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Psicologia e a Formação para a Saúde: Experiências Formativas e Transformações Curriculares em Debate

Psychology and health training: curriculum formation and transformation experiences in debate

Psicología y formación para la salud: experiencias de formación y transformación curricular en debate

Resumo

Recentes reflexões têm ampliado a atuação dos psicólogos no campo da saúde, principalmente mediante sua inserção no Sistema Único de Saúde, apresentando diversos desafios tanto na efetivação de práticas, quanto na construção de saberes voltados a novas demandas. Nesse contexto, a formação em saúde tem sido uma das grandes questões a serem enfrentadas pelas instituições de ensino superior, destacando-se aqui os cursos de graduação em Psicologia. O artigo trata de um relato de experiência de estágio básico da disciplina Práticas Integradas de Trabalho, realizada no 7º semestre do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará, cujo eixo temático é “Psicologia e Saúde”. Essa disciplina tem buscado ampliar a compreensão das concepções e práticas que envolvem os processos saúde-doença-cuidado, a partir da reflexão crítica dos discentes no campo da saúde pública. Os estudantes realizam atividades práticas, estudos sistemáticos e atividades de supervisão englobando os diversos níveis de atenção. Destacam-se, a partir dessa experiência, algumas implicações formativas e vivenciais, como o compromisso social da universidade com a política pública; a redução da distância entre teoria e prática; a atualização de currículos “vivos” segundo a agenda pública da formação de psicólogos; e a supervisão como estratégia educacional promotora de práxis.

Psicologia; Saúde; Currículo

Abstract

Recent reflections have amplified psychologists’ performance area to the health field, mainly because of their insertion in the Unified Health System (SUS), which has meant several challenges for them, both in the praxis and in the knowledge construction oriented to new demands. In this context, the formation in health care has been one of the greatest questions to be faced by the higher level educational institutions, stressing here the Psychology undergraduate courses. This work brings an experience report of the subject “Integrated Practices of Work” from the 7th semester of the Psychology undergraduate course at the State University of Ceará (UECE), whose thematic area is “Psychology and Health”. This subject aims to expand the concepts and practices’ comprehension of the processes involving health-sickness care, from the critical reflection of the students in the field of public health. Students conduct practical activities, systematic studies and supervisions in numerous levels of attention. It is possible to highlight, from this experience, some formative and experiential implications such as: the University’s social commitment with public policies, the reduction of the distance between theory and practice; the update of “live” curriculums according to the public agenda of the psychologist’s’ formation; and the supervision as an educational strategy for promoting praxis.

Psychology; Health; Curriculum

Resumen

Reflexiones recientes han ampliado el papel de los psicólogos en el campo de la salud, principalmente a través de su inclusión en el Sistema Único de Salud (SUS), lo q Isabella Cristine ue ha representado muchos desafíos, tanto en las prácticas como en la construcción de conocimientos orientados a las nuevas demandas. En este contexto, la formación en salud ha sido una de las principales cuestiones a las que se enfrentan las instituciones de educación superior, destacándose aquí los pregrados en Psicología. El artículo trata de un relato de experiencia de la materia Prácticas Integradas de Trabajo de séptimo semestre de la carrera de Psicología de la Universidad do Estado de Ceará (UECE), cuyo tema central es “Psicología y Salud.” Esta materia trata de ampliar la comprensión de los conceptos y prácticas que implica la atención a los procesos de salud-enfermedad, desde la reflexión crítica de los estudiantes en el campo de la salud pública. Los estudiantes llevan a cabo actividades prácticas, estudios sistemáticos y supervisión de las actividades que abarcan los distintos niveles de atención en salud. Se destaca de esta experiencia el entrenamiento y las implicaciones experienciales, como: el compromiso social de la universidad con la política pública; la reducción de la brecha entre la teoría y la práctica; la actualización de currículos “vivos” ajustados a la agenda pública de la formación de los psicólogos; y la supervisión como estrategia educativa que lleva a la praxis.

Psicología; Salud; Curriculum

Introdução

Tradicionalmente, o campo da saúde tem sido constituído majoritariamente a partir do âmbito individual e privatista. Esse fato tem sido objeto de investigação de diversos autores da área de Psicologia (Spink, 2007Spink, M. J. P. (Org). (2007). A Psicologia em diálogo com o SUS: prática profissional e produção acadêmica. São Paulo,SP: Casa do Psicólogo.; Dimenstein, 1998Dimenstein, M. (1998). Os psicólogos nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia (Natal), 3(1), 53-81. doi:10.1590/S1413-294X1998000100004), que enfatizam certa inadequação das práticas dos profissionais dessa área, especialmente ao lidar com o campo da saúde pública. Muitos são os desafios, tanto na efetivação de práticas, quanto na construção de saberes voltados às novas demandas nesse âmbito de atuação. Nesse contexto, a formação em saúde tem sido uma das grandes questões a serem enfrentadas pelas instituições de ensino superior, entre as quais destacamos aquelas voltadas para os cursos de graduação em Psicologia.

A formação em saúde tem colocado as profissões da área em intenso debate, tendo em vista os valores centrados na universalidade, integralidade e equidade que constituem princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Partindo dessa perspectiva, atualmente temos presenciado a discussão em torno da necessidade de ampliação das concepções dos processos saúde-doença-cuidado, para além da perspectiva anátomo-fisiológica, englobando as dimensões sociais e psicológicas/subjetivas às biológicas, já amplamente difundidas no âmbito da saúde. Nessa esteira, as profissões da saúde, aqui consideradas a partir da Resolução nº 218/97 (Brasil, 1997Brasil. (1997). Conselho Nacional de Saúde. Resolução nº 218, de 6 de março de 1997. Reconhece como profissionais de saúde de nível superior as seguintes categorias: Assistentes Sociais, Biólogos, Profissionais de Educação Física, Enfermeiros, Farmarmacêuticos, Fisioterapeutas, Fonoaudiólogos, Médicos, Médicos Veteriários, Nutricionistas, Odontólogos, Psicólogos e Terapeutas Ocupacionais. Brasília, DF: o autor.), ampliam o escopo das abordagens e práticas nesse campo, partindo da consideração da intersetorialidade, fundamental para o melhor atendimento às demandas da população brasileira (Brasil, 2004Brasil. (2004). Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde. AprenderSUS: o SUS e os cursos de graduação da área da saúde. Brasília, DF: o autor.).

Dentro dessa perspectiva, a formação em saúde tem apontado imensos desafios para as instituições formadoras, no tocante à necessidade de se aproximar dos serviços e das comunidades, compreendendo as reais demandas da população em direção ao repensar as práticas formativas na saúde que, muitas vezes, não respondem à realidade do cotidiano vivenciado nos diversos cenários de atuação dessa área. A reflexão sobre essa realidade e os processos de trabalho nela engendrados são fundamentais para a consolidação de um novo modelo de formação.

O ensino-aprendizagem na área técnico-científica é apenas um dos aspectos da qualificação das práticas e não deveria ganhar o status de seu foco central. A formação engloba aspectos de produção de subjetividade, produção de habilidades técnicas e de pensamento e o adequado conhecimento do SUS (Brasil, 2004Brasil. (2004). Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde. AprenderSUS: o SUS e os cursos de graduação da área da saúde. Brasília, DF: o autor., p. 4).

Atualmente, o Programa Nacional de Reorientação da Formação em Saúde (Pró-Saúde) tem se constituído importante diretriz, inserido entre as políticas que induzem à transformação da formação para a saúde, propondo uma maior integração ensino-serviço, a partir do fomento de novos conhecimentos e inserção dos estudantes nos serviços da rede de saúde desde o início de sua formação acadêmica. O programa tem por objetivos: formar profissionais capazes de trabalhar sob a perspectiva do SUS, em consonância com as demandas e realidade da população e perceber as mudanças decorrentes do campo da saúde, especialmente as mudanças demográficas e epidemiológicas pelas quais passam a sociedade (Brasil, 2007Brasil. (2007). Ministério da Saúde. Ministério da Educação. Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde – Pró-Saúde: objetivos, implementação e desenvolvimento potencial. Brasília, DF: o autor.).

A aliança entre as dimensões da educação e do trabalho traça aqui uma forte marca no que se pretende constituir como formação para a saúde, ao passo que evidencia a integralidade da atenção, a reflexão crítica permanente acerca do cuidado em saúde, o reconhecimento de diferentes olhares e saberes acerca de determinado fenômeno, além da consideração do conhecimento que permanentemente se constrói a partir do diálogo entre saberes e práticas. A partir dessa realidade, trazemos a seguinte questão: como articular o espaço acadêmico, com suas próprias problematizações enquanto espaço institucional e simbólico e a prática inserida na perspectiva do SUS?

Ao partir desses apontamentos basilares, pretendemos relatar neste artigo as experiências, desafios e perspectivas empreendidas pelo curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE) no que diz respeito à efetivação da nova formação voltada para as diretrizes curriculares nacionais em Psicologia, com destaque a uma das ênfases construídas pelo curso: Processos Clínicos e Intervenções em Saúde. Para o delineamento desse relato, destacamos a construção das experiências formativas a partir dos estágios básicos no campo da saúde, já no ciclo básico do curso, como ponte para a construção da inserção para ênfase citada. Por ser um curso criado recentemente, em 2008, ainda estão sendo realizados alguns esforços em direção à ampliação da compreensão dos processos saúde-doença-cuidado, a partir da dimensão crítica e reflexiva dos discentes sobre a inserção da Psicologia no SUS.

O recorte a ser destacado refere-se ao desenvolvimento da disciplina Práticas Integradas de Trabalho, pertencente ao sétimo semestre (PIT V) do referido curso, que tem por objetivos: conhecer os diversos contextos da rede de atenção à saúde; compreender a diversidade da atuação profissional na saúde pública; e refletir acerca da inserção da Psicologia nesse campo. Para tanto, trazemos inicialmente um breve histórico acerca do curso de Psicologia da UECE, com o intuito de contextualizar o leitor sobre as condições sociais em que se deram a implementação desse curso, as ênfases curriculares, bem como a criação e efetivação dos estágios supervisionados, destacando, aqui, os estágios básicos. Assim, esperamos poder compartilhar as ideias para a implementação do estágio, bem como as vivências oriundas desse processo, ressaltando os desafios enfrentados e as perspectivas vislumbradas.

Aproximações e análises dos cenários formativos e de atuação em Psicologia na atualidade

A inserção de psicólogos no âmbito da saúde pública é um desafio a ser perseguido na academia, frente às demandas e complexidades emergentes dessa realidade. A tradicional identificação desse profissional no âmbito da prática clínica individual e, por que não dizer, privada tem levado muitas vezes a uma restrição do próprio campo de possibilidades no que diz respeito às práticas desse profissional.

Dimenstein (1998)Dimenstein, M. (1998). Os psicólogos nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais. Estudos de Psicologia (Natal), 3(1), 53-81. doi:10.1590/S1413-294X1998000100004 faz reflexões sobre a inserção do psicólogo nesse campo, situando o percurso histórico que fez com que esse profissional se inserisse no âmbito da saúde pública. A autora entende que não se pode considerar essa trajetória de forma naturalizada, na medida em que identifica uma série de fatores sociais e econômicos que favoreceram a entrada do psicólogo na saúde pública.

A crise econômica da década de 1980 e a minimização do mercado de atendimento individual e privado foram marcos importantes para que a categoria profissional dos psicólogos entrasse no SUS. Nesse sentido, a inclusão desse profissional nesse âmbito de atuação (hospitais, unidades de saúde, ambulatórios, entre outros), nesse momento, acontece de forma pouco comprometida com a realidade e com as demandas da população, deixando o psicólogo frustrado e o próprio serviço sem compreender de forma clara a inserção desse profissional nesse ambiente. Em artigo publicado em 1998, intitulado “Os psicólogos nas Unidades Básicas de Saúde: desafios para a formação e atuação profissionais”, Magda Diniz Bezerra Dimenstein já incluía a dimensão da formação acadêmica como fundamental na construção de novas práticas.

Em 2006, no texto “A prática dos psicólogos no Sistema Único de Saúde”, Dimenstein (2006)Dimenstein, M. (2006). A prática dos psicólogos no Sistema Único de Saúde/SUS. In I Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública: contribuições técnicas e políticas para avançar o SUS (PP. 8-16). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. assinala os enfrentamentos que a Psicologia precisa realizar em direção à sua contribuição na Política de Humanização do Sistema Público de Saúde. Segundo a autora, o “ideário individualista” ainda permanece presente nas práticas e formação acadêmica dos psicólogos, forjando o que ela denomina de uma “cultura profissional”. De acordo com a autora citada, “[...] tudo isso concorre para a produção de uma cultura profissional, de uma forma específica de ser psicólogo, de ver o mundo, de organizar seu trabalho e de relacionar-se com a instituição de saúde”. (Dimenstein, 2006Dimenstein, M. (2006). A prática dos psicólogos no Sistema Único de Saúde/SUS. In I Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública: contribuições técnicas e políticas para avançar o SUS (PP. 8-16). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia., p. 12) E, acrescenta:

Nesse sentido, destaca-se a necessidade de construção de um modo de fazer psicologia articulado aos princípios e estratégias de intervenção do SUS, modo que vai sendo gestado ao longo da formação, e a universidade deve responsabilizar-se por isso. Não se trata de uma especialização, mas de um modo de ser no exercício profissional (Dimenstein, 2006Dimenstein, M. (2006). A prática dos psicólogos no Sistema Único de Saúde/SUS. In I Fórum Nacional de Psicologia e Saúde Pública: contribuições técnicas e políticas para avançar o SUS (PP. 8-16). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia., p. 13).

A prática do psicólogo inserido nesse campo, por sua vez, foi marcada pela simples transposição da clínica privada para a assistência pública (Dimenstein, 2000Dimenstein, M. (2000). A cultura profissional do psicólogo e o ideário individualista: implicações para a prática no campo da assistência pública à saúde. Estudos de Psicologia (Natal), 5(1), 95-121. doi:10.1590/S1413-294X2000000100006). Diversos estudos, como o realizado por Andrade, e Simon (2009)Andrade, J. F. S. M., & Simon, C. P. (2009). Psicologia na atenção primária à saúde: reflexões e implicações práticas. Paidéia (Ribeirão Preto), 19(43), 167-175. doi:10.1590/S0103-863X2009000200005, apontam que a formação está ainda distante de uma habilitação real para o trabalho no SUS.

Sobre a formação do psicólogo para esse campo, a importante pesquisa de Guareschi, Dhein, Reis, Machry e Bennemann (2009)Guareschi, N. M. F., Dhein, G., Reis, C., Machry, D. S., & Bennemann, T. (2009). A formação em psicologia e o profissional da saúde para o SUS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 61(3), 35-46. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672009000300005
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destaca que os eixos formativos dos cursos de Psicologia estão aquém do modelo compatível com o SUS. As formações ainda pautam como estruturantes dos currículos dos psicólogos as disciplinas biomédicas e as de enfoque do desenvolvimento na psicometria – tais como a avaliação psicológica e os estudos da psicopatologia. As autoras destacam que o fundamento e a relação do desenvolvimento majoritário dessas disciplinas estão no comprometimento da Psicologia com a industrialização e medicalização da sociedade brasileira à época da regulamentação da Psicologia, em 1962. Em menor escala, vemos a presença das disciplinas sociais – como Psicologia Social e Comunitária. Essas, apesar da menos inserção, são mais conectadas com o perfil do trabalho no SUS (Guareschi et al., 2009Guareschi, N. M. F., Dhein, G., Reis, C., Machry, D. S., & Bennemann, T. (2009). A formação em psicologia e o profissional da saúde para o SUS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 61(3), 35-46. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672009000300005
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). As autoras destacam, ainda, que a:

[...] importância da diversidade e multiplicidade das condições de vida, bem como a inter-relação teórico-metodológica na formação em Psicologia para contemplar o enfoque multidisciplinar que determinadas práticas psi passam a demandar por causa da complexidade dos contextos sociais, são propiciadas, em parte, pelos movimentos epistemológicos que a Psicologia Social proporciona às práticas (Guareschi et al., 2009Guareschi, N. M. F., Dhein, G., Reis, C., Machry, D. S., & Bennemann, T. (2009). A formação em psicologia e o profissional da saúde para o SUS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 61(3), 35-46. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672009000300005
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, p. 41).

Dessa forma, podemos perceber que as autoras situam a produção curricular da formação em Psicologia, fundamentada no mesmo campo de poderes em que a Psicologia enquanto ciência se propôs a desenvolver. Como afirmam Guareschi et al. (2009Guareschi, N. M. F., Dhein, G., Reis, C., Machry, D. S., & Bennemann, T. (2009). A formação em psicologia e o profissional da saúde para o SUS. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 61(3), 35-46. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672009000300005
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, p. 37): “[...] o currículo é um campo em que estão em jogo múltiplos elementos, os quais estão implicados em relações de poder e compõem uma política cultural”. Para as autoras, temos justificado também a formação em Psicologia desconectada com as atuais demandas e inserção dos psicólogos nos campos sociais, inclusive na saúde pública. Assim, novos parâmetros precisam ser construídos, tanto no que tange à academia, quanto aos serviços, já que há que se pensar a prática profissional afinada com as realidades, anseios e demandas da sociedade.

Sobre esse aspecto, Franco e Mota (2003)Franco, A., & Mota, E. (2003). Distribuição e atuação dos psicólogos na rede de unidades públicas de saúde no Brasil. Psicologia; Ciência e Profissão, 23(3), 50-59. doi:10.1590/S1414-98932003000300008, ao relatarem pesquisa sobre a distribuição e atuação dos psicólogos na rede pública de saúde, identificam onde estão esses profissionais, como eles estão distribuídos e como sua atuação possibilita compreender a própria inserção dos psicólogos no campo de saúde no Brasil, bem como os processos formativos vigentes no território brasileiro. Para eles, “[...] esta reflexão frequentemente enfatiza que o crescimento e o fortalecimento da atuação do psicólogo relaciona-se com a competência para atender às demandas da população brasileira” (Franco, & Mota, 2003Franco, A., & Mota, E. (2003). Distribuição e atuação dos psicólogos na rede de unidades públicas de saúde no Brasil. Psicologia; Ciência e Profissão, 23(3), 50-59. doi:10.1590/S1414-98932003000300008, p. 50).

A questão sobre o atendimento à população brasileira constitui-se, então, foco de análise e indagação para os profissionais e estudiosos da área. A ampliação dos espaços de atuação dos psicólogos exige novos parâmetros na consecução de práticas profissionais, afinadas com o contexto social, pautando-se por um olhar que abranja um leque de possibilidades maior de atuação. A ênfase na dimensão clínica, individual e privada tem limitado a atuação de psicólogos na área da saúde, muitas vezes sem perceber a ampla dimensão que essa área impõe.

Assim, a atuação do psicólogo no campo da saúde, e especialmente no campo da saúde pública, deve contemplar uma discussão da atenção à saúde de forma ampla, fortalecendo o SUS e reforçando os seus princípios de universalidade, integralidade e igualdade. Essa dimensão exige uma posição ético-política do profissional. Como afirma Benevides (2005)Benevides, R. (2005). A psicologia e o sistema único de saúde: quais interfaces? Psicologia & Sociedade,17(2), 21-25. doi:10.1590/S0102-71822005000200004, essa reflexão precisa tentar compreender o contexto em que separou o indivíduo do social, a clínica da política, a clínica da saúde coletiva e, por fim, a própria Psicologia do SUS.

Trabalhar nessa perspectiva é reconhecer que a concepção de saúde vai além da ausência de doenças, refletindo as realidades que perpassam os aspectos individuais, a rede social e comunitária, as condições de vida e trabalho. Essa compreensão enfatiza, portanto: a promoção da saúde, e não apenas a prevenção de doenças (Westphal, 2012Westphal, M. F. (2012). Promoção da saúde e prevenção de doenças. In G. W. S. Campos, C. S. Minayo, M. Akerman, M. Drumond Júnior, & Y. M. Carvalho (Orgs), Tratado de saúde coletiva (pp. 635-667). São Paulo, SP: Hucitec.); os determinantes sociais da saúde como fatores essenciais na atuação profissional (Buss, & Pellegrini Filho, 2007Buss, P. M.,& Pellegrini Filho, A. (2007). A saúde e seus determinantes sociais. Physis, 17(1), 77-93. doi:10.1590/S0103-73312007000100006); a concepção de saúde de forma ampliada, a partir da dimensão biológica, psicológica e social (Brasil, 2009)Brasil. (2009). Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Política nacional de humanização da atenção e gestão do SUS: clínica ampliada e compartilhada. Brasília, DF: o autor..

No que diz respeito à Psicologia, sua inserção especialmente no âmbito da atenção primária em saúde (APS) talvez se constitua o espaço em que o psicólogo esteja menos afinado para atuar. Enquanto nos hospitais, ambulatórios e clínicas especializadas, o psicólogo já tenha construído uma trajetória de inserção e prática, a atenção primária ainda permanece como campo a ser construído. Vale ressaltar que a inserção nesses espaços aconteceu muito recentemente, especialmente no âmbito dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família, por equipes que vêm para apoiar as equipes da Estratégia Saúde da Família (Brasil, 2008Brasil. (2008). Ministério da Saúde. Portaria nº 154, de 24 de janeiro de 2008. Cria os Núcleos de Apoio à Saúde da Famíia – NASF. Brasília, DF: o autor.). No Ceará, especificamente, uma pesquisa recente evidencia a inserção da Psicologia, enquanto profissão que compõe as categorias profissionais da saúde na APS, apenas em 2009, com o advento do Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) (Oliveira, Reis, Arruda, Vieira, & Tófoli, 2012Oliveira, P. R. S., Reis, F., Arruda, C. A. M., Vieira, A. C. V. C., & Tófoli, L. F. (2012). Novos olhares, novos desafios: vivências dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família em Fortaleza CE. Cadernos ESP, 6(1), 54-64. Recuperado de http://www.esp.ce.gov.br/cadernosesp/index.php/cadernosesp/article/view/74
http://www.esp.ce.gov.br/cadernosesp/ind...
).

Essa discussão remete, assim, aos esforços que os cursos de graduação e pós-graduação em Psicologia devem empreender na formação dos profissionais. Muitas discussões e construções estão sendo gestadas nesse campo, e a Psicologia precisa engajar-se nelas. Como afirmam Franco e Mota (2003Franco, A., & Mota, E. (2003). Distribuição e atuação dos psicólogos na rede de unidades públicas de saúde no Brasil. Psicologia; Ciência e Profissão, 23(3), 50-59. doi:10.1590/S1414-98932003000300008, p. 51):

[...] para a Psicologia, a questão dos modelos de atenção é uma discussão ainda muito incipiente e, quando aparece, está circunscrita ao cuidado aos portadores de sofrimento psíquico. O futuro da profissão está em jogo e uma das cartas principais desse jogo são os modelos de atenção adotados. Atuar na promoção e na proteção à saúde, na prevenção de riscos e agravos e na reabilitação não exclui o contexto do consultório e da atenção clínica, mas indica a pertinência de outros níveis, contextos e modos de atuação. Portanto, o desafio de disponibilizar atendimento psicológico para a população brasileira exige formulações teóricas, estratégias de ação e fundamentos em política e economia da saúde que coexistam de forma integrada e articulada.

Partindo dessas considerações, é possível identificar descompassos entre as ações de psicólogos e sua formação. Já existem relatos de experiências em direção à preocupação de profissionais e docentes nessa perspectiva (Lima, 2005Lima, M. (2005). Atuação psicológica coletiva: uma trajetória profissional em unidade básica de saúde. Psicologia em Estudo, 10(3), 431-440. doi:10.1590/S1413-73722005000300011; Souza, & Cury, 2009; Sundfeld, 2010)Sundfeld, A. C. (2010). Clínica ampliada na atenção básica e processos de subjetivação: relato de uma experiência. Physis, 20(4), 1079-1097. doi:10.1590/S0103-73312010000400002, demonstrando novos direcionamentos na formação de profissionais psicólogos para trabalharem junto a usuários e profissionais da saúde pública.

Os espaços formativos e as práticas profissionais não podem, portanto, estar dissociados, pois são realidades que vão se constituindo, ao mesmo tempo, tanto no campo das práticas, como no das concepções. Caso contrário, cria-se um abismo resultante da falta de articulação entre formação em saúde e trabalho no SUS.

Assim, se faz necessária a compreensão das complexas interações entre condições sociais, econômicas; a promoção, prevenção e recuperação da saúde; os significados e sentidos da saúde e doença para os sujeitos e as dinâmicas emocionais envolvidas para uma efetiva atuação dos profissionais de Psicologia.

Percurso metodológico

Trata-se de um estudo de abordagem qualitativa com caráter descritivo na modalidade de relato de experiência. Nossa escolha se dá pela consonância com o pensamento expresso por Minayo (2006)Minayo, M. C. S. (2006). Técnicas de análise de material qualitativo. In M. C. S. Minayo, O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (pp. 303-360). São Paulo, SP: Hucitec., de que essa abordagem é capaz de incorporar a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas.

Ao considerar como objeto de estudo a formação em Psicologia, no que se refere à ênfase em saúde, pretendemos registrar as práticas realizadas e discutir as peculiaridades e as implicações do desenho formativo explicitado no currículo do curso. Por isso, faz-se necessário um tratamento do campo dos sentidos e significados, e dinâmico da realidade, permitindo que de todo o processo surjam novos aspectos referentes à questão trabalhada (Serapioni, 2000Serapioni, M. (2000). Métodos qualitativos e quantitativos na pesquisa social em saúde: algumas estratégias para a interação. Ciência & Saúde Coletiva, 5(1), 187-192. doi:10.1590/S1413-81232000000100016). Além disso, por se tratar de um relato de experiência, o estudo exige que sejam levadas em consideração questões específicas da situação abordada, bem como a valorização do contexto e das circunstâncias em que se deram as atividades. Por tudo isso, acredita-se que a metodologia qualitativa é a opção mais adequada para apreender o objeto de análise adotado (Minayo, 2006Minayo, M. C. S. (2006). Técnicas de análise de material qualitativo. In M. C. S. Minayo, O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (pp. 303-360). São Paulo, SP: Hucitec.).

Para a construção do relato, foi utilizada a leitura dos materiais produzidos pelos estudantes na disciplina, tais como relatórios, estudos de casos e seminários. Estes últimos ocorreram ao final das disciplinas e possibilitaram o diálogo entre estudantes e profissionais dos campos onde os estágios aconteceram, levando-os a reflexões sobre as experiências formativas pelas quais passaram.

A experiência a que se refere esse relato transcorreu entre os anos de 2011 e 2014, uma vez que a disciplina PIT V foi ofertada no primeiro semestre de cada ano. Os campos de práticas foram as unidades de saúde da APS, Centros de Atenção Psicossocial e hospitais da rede pública, englobando unidades de nível primário, secundário e terciário do município de Fortaleza.

Contextualizando a experiência: o curso de Psicologia da UECE

O curso de Psicologia da UECE, criado em 2008, é o segundo curso em Psicologia de universidade pública no Estado do Ceará. A sua concepção pedagógica alinha-se às Diretrizes Curriculares Nacionais (Brasil, 2011Brasil. (2011). Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 5, de 15 de março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia. Brasília, DF: o autor.), as quais norteiam as principais habilitações para os cursos de Psicologia que contemplam duas ênfases curriculares: “Processos Clínicos e Intervenções em Saúde” e “Psicologia e Processos em Educação”, tendo como objetivos articular teoria, prática, formação e compromisso social.

As disciplinas referentes às Práticas Integradas de Trabalho (PIT), objeto do presente artigo, pertencem ao núcleo comum das duas ênfases, ocorrendo do 3º ao 7º semestre do curso. Posteriormente a esse período, os estudantes escolhem uma das ênfases para aprofundamento e realização de estágios específicos, podendo fazer disciplinas da outra ênfase, na modalidade optativa, de acordo com seu interesse e disponibilidade.

As PIT foram constituídas como estágios supervisionados, como parte do nível básico, conforme especificidades constantes nas diretrizes curriculares, envolvendo atividades pertencentes ao núcleo comum do currículo do curso. Referem-se às práticas voltadas “[...] para o desenvolvimento de habilidades e competências em situações de complexidade variada, representativas do efetivo exercício profissional, sob a forma de estágio supervisionado”, conforme o artigo 19, item X, da Resolução CNE/CES no 5/2011, Diário Oficial da União, Brasília, 16 de março de 2011 (Brasil, 2011Brasil. (2011). Conselho Nacional de Educação. Câmara de Educação Superior. Resolução nº 5, de 15 de março de 2011. Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para os cursos de graduação em Psicologia, estabelecendo normas para o projeto pedagógico complementar para a Formação de Professores de Psicologia. Brasília, DF: o autor.). Nesse sentido, as PIT1 (UECE, s/d) têm por objetivos:

  • consolidar e desenvolver habilidades e competências básicas para a atuação profissional, de acordo com as Diretrizes Curriculares;

  • desenvolver atividades integradas que contemplem processos psicológicos individuais coletivos;

  • promover experiências de estágio que favoreçam a integração dos fundamentos teóricos desenvolvidos nas duas ênfases do curso: Processos em Educação e Processos Clínicos e Intervenções em Saúde.

Na experiência desenvolvida durante as PIT, propostas pelo Curso de Psicologia da UECE, a cada semestre é contemplado um eixo diferente, de acordo com a grande temática que perpassa o período. Assim, as temáticas trabalham conteúdos referentes à “Psicologia, Ciência e Profissão”, “Desenvolvimento Humano”, “Grupos”, “Avaliação Psicológica” e “Saúde”, ofertando, em sua carga horária, atividades práticas em campo, discussões teóricas e de estudo, e supervisão acadêmica.

Neste trabalho, centramo-nos no relato da experiência desenvolvida na disciplina Prática Integrada de Trabalho V (PIT V), do 7º semestre do curso de Psicologia da UECE, a qual tem como eixo temático “Psicologia e Saúde”. A disciplina tem como objetivos: conhecer os diversos contextos da rede de atenção à saúde; compreender a diversidade da atuação profissional na saúde pública; e refletir acerca da inserção da Psicologia nesse campo. Inicialmente, trazemos o relato descritivo do planejamento das atividades para, em seguida, abordarmos as reflexões e desafios que se tem percebido nesse percurso.

Compartilhando a experiência

Ao considerar o campo da saúde uma das ênfases curriculares do curso de Psicologia da UECE (Processos Clínicos e Intervenções em Saúde), a discussão e inclusão acerca da saúde pública como campo primordial desse estágio se constituiu, desde o princípio, uma preocupação dos docentes supervisores. A compreensão da necessidade de se ampliar os cenários de práticas, traduzido em uma maior inserção na Rede de Atenção à Saúde (RAS), passou a se configurar como fundamental na compreensão e delineamento do estágio.

Assim, desde o ano de 2011, os estudantes têm tido a oportunidade de se aproximar dos diversos níveis de atenção à saúde, a partir da articulação previamente realizada junto às diferentes instituições de saúde: unidades de APS e NASF, Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) e hospitais. Nesse momento, os estudantes têm a oportunidade de vivenciar, in loco, diferentes experiências no campo da saúde pública nos três níveis de atenção: primária, secundária e terciária.

Vale ressaltar que, nesse período, além das atividades próprias às PIT V, os estudantes cursam também a disciplina denominada “Psicologia e Saúde”, propiciando uma reflexão permanente entre o arsenal teórico estudado e as práticas experienciadas em campo, no sentido da construção de trajetórias profissionais de cada um. A cada semestre, a disciplina Prática Integrada de Trabalho V conta com a participação de dois professores do curso de Psicologia da UECE engajados com a ênfase curricular da área da saúde. O planejamento das atividades do semestre inicia no período anterior, mediante contatos iniciais com as secretarias municipal e estadual de Saúde de Fortaleza e o engajamento no plano geral das atividades de estágio dos cursos da área de saúde da UECE a serem desenvolvidas no semestre seguinte. Após esse momento inicial, são planejadas as atividades de estágio a se realizarem no decorrer do semestre letivo, envolvendo reflexões, estudos e experiências de campo e supervisão acadêmica.

No que diz respeito à parte teórica, são planejados estudos de textos, além de palestras com profissionais fora do âmbito da universidade para compartilhar suas experiências junto aos estudantes. Especialmente no que tange às atividades de campo, são realizadas articulações junto aos órgãos competentes municipais e estaduais, através do contato com os coordenadores de serviços públicos locais, além do diálogo entre professores-supervisores e profissionais dos serviços, iniciando uma interlocução entre universidade e espaços públicos de saúde.

Após o estabelecimento das parcerias, o estágio desenvolve-se em dois momentos: primeiro, através da realização de visitas com os estudantes aos diferentes locais representativos dos três níveis de atenção, para que todos possam ter uma visão integral do funcionamento das RAS. É realizada uma visita em uma unidade da atenção primária, hospital e CAPS, momento em que os profissionais relatam as especificidades da atuação profissional e apresentam as instituições para os estudantes, evidenciando na prática a inserção do psicólogo na saúde e ressaltando as ações realizadas junto a outros profissionais do serviço.

Após as visitas, os estudantes têm a oportunidade de escolher em qual dos espaços/níveis de atenção (primária, secundária e terciária) continuarão a inserção no campo, sendo então divididos em duplas para se engajarem nos diferentes locais de estágio. Os estudantes acompanham a atuação dos profissionais em trabalhos individuais e de grupo, oficinas, visitas domiciliares, triagem e participam de supervisão com profissionais em campo, totalizando uma média de oito visitas à instituição.

É relevante apontarmos, ainda, que essas experiências são intercaladas com momentos de supervisão na universidade, num acompanhamento sistemático das atividades desenvolvidas e da trajetória dos alunos. A conclusão dos estágios ocorre em encontro de encerramento do semestre, organizado pelos professores-supervisores e estudantes-estagiários, juntamente com a coordenação do curso, do qual participam também os profissionais que atuam nos diferentes campos de estágio.

O campo teórico-prático: implicações formativas e vivenciais

A experiência de estágio da PIT V aponta a implicação de quatro dimensões que têm se constituído fundamento de nossa ação, a saber: o compromisso social da universidade com a política pública; a redução da distância entre teoria e prática; a atualização de currículos vivos, segundo a agenda pública da formação de psicólogos; e a supervisão como estratégia educacional promotora de práxis. A seguir, apresentamos mais a fundo como cada dimensão se estrutura dentro da experiência de estágio básico relatada.

Compromisso social da universidade com a política pública

Essa experiência mostra-se de grande relevância para se pensar o compromisso social da universidade e da Psicologia. Enquanto instituição pública, compreende-se a importância dos campos de estágios serem desenvolvidos nos espaços públicos como forma de articulação e apropriação da comunidade dos espaços da academia. O distanciamento das condições de vida dos sujeitos durante a formação e contato com diversas configurações sociais eclipsa a possibilidade de refletir e criar sobre os mundos e práticas possíveis com a mediação do saber psicológico.

Observa-se o quanto essa dimensão é desafiadora, uma vez que ainda não se conta com um número significativo de psicólogos na rede pública de saúde, especialmente no âmbito da atenção primária. A despeito dessa dificuldade, encontramos abertura e compromisso dos profissionais que se encontram nos cenários de práticas, tanto no âmbito estadual quanto municipal, como também estabelecemos diálogo profícuo com a coordenação das residências multiprofissionais. Tais iniciativas minimizam as dificuldades vivenciadas.

Assim, a maior interação ensino-serviço possibilita a construção de outras formas de se relacionar com os campos de estágio, permitindo o compromisso da formação com a realidade do SUS. Esse aspecto é fundamental na reestruturação do saber voltado para a saúde, e mais especificamente do saber psicológico, integrando-se às perspectivas da interdisciplinaridade e multiprofissionalidade tão caras atualmente.

Redução da distância entre teoria e prática

No âmbito da formação, minimizar a distância entre teoria e prática é um dos objetivos da disciplina PIT ao longo da estrutura curricular. Outra necessidade aponta para o fato de se repensar o currículo continuamente de tal forma que este possa estar de acordo com as discussões no campo da Psicologia, as demandas dos contextos sociais e historicamente localizados, permitindo a criação de novos conhecimentos e competências por parte dos alunos com o desenvolvimento do espírito ético e científico.

Um aspecto relevante refere-se às questões propostas pela atividade de campo sobre como o saber produzido na universidade lida com a diferença, com o universo cultural dos seus alunos e de seu público de estágio e com o pluralismo sociocultural. Essas questões são evidenciadas exatamente no momento do estágio: a maioria dos alunos, que possui plano de saúde particular e que tem expectativas e vivências sociais em certo espaço “privilegiado” da cidade, no momento de estágio, tem que se deparar com a necessidade de reposicionar certos saberes, de reformular compreensões sobre sujeitos e de recriar a própria noção de saúde e cidade com a qual operam cognitiva e afetivamente.

A diminuição da distância entre teoria e prática, entretanto, acontecia principalmente quando o uso de referências para o balizamento dos estágios superava os tradicionais textos normativos. A dificuldade dos estudantes em visualizar o tal rompimento com a formação hegemônica (clínica e individual) vira potencial quando adotados modelos teóricos condizentes com as novas produções teórico-metodológicas do campo citado: como na clínica psicossocial e na estratégia psicossocial de cuidado (Costa-Rosa, Luzio, & Yasui, 2003Costa-Rosa A., Luzio C. A., &Yasui, S. (2003). Atenção psicossocial: rumo a um novo paradigma na Saúde Mental Coletiva. In Amarante, P. (Coord.), Archivos de saúde mental e atenção psicossocial (pp. 13-44). Rio de Janeiro, RJ: Nau.; Yasui, & Costa-Rosa, 2008Yasui, S., & Costa-Rosa, A. (2008). A estratégia atenção psicossocial: desafio na prática dos novos dispositivos de Saúde Mental. Saúde Debate, 32(78-80), 27-37.) no âmbito da atuação na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), ou como no modelo do apoio e cuidado integral (Oliveira, Pequeno, & Ribeiro, 2012Oliveira, P. R. S., Pequeno, M. L., & Ribeiro, F. (2012). Psicologia e a Estratégia Saúde da Família: o apoio como ferramenta de reformulação das práticas de cuidado em saúde. In R. M. R. Barbosa (Org.), Pesquisas e intervenções psicossociais (Vol. 1, pp. 71-94). Recife, PE: Editora Universitária da UFPE.) no âmbito da APS.

Atualização de currículos “vivos” segundo a agenda pública da formação de psicólogos

A dimensão do currículo abordada por Moreira e Silva (2001)Moreira, A. F., & Silva, T. T. (Orgs.). (2001). Currículo, cultura e sociedade (5a ed.). São Paulo, SP: Cortez. aponta a relação deste com o contexto histórico e social, situando-o como algo permeado pelas relações de poder e vinculados a ideologias que muitas vezes não estão claras para quem o operacionaliza. Ao discutir as relações entre currículo e cultura, os autores enfatizam que esta última é terreno de embate entre diferentes visões de mundo e, dessa forma, integra o processo de produção e criação de sentidos, de significações do campo de conhecimento e de formação dos sujeitos.

Os autores problematizam a necessidade de pensar o currículo a partir das relações de poder, posto que ele expressa as relações sociais de poder. A escolha de conteúdos, a relação professor-aluno, a relação usuário do sistema de saúde e aluno são algumas das questões que pensamos a partir de tal interlocução. De acordo com Moreira e Silva (2001)Moreira, A. F., & Silva, T. T. (Orgs.). (2001). Currículo, cultura e sociedade (5a ed.). São Paulo, SP: Cortez., existe o currículo oficial hegemônico, que produz identidades sociais, rotinas e rituais institucionais cotidianos, como o que é ser psicólogo, o que deve fazer, onde deve trabalhar, como deve se comportar, vestir, lidar com o outro; e o currículo oculto, que possui por objetivo desnaturalizar e historicizar o currículo e enfatiza a necessidade de aproveitar a cultura popular, desenvolver o espírito crítico, pôr o conhecimento em movimento e problematização constantes.

O lidar com os sujeitos reais, concretos, históricos, com a singularidade de suas histórias, com as histórias vindas de diversos lugares do estado e do país, com diferentes experiências e compreensões de saber sobre o motivo do seu sofrer e das suas possibilidades de recursos internos para lidar com a sua dor, amplia para os alunos de Psicologia a noção de sujeito psicológico.

A prática do estágio também apontou contribuições para os vínculos entre os próprios alunos do curso de Psicologia. A possibilidade de desenvolver trabalhos em parceria permite o aprender com o outro e a leitura do conhecimento como criação social compartilhada. Para evidenciar a vivência do “novo” proporcionada por esta experiência, podemos apontar alguns dos impactos destas experiências, relatados pelos alunos por ocasião das atividades de supervisão: medo do desconhecido, receio de não atender as expectativas, curiosidade e necessidade de enfrentar novos desafios.

Supervisão como estratégia educacional promotora de práxis

Consideramos os momentos de supervisão, uma experiência fundamental na formação. Considerar a supervisão como um momento de facilitação e de suporte para os alunos, possibilita repensar as questões de poder que tem tradicionalmente se constituído ao longo da montagem dessa prática.

Assim, optou-se por alguns princípios norteadores da supervisão, baseadas em Freire (1996)Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo, SP: Paz e Terra.: acolhimento, autonomia, aceitação do risco, espírito crítico e reflexivo sobre a prática, articulação entre teoria e prática, embasados pela dimensão ética, relações colaborativas, e a compreensão de que cada um, aluno e professor, poderiam contribuir com o pensar e o agir de cada um e de todos. Também se trabalhou, no decorrer dos encontros, a rejeição contra qualquer forma de discriminação e o respeito aos saberes dos educandos, além da alegria, disponibilidade para a escuta e para o diálogo, e da compreensão sobre a dimensão inacabada e inesperada que é a vida e o conhecimento. Pensamos, enfim, que essa tensão suportada e acolhida durante a formação permite o desenvolvimento de um saber crítico, criativo e ético.

Considerações finais

Acompanhar a trajetória construída, e agora apresentá-la a público, leva-nos a recompor as experiências até então vivenciadas, em direção à formação cada vez mais atenta e comprometida com as demandas da população. Muitos são os desafios traçados na perspectiva da construção de novos paradigmas para a formação no campo da saúde pública.

Um dos fatores de maior destaque nesse trajeto é a aproximação entre a universidade e o serviço, possibilitando um diálogo direto e permanente entre a teoria e a prática. Ao concluírem essa experiência, os alunos enfatizaram ter sido relevante a oportunidade de ampliarem o campo das relações teórico-práticas, mas para além disso, dialogarem com os entraves, dificuldades, conquistas e possibilidades.

Além disso, observou-se o estreitamento das relações entre a universidade, o serviço e os profissionais envolvidos, na medida em que se fez um movimento de sair dos muros da universidade e ir diretamente dialogar com os representantes dos espaços e do setor da Psicologia, podendo, assim, estabelecer outras relações dentro do campo de estágio. As parcerias firmadas possibilitaram o acolhimento dos estudantes, mas não só isso. Muitos profissionais trouxeram reflexões e mobilizaram expectativas frente a essa atividade, já que receber estudantes é também se colocar no lugar de docente em serviço, e abrir possibilidade de rever posições e práticas. Porém, há que se ressaltar, ainda, que não apenas os profissionais em serviço são mobilizados, pois também aqui os professores representantes do âmbito acadêmico de formação também são tocados dentro dessa experiência, num processo de reavaliação e reconstrução permanente.

A perspectiva de integrar conteúdos de forma interdisciplinar dentro e fora do próprio curso de graduação, nos leva a pensar que a construção de conhecimentos de forma integral e não fragmentado só tem a contribuir com o projeto ético-político da Psicologia. Cabe, também, enfatizar o percurso realizado pelos estudantes, no que diz respeito à contribuição na trajetória do seu processo de autonomia e reflexão crítica e estreitamento dos vínculos entre professor-aluno, especialmente nos momentos de supervisão, quando teoria e prática se confrontam e se complementam a partir da rede de afetos que se interpõem nesse momento.

Por fim, consideramos que a experiência do estágio básico do curso de Psicologia da UECE tem propiciado maior apropriação dos estudantes com o campo da saúde, reconhecendo a diversidade de práticas dos psicólogos aí inseridos, contribuindo para a reflexão crítica acerca da complexidade da atuação profissional no cenário público, reconhecendo a Psicologia presente na agenda de defesa do SUS. Em outra dimensão, apontamos a necessidade de ampliação e diversificação das experiências de estágio ainda na graduação, estendendo-as também para os estágios específicos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    29 Dez 2014
  • Aceito
    01 Abr 2016
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