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Psicologia e Práticas Restaurativas na Socioeducação: Relato de Experiência

Psychology and Restorative practices in socioeducation: an experience report

Psicología y prácticas restaurativas en la socioeducación: relato de experiencia

Resumo

Este artigo tem como objetivo apresentar um relato de experiência de profissional da área da Psicologia, dentro de uma Unidade de Internação de adolescentes em conflito com a lei. Ainda pretendeu-se relacionar práticas restaurativas com possibilidade de experiência exitosa ao sistema socioeducativo. O relato tem como cenário uma unidade de Atendimento Socioeducativo de uma cidade no interior do estado do Rio Grande do Sul. Os dados obtidos são frutos da experiência profissional da autora e fazem parte de um estudo maior intitulado “Um Estudo dos Fatores de Risco e de Proteção em Jovens que Cumprem Medida Socioeducativa”. Os resultados mostraram que as práticas restaurativas realizadas nesta instituição foram apenas os círculos de compromisso. O tema da Justiça Restaurativa (JR), por ser novo e por não ter sido originalmente um modelo criado no cenário brasileiro, ainda é difícil de avaliar possíveis resultados e impactos. As experiências apresentadas sugerem que há possibilidade da JR ser uma experiência exitosa para o Sistema Socioeducativo. Indica-se a necessidade de realização de mais pesquisas com relação a essa temática.

Adolescente em Conflito com a Lei; Justiça Restaurativa; Práticas Restaurativas; Socioeducação

Abstract

This article aims to present an experience report by a psychologist working at a Socioeducative Unity for Adolescents in conflict with the law. We also aimed to relate the restorative practices to the possibility of successful experience in the socioeducative system. The report has a Socioeducative Unity from a city in the countryside of Rio Grande do Sul, Brazil, as setting. The data obtained are the fruit of the author’s experience and are part of a larger study entitled “A Study of Risk Factors and Protection for Youth being included in the Socioeducative System”. The results showed that the restorative practices performed at this institution were just the circles of commitments. About the Restorative Justice (JR), as it is new and it is not originally a model created in the Brazilian scene, it is still difficult to evaluate its possible results and impacts. The experiences presented suggest that there is a possibility that the JR can be a successful experience in the socioeducatiove system. We indicate the necessity of performing more research related to this issue.

Adolescents in Conflict with Law; Restorative Justice; Restorative Practices; Socio-education

Resumen

Este artículo tiene como objetivo presentar un relato de experiencia de una profesional del área de psicología en una Unidad de Internación de adolescentes en conflicto con la ley. También hubo intención de relacionar prácticas restaurativas con la posibilidad de una experiencia exitosa en el sistema socioeducativo. El relato tiene como escenario una unidad de Atendimiento Socioeducativo de una ciudad del interior del estado de Río Grande do Sul, Brasil. Los datos obtenidos son fruto de la experiencia del autor y son parte de un estudio más amplio titulado “Estudio de Factores de Riesgo y Protección para los jóvenes que cumplen medidas socioeducativas”. Los resultados mostraron que las prácticas restaurativas realizadas en esta institución fueron solamente los círculos de compromiso. En el tema de la Justicia Restaurativa (JR), por ser nuevo y por no haber sido originalmente un modelo creado en el escenario brasilero, todavía es difícil evaluar posibles resultados e impactos. Las experiencias presentadas sugieren que hay posibilidad de que la JR sea una experiencia exitosa para el Sistema Socioeducativo. Se indica la necesidad de realizar más investigaciones respecto a esta temática.

Adolescente en Conflicto con la Ley; Justicia Restaurativa; Prácticas Restaurativas; Socioeducación

Introdução

A discussão sobre a violência praticada por jovens no Brasil é um tema presente no cenário contemporâneo. A violência física praticada por adolescentes ganha diferentes contextos na sociedade atual. De um lado, a veiculação na mídia de serem os adolescentes os principais responsáveis pelo aumento de violência urbana. De outro lado, as estatísticas não corroboram com esta ideia e revelam dados que crianças e adolescente são em maior número vítimas de violência do que autores de atos infracionais (Oliveira, 2001Oliveira, C. S. (2001). Sobrevivendo no inferno: a violência juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina.; Teixeira, 2005Teixeira, M. L. (2005). Até quando? O adolescente e o futuro: nenhum a menos. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.; Waiselfish, 2013).

A criminalidade entre adolescentes é uma temática atual e relevante a ponto de ter sido incluída na agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde (Brasil, 2005Brasil. Ministério da Saúde. (2005). Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. Brasília, DF: o autor.). O assunto da violência juvenil ganha contornos de gravidade, em diferentes estudos de diversas áreas como Direito, Psicologia, Educação, etc. (Oliveira, 2001Oliveira, C. S. (2001). Sobrevivendo no inferno: a violência juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina.; Soares, 2000Soares, J. J. B. S. (2000). O sistema socioeducativo no âmbito do estado do Rio de Janeiro: panorama atual e perspectivas. In: L. M. T. Brito (Ed.), Responsabilidades: ações socioeducativas e políticas públicas para a infância e juventude no Rio de Janeiro (pp. 37-50). Rio de Janeiro: EDUERJ.; Volpi, 1997Volpi, M. (1997). O Adolescente e a ato infracional. São Paulo, SP: Corte.). Outro revés importante é a abundância de experiências negativas em relação às exitosas no contexto socioeducativo, o que pode reforçar algumas concepções que relacionam o comportamento infrator a um alto padrão de repetição e estabilidade (Costa, 2005Costa, C. R. B. S. F. (2005). É possível construir novos caminhos? Da necessidade de ampliação do olhar na busca de experiências bem-sucedidas no contexto socioeducativo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 5(2), 79-95. Recuperado de http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/11185
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). Cabe esclarecer que se entende por experiências exitosas a ressignificação do ato infracional do adolescente, a reconstrução de projeto de vida diferenciado daquele que vivia antes do cometimento de ato infracional, a não reincidência ao ato infracional, entre outras. Outro fator que colabora com esse descrédito é que o sistema socioeducativo parece não conseguir promover a ressignificação do ato infracional, nem a reconstrução do projeto de vida destes adolescentes (Costa, 2005Costa, C. R. B. S. F. (2005). É possível construir novos caminhos? Da necessidade de ampliação do olhar na busca de experiências bem-sucedidas no contexto socioeducativo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 5(2), 79-95. Recuperado de http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/revispsi/article/view/11185
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; Oliveira, 2001Oliveira, C. S. (2001). Sobrevivendo no inferno: a violência juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina.; Soares, 2000Soares, J. J. B. S. (2000). O sistema socioeducativo no âmbito do estado do Rio de Janeiro: panorama atual e perspectivas. In: L. M. T. Brito (Ed.), Responsabilidades: ações socioeducativas e políticas públicas para a infância e juventude no Rio de Janeiro (pp. 37-50). Rio de Janeiro: EDUERJ.; Tejadas, 2007Tejadas, S. S. (2007). Juventude e ato infracional: as múltiplas determinações da reincidência. Porto Alegre, RS: EDIPUCRS.; Teixeira, 2005Teixeira, M. L. (2005). Até quando? O adolescente e o futuro: nenhum a menos. Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia.). De acordo com Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 43% dos jovens internados cumprindo Medida Socioeducativa (MSE) são reincidentes (Brasil, 2012Brasil. Secretaria de Direitos Humanos. (2012). Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília, DF: o autor.). É agravante, nessa estatística, o fato de serem jovens que continuam reincidindo e que não foram privados de liberdade.

Diante disso, há a necessidade de rever as práticas empregadas nesse contexto, na tentativa de implantar novos modelos dentro de um sistema que comprovadamente não encontra resolutividade em si mesmo (Gonçalves, & Garcia, 2007Gonçalves, H. S., & Garcia, O. J. (2007). Juventude e sistema de direitos no Brasil. Psicologia, Ciência e Profissão, 27(3), 538-553. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932007000300013&lng=es&nrm=is&tlng=pt
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; Oliveira, & Assis, 1999Oliveira, M. B., & Assis, S. G. (1999). Os adolescentes infratores do Rio de Janeiro e as instituições que os “ressocializam”: a perpetuação do descaso. Cadernos de Saúde Pública, 15(4), 831-844. doi:10.1590/S0102-311X1999000400017). A Justiça Restaurativa (JR), mais precisamente seus preceitos e práticas, pode ser uma dessas possibilidades para enfrentar as dificuldades encontradas dentro do Sistema Socioeducativo. A JR preconiza o desenvolvimento de princípios como responsabilidade, autonomia, interconexão, respeito e participação. Os preceitos da JR agregados ao atendimento socioeducativo poderão qualificar as intervenções e possibilitar ao adolescente, à família e à rede de atendimento das políticas públicas a ressignificação da MSE (Aguinsky, & Capitão, 2008Aguinsky, B., & Capitão, L. (2008). Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da justiça restaurativa. Katálysis,11(2), 257-264.).

O objetivo deste artigo foi descrever a experiência de uma prática da JR no sistema socioeducativo. O relato tem com cenário uma unidade de Atendimento Socioeducativo de uma cidade na região central do estado do Rio Grande do Sul.

Da violência juvenil ao cumprimento de medida socioeducativa

A violência praticada por jovens ganha, cada vez mais, contorno de periculosidade e crescimento no cenário popular brasileiro, especialmente ao se considerar o incremento da mortalidade juvenil no total da população (Waiselfisz, 2013Waiselfisz, J. J. (2013). Mapa da violência IV: homicídios e juventude, no Brasil. Brasília, DF: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americano.). Em 1980, as mortes de jovens por causas externas (acidentes de trânsito, homicídios e suicídios) compreendiam pouco mais da metade do total de jovens mortos no País, ou seja, 52, 9%. Em 2004, a mortalidade da população jovem, pelas mesmas causas externas, alcançava 72% das mortes nessa população. Em 2011, quase 3/4 de jovens (73,2%) morreram por causas externas (Waiselfisz, 2013Waiselfisz, J. J. (2013). Mapa da violência IV: homicídios e juventude, no Brasil. Brasília, DF: Centro Brasileiro de Estudos Latino-Americano.).

A acentuada vitimização de jovens deve ser encarada como um sério problema social e de saúde pública, pois contraria as expectativas de vida (Brasil, 2005Brasil. Ministério da Saúde. (2005). Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa em Saúde. Brasília, DF: o autor.; Soares, 2005Soares, L. E. (2005). Cabeça de porco. Rio de Janeiro: Objetiva.). Os dados apresentados revelam uma realidade que alerta para a vulnerabilidade a que crianças e jovens estão expostos, pois de vítimas da violência alguns jovens passam a autores de violência.

A legislação define tratamento legal e diferenciado para crianças e adolescentes que sofrem violência e para adolescentes que praticam violência. Com o advento da Lei no 8069/90, que cria o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), é garantida prioridade absoluta para crianças e jovens, em função da sua condição peculiar de desenvolvimento, além de fazer clara distinção de mediadas protetivas e socioeducativas (Brasil, 1990Brasil. (1990). Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: o autor.). De acordo com o ECA, Medidas de Proteção são aplicáveis quando há ameaça ou a violação dos direitos da criança e do adolescente por ação ou omissão da sociedade ou do Estado, ou por falta, omissão ou abuso dos pais ou responsáveis (Brasil 1990Brasil. (1990). Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: o autor.). Medidas Socioeducativas (MSE) são aquelas aplicáveis somente ao adolescente, quando este, no devido processo legal, for considerado responsável pelo cometimento de um ato infracional (Brasil, 1990Brasil. (1990). Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: o autor.). Por ato infracional entende-se toda conduta descrita como crime ou contravenção penal pela legislação brasileira. Porém, mesmo que a prática esteja descrita como criminosa, o ECA garante ao adolescente a inimputabilidade penal. Diante disso, não será aplicado pena aos adolescentes, mas MSE (Brasil, 1990Brasil. (1990). Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: o autor.). As MSE estão dispostas no artigo 112, incisos I a VI do ECA: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional. Além destas medidas, poderão ser aplicadas ao adolescente (ECA, art. 112, inciso VII) as medidas protetivas previstas no artigo 101, incisos I a VI (Brasil 1990Brasil. (1990). Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: o autor.).

Importante ressaltar que o ECA veio garantir ao adolescente que comete ato infracional todas as garantias processuais do Direito Penal adulto. Apenas depois de ser julgado, pelo Juiz da Infância e da Juventude, é que o adolescente poderá ser encaminhado ao cumprimento de MSE. As MSE devem estar de acordo com as características da infração e das circunstâncias sociofamiliares, e devem possibilitar que o adolescente supere sua condição de exclusão, por meio da reinserção na sociedade. Ainda devem ser consideradas a brevidade e excepcionalidade na aplicação das MSE (Brasil, 1990Brasil. (1990). Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: o autor.). As MSE ainda possuem um duplo caráter, ou seja, ser ao mesmo tempo retributiva e socioeducativa. Há necessidade de que as MSE se constituam numa sanção, uma resposta do Estado a quem transgrediu seus regulamentos. Nesse sentido ela é retributiva. As MSE são consideradas socioeducativas por possuir um objetivo nitidamente pedagógico e ressocializador (Brasil, 1990Brasil. (1990). Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: o autor.; Saraiva, 1999Saraiva J. B. C. (1999). Adolescente e ato infracional: garantias processuais e medidas socioeducativas. Porto Alegre, RS: Livraria do Advogado., Volpi, 1997Volpi, M. (1997). O Adolescente e a ato infracional. São Paulo, SP: Corte.).

Outra providência importante na garantia de direitos ao adolescente em conflito com a lei é a criação do Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE), Lei nº 12.594/2012. O SINASE parece ser um passo fundamental para unificação e efetivação de práticas no sistema socioeducativo, uma vez que se propõe a acompanhar todos os passos, desde apuração do ato infracional até a execução e cumprimento das MSE. O SINASE prevê, ainda, a articulação em rede, para que seja garantida a minimização das consequências negativas na vida do adolescente que é encaminhado ao sistema (Brasil, 2012Brasil. Secretaria de Direitos Humanos. (2012). Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília, DF: o autor.). No Art. 35, inciso III, por exemplo, há indicação que seja usado preferencialmente praticas restaurativas na execução das MSE. Práticas restaurativas são todas as ações que se utilizam dos valores que fundamentam a JR, tais como: participação, respeito, honestidade, humildade, interconexão, responsabilidade, esperança e empoderamento (Lorenzoni, 2010Lorenzoni, N. V. (2010). Restaurando relações: manual pedagógico de práticas restaurativas. Porto Alegre, RS: Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul.). A vigência do SINASE pode ser um passo importante para tornar efetivas as práticas restaurativas na socioeducação, uma vez que, o mesmo contém provisões legais para que sejam asseguradas sua utilização. Além disso, ainda prevê que sejam atendidas as necessidades das pessoas que foram vítimas da prática do ato infracional, sempre que possível (Brasil, 2012Brasil. Secretaria de Direitos Humanos. (2012). Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – SINASE. Brasília, DF: o autor.).

O movimento jurídico conhecido como restaurativo iniciou-se na década de 1970. Ele surge trazendo críticas ao monopólio estatal da Justiça Criminal, ao uso dogmático do Direito Penal positivo, com foco apenas no infrator e na sua punição, entre outros posicionamentos, os quais foram sendo tomados pela chamada Justiça Retributiva ou Tradicional (Souza, & Züge, 2011Souza, E. L. A., & Züge, M. B. A. (2011). Direito à palavra: interrogações acerca da proposta da justiça restaurativa. Psicologia, Ciência e Profissão, 31(4): 826-839. doi:10.1590/S1414-98932011000400012). O primeiro país a implantar as práticas restaurativas foi a Nova Zelândia na década de 1970, a partir de um movimento da comunidade local (Brancher, 2008Brancher, L. N. (2008). Justiça para o século 21: instituindo práticas restaurativas: iniciação em justiça restaurativa: formação de lideranças para a transformação de conflitos. Porto Alegre: AJURIS.; Souza, & Züge, 2011Souza, E. L. A., & Züge, M. B. A. (2011). Direito à palavra: interrogações acerca da proposta da justiça restaurativa. Psicologia, Ciência e Profissão, 31(4): 826-839. doi:10.1590/S1414-98932011000400012; Zehr, 1990)Zehr, H. (1990). Trocando as lentes: um novo foco para o crime e a justiça. Scottsdale, PA: Herald.. A Nova Zelândia aparece como pioneira no cenário internacional a introduzir a JR na legislação infanto-juvenil. Em 1989, a JR passa a ser utilizada para resolução dos casos da justiça juvenil e o tribunal é acionado somente em última opção ao jovem que comete um ato infracional no País (Ribeiro, 2013)Ribeiro, M. V. O. (2013). Justiça restaurativa: refletindo sua aplicação. Recuperado de http://www.ebah.com.br/search?q=justi%C3%A7a+restaurativa
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. Entretanto, somente em 2002, a Organização das Nações unidas (ONU) passou a orientar os países-membros a adotarem práticas restaurativas, estabelecendo parâmetros, princípios e valores dessas práticas (Brancher, 2008Brancher, L. N. (2008). Justiça para o século 21: instituindo práticas restaurativas: iniciação em justiça restaurativa: formação de lideranças para a transformação de conflitos. Porto Alegre: AJURIS.; Prudente, & Sabadel, 2008Prudente, N. M., & Sabadel, A. L. (2008). Mudança de paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, 8(1),49-62. Recuperado de: http://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/view/719
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; Ribeiro, 2013)Ribeiro, M. V. O. (2013). Justiça restaurativa: refletindo sua aplicação. Recuperado de http://www.ebah.com.br/search?q=justi%C3%A7a+restaurativa
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A ONU, na mesma Resolução (2002/12 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas), define JR como sendo os programas que se utilizam dos processos e preceitos da JR para atingir resultados restaurativos (ONU, 2012Organização das Nações Unidas – ONU (2012). Resolução nº 2002/12. Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal (R. S. G. Pinto, tradutor). Recuperado de http://www.justica21.org.br/j21.php?id=366&pg=0
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). A Resolução afirma que os Processos Restaurativos são aqueles em que vítimas, ofensores e membros da comunidade, que foram afetados pelo conflito em questão, participam ativamente para resolução das questões oriundas desse conflito. Outra indicação da Resolução é o uso de facilitadores conduzindo o processo (ONU, 2012Organização das Nações Unidas – ONU (2012). Resolução nº 2002/12. Princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal (R. S. G. Pinto, tradutor). Recuperado de http://www.justica21.org.br/j21.php?id=366&pg=0
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).

Na década de 1990, a JR torna-se, sobretudo, um movimento social emergente para as reformas na justiça criminal. Segundo Zehr (1990)Zehr, H. (1990). Trocando as lentes: um novo foco para o crime e a justiça. Scottsdale, PA: Herald., a JR surgia como uma possibilidade de “mudar as lentes”, ao olhar para o crime e para justiça, uma vez que ao trocar-se as lentes, nesse olhar, poderiam ser desenvolvidas novas abordagens e intervenções.

No Brasil, experiências em JR ainda são recentes (Brancher, 2006Brancher, L. N. (2006). Manual de práticas restaurativas. Brasília: PNUD.; Konzen, 2012Konzen, A. A. (2012). Justiça juvenil restaurativa na comunidade: a prática do encontro antes de sua conformação jurídica. In A. C. C Petruci (Ed.), Justiça juvenil restaurativa na comunidade: uma experiência possível (pp. 32-44). Brasília, DF: Ministério da Justiça.; Souza & Züge, 2011Souza, E. L. A., & Züge, M. B. A. (2011). Direito à palavra: interrogações acerca da proposta da justiça restaurativa. Psicologia, Ciência e Profissão, 31(4): 826-839. doi:10.1590/S1414-98932011000400012). Essas experiências foram desenvolvidas e testadas por meio de três projetos-pilotos, financiados pelo Ministério da Justiça. Esses projetos tiveram seu início, em 2005, nas cidades de Porto Alegre, São Caetano do Sul e Brasília. Foram desenvolvidas experiências nas escolas, no Judiciário, na Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE) e nas comunidades (Brancher, 2006Brancher, L. N. (2006). Manual de práticas restaurativas. Brasília: PNUD.; Aguinsky, & Capitão, 2008Aguinsky, B., & Capitão, L. (2008). Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da justiça restaurativa. Katálysis,11(2), 257-264.; Souza, & Züge, 2011Souza, E. L. A., & Züge, M. B. A. (2011). Direito à palavra: interrogações acerca da proposta da justiça restaurativa. Psicologia, Ciência e Profissão, 31(4): 826-839. doi:10.1590/S1414-98932011000400012). De acordo com Prudente e Sabadel (2008)Prudente, N. M., & Sabadel, A. L. (2008). Mudança de paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, 8(1),49-62. Recuperado de: http://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/view/719
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, a cidade de São Caetano do Sul desenvolve experiência com Escolas e, em Porto Alegre, no âmbito da Justiça infanto-juvenil. Em Brasília, essas experiências acontecem nos dois juizados especiais do Núcleo Bandeirante e os programas desenvolvidos são voltados para infratores adultos que cometeram crimes de menor potencial ofensivo e contravenções penais (Prudente, & SabadelPrudente, N. M., & Sabadel, A. L. (2008). Mudança de paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, 8(1),49-62. Recuperado de: http://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/revjuridica/article/view/719
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, 2008).

No modelo pioneiro de JR, o da Nova Zelândia, há utilização de diversas práticas restaurativas, tais como o diálogo entre o receptor e o autor, conferências de grupo de comunidade e familiares, círculos de sentenças, painéis comunitários e assim por diante (Marshall, Boyack, & Bowen 2005Marshall, C., Boyack, J., & Bowen, H. (2005). Como a justiça restaurativa assegura a boa prática: uma abordagem baseada em valores. In C. R. Slakmon; R. C. P. De Vitto, & R. S. G. Pinto, (Eds.), Justiça restaurativa: coletânea de artigos (pp. 267-278). Brasília, DF: Ministério da Justiça..). No Brasil, a estrutura e a sistematização das práticas restaurativas, de acordo com Brancher (2006)Brancher, L. N. (2006). Manual de práticas restaurativas. Brasília: PNUD., são aplicáveis às mais diversas situações. As etapas do procedimento restaurativo, que são os pré-círculos, os círculos e o pós-círculos, assim como o passo a passo, que envolve a compreensão mútua, autorrealização e acordo, são os mesmos, tanto para uma briga no pátio da escola, quanto para um homicídio. Em razão dos acontecimentos desses conflitos serem em diferentes locais, com diferentes pessoas, foram sendo sistematizadas algumas variações aos procedimentos, tais como: círculos restaurativos, familiares, de compromisso, de sentença, diálogos restaurativos (Brancher, 2006)Brancher, L. N. (2006). Manual de práticas restaurativas. Brasília: PNUD.. Segundo Lorenzoni (2010)Lorenzoni, N. V. (2010). Restaurando relações: manual pedagógico de práticas restaurativas. Porto Alegre, RS: Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul. os círculos restaurativos também podem abranger os chamados “setencing circles” (círculos de sentenças), “peacemaking circles” (círculos fazedores de paz) ou “communitys circles” (círculos comunitários), sendo que cada um possui propósitos diferentes.

Os círculos restaurativos possuem a presença direta da vítima, ofensor e comunidade, e visa promover a confrontação dos envolvidos com perspectiva e possibilidade de responsabilização pelas consequências dos seus atos. O círculo restaurativo, como o próprio nome indica, é um encontro destinado a restaurar as relações e resolver os conflitos por meio do diálogo. Nele, as pessoas envolvidas chegam a acordos definidos conjuntamente com apoio de um coordenador (Machado, Brancher, & Todeschini, 2008Machado, C., Brancher, L., & Todeschini T. B. (2008). Justiça para século: instituindo praticas restaurativas: como fazer? Manual de procedimentos para restauradores. Porto Alegre, RS: Ajuris.). O círculo restaurativo também pode ser definido como um encontro circular, uma roda dialogal, que permite a participação de qualquer pessoa que esteja envolvida no conflito, direta ou indiretamente, objetivando a resolução de problemas, reparação de danos, restauração de segurança e dignidade (Ribeiro, 2013)Ribeiro, M. V. O. (2013). Justiça restaurativa: refletindo sua aplicação. Recuperado de http://www.ebah.com.br/search?q=justi%C3%A7a+restaurativa
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Os procedimentos restaurativos seguem um roteiro predeterminado que é dividido em três etapas: o pré-círculo, que é a preparação para o encontro com os participantes; o círculo, momento da realização do encontro propriamente dito; e o pós-círculo, que envolvem o acompanhamento das decisões tomadas nos momentos anteriores (Ribeiro, 2013Ribeiro, M. V. O. (2013). Justiça restaurativa: refletindo sua aplicação. Recuperado de http://www.ebah.com.br/search?q=justi%C3%A7a+restaurativa
http://www.ebah.com.br/search?q=justi%C3...
).

Nos círculos familiares, não há participação da vítima, apenas do infrator, sua família e comunidade. Nesse encontro são propostas alternativas para reparação do dano causado (Machado et al., 2008Machado, C., Brancher, L., & Todeschini T. B. (2008). Justiça para século: instituindo praticas restaurativas: como fazer? Manual de procedimentos para restauradores. Porto Alegre, RS: Ajuris.). O círculo de compromisso que é realizado dentro das unidades de internação e semiliberdade, considera-se que ele é uma variação do círculo familiar. Outra singularidade do círculo de compromisso é que não há a presença da vítima. O círculo de compromisso é percebido como um ritual de passagem durante a execução da MSE, uma vez que, é planejado quando há previsão do desligamento do adolescente da unidade que cumpre MSE. Dessa forma, quando a equipe técnica realiza o planejamento do desligamento do adolescente da instituição, há elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA) egresso. Importante ressaltar que o desligamento da instituição em que o adolescente cumpre MSE pode se dar por progressão de medida, que acontece quando o adolescente passa de uma MSE mais gravosa para outra menos gravosa. Ainda por extinção da MSE, ou seja, as autoridades judiciais competentes, mediantes os pareceres da equipe técnica, entendem que o adolescente já cumpriu o tempo necessário da sua MSE e a extingue. O procedimento do círculo de compromisso, segundo Aguinsky e Capitão (2008)Aguinsky, B., & Capitão, L. (2008). Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da justiça restaurativa. Katálysis,11(2), 257-264., também apresenta as mesmas etapas. Ou seja, no pré-círculo, o adolescente participa e informa às pessoas que serão fundamentais na sua vida no recomeço fora da instituição. Já no círculo é o momento que se realiza o PIA, no qual estarão reunidas as pessoas escolhidas pelo adolescente e as representantes de instituições, que os técnicos considerarem necessárias na vida do adolescente, ao sair da privação de liberdade (Aguinsky, & Capitão, 2008Aguinsky, B., & Capitão, L. (2008). Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da justiça restaurativa. Katálysis,11(2), 257-264.). O PIA egresso deverá contemplar a participação dos pais ou responsáveis, os quais têm o dever de contribuir com o processo ressocializador do adolescente e são passíveis de responsabilização administrativa, civil e criminal. O pós-círculo será feito por instituições que acompanharão esse adolescente quando acabar o cumprimento de sua MSE (Aguinsky, & Capitão, 2008Aguinsky, B., & Capitão, L. (2008). Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da justiça restaurativa. Katálysis,11(2), 257-264.). Há, ainda, uma recomendação, através do Projeto de Lei n° 7006, de 2006, para que preferencialmente psicólogos e assistentes sociais conduzam os círculos restaurativos (Brasil, 2006)Brasil. (2006). Projeto de Lei Nº 7.006, de 2006. Propõe alterações no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, do Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais.. Brasília, DF: o autor..

No círculo de sentença pode haver ou não a participação da vítima. Nele pode-se indicar a reparação ou compensação do dano causado pela infração. Por fim, os diálogos restaurativos são encontros mais informais, sem passos prévios definidos e realizados em curto espaço de tempo (Brancher, 2006Brancher, L. N. (2006). Manual de práticas restaurativas. Brasília: PNUD.). Explicados os procedimentos restaurativos, pode-se relatar que as práticas restaurativas mais encontradas na socioeducação foram a realização de processos circulares dentro das unidades de internação. Os Círculos restaurativos e os Círculos de Compromisso são exemplos dessas práticas. No atendimento ao adolescente em conflito com a lei, essa metodologia se propõe a auxiliar o jovem a compreender as consequências de seus atos e também se sentir compreendido em suas motivações e ações (Konzen, 2007Konzen, A. A. (2007). Justiça restaurativa e ato infracional: desvelando sentidos no itinerário da alteridade. Porto Alegre: Livraria do Advogado.). Ao compartilhar histórias e projetos futuros com membros do círculo, entende-se que o participante tem maior possibilidade de ser compreendido e ter sua autoestima elevada no processo (Pranis, 2006Pranis, K. (2006). Justiça restaurativa: revitalizando a democracia e ensinando a empatia. In Slakmon, C., Machado, M. R, Bottini, P. C. (Orgs.), Novas direções na governança da justiça e da segurança (pp. 269-280). Brasília, DF: Ministério da Justiça.).

Diante disso, percebe-se que a JR é diferente do modelo tradicional de justiça, uma vez que não tem foco na culpabilização e punição. Esse aspecto pode ser de extrema importância para o atendimento dos casos de adolescentes em conflito com a lei. Estes jovens podem apresentar necessidades mais fundamentais e estruturais, como a de um quadro de referências que lhes possibilite enfrentar situações adversas (Aguinsky, & Capitão, 2008Aguinsky, B., & Capitão, L. (2008). Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da justiça restaurativa. Katálysis,11(2), 257-264.). Percebe-se que esses jovens precisam de modelos que lhes proporcione desenvolver habilidades de enfrentamento para situações de conflito. Nesse sentido, a JR pode se apresentar como experiência exitosa ao sistema socioeducativo, uma vez que preconiza desenvolvimento de princípios como responsabilidade, autonomia, interconexão, respeito e participação que, agregados ao atendimento socioeducativo, poderão qualificar as intervenções. Intervenções qualificadas podem possibilitar ao adolescente, a sua família e à rede de atendimento das políticas públicas a ressignificação da MSE (Aguinsky, & Capitão, 2008Aguinsky, B., & Capitão, L. (2008). Violência e socioeducação: uma interpelação ética a partir de contribuições da justiça restaurativa. Katálysis,11(2), 257-264.).

Contextualizando o relato de experiência

A experiência que segue, aconteceu numa unidade da Fundação de Atendimento Socioeducativo (FASE), no interior do estado do Rio Grande do Sul. Essa unidade de atendimento executa a MSE de Internação em estabelecimento educacional, a mais grave prevista pelo ECA. A Unidade, neste período, tinha capacidade para internação de 40 adolescentes do sexo masculino e possuía um total de 87 funcionários distribuídos nos seguintes cargos: a) agentes socioeducadores (dos turnos matutino, vespertino e noturno); b) equipe técnica (composta por advogado, assistente social, pedagogo, psicólogo, professor de educação física, enfermeiro e psiquiatra); c) equipe de apoio (instrutor, cozinheiro, auxiliar de enfermagem, auxiliar administrativo); e d) equipe diretiva (diretores e coordenadores de equipe). Este relato de experiência está vinculado à inserção de uma das autoras no campo de pesquisa e fez parte de um estudo maior que tinha como objetivo avaliar fatores de risco e de proteção no contexto de Medida Socioeducativa, o qual foi submetido à apreciação por um Comitê de Ética em Pesquisa e recebeu parecer favorável (protocolo CAAE nº 0239.0.243.000.-1. 11). Durante o período de inserção e coleta de dados, foram realizadas anotações, em formato de diário de campo. Esses registros continham uma descrição detalhada de observações e atividades realizadas ao longo de todo o percurso de pesquisa.

No período de acompanhamento, houve a realização de um dos procedimentos restaurativos previstos pela JR: os Círculos de Compromisso. Esses procedimentos foram realizados, efetivamente nesta unidade, toda vez que havia a possibilidade de extinção da MSE, na próxima audiência de avaliação do adolescente. Assim, quando ocorresse a audiência de avaliação do adolescente, em princípio, já havia realizado seu pré-círculo e círculo. Dessa forma, se houvesse a extinção da MSE, o adolescente já poderá contar com as providências organizadas para sua saída da Instituição.

Aos adolescentes com possibilidade de extinção de MSE, era oferecida a oportunidade de conhecer o Programa de Oportunidades e Direitos Socioeducativo (POD Socioeducativo), programa que acompanha egressos do sistema socioeducativo. Esses encontros eram organizados junto à equipe do POD, para que o adolescente pudesse conhecer o espaço e tivesse oportunidade de participar, se assim desejasse. Nesses encontros, que ocorriam geralmente em dois momentos, eram explicadas todas as normas, regras e possibilidades oferecidas pelo programa. No primeiro encontro, o POD organizava oficina de sensibilização para os adolescentes dentro da unidade de internação. Nessa oficina, era esclarecido que, uma vez participando do programa, os jovens seriam acompanhados durante um ano, a contar da sua saída da instituição. Nesse acompanhamento de um ano, eram previstos atendimentos com equipe multidisciplinar, curso de formação profissional, acompanhamento escolar e ainda recebimento de um auxílio financeiro. Aos adolescentes, era enfatizado que a participação no POD era voluntária e o direito ao auxílio financeiro e aos demais investimentos era condicionado à frequência escolar e ao não cometimento de ato infracional durante este período. No segundo encontro, os adolescentes eram levados, pela Instituição, onde se encontravam internados, a conhecer o POD Socioeducativo. Nessa visita, era organizada alguma atividade festiva e/ou esportiva, como, por exemplo, jogos entre os adolescentes das duas instituições.

O processo de organização do Círculo de Compromisso é complexo, demanda tempo e dedicação, por parte do organizador. Nessa Instituição, esse processo iniciava com uma conversa junto ao adolescente, que tinha a possibilidade de poder sair da unidade, após decisão de uma futura audiência. Era explicada ao adolescente a necessidade de planejar sua possível saída da instituição. Caso o adolescente concordasse, iniciavam-se os procedimentos para a realização de seu Círculo de Compromisso. O Círculo de Compromisso funciona com rito de passagem da internação para sua volta a convivência familiar, comunitária e social (Machado et al., 2008Machado, C., Brancher, L., & Todeschini T. B. (2008). Justiça para século: instituindo praticas restaurativas: como fazer? Manual de procedimentos para restauradores. Porto Alegre, RS: Ajuris.). Ainda neste momento, a equipe combinava com o adolescente quais seriam as pessoas que ele acreditava ter como referência na saída da instituição. Ou seja, investigavam-se quais as pessoas que mantinham laços afetivos e que acreditava poder contar nos momentos difíceis, no retorno à comunidade. Neste momento, o adolescente era incentivado a referenciar pessoas da comunidade e de diferentes instituições que frequentou. Os técnicos também poderiam indicar pessoas ou instituições de referência, de acordo com as dificuldades observadas pela equipe, durante o cumprimento da MSE.

Assim, no pré-círculo, os adolescentes com problemas de saúde, como abuso de substâncias psicoativas, por exemplo, eram incentivados a dizer com quais profissionais possuíam algum vínculo na rede de saúde, para que estes fossem convidados a participar de seu círculo. Ao final do pré-círculo, tinha-se uma lista de pessoas significativas desse adolescente, que eram convidadas a participar da próxima etapa, que era o círculo propriamente dito. O círculo era o momento em que se planejavam todos os passos para reconstrução do projeto de vida do adolescente. Todas as ações propostas em relação à escola, ao trabalho, à participação no POD eram combinadas em conjunto com adolescente e sua família e passava a integrar as propostas de seu PIA egresso, mediante a aprovação desses. Importante salientar que a organização dos círculos deve ser feita preferencialmente em todas as etapas pelo mesmo técnico. Entende-se que há uma formação de vínculo e de confiança que não deve ser quebrada, para que se consiga maior confiança do adolescente ao processo.

Entretanto, em alguns casos não houve possibilidade de se organizar o pré-círculo e círculo antes da audiência de avaliação dos adolescentes. Os motivos que impossibilitaram esta organização foram os mais variados. Entre os motivos mais frequentes estavam a não previsão da equipe da extinção de MSE de algum adolescente e, ainda, a falta de possibilidade de vinda da família do adolescente, que moravam em cidades distantes. As providências tomadas nesses casos foram de organizar os círculos em outro momento. Em alguns casos, o círculo foi realizado um pouco antes ou logo após a audiência, para aproveitar a vinda de familiares que residiam longe. Durante o tempo de experiência profissional nessa instituição, estas foram às práticas restaurativas realizadas. Não houve nesse período nenhuma outra prática restaurativa, como o círculo restaurativo e círculos familiares, por exemplo.

Discussão do relato de experiência

Na atuação profissional nessa unidade de internação de adolescentes em conflito com a lei, foram organizados e executados círculos de compromisso de vários adolescentes. Muitos desses processos aconteceram de maneira efetiva com todos os passos explicados neste relato. Porém, em alguns casos, esses procedimentos não ocorreram de acordo com estas previsões. Um exemplo disso era quando não havia uma previsão das audiências dos adolescentes. Neste sentido, se procedeu de diferentes formas. Em algumas situações, o círculo foi organizado num momento bem próximo da saída do adolescente da instituição. Quando existe organização do círculo nessas circunstâncias muito próxima de sua saída, por vezes, não se consegue organizar todas as ações necessárias ao retorno para o convívio familiar, comunitário e social.

A organização do círculo de compromisso, que resulta no PIA egresso do adolescente, pressupõe uma maior possibilidade de reinserção deste, depois de ter cumprido MSE. No PIA egresso são elencadas as dificuldades e previstas ações para suprir essas dificuldades e para assegurar todas as garantias de direito imanentes ao desenvolvimento saudável de cada adolescente nesse recomeço de vida. Diante disso, a organização do círculo, em todas as suas etapas, bem como a responsabilização de todos os atores nas diferentes ações propostas no círculo é de fundamental importância. Ou seja, para a efetividade do PIA egresso, faz-se necessária a participação e articulação de todos os profissionais e envolvidos nas ações planejadas. Sem o comprometimento de todos esses atores a possibilidade de reincidência ao ato infracional pode ser maior. O processo do círculo deve ser acompanhado e revisto passo a passo. Se as ações previstas não forem constantemente avaliadas o processo correrá o risco de não se efetivar. Portanto, todas as etapas do processo circular são fundamentais e dependentes entre si. Se uma dessas etapas não for bem planejada, pode comprometer o processo final.

Um dos fatores que pode influenciar o andamento do trabalho e, portanto, a efetiva realização de todas essas etapas que envolvem a realização do círculo de compromisso, diz respeito às condições e relações de trabalho. O dia a dia dos profissionais nessas instituições é permeado por uma série de dificuldades que abrange desde jornada de trabalho extremamente desgastante, na medida em que se vivencia constantemente o estresse de colocar suas vidas em risco, até a falta de um plano de carreira ou formação adequada e espaços apropriados para refeições e outras atividades, por exemplo. Ao mesmo tempo em que se compreende o cenário difícil dos profissionais do sistema socioeducativo, verifica-se que a organização e estruturação do círculo necessita investimento, caso contrário, corre-se o risco de permanecer um processo sem credibilidade, por não apresentar resultados positivos. A execução do círculo de compromisso é um momento único, sendo que cada círculo carrega a singularidade da história de vida destes adolescentes e suas aspirações para vida futura. Acredita-se haver necessidade de maior investimento em formação continuada no sistema socioeducativo, uma vez que, muitos profissionais não têm formação específica para trabalhar com práticas restaurativas. A prática profissional pressupõe uma constante atualização e essa capacitação deveria incluir todos os profissionais, não ficando restrita apenas a equipe técnica. O trabalho com as práticas restaurativas a priori não se condiciona à exigência de formação em nível superior, tampouco estipula área específica para atuação. A JR propõe um novo olhar para a resolução de conflito, que permite a todos envolvidos possibilidade de serem agentes transformadores. Os socioeducadores exercem um papel fundamental na perspectiva da JR, que colabora com o desfecho de uma MSE e que prevê a possibilidade de ressignificação, reinserção e não reincidência ao ato infracional.

Considerações finais

O sistema socioeducativo, de acordo com estudos apresentados (Oliveira, 2001Oliveira, C. S. (2001). Sobrevivendo no inferno: a violência juvenil na contemporaneidade. Porto Alegre: Sulina.; Soares, 2000Soares, J. J. B. S. (2000). O sistema socioeducativo no âmbito do estado do Rio de Janeiro: panorama atual e perspectivas. In: L. M. T. Brito (Ed.), Responsabilidades: ações socioeducativas e políticas públicas para a infância e juventude no Rio de Janeiro (pp. 37-50). Rio de Janeiro: EDUERJ.; Volpi, 1997Volpi, M. (1997). O Adolescente e a ato infracional. São Paulo, SP: Corte.), parece não vir atendendo as previsões do ECA e SINASE, no que diz respeito à ressignificação do ato infracional, a reinserção familiar, comunitária e social. Com relação ao uso das práticas restaurativas, acredita-se que ainda há um processo em curso para sua efetivação, principalmente na Unidade de Internação a que se refere este relato.

Apesar de haver indicações para que sejam usadas preferencialmente práticas restaurativas no contexto socioeducativo, o que se observa na prática é que ainda não estão plenamente efetivadas. Neste relato de experiência, apenas uma das práticas restaurativas encontrava-se efetivada: o círculo de compromisso. Mesmo assim, ainda se encontrou algumas dificuldades na sua organização.

A JR é uma possibilidade de avanço no que preconiza o ECA, por instituir práticas socioeducativas democráticas articuladas em rede de atendimento das políticas públicas da infância e juventude. Além disso, oportuniza corresponsabilidades nas intervenções institucionais, na perspectiva de um Sistema de Garantia de Direitos para adolescentes privados de liberdade.

A JR, no contexto de privação de liberdade de adolescentes, pode ser uma alternativa frente a um modelo de justiça pautado na punição, que tem apresentado poucas possibilidades de ressignificação desta experiência para vítimas e autores de atos infracionais. Entende-se ainda que as práticas restaurativas, uma vez efetivadas no sistema socioeducativo, podem ser caracterizadas como experiência exitosa, já que seus princípios e valores vão ao encontro de uma ressignificação e responsabilização do adolescente, pelo ato infracional cometido e pelos danos causados às vítimas. Há um longo caminho a ser percorrido, principalmente no que diz respeito às práticas no sistema socioeducativo e a adolescentes em conflito com a lei. Como o tema da JR é novo e ainda incipiente no cenário brasileiro, constata-se a necessidade de mais produções científicas que tratem desta temática.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Apr-Jun 2016

Histórico

  • Recebido
    02 Fev 2014
  • Revisado
    28 Set 2015
  • Aceito
    31 Mar 2016
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