos, passando a ler mais, auxiliar as filhas nas lições de casa e brincar com elas, o que pode ter contribuído para a melhora percebida na reavaliação. Além disso, o próprio paciente relatou perceber melhoras pela mudança de hábitos.

O atendimento contribuiu também para que a estagiária desenvolvesse a capacidade de enfrentar e lidar situações não programadas, visto que, algumas vezes, por questão de falta do paciente ou pela não realização das tarefas de casa, o plano construído pela estagiária tinha que ser alterado. Além disso, contribuiu de forma acentuada para que a estagiária adquirisse mais experiência e conhecimento. A participação no projeto proporcionou, também, a sensação de maior proximidade com o curso de Psicologia e um sentimento de ter tido uma parcela de contribuição na vida de alguém, nesse caso, na melhora dos déficits de Celso.

Foi possível difundir as informações que foram aprendidas nas discussões com as outras estagiárias e com a professora supervisora do projeto e aplicá-las na prática, podendo concluir o quanto o acompanhamento neuropsicológico pode ser eficaz para pacientes com EM. É importante ressaltar, também, que a autonomia oferecida pela professora foi essencial para que a estagiária desenvolvesse cada vez mais responsabilidade e envolvimento com o projeto.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    22 Ago 2014
  • Revisado
    02 Abr 2015
  • Aceito
    11 Jun 2015
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