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Competências Científicas e Profissionais e Exercício Profissional do Psicólogo

Scientific and Professional Skills and Professional Psychologist Practice

Competências Científicas y Profesionales y el Ejercicio Profesional del Psicólogo

É comum a Psicologia ser caracterizada nos meios acadêmicos e profissionais por meio da sua vinculação aos termos ciência e profissão. A revista Psicologia: Ciência e Profissão é um exemplo disso, ao situar, em seu escopo, a necessidade de contribuir para a formação e atuação profissional do psicólogo, por meio da disseminação do conhecimento qualificado produzido na área da Psicologia.

A ciência psicológica tem se sustentado, historicamente, pela diversidade e funcionalidade dos seus modelos teóricos e métodos de investigação. De fato, a abordagem científica em Psicologia é um processo dinâmico entre a reflexão teórica e a possibilidade de verificação de fenômenos psicológicos na realidade. O fato de existir uma profissão associada, ou seja, um campo permanente de intervenção dos psicólogos na sociedade, produz uma tensão positiva entre o que se conhece, o que se pretende conhecer e o que é possível conhecer acerca dos fatos e fenômenos humanos, com base nas perspectivas ou pressupostos da ciência psicológica orientadores de processos e procedimentos no exercício profissional.

A Psicologia, no Brasil, é uma profissão regulamentada (Brasil, 1962). Ou seja, o exercício profissional de psicólogo está sujeito à posse de um diploma, e os critérios ou condições do exercício da profissão são regidos por obrigações regulamentares exigidas pelo Estado, delegadas aos Conselhos de Psicologia (Brasil, 1971Brasil. (1971). Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971. Cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências. Recuperado de: http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/08/lei_1971_5766.pdf
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), responsáveis por orientar, disciplinar e fiscalizar o exercício da profissão de psicólogo e zelar pela observância dos princípios de ético-disciplinares (Brasil, 1962Brasil (1962). Lei nº 4.119, de 27 de agosto de 1962. Dispõe sobre a formação em Psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Recuperado de: http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/08/lei_1962_4119.pdf
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; 1971). As condições de institucionalização da profissão de psicólogo no Brasil estão diretamente relacionadas à construção desses marcos legais regulamentadores da formação profissional e dos Conselhos de Psicologia, referências à consolidação da profissão de psicólogo, definitivamente, na sociedade brasileira.

A Psicologia, organizada em torno de um corpus científico, ou seja, um conjunto de evidências e análises teóricas acerca de fatos e fenômenos humanos, produziu, ao longo da segunda metade do século XX, as condições necessárias ao processo de institucionalização da profissão de psicólogo no Brasil. Adjetivar a Psicologia como ciência e profissão, portanto, resulta da compreensão histórica da necessidade de associar um corpus científico a um projeto de intervenção profissional em diferentes contextos sociais.

De fato, a Psicologia é uma instituição social na medida em que representa um domínio particular de construção de conhecimentos e de intervenção social, valorizada por um público interno (psicólogos) e externo (usuários da Psicologia), o que possibilitou, desde o seu início, a organização social e política dos psicólogos (nesse caso, denominada de categoria), seja no âmbito acadêmico (por meio de processos de formação nas universidades e demais centros de formação), seja no âmbito do exercício profissional (por meio das referências normatizadoras dos Conselhos de Psicologia e demais organizações profissionais). Esse processo de institucionalização instalou desafios à formação e ao exercício profissional dos psicólogos brasileiros.

Mas quais são esses desafios, hoje? É possível destacar sinteticamente duas questões centrais à análise dos desafios a serem enfrentados pelos psicólogos, no âmbito do exercício profissional, tendo em vista a qualidade da formação em Psicologia: a) quais são as competências científicas e profissionais relevantes e necessárias ao processo de formação do psicólogo? b) quais são as características do exercício profissional do psicólogo?

Uma profissão é cotidianamente legitimada na demonstração de competências científicas e profissionais daqueles que a exercem. É possível identificar, genericamente, na definição do conceito competência, uma alusão ao conjunto de aprendizagens construídas ao longo da vida, baseadas em capacidades cognitivas, afetivas e de mobilização de habilidades de adaptação e socialização (Cruz, & Schultz, 2009Cruz, R. M., & Schultz, V. (2009). Avaliação de competências profissionais e formação de psicólogos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 61(3), 117-127. Recuperado de: http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672009000300013
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). A formação profissional em Psicologia exige o desenvolvimento e aperfeiçoamento de competências científico-profissionais para atuar em sociedade, no sentido da mobilização de conhecimentos, habilidades e recursos para responder às necessidades científicas e sociais, tendo vista o grau de conhecimento sobre os fenômenos estudados e as possibilidades de intervenção nos diferentes contextos de atuação dos psicólogos. Nesse sentido, Becerra (2003)Becerra, J. D. (2003). Psicología y ética en función de la atención al usuario. ACIMED, 11(3), 13-14. assinala a necessidade de estender os benefícios da ação profissional a um maior número de usuários dos serviços psicológicos, com alto padrão de qualidade, e pressupondo o desenvolvimento e adequação das técnicas e instrumentos empregados, visando promover a melhoria na qualidade de vida e nos processos de inclusão social das pessoas.

Assim, o processo educativo construído ao longo da formação profissional do psicólogo, em sua relação com o mundo do trabalho (vivenciado ou perspectivado), deve promover a manifestação de competências científico-profissionais do psicólogo, no sentido de: a) identificar necessidades para compreendê-las, por meio de processos de investigação e/ou avaliação; b) intervir, considerando algum grau de conhecimento das necessidades e dos resultados dos processos de investigação e/ou avaliação; c) avaliar o que é necessário e suficiente para o atendimento das necessidades do usuário, tendo em vista o conhecimento produzido pelos processos de investigação/avaliação; d) comunicar o trabalho realizado, com base no conhecimento obtido, visando promover mudanças ou melhorias naquilo que foi demandado (Figura 1).

Figura 1
Competências científico-profissionais no processo de formação do psicólogo.

O exercício de uma profissão, institucionalizada social e cientificamente, requer atividade intelectual e condutas especializadas no domínio em que a profissão se estabeleceu e, de forma derivada, exige responsabilização pelos atos de quem a exerce (o que o sentido de accountability assinala, no âmbito da ética e da responsabilidade civil). Prestar serviços psicológicos na sociedade exige, por parte dos psicólogos, agir com atenção, diligência e cuidado na sua relação com os usuários, ou seja, prestar serviços legítimos e relevantes, tendo em vista as circunstâncias e os limites ético-profissionais, e de acordo com: 1) o seu título, especialidade ou expertise, resultado do processo de formação profissional básica e continuada; 2) os pressupostos oriundos do estado da arte da ciência psicológica acerca de fatos e fenômenos cuja interpretação exige o ponto de vista psicológico; 3) as regras consagradas pela prática profissional, orientadas pelas relações de compromisso dos psicólogos com o favorecimento ou melhorias das condições de vida, saúde e funcionamento psicológico dos usuários; 4) os recursos disponíveis para o exercício adequado da atividade profissional.

Condutas profissionais são construídas e aperfeiçoadas ao longo do processo de formação do psicólogo, organizado em torno de demandas curriculares, práticas supervisionadas, disseminação de conhecimentos técnico-científicos, desenvolvimento de processos de ensino-aprendizagem, confronto de interesses de grupos específicos e de diferenças culturais, assim como processos de cooperação e colaboração entre pares.

O atendimento aos demandantes do trabalho dos psicólogos, seja no âmbito individual ou coletivo, de forma autônoma ou lastreado por organizações sociais e produtivas, é realizado com base nas principais modalidades do exercício profissional, considerando os reguladores do exercício profissional e as dimensões orientadoras da qualidade do trabalho do psicólogo (Figura 2).

Figura 2
Características do exercício profissional dos psicólogos.

É possível identificar categorias básicas que definem as principais modalidades do exercício profissional dos psicólogos, transversais à maioria das especialidades, exercidas de forma autônoma e/ou por intermédio de pessoa jurídica. Algumas demandadas de forma acentuada pela sociedade, tais como os processos de avaliação (de espectro clínico ou não clínico, com finalidade ou não de diagnóstico psicológico), tratamento psicológico (em geral, psicoterapia) e acolhimento, orientação, acompanhamento psicológico, realizados em diferentes contextos da atuação profissional. Outras, em processo de construção e afirmação social, tais como as atividades de promoção, prevenção e atenção à saúde das pessoas, no âmbito das políticas da integralidade e das práticas de gestão, assim como as atividades de reabilitação funcional. Outras, ainda em permanente processo de renovação e franco desenvolvimento, tais como as atividades consultoria, assessoramento e execução de projetos e programas, especialmente no âmbito das instituições de trabalho, da saúde e da educação, e as atividades de pesquisa e desenvolvimento de métodos, técnicas e instrumentos psicológicos. Por fim, e se revelando um profícuo campo de atuação profissional, o conjunto de atividades ligadas ao ensino e a capacitação, de diferentes perspectivas e modalidades educacionais, seja no âmbito público ou privado.

Dentre os reguladores do exercício profissional dos psicólogos, encontram-se, principalmente: a) as agências de formação e capacitação profissional, responsáveis pelos programas de formação profissional regulares (universidades) e complementares (institutos e associações profissionais), seja como forma de realização pessoal e social, seja como expectativa de melhoramento da renda ou de aperfeiçoamento de comportamentos profissionais; b) os Conselhos Regionais e Federal de Psicologia, responsáveis pela regulamentação, orientação e fiscalização do exercício profissional dos psicólogos, no âmbito de suas competências institucionais; c) o mercado de trabalho, ou seja, o conjunto de ofertas de emprego e de possibilidades de inserção, permanência e mudanças em territórios profissionais afetos ao trabalho do psicólogo.

Por fim, exercício profissional dos psicólogos compreende processos educativos regulares e continuados, lastreados por dimensões orientadoras dele mesmo: a) científica, porque o exercício profissional deve ser instruído intelectualmente, tendo em vista o lastro oferecido pelas evidências científicas materialmente consolidadas no domínio da Psicologia; b) ética, porque reside no exercício profissional do psicólogo o acesso e interpretação de informações geradas por processos diretos e indiretos de interação com os demandantes dos serviços psicológicos, que deve ser orientado pelo cuidado às pessoas e proteção às condições de sigilo e confidencialidade; c) legal, porque o exercício profissional é regulado por dispositivos legais normativos, de diferentes âmbitos e finalidades. Não se ater a eles pode comprometer decisões profissionais.

Roberto Moraes Cruz
Universidade Federal de Santa Catarina
Editor
E-mail: roberto.cruz@cfp.org.br

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016
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