Acessibilidade / Reportar erro

Indivíduos Paraplégicos e o Significado Construído para a Lesão Medular em suas Vidas

Paraplegic Individuals and the Meaning-Making Process of the Spinal Cord Injury in their Lives

Individuos Parapléjicos y el Significado Construido para la Lesión Medular en sus Vidas

Resumo

A aquisição de uma deficiência física implica múltiplas perdas, gerando um processo de luto e de construção de significado para a experiência vivida, além da necessidade de rever o mundo presumido e o direcionamento da vida. O objetivo deste artigo é discutir os significados construídos para a lesão medular traumática em quatro indivíduos paraplégicos, de 18 a 22 anos, assim como o processo de retomada do projeto de vida após a deficiência física. A pesquisa adotou a abordagem qualitativa, por meio de entrevista semiestruturada e utilizou a análise de conteúdo para o tratamento das informações. Percebeu-se que os significados construídos para o acometimento da lesão medular foram positivos, denotando valorização, superação, aprendizado, descoberta e transformação. Os participantes identificaram situações positivas mesmo em meio a muitas adversidades enfrentadas. Tais significados contribuíram no direcionamento dado ao novo projeto de vida, o qual precisou adequar-se à nova realidade, na condição de paraplégicos. Evidenciou-se, ainda, a importância da reabilitação física e da família como rede de suporte, a necessidade da validação desse luto, o que favorece a elaboração, contribuindo para reorganizar a vida e reinvestir nos planos futuros.

Lesão Medular; Luto; Significado; Projeto de Vida

Abstract

The acquisition of a physical disability involves multiple losses, leading to both a grief process and a meaning-making process of the lived experience, besides a need to review the assumptive world and the life’s direction. The purpose of this article is to present a study with four paraplegic individuals, 18-22 years old, their constructions of meaning of a traumatic spinal cord injury and the process of life resumption after the disability. This research adopted a qualitative approach, through semi-structured interviews, and content analysis for the treatment of information. It was noticed that the meanings built from the injury were positive, designating appreciation, overcoming, learning, discovering and transformation. The participants identified positive situations, even when they were facing many adversities. Such meanings contributed to the establishment of new life projects, which were adapted to a new reality of paraplegic condition. The importance of the physical rehabilitation and of the family as a support network, and the need of validating the grief (which favors its development, contributing to reorganize the life and reinvest in future plans) were also evident.

Spinal Cord Injury; Grief; Meaning; Life Project

Resumen

La adquisición de una incapacidad física implica múltiples pérdidas, lo que resulta en un proceso de luto y en la construcción de significado para la experiencia vivida, además de la necesidad de revisar el mundo planeado y el rumbo de la vida. Este artículo tiene como objetivo presentar un estudio con cuatro personas parapléjicas, de 18 a 22 años de edad, sobre los significados construidos para la lesión medular traumática, y el proceso de reanudación de su proyecto de vida después de la incapacidad física. La investigación adoptó un enfoque cualitativo, por medio de entrevista semiestructurada, y utilizó el análisis de contenido para el tratamiento de las informaciones. Se observó que los significados construidos para el traumatismo de la médula espinal fueron positivos, denotando valoración, superación, aprendizaje, descubrimiento y transformación. Los participantes identificaron situaciones positivas en medio de muchas adversidades que enfrentaban. Tales significados contribuyeron a dar un nuevo rumbo al proyecto de vida, que tuvo que adaptarse a la realidad actual, en la condición de paraplejia. Se mostró, también, la importancia de la rehabilitación física y de la familia como red de apoyo, la necesidad de validación del luto, lo que favorece la elaboración, contribuyendo para reorganizar la vida y reinvertir en planes futuros.

Traumatismos de la Medula Espinal; Luto; Significado; Proyecto de Vida

Introdução

Este artigo é originado em uma dissertação de mestrado em Psicologia Clínica, que tratou de indivíduos jovens com lesão medular traumática, paraplégicos, investigando o significado construído por eles ao acometimento vivido e o direcionamento dado ao projeto de vida após a instalação da deficiência física. O objetivo deste estudo é discutir os achados desta pesquisa, de forma a ampliar os conhecimentos sobre o tema e promover novas reflexões a respeito da construção de significados no processo de luto da incapacidade física.

Esta pesquisa teve foco em indivíduos paraplégicos, isto é, aqueles com lesão nos segmentos torácico, lombar ou sacral da medula espinhal, com comprometimento nas funções dos membros inferiores, podendo comprometer também o tronco e órgãos pélvicos, mas com preservação dos membros superiores (Greve, & Castro, 2001Greve, J. M. D., & Castro, A. W. (2001). Avaliação clínica e funcional da lesão medular: índices motores e sensitivos e funcionais utilizados. In J. M. D. Greve, M. E. P. Casalis, & T. E. P. Barros Filho. Diagnóstico e tratamento da lesão medular espinhal (pp. 65-73). São Paulo, SP: Roca.; Stokes, 2000Stokes, M. (2000). Neurologia para Fisioterapeutas. São Paulo, SP: Premier.).

De acordo com Lianza, Casalis e Greve (2007)Lianza, S., Casalis, M. E. P., & Greve, J. M. D. (2007). A lesão medular. In S. Lianza, Medicina de reabilitação (4a ed.; pp. 304-326). Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan., a lesão medular (LM) caracteriza-se por um comprometimento na medula espinhal, que ocasiona perda total ou parcial da função motora e/ou sensitiva, resultando na deficiência física, seja com um quadro de paraplegia ou tetraplegia. Sendo a medula espinhal um centro regulador de controle, seu comprometimento pode dificultar diversas funções autônomas do organismo do indivíduo.

Considerando as estatísticas apontadas no Annual Estatistical Report for the Spinal Cord Injury (National Spinal Cord Injury Statistical Center, 2013National Spinal Cord Injury Statistical Center - NSCISC. (2013). Spinal Cord Injury Model Systems. 2013 Annual report: complete public version. Birmingham (AL): National Spinal Cord Injury Statistical Center. Recuperado de https://www.nscisc.uab.edu/PublicDocuments/reports/pdf/2013%20NSCISC%20Annual%20Statistical%20Report%20Complete%20Public%20Version.pdf
https://www.nscisc.uab.edu/PublicDocumen...
), as maiores incidências mundiais de lesão medular são de etiologia traumática, ocasionadas por situações catastróficas, tais como acidentes automobilísticos, quedas, ferimentos por armas, entre outras, que fraturam ou comprimem a medula (Taricco, 2001Taricco, M. A. (2001). Etiologia das lesões medulares. In: J. M. D. Greve, M. E. P. Casalis, & T. E. P. Barros Filho. Diagnóstico e tratamento da lesão medular espinal (pp. 1-8). São Paulo, SP: Roca.). A pesquisa se ateve a indivíduos com lesão medular de origem traumática, haja vista que no Brasil essas ocorrências também seguem em maior número, conforme os dados apresentados nas diretrizes de Atenção à Pessoa com Lesão Medular (Brasil, 2013Brasil. (2013). Ministério da Saúde. Secretaria da Atenção à Saúde. Diretrizes de atenção à pessoa com lesão medular. Brasília, DF: o autor.), e tal aumento vem se constituindo como um problema de Saúde Pública, o que torna as pesquisas com essa população cada vez mais relevantes, visando atenção à saúde.

Este trabalho pretende trazer contribuições importantes para os estudos sobre luto, ao abordar a respeito da construção de significado em um processo de luto considerado muitas vezes não reconhecido, não legitimado. Casellato (2005)Casellato, G. (2005) Luto não reconhecido: um conceito a ser explorado. In G. Casellato (Org.), Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade (pp.19-33). Campinas, SP: Livro Pleno. aborda os lutos não reconhecidos e dentre eles menciona as incapacidades físicas como perdas não reconhecidas socialmente, que não podem muitas vezes ao menos serem manifestadas, porque haverá uma resposta social negativa, tornando-se assim um fator de risco no processo de luto e à saúde mental do sujeito, daí a importância em validar as perdas existentes nessa condição. Assim, esse estudo promove reflexões para os profissionais que desenvolvem seu trabalho junto a essa população de pessoas com deficiência física.

Estudos publicados entre 2009–2014, dentre eles Brunozi, Silva, Gonçalves e Veronezi (2011)Brunozi, A. E., Silva, A. C., Gonçalves, L. F., & Veronezi, J. B. (2011). Qualidade de vida na lesão medular traumática. Revista de Neurociências, 19(1), 139-144. Recuperado de http://www.revistaneurociencias.com.br/edicoes/2011/RN1901/revisao/444%20revisao.pdf
http://www.revistaneurociencias.com.br/e...
, Diniz, Soares, Nascimento e Soares (2012)Diniz, I. V., Soares, R. A. S., Nascimento J. A., & Soares, M. J. G. O. (2012). Caracterização das vítimas de acidente de trânsito que apresentaram traumatismo raquimedular. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, 16(3), 371-378. https://doi.org/10.4034/RBCS.2012.16.03.14
https://doi.org/10.4034/RBCS.2012.16.03....
, França, Coura, França, Basílio e Souto (2011)França, I. S. X., Coura, A. S., França, E. G., Basílio, N. N. V., & Souto, R. Q. (2011). Qualidade de vida de adultos com lesão medular: um estudo com WHOQOL-bref. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 45(6), 1364-1371. https://doi.org/10.1590/S0080-62342011000600013
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201100...
, apontam o impacto da lesão medular na qualidade de vida das pessoas acometidas, e sugerem que a maior parte dos indivíduos se sentem insatisfeitos, refletindo em níveis de qualidade de vida menor, influenciando aspectos da autoimagem e da vida social.

Dessa forma, é importante que o lesado medular seja inserido na reabilitação física, definida por DeLisa, Currie e Martin (2002DeLisa, J. A., Currie, D. M., & Martin, G. M. (2002). Medicina de reabilitação: passado, presente e futuro. In J. A. DeLisa, & B. M. GANS (Orgs.), Tratado de medicina e reabilitação: princípios e prática (3a ed, v. 1, pp. 3-33). Barueri, SP: Manole., p. 3) como um “processo de ajudar a pessoa a atingir seu melhor potencial físico, psicológico, social, vocacional e educacional, compatível com seu déficit fisiológico ou anatômico, limitações ambientais, desejos e planos de vida”. É um tratamento global, junto a uma equipe interdisciplinar, que integra os diversos saberes dos profissionais de saúde visando a melhora da qualidade de vida da pessoa com deficiência física, auxiliando-a na adaptação à nova realidade e na retomada da rotina da melhor forma possível. A instalação da deficiência física gera importantes modificações na vida da pessoa, tanto do ponto de vista físico quanto emocional, interferindo em sua rotina e em todos os seus planos.

Tornar-se um deficiente físico – paraplégico – implica deparar-se com a queda das premissas antes conhecidas e tidas como seguras. Parkes (1998)Parkes, C. M. (1998). Luto: estudos sobre a perda na vida adulta (3a ed.; M. H. F. Bromberg, trad.). São Paulo, SP: Summus. define como mundo presumido esse mundo conhecido pelo sujeito, no qual ele vive, que contém suas concepções, suposições e tudo aquilo que é tido como verdadeiro, construído a partir das vivências, e que constantemente requer modificações a partir das novas informações e situações, como no caso de sofrer a lesão medular traumática, quando a nova realidade é imposta repentinamente. Ao processo de viver essas transformações na visão de mundo, Parkes (1998)Parkes, C. M. (1998). Luto: estudos sobre a perda na vida adulta (3a ed.; M. H. F. Bromberg, trad.). São Paulo, SP: Summus. denominou de transição psicossocial. Segundo Parkes (2009)Parkes, C. M. (2009). Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações (M. H. P. Franco, trad.). São Paulo, SP: Summus., todos os acontecimentos que provocam mudanças importantes na vida desafiam o mundo presumido e provocam uma crise, emergindo a necessidade de revisitar o conteúdo que antes lhe era conhecido e garantido. Essa ação gera significativas transformações na vida do sujeito.

Frente a todo o panorama, a perda da condição física anterior vem acompanhada de outras perdas, e o evento faz emergir a necessidade de o indivíduo acometido elaborar o luto da condição de vida anterior, implicando a construção de um significado para o acontecimento, para que venha a reinvestir em novas situações congruentes com a realidade instalada e direcionar os pensamentos e ações para a perspectiva atual. O significado construído também sofrerá interferência de variados aspectos, incluindo o conteúdo do mundo presumido, ou seja, a visão que se tinha da vida anteriormente. Conforme afirma Neimeyer (2006)Neimeyer, R. A. (2006) Widowhood, grief and the quest for meaning: a narrative perspective on resilience. In D. S. Carr, R. M. Nesse, & C. B. Wortman. Spousal bereavement in late life (pp. 227-252). New York, NY: Springer., as perdas podem validar ou invalidar as crenças anteriores.

O luto é um processo que envolve tempo de elaboração e transformação, é o conjunto de reações a uma perda significativa, que desestrutura o indivíduo pela falta e desestabiliza seu funcionamento (Bromberg, 2000Bromberg, M. H. P. F. (2000). A psicoterapia em situações de perdas e luto. Campinas, SP: Livro Pleno.). A mesma autora acrescenta ainda que o processo de elaboração da perda se compõe por duas mudanças importantes a se realizar: conhecer e aceitar a realidade; experimentar e lidar com todas as emoções e problemas advindos da perda.

Diante do exposto, é relevante compreender o processo de construção de significado para o acontecimento da lesão medular. Os seres humanos são capazes de ter memória, reflexão, objetivos e crenças, conseguindo fazer interpretações das coisas e fazer parte de um mundo simbólico (Neimeyer, 2011Neimeyer, R. A. (2011). Reconstructing meaning in bereavement. Rivista di Psichiatria, 46(5-6), 332-336. https://doi.org/10.1708/1009.10982
https://doi.org/10.1708/1009.10982...
). Portanto, todo indivíduo é capaz de construir significado e esse, por sua vez, pode influenciar mais consideravelmente a forma como ele dará continuidade à sua história, sendo inevitável retomar o olhar para o projeto de vida. Sendo a família um sistema, que funciona interligadamente (Carter, & McGoldrick, 1995Carter, B., & McGoldrick, M. (Orgs.). (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.), é indiscutível que a presença da deficiência física em um indivíduo vai repercutir também nos familiares e nas pessoas à sua volta, os quais também deverão elaborar o luto, exigindo, assim, a reorganização de todos.

Método

A investigação é de abordagem qualitativa, que busca a compreensão do fenômeno e do contexto no qual ocorre, trabalhando com o universo de significados, lidando com valores e atitudes presentes nas ações e nas relações humanas, buscando o aprofundamento e a abrangência no processo de compreensão das informações (Minayo, 2010Minayo, M. C. S. (2010) O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (12a ed.). São Paulo, SP: Hucitec.). O número de participantes foi definido pelo critério de saturação (Minayo, 2010Minayo, M. C. S. (2010) O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (12a ed.). São Paulo, SP: Hucitec.), que consiste no conhecimento formado pelo pesquisador, no campo, à medida que consiga o entendimento das homogeneidades, da diversidade e da intensidade das informações, compreendendo-as como suficientes para sua pesquisa.

Os participantes foram quatro paraplégicos, de 18 a 22 anos, que sofreram lesão medular traumática pelo menos dois anos antes da participação na pesquisa, porém não podiam tê-la adquirido antes dos 16 anos de idade. Essa faixa etária foi escolhida por caracterizar-se por um período em que o indivíduo experimenta desafios, faz planos e encontra-se com muitas expectativas, ao mesmo tempo que pode se fazer presente o sentimento de insegurança, o isolamento e a sensação de ser incapaz de encaixar-se no mundo, instalando-se crises (Erikson, 1976Eriksonl, E. H. (1976). Identidade, juventude e crise. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.). O indivíduo busca conhecer suas aptidões, desenvolver-se pessoal e profissionalmente, visando consolidar seu projeto de vida.

Era imprescindível que os participantes tivessem passado por um processo de reabilitação física e que não tivessem sofrido outro tipo de deficiência física ou traumatismo cranioencefálico, que pudessem interferir nos resultados da pesquisa.

Para a coleta de informações, utilizou-se a entrevista semiestruturada, que consistiu em uma pergunta disparadora – “Como foi para você sofrer a lesão medular naquele momento da sua vida, passando a ter uma deficiência física?” e um roteiro prévio com os tópicos importantes a serem investigados, em busca da compreensão do fenômeno. De acordo com Minayo (2010)Minayo, M. C. S. (2010) O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (12a ed.). São Paulo, SP: Hucitec., esses tópicos devem funcionar apenas como lembretes, pois deve-se permitir a flexibilidade na entrevista e absorver os temas suscitados pelo entrevistado.

A pesquisa se pautou nas diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos, indicadas na Resolução no 466/12 do Conselho Nacional de Saúde do Ministério da Saúde (Brasil, 2012Brasil. (2012). Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.466, 12 de dezembro de 2012. Aprova as normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Brasília, DF: o autor.), tendo a aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica – PUC–SP e o consentimento dos participantes por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), podendo ser encaminhados para suporte psicológico, caso se sentissem mobilizados com a entrevista.

Foi divulgado um convite por meio eletrônico a pessoas conhecidas da pesquisadora, incluindo aquelas envolvidas com reabilitação física, que pudessem ajudar na disseminação do mesmo. Neste constavam os critérios para ser um participante e esclarecia os procedimentos, possibilitando o contato entre o interessado e a pesquisadora.

Para a análise das entrevistas, foi utilizado o método de análise de conteúdo, consistindo em uma pré-análise, a exploração do material gerando a categorização e, por fim, o tratamento dos resultados e a interpretação das informações (Bardin, 2009Bardin, L. (2009). Análise de conteúdo (5a ed.; L. A. Reto; A. Pinheiro, trad.). Lisboa: Edições 70.). Para isso as entrevistas foram gravadas, transcritas e as informações organizadas, sempre mantendo o sigilo da identificação dos entrevistados.

Resultados

Houve 15 manifestações ao convite divulgado, porém todos fora do perfil solicitado, no entanto, os interessados entraram em contato visando uma possível participação, caso viessem a se modificar os critérios de inclusão. Posteriormente, a partir de indicações de pessoas da área em estudo, tomou-se conhecimento de cinco possíveis participantes dentro do perfil desejado, para os quais foi enviado o convite, havendo uma abstenção e quatro retornos positivos.

As quatro entrevistas realizadas revelaram informações suficientes e esclarecedoras para o entendimento do proposto, conforme o critério de saturação. Não houve necessidade de segundo encontro e os participantes não solicitaram encaminhamentos para acompanhamento psicológico. Os participantes receberam nomes fictícios sendo: Antônio (22 anos, lesão medular traumática [LMT] aos 19 anos), Bruno (20 anos, LMT aos 16 anos), Cláudio (20 anos, LMT aos 16 anos) e Diego (22 anos, LMT aos 20 anos). A seguir são apresentados alguns trechos das entrevistas, que ilustram as subcategorias para a análise.

Dentre os aspectos investigados, emergiram oito categorias e dez subcategorias. A categoria A (Percepção inicial) se subdivide em duas categorias. Em A1 (do indivíduo), as falas dos participantes revelaram a forma como encararam a situação repentina em suas vidas. O choque inicial é mais frequente, assim como o sentimento de tristeza, no entanto, ainda que a tendência seja mobilizar-se emocionalmente por mais tempo, Antônio sustentou uma visão mais positiva da situação: “Ah, pensei que tinha acabado minha vida né... pensei que não ia fazer mais nada”.

Em A2 (da família), apresenta-se a percepção da família no início do acontecimento, de forma que as falas mostram a preocupação, o receio, o sofrimento e a tristeza em ver um ente querido na situação da deficiência física: “Ah, todo mundo chorando... bem triste”. (Bruno); “Minha família eu acho que sentiu bem mais do que eu...” (Diego).

A categoria B (Alterações e/ou complicações) emergiu a partir dos relatos das modificações percebidas no corpo, e se subdivide em duas subcategorias. Em B1 (O corpo que dói), destaca-se a presença das dores, que não é incomum nos lesados medulares. No entanto, para Cláudio e Diego a dor esteve presente apenas no início. Para Bruno esteve ausente, e para Antônio ela se mantém até hoje, com difícil manejo clínico, o que interfere em suas ações: “[...] em razão das dores que eu sinto... a qualquer momento... [...] sempre, desde o acidente. Não adianta, não tem remédio que eu tome que passe, não tem” (Antônio).

Em B2 (O corpo diferente) apresentam-se os aspectos mencionados quanto ao corpo físico, o seu não-reconhecimento devido as mudanças ocasionadas pela paraplegia. O conteúdo indica que os participantes constatam que estão externamente e internamente diferentes, além de esclarecer as implicações emocionais advindas da consolidação dessas mudanças: “[...] tem pino nas costas, né [...] usava fralda, usava sonda, aí tipo eu tinha vergonha, ficava constrangido na escola” (Cláudio).

A categoria C (Visão pessoal do processo de reabilitação) foi identificada por constar nas falas dos entrevistados a importância dada a esse momento e o que representava em suas rotinas. Para eles a reabilitação se configurou como um processo de adaptação, um desafio a ser enfrentado, além da possibilidade de valorização do aprendizado e o resgate do ânimo e da força para não desistir, diante do convívio com outras pessoas com deficiência física.

Na categoria D (Como é visto) consta a visão dos outros com relação a eles, como são vistos em meio social/comunitário, demonstrando seus desconfortos. Antônio vê nos outros uma dificuldade em aceitarem a sua condição atual, e esperam vê-lo como antes, em outros momentos verbalizou seu incômodo com aqueles que atribuem uma conotação pejorativa à sua deficiência. Bruno e Cláudio perceberam a inquietação provocada nos outros ao vê-los bem, concretizando algo que as pessoas não consentiam – poder ser feliz na cadeira de rodas. Aprenderam a abastecer-se positivamente dos comentários, ratificando para eles que é possível viver bem, mesmo na atual condição física. Diego destacou perceber que a sua deficiência faz com que se torne foco da atenção e da curiosidade das pessoas, por ser um jovem nessa condição, porém isso não lhe incomoda: “A maioria das pessoas falam que... me vendo assim nem parece que eu tô na cadeira... parece que... que ando normal [...]” (Cláudio).

A categoria E (Mundo presumido anterior) é subdividida em duas subcategorias que compõem o conteúdo presente na visão de mundo dos participantes. Em E1 (Valores, princípios e concepções) foi manifestado aquilo que tinham como “certezas”, de forma que parte permaneceu e ajudou a manter a estabilidade enquanto parte ruiu e gerou insegurança.

Antônio sempre teve a concepção de que o bom humor era uma ferramenta importante para superar as adversidades na vida, e sempre valorizou muito seus membros superiores – os quais se preservaram – por serem essenciais para tocar instrumentos musicais, que fazem parte de seu cotidiano. Além disso, em sua vida tão ativa, vivenciava experiências positivas com deficientes físicos, e os via enfrentando a situação. Outro aspecto de seu mundo eram os princípios religiosos familiares. O conteúdo existente previamente em seu mundo presumido pôde contribuir positivamente para lidar com a paraplegia: “Eu tinha um ponto de vista em razão a... deficiente... [...] visitava asilo, instituto de câncer, local de reabilitação, tudo que era local assim a gente ia de palhaço, [...] a deficiência, ela não era um problema para nenhuma daquelas pessoas [...]” (Antônio).

Bruno relatou que não levava a sua vida a sério, que era um garoto revoltado e não tinha noção do que poderia ser o cotidiano de um cadeirante. Além disso, não acreditava ser capaz de superar aquilo, pois seu mundo presumido anterior não lhe dava sustentação para uma crença positiva: “[...] pensei que tudo ia acabar: Nossa, ninguém vai querer ligar mais pra mim...” (Bruno).

Cláudio também tinha como um importante princípio o bom humor, revelando que não ficou por muito tempo desanimado, por outro lado tinha a crença de que superar uma situação como a sua seria muito difícil. Conhecia uma vida ativa, porém descompromissada, estava em processo de consolidação das concepções que o guiavam, mas tinha conhecimento prévio de que a condição em que vivia poderia levá-lo a um caminho ruim: “Eu moro num lugar que é, no meio da favela né... e aí, se eu não... tipo, não sei, se não tivesse acontecido o acidente [...] estaria fazendo coisas erradas, tudo” (Cláudio).

Diego verbalizou suas convicções de que pessoas boas não mereceriam passar por uma situação difícil, já que as más saem ilesas, a concepção de que Deus não gostaria que ele fosse como era e que lhe era alertado, dentre outros conteúdos pré-estabelecidos que foram desafiados a partir do acontecimento em sua vida: “Eu não era... assim... uma pessoa que dava trabalho aos pais, tal, não. Mas eu era muito de balada, bebia muito, saía muito, mas só que... Deus não queria aquilo pra mim” (Diego).

Em E2 (Projeto de vida) destacam-se informações a respeito do projeto de vida anterior de cada entrevistado e os planos traçados antes de tornarem-se paraplégicos. Os planos de Antônio vinham em ascensão. Manteria a faculdade e outros cursos paralelos, seguiria atuando com a música, havia sido promovido no trabalho, pediria transferência para mais perto de sua casa e venderia a moto.

Bruno estava em início de formação de seu projeto de vida. Continuaria o trabalho que desenvolvia na oficina de funilaria com o irmão, desejava ir para uma grande empresa e aprimoraria a atividade de grafiteiro. Prezava manter suas atividades prazerosas e não tinha o término dos estudos como parte de seus planos futuros. Cláudio pretendia terminar o colegial e entrar em uma faculdade. Gostaria de trabalhar e manter-se aproveitando sua vida. Elucidou poucos elementos quanto ao projeto de vida anterior, referindo que tinha um pensamento imaturo. Diego planejava economizar para adquirir uma casa própria, concluir a faculdade e se recolocar no mercado de trabalho. Além disso havia comprado um carro que seria entregue e estava iniciando nova fase quanto a relacionamento amoroso, após término do namoro. Todos os participantes precisaram rever seus planos e revisitar seu mundo presumido a fim de verificar o que os ajudava e o que não mais tinha sustentação.

Na categoria F (Mundo presumido atual) também há subdivisão em duas subcategorias: F1 (Mudanças ocorridas após a deficiência física) e F2 (Projeto de vida).

A categoria F1 engloba as importantes modificações destacadas nos discursos dos participantes, assinaladas aqui algumas delas: a necessidade do uso da cadeira de rodas e de outras adaptações, a dificuldade de acessibilidade nos locais, a dependência de outras pessoas para determinadas tarefas, alterações na estrutura da casa, nas atividades laborativas desenvolvidas, passando a ficar mais tempo no domicílio, entre outras mudanças. Ressalta-se o impacto na identidade do sujeito, o qual é desafiado a viver muitas situações novas.

[...] o que era sala virou quarto-sala e... para onde vou tem que levar a cadeira de rodas... [...] o problema é mobilidade mesmo que... você chegar num lugar onde não tem rampa, você ter que ser arrastado por uma escada (Antônio).

[...] eu sabia que aquele moleque aqui não era eu [...] (Bruno).

Eu tive que mudar de casa, [...] teve que fazer alguns ajustes, abrir portas lá... e... minha mãe teve que parar de trabalhar para ficar comigo no início [...] (Diego).

Os participantes também verbalizaram mudanças positivas. Para Antônio, ter mais tempo em casa lhe trouxe a possibilidade de desafiar-se a aprender a tocar novos instrumentos musicais, além de ter passado a dar mais valor às pessoas e aos amigos: “[...] aprendi coisas que eu antes do acidente achava que era impossível eu conseguir fazer...e depois do acidente... em razão de ter tempo, eu vi que eu conseguia...” (Antônio).

Bruno mobilizou-se muito com a dependência, porém com o passar do tempo pôde também identificar mudanças positivas, principalmente seu amadurecimento e desenvolvimento pessoal frente ao ocorrido, o que fez muita diferença em sua vida. Fez novas amizades, passou a reconhecer seus potenciais e valorizar-se, aprendeu a ver os estudos de outra maneira, passando a frequentar a escola com gosto e passou a olhar a vida por outra perspectiva, situações que antes da deficiência física não ocorriam. Bruno entrou em contato também com o basquete adaptado, que se tornou seu foco maior para o futuro: “Tudo o que eu pensei que não ia poder fazer hoje em dia faço tudo, em dobro [...]” (Bruno).

A mudança positiva identificada por Cláudio foi ter modificado sua forma de olhar a vida, passando a pensar mais antes de tomar atitudes, tendo se visto amadurecido. Diego também modificou valores e concepções, tendo se aproximado da vida religiosa e descoberto novos interesses: “[...] hoje em dia em penso mais antes de tomar qualquer atitude. Eu acho que envelheci uns 15 anos aí na cabeça”; “[...] comecei é... me direcionar mais pra Deus, comecei ir pra igreja...”; “[...] comecei a fazer uns esportes [...]”.

As mudanças ocorridas abarcam tanto alterações na esfera física quanto emocional, social, laborativa, o que faz reconhecer a existência de múltiplas perdas.

Na subcategoria F2 consta o delineamento do projeto de vida atual dos participantes. A deficiência física os obrigou a rever seus planos a fim de verificar o que era possível manter, com determinadas mudanças, e o que exigia total reformulação.

Antônio manteve seu contato com a música por meio de novos instrumentos musicais possíveis, passando a ter o desejo de estudar para ser lutier (profissional especializado na construção e/ou reparo de instrumentos de corda), e ter nessa função uma profissão. Os planos atuais também envolvem fazer faculdade de Informática e deixar o curso de Administração. Pretende manter-se ativo, explorando o ambiente externo ainda que haja dificuldades físicas e/ou barreiras arquitetônicas. Seu projeto inclui ainda alugar o apartamento que comprou para ter outra renda, já que nele não é possível o uso da cadeira de rodas.

Bruno entrou em contato com uma série de mudanças e atividades que antes não lhe eram observadas ou relevantes. Inseriu-se no esporte adaptado e integra um time de basquete. Seu atual projeto de vida inclui entrar para a seleção brasileira paradesportiva, manter-se passeando, terminar os estudos (supletivo) e morar sozinho no futuro, além de ter um carro adaptado e habilitação para dirigi-lo. Seus planos atuais demonstram a crença e a confiança que desenvolveu em seus potenciais, o que não ocorria antes.

Cláudio mantém, em seu projeto de vida atual, o desejo de terminar o colegial (supletivo), ingressar na faculdade e ter um emprego, porém agora demonstra apropriar-se mais dessas vontades ao mencioná-las. Além disso pretende mudar-se de casa para ter melhor acessibilidade, constituir uma família, manter sua vida social e ter novas conquistas. Superou o medo e a vergonha e atualmente namora, mostrando um avanço pessoal conquistado.

Quanto a Diego, a manutenção da prática religiosa passou a fazer parte do seu projeto de vida. A partir de novas concepções reatou com a ex-namorada, a qual praticava os valores da igreja, e casaram-se. A deficiência fez com que buscasse mais rápido a troca de função laborativa, que já era um desejo, e anseia retomar sua faculdade. Os planos atuais incluem a prática de esportes, hábito adquirido após a lesão medular, além do desejo de ser pai, ter um carro adaptado e nova mudança de casa visando mais acessibilidade e independência.

A categoria G (Enfrentamento e elaboração) subdivide-se também em duas subcategorias. Em G1 (Fatores de proteção para o enfrentamento e a retomada da vida) encontram-se os fatores que ajudaram os participantes a lidar com a situação vivida e a buscar elaborar as perdas, a fim de retomar a vida e traçar rumos possíveis. Destacam-se entre eles: o bom humor, a presença de familiares e de amigos, a crença em Deus, a manutenção de atividades prazerosas mesmo na nova condição, o ingresso na reabilitação física, as melhoras e a preservação dos movimentos superiores, a força de vontade presente, percepção de ser capaz de vencer os desafios: “[...] primeiramente a crença né... que eu acredito muito em Deus, e segundo meu pai, minha mãe, meus irmãos e... a música...” (Antônio); “[...]o que foi bom mesmo foi na... na reabilitação [...] eu usei, tipo, pessoas que estavam bem lá como espelho” (Cláudio).

Na subcategoria G2 (Fatores de risco para o enfrentamento e a retomada da vida) foram destacados os elementos que poderiam dificultar o enfrentamento da situação, sendo que Antônio, Bruno e Diego não os verbalizaram explicitamente, porém foi observada a existência de tais fatores. Para Antônio, a presença constante de dor poderia se consolidar como um aspecto dificultador, bem como a visão pejorativa de outras pessoas com relação a ele.

Para Bruno, o conteúdo de seu mundo presumido – sua descrença inicial em si, não se vendo capaz de superar a situação e alcançar bons resultados –, a sua revolta e pensamento de morte, foram percebidos como fatores de risco: “Caramba, tudo que eu pensei lá atrás... eu desejei a morte pra mim mesmo” (Bruno).

Cláudio identificou verbalmente a falta de acessibilidade no local onde mora como algo que lhe dificultava, pois muitas vezes o impedia de sair, dependendo ainda mais de outras pessoas. Outro fator observado foi o preconceito, entretanto aprendeu a lidar com ele. No caso de Diego, a ausência de determinados amigos e a concepção de que nada lhe aconteceria, pois não merecia, foram aspectos que poderiam ter se tornando intensos fatores de risco: “[...]pessoas que eu pensava que ia estar do meu lado, não tava né... que foi meus amigos, muito desapareceram, sumiram...” (Diego).

Para os participantes, os fatores de proteção e as estratégias desenvolvidas foram intensos e eficazes e possibilitaram que fossem superados os efeitos que os fatores de risco pudessem provocar. Todos perceberam que as barreiras não eram intransponíveis.

Na categoria H (Significados Construídos) estão presentes significados construídos para o acontecimento de sofrer a lesão medular na vida dos participantes, que demonstraram a construção de significados positivos, tais como: valorização, superação, aprendizado, descoberta, transformação, entre outros, de forma que todos denotaram benefícios.

Antônio construiu o significado de que o ocorrido era algo passível de ser enfrentado, para o que colaborou o fato de ter tido experiências junto a pessoas com deficiência, o significado de igualdade – de se ver cidadão como os outros, independentemente de sua condição física – além dos significados de valorização e importância da família, superação e o reinventar-se. Bruno construiu para a experiência o significado de abertura para experiências novas, descoberta (de que podia ser feliz, da força de vontade, da capacidade de superação), além dos significados de transformação e de valorização da vida e de si mesmo. Cláudio construiu os significados de aprendizado e ensinamentos, de descoberta (perceber-se forte, capaz de enfrentar adversidades, viver bem), significado de um novo rumo (mais satisfatório para ele), de valorização da vida, amadurecimento e superação. Diego construiu o significado de aprendizado, valorização (das pessoas à volta, da vida, de Deus), propósito de Deus em sua vida, mudanças, além dos significados de gratidão e amor (pela família, esposa e pela própria vida):

Você saber reescrever a vida de uma maneira que seja mais fácil de se associar [...]; Família, superação... e ... se reinventar (Antônio);

Tudo o que eu pensei que não ia poder fazer hoje em dia faço tudo, em dobro [...]( (Bruno);

Acabou mostrando pra mim que eu... que eu era mais forte do que eu pensava [...] Eu vejo que se não tivesse acontecido isso eu poderia estar pior aí, largado no mundo... (Cláudio);

Um grande aprendizado. Eu aprendi bastante... dou mais valor às pessoas (...) dou mais valor à vida também... [...] minha vida hoje eu não troco pela vida que eu tinha (Diego).

Observou-se que os significados construídos contribuíram no direcionamento satisfatório de seus projetos de vida. À medida que significaram essa experiência, puderam elaborar o luto, admitindo também a nova visão de mundo.

O relato de Antônio demonstrou que as mudanças na sua vida tiveram uma conotação positiva desde o início. Muito do conteúdo de seu mundo presumido foi validado e o ajudou a enfrentar a situação ocorrida, ainda que alguns aspectos tivessem que ser revistos, quando revisitados, acrescentando também novos conteúdos que ajudaram no direcionamento da vida.

O relato de Bruno demonstrou que seu mundo presumido não lhe oferecia respaldo suficiente para se sentir apto a enfrentar o ocorrido. Ao revisitar seu mundo fez importantes modificações que atenderam melhor à nova condição, da qual Bruno se apoderou e foi se descobrindo, bem como descobriu novas estratégias de enfrentamento. As transformações ocorridas e os significados positivos construídos direcionaram Bruno para um rumo bastante diferente do anterior. A lesão medular sofrida resgatou Bruno para uma vida mais plena, antes não vislumbrada por ele.

Quanto a Cláudio, foi possível notar que muito do conteúdo de seu mundo não pôde mais ser sustentado. A lesão medular lhe proporcionou uma revisão da forma de ver a vida e gerou a oportunidade de seguir outro caminho, diferente daquele conhecido, porém mais saudável, conforme suas observações quanto à sua realidade anterior. A partir do significado construído para a experiência e dos novos valores e concepções, pôde ter um alicerce mais firme para projetar a vida.

No caso de Diego, houve relevante reformulação de conteúdo anteriormente presente, com consolidação de novas crenças e valores a seguir, mas também houve uma forte concepção pré-estabelecida – de que Deus tinha um propósito em sua vida – que contribuiu consideravelmente para sua compreensão do fato ocorrido e para a construção do significado para a experiência.

Ao retomar o olhar para seus projetos de vida, os participantes os readequaram à nova realidade. Seu mundo presumido foi determinante para dizer que ou se configurava uma ruptura do mundo ou uma transição do momento anterior para a realidade instalada posteriormente.

A construção de significados para o ocorrido favoreceu a adaptação à condição nova, tendo propiciado a continuidade da vida de uma forma possível.

Discussão

Por meio da pergunta disparadora, foi possível dar abertura para o relato e inteirar-se das reações e percepções iniciais dos participantes frente a instalação da deficiência física, o que levou no decorrer da entrevista a conhecer e compreender a trajetória percorrida por cada um a partir do acontecimento em suas vidas e o significado construído para a experiência vivida. As categorias emergidas permitiram a organização das informações, e o conteúdo demonstrou o que afirmam Lianza e Sposito (1994)Lianza, S., Sposito, M. M. M. (1994). Reabilitação: a locomoção em pacientes com lesão medular. São Paulo, SP: Sarvier., que as repercussões da lesão medular geram demandas desde o início.

Este estudo evidenciou a existência não só das demandas físicas como também das emocionais, interferindo em todos setores da vida dos participantes (pessoal, social, profissional, familiar), conforme aponta a literatura, e impondo diversas perdas e mudanças (Borges, Brignol, Schoeller, & Bonetti, 2012Borges, A. M. F., Brignol, P., Schoeller, S. D., & Bonetti, A. (2012). Percepção das pessoas com lesão medular sobre a sua condição. Revita Gaúcha de Enfermagem, 33(3), 119-125. https://doi.org/10.1590/S1983-14472012000300016
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201200...
; Brunozi et al., 2011Brunozi, A. E., Silva, A. C., Gonçalves, L. F., & Veronezi, J. B. (2011). Qualidade de vida na lesão medular traumática. Revista de Neurociências, 19(1), 139-144. Recuperado de http://www.revistaneurociencias.com.br/edicoes/2011/RN1901/revisao/444%20revisao.pdf
http://www.revistaneurociencias.com.br/e...
; Cerezetti, Nunes, Cordeiro, & Tedesco, 2012Cerezetti, C. R. N., Nunes, G. R., Cordeiro, D. R. C. L., & Tedesco, S. (2012). Lesão medular traumática e estratégias de enfrentamento: revisão crítica. O Mundo da Saúde. 36(2), 318-326. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mundo_saude/lesao_medular_traumatica_estrategias_enfrentamento.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mu...
; França et al., 2011França, I. S. X., Coura, A. S., França, E. G., Basílio, N. N. V., & Souto, R. Q. (2011). Qualidade de vida de adultos com lesão medular: um estudo com WHOQOL-bref. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 45(6), 1364-1371. https://doi.org/10.1590/S0080-62342011000600013
https://doi.org/10.1590/S0080-6234201100...
; Lianza e Sposito, 1994Lianza, S., Sposito, M. M. M. (1994). Reabilitação: a locomoção em pacientes com lesão medular. São Paulo, SP: Sarvier.; Macedo, Chiattone, Lianza, & Vieira, 1995Macedo, S. P., Chiattone, H. B., Lianza, S., & Vieira, M. S. R. (1995). Avaliação dos aspectos psicológicos de pacientes portadores de lesão medular. Revista Medicina de Reabilitação, (40), 11-15.; Puhlmann, 2000Puhlmann, F. (2000). A revolução sexual sobre rodas: conquistando o afeto e a autonomia. São Paulo, SP: O Nome da Rosa.; Vash, 1988).

Ao longo do tempo, os participantes desenvolveram e aprimoraram estratégias para lidar com essas mudanças e buscaram formas de manter algumas atividades que lhes eram prazerosas e importantes, tendo também encontrado novas atividades de interesse na atual condição. A importância dos familiares e a repercussão no sistema do qual fazem parte foram constatadas na fala de todos os participantes, principalmente devido à dependência física, maior no início, mas também pelo abalo emocional provocado, o que ratifica que a vivência de uma situação de perda no sistema familiar mobiliza e gera alterações das quais todos participam, como afirmam Carter e McGoldrick (1995).

Saber da existência da mobilização do sistema familiar elucida um importante ponto de reflexão, que é a promoção de cuidado e atenção também à família durante o tratamento de lesados medulares. Parkes (1998)Parkes, C. M. (1998). Luto: estudos sobre a perda na vida adulta (3a ed.; M. H. F. Bromberg, trad.). São Paulo, SP: Summus. lembra da importância de perceber a família como unidade de cuidado, por ser toda atingida por uma nova situação instalada. Considera-se que, ao receber atendimento e ter um espaço de escuta e esclarecimentos, o sistema familiar se fortalece para lidar com as adversidades vividas quando há um membro na condição de deficiente físico, podendo se tornar um relevante fator de proteção.

O indivíduo acometido e seus familiares precisam se conscientizar das modificações ocorridas na vida, para que faça sentido o tratamento, ajudando na adesão e no manejo das situações. Conforme apontam Borges et al. (2012)Borges, A. M. F., Brignol, P., Schoeller, S. D., & Bonetti, A. (2012). Percepção das pessoas com lesão medular sobre a sua condição. Revita Gaúcha de Enfermagem, 33(3), 119-125. https://doi.org/10.1590/S1983-14472012000300016
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201200...
e Brunozi et al. (2011)Brunozi, A. E., Silva, A. C., Gonçalves, L. F., & Veronezi, J. B. (2011). Qualidade de vida na lesão medular traumática. Revista de Neurociências, 19(1), 139-144. Recuperado de http://www.revistaneurociencias.com.br/edicoes/2011/RN1901/revisao/444%20revisao.pdf
http://www.revistaneurociencias.com.br/e...
, o tratamento de reabilitação física favorece a adaptação, pois identifica as necessidades e os cuidados necessários para cada um, contribuindo para alcançar maior independência funcional e qualidade de vida em todos os âmbitos. Os participantes revelaram o quanto aprenderam na reabilitação física, na qual tiveram oportunidade de lidar com as limitações e frustrações, bem como perceber importantes evoluções. As adaptações do meio, aliadas à ajuda dos familiares e à própria força de vontade, propiciam o resgate de perspectivas mais positivas.

Em seus discursos os participantes não deram muita ênfase às complicações orgânicas, o que já foi abordado por Diniz et al. (2012)Diniz, I. V., Soares, R. A. S., Nascimento J. A., & Soares, M. J. G. O. (2012). Caracterização das vítimas de acidente de trânsito que apresentaram traumatismo raquimedular. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, 16(3), 371-378. https://doi.org/10.4034/RBCS.2012.16.03.14
https://doi.org/10.4034/RBCS.2012.16.03....
e Lianza et al. (2007)Lianza, S., Casalis, M. E. P., & Greve, J. M. D. (2007). A lesão medular. In S. Lianza, Medicina de reabilitação (4a ed.; pp. 304-326). Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan., no entanto, validaram a consolidação de um corpo diferente, tanto do ponto de vista físico e prático, quanto do impacto na autoimagem, revelando implicações emocionais, tais como vergonha, falta de confiança e medo da rejeição, que vão ao encontro dos sentimentos relatados por Puhlmann (2000)Puhlmann, F. (2000). A revolução sexual sobre rodas: conquistando o afeto e a autonomia. São Paulo, SP: O Nome da Rosa. como frequentes nessa situação. Os relatos dos participantes apontaram que parte da sociedade ainda insiste em ver o deficiente como frágil, incapaz, digno de pena, não cogitando a possibilidade de que possam ser felizes nessa condição, o que também já havia sido apontado por Puhlmann (2000)Puhlmann, F. (2000). A revolução sexual sobre rodas: conquistando o afeto e a autonomia. São Paulo, SP: O Nome da Rosa..

Com a lesão medular, emergiram cenários desconhecidos e os participantes tiveram suas concepções, crenças e valores testados, corroborando com Parkes (2009)Parkes, C. M. (2009). Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações (M. H. P. Franco, trad.). São Paulo, SP: Summus., que menciona a respeito do desafio ao mundo presumido frente novos acontecimentos na vida, ocasionando a perda do que se imaginava ter controle. Eles revisitaram o mundo presumido e realizaram alterações no mesmo – transição psicossocial –, e ainda que em alguns momentos isso fosse sofrido, os ajudou no direcionamento mais satisfatório dado para a vida. As entrevistas revelaram o quanto a mudança é um processo gradual, conforme aponta Corr (2002)Corr, C. A. (2002). Coping with challenges to assumptive worlds. In J. Kauffman (Ed.), Loss of the assumptive world: a theory of traumatic loss (pp. 127-138). New York, NY: Routledge..

Parkes (2009)Parkes, C. M. (2009). Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações (M. H. P. Franco, trad.). São Paulo, SP: Summus. refere que, ainda que se tenha anteriormente um mundo presumido insatisfatório – como no caso de Bruno e Cláudio, conforme eles mesmos exemplificaram nos relatos – esse é o mundo conhecido, que permite saber onde se está, oferecendo um mínimo de segurança quanto a como lidar com ele. Com o passar do tempo os participantes revelaram terem se permitido experimentar um outro olhar, vivenciaram a nova situação e surgiram novos conteúdos e possibilidade de seguirem um caminho diferente do que fora imaginado antes. Aos poucos puderam adquirir mais segurança frente ao novo panorama.

Diante de tantas mudanças na vida, o não reconhecimento de si mesmo se fez presente para os participantes (perda da identidade), como apontam diversos autores (Borges et al., 2012Borges, A. M. F., Brignol, P., Schoeller, S. D., & Bonetti, A. (2012). Percepção das pessoas com lesão medular sobre a sua condição. Revita Gaúcha de Enfermagem, 33(3), 119-125. https://doi.org/10.1590/S1983-14472012000300016
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201200...
; Casalis, 2003Casalis, M. P. (2003). Lesão medular. In E. Teixeira, F. N. Sauron, L. S. B. Santos, & M. C. Oliveira, Terapia ocupacional na reabilitação física (pp. 41-61). São Paulo, SP: Roca.; Fechio, Pacheco, Kaihami, & Alves, 2009Fechio, M. B., Pacheco, K. M. D. B., Kaihami, H. N., & Alves, V. L. R. (2009). A repercussão da lesão medular na identidade do sujeito. Acta Fisiátrica, 16(1), 38-42. https://doi.org/10.5935/0104-7795.20090005
https://doi.org/10.5935/0104-7795.200900...
; Gillies, & Neimeyer, 2006Gillies, J., & Neimeyer, R. (2006). Loss, grief and the search for significance: toward a model of meaning reconstruction in bereavement. Journal of Constructivist Psychology, 19(1), 31-65. Recuperado de http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10720530500311182
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.10...
; Neimeyer, 2006Neimeyer, R. A. (2006) Widowhood, grief and the quest for meaning: a narrative perspective on resilience. In D. S. Carr, R. M. Nesse, & C. B. Wortman. Spousal bereavement in late life (pp. 227-252). New York, NY: Springer.; Tavares, 2003Tavares, M. C. G. C. F. (2003) Imagem corporal: conceito e desenvolvimento. Barueri, SP: Manole.; Vash, 1988Vash, C. C. (1988). Enfrentando a deficiência: a manifestação, a psicologia, a reabilitação. São Paulo, SP: Pioneira.), de forma que buscaram reaver-se após as perdas sofridas, visado integrar a identidade pós-perda à história de vida (Borges et al., 2012Borges, A. M. F., Brignol, P., Schoeller, S. D., & Bonetti, A. (2012). Percepção das pessoas com lesão medular sobre a sua condição. Revita Gaúcha de Enfermagem, 33(3), 119-125. https://doi.org/10.1590/S1983-14472012000300016
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201200...
; Neimeyer, 2006Neimeyer, R. A. (2006) Widowhood, grief and the quest for meaning: a narrative perspective on resilience. In D. S. Carr, R. M. Nesse, & C. B. Wortman. Spousal bereavement in late life (pp. 227-252). New York, NY: Springer.).

Diversos aspectos podem influenciar a vivência da situação, a construção de significado e o direcionamento do projeto de vida. Botega (2002)Botega, N. J. (2002). Reação à doença e à hospitalização. In N. J. Botega (Org.), Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. (pp. 34-59). Porto Alegre, RS: Artmed., Casalis (2003)Casalis, M. P. (2003). Lesão medular. In E. Teixeira, F. N. Sauron, L. S. B. Santos, & M. C. Oliveira, Terapia ocupacional na reabilitação física (pp. 41-61). São Paulo, SP: Roca. e Vash (1988)Vash, C. C. (1988). Enfrentando a deficiência: a manifestação, a psicologia, a reabilitação. São Paulo, SP: Pioneira. apontam dentre esses aspectos o momento do acontecimento, o sistema de crenças e a qualidade do apoio recebido, o que fora bastante observado nesse presente estudo. Os participantes Bruno e Cláudio, que sofreram a lesão aos 16 anos, época de formação de seus planos, relataram maior mobilização emocional no início e demonstraram ter ficado mais perdidos quanto ao que fazer em meio ao acontecimento. Antônio, acometido aos 19 anos, e Diego, acometido aos 20 anos, tinham planos mais consolidados e concepções que favoreceram a retomada mais rapidamente de recursos para o enfrentamento. Esses dados também corroboram com o estudo de Borges et al. (2012)Borges, A. M. F., Brignol, P., Schoeller, S. D., & Bonetti, A. (2012). Percepção das pessoas com lesão medular sobre a sua condição. Revita Gaúcha de Enfermagem, 33(3), 119-125. https://doi.org/10.1590/S1983-14472012000300016
https://doi.org/10.1590/S1983-1447201200...
, o qual aponta a idade como um aspecto importante na maneira como a situação é vivenciada e enfrentada, bem como no direcionamento dado ao projeto de vida.

Ao se referir à retomada do projeto de vida nesse trabalho, o termo “retomada” foi utilizado no sentido de voltar a ter um olhar para o projeto de vida e o que fazer com ele. Nisso surgiu a indagação: reestruturação ou reconstrução do projeto? A terminologia foi decidida apenas ao final das análises, adotando a definição do Dicionário Aurélio Online (2008), tendo reestruturar como o ato de estruturar novamente, organizar de outra forma – entendido aqui que a reestruturação permite manter uma base mais aproximada da anterior, mas com mudanças importantes que, comparado ao que se tinha anteriormente, resulta em algo diferente ao final, mesmo que em partes. Reconstruir foi definido como ato ou efeito de construir de novo, formar de novo, reedificar; nesse caso entendido como algo que será refeito, modificando grande parte de sua base inicial, também apresentando um resultado diferente se comparado ao anterior.

Dessa forma, considerou-se que Antônio e Diego reestruturaram seus projetos de vida, por terem mantido grande parte dos planos que tinham, porém com adequações, conforme as novas possibilidades. Para Bruno e Cláudio, entendeu-se que o termo reconstrução era mais apropriado, já que para Bruno os planos tomaram rumo completamente diferente, e para Cláudio os planos estavam pouco consolidados e a nova visão de mundo possibilitou outra base.

O processo vivido pelos participantes para construir os significados, revisitando o mundo presumido até a retomada do olhar para o projeto de vida, mostra o quanto é válida a afirmação de Parkes (1998)Parkes, C. M. (1998). Luto: estudos sobre a perda na vida adulta (3a ed.; M. H. F. Bromberg, trad.). São Paulo, SP: Summus. que aponta que o mundo presumido se constitui baseado nas vivências durante a vida e, portanto, deve ser revisto sempre que o indivíduo se deparar com uma nova situação.

O mundo presumido de Antônio teve grande parte de seu conteúdo validado diante da experiência de sofrer a lesão medular, configurando-se uma transição de sua visão de mundo e não uma ruptura. Já o processo vivenciado por Bruno e Cláudio configurou-se uma ruptura do mundo presumido, pois grande parte das crenças já não puderam ser sustentadas. Diego revelou um processo ora de ruptura, ora de transição, pois muitas concepções foram invalidadas, mas teve concepção prévia de grande valia para o entendimento da experiência em sua vida. Seja uma ruptura ou uma transição, percebe-se que algo do “velho” mundo se mantém, mesmo que pouco em alguns casos, assim como também sempre se acrescenta conteúdo novo, haja vista que é a partir do mundo presumido anterior que se inicia o caminho à nova realidade. Nessa trajetória se fizeram presentes fatores de proteção e de risco, os quais contribuíram para o rumo da situação.

Os participantes construíram significados positivos para o acometimento, o que aponta para aquilo que Vash (1988) afirmava a respeito da deficiência, que pode ser vista como um catalisador para o crescimento psicológico. Todos os relatos remeteram ao que foi exposto na literatura, de que a construção de significado envolve mais do que dar sentido, como também reorganizar a visão de mundo, incluindo a si mesmo e a sociedade, já que o ser humano é dotado da capacidade de rever as concepções e interpretar os acontecimentos (Neimeyer, 2006Neimeyer, R. A. (2006) Widowhood, grief and the quest for meaning: a narrative perspective on resilience. In D. S. Carr, R. M. Nesse, & C. B. Wortman. Spousal bereavement in late life (pp. 227-252). New York, NY: Springer.; 2011Neimeyer, R. A. (2011). Reconstructing meaning in bereavement. Rivista di Psichiatria, 46(5-6), 332-336. https://doi.org/10.1708/1009.10982
https://doi.org/10.1708/1009.10982...
; Neimeyer et al., 2002Neimeyer, R. A., Botella, L., Herrero, O., Pacheco, M., Figueiras, S., & Wildner, L. A. W. (2002). The meaning of your absence. traumatic loss and narrative reconstruction. In J. Kauffman (Ed.), Loss of the assumptive world: a theory of traumatic loss. (pp. 31-47), New York, NY: Routledge.).

Neimeyer (2006)Neimeyer, R. A. (2006) Widowhood, grief and the quest for meaning: a narrative perspective on resilience. In D. S. Carr, R. M. Nesse, & C. B. Wortman. Spousal bereavement in late life (pp. 227-252). New York, NY: Springer. afirma que, ao construir significado para a perda, o enlutado tem a tarefa de encontrar benefícios a partir dela e transformar-se. Os participantes conseguiram identificar mudanças positivas em suas vidas, que compensavam parte das dificuldades enfrentadas. Descobriram-se capazes de enfrentar desafios e de superar as situações impostas, também com a ajuda de familiares, com apoio recebido e participação na reabilitação física. Os três componentes (construção de significado, mundo presumido e projeto de vida) se comunicaram a todo momento nas narrativas. Essa tríade é como uma engrenagem, que funciona concomitantemente, sempre que um novo acontecimento ocorre e uma nova revisão é exigida pelas circunstâncias.

Considerações finais

A pesquisa atendeu ao objetivo proposto, o que foi obtido por um método considerado satisfatório para conhecer e compreender o universo dos significados, considerando não só o fenômeno, mas também o contexto envolvido. Os significados positivos construídos demonstraram que sofrer a lesão medular, ainda que seja uma experiência difícil e mobilizadora, não necessariamente oferece um sentido ruim à vida da pessoa. As situações positivas percebidas pelos participantes, mesmo em meio a tantas adversidades, tiveram maior contribuição no significado construído.

Os participantes precisaram se apropriar da nova condição e elaborar o luto para o reinvestimento na vida, o que valida a importância de cada indivíduo se tornar agente do seu desenvolvimento. Assim, se vê reforçada a necessidade de o psicólogo na reabilitação física trabalhar com o indivíduo o resgate dos potenciais, da autoestima e da autonomia, o que favorece a elaboração e retomada satisfatória dos planos futuros, sendo também um trabalho preventivo.

A pesquisa mostra o caráter singular do processo de luto e, consequentemente, da construção de significado, pois ainda que com significados semelhantes, cada um elaborou a seu tempo, com fatores de influência diferenciados e, quando iguais, em intensidades diferentes.

Observa-se, a partir das informações desse estudo, a necessidade de validar o luto da incapacidade física, pois ainda é um luto não reconhecido, isto é, não validado socialmente, exigindo dos sujeitos uma rápida recuperação emocional, sem considerar as múltiplas perdas envolvidas nessa situação, o que configura um fator de risco à saúde mental, já que o luto pode se intensificar quando não poder ser expressado. Por ser algo inesperado – a lesão medular traumática –, imaginava-se configurar sempre uma ruptura no mundo, no entanto, observou-se que isso nem sempre procede com essa exatidão, dependendo do conteúdo do mundo presumido, que pode vir a ser validado, e sustentar a nova configuração de vida.

Considera-se, portanto, que compartilhar o sofrimento com outras pessoas com deficiência física, perceber-se parte de um grupo que o reconhece, valoriza e compreende suas perdas, podendo realizar trocas, ajuda na apropriação da condição física e, consequentemente, no reinvestimento da vida. Isso sugere que a oferta de atendimento de grupo nos centros de reabilitação física é necessária e importante. No entanto, cabe ressaltar que a validação desse luto deve ocorrer também por parte da família e da sociedade – rede de suporte.

A pesquisa pretendeu gerar reflexões e contribuir com conhecimentos, tendo suscitado, ainda, o interesse na investigação com indivíduos em outra faixa etária, ou com tempo de lesão inferior a dois anos ou superior a cinco anos, e observar diferenças e semelhanças no significado construído e no processo vivenciado.

Referências

  • Bardin, L. (2009). Análise de conteúdo (5a ed.; L. A. Reto; A. Pinheiro, trad.). Lisboa: Edições 70.
  • Borges, A. M. F., Brignol, P., Schoeller, S. D., & Bonetti, A. (2012). Percepção das pessoas com lesão medular sobre a sua condição. Revita Gaúcha de Enfermagem, 33(3), 119-125. https://doi.org/10.1590/S1983-14472012000300016
    » https://doi.org/10.1590/S1983-14472012000300016
  • Botega, N. J. (2002). Reação à doença e à hospitalização. In N. J. Botega (Org.), Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. (pp. 34-59). Porto Alegre, RS: Artmed.
  • Brasil. (2012). Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução n.466, 12 de dezembro de 2012. Aprova as normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos Brasília, DF: o autor.
  • Brasil. (2013). Ministério da Saúde. Secretaria da Atenção à Saúde. Diretrizes de atenção à pessoa com lesão medular Brasília, DF: o autor.
  • Bromberg, M. H. P. F. (2000). A psicoterapia em situações de perdas e luto Campinas, SP: Livro Pleno.
  • Brunozi, A. E., Silva, A. C., Gonçalves, L. F., & Veronezi, J. B. (2011). Qualidade de vida na lesão medular traumática. Revista de Neurociências, 19(1), 139-144. Recuperado de http://www.revistaneurociencias.com.br/edicoes/2011/RN1901/revisao/444%20revisao.pdf
    » http://www.revistaneurociencias.com.br/edicoes/2011/RN1901/revisao/444%20revisao.pdf
  • Carter, B., & McGoldrick, M. (Orgs.). (1995). As mudanças no ciclo de vida familiar: uma estrutura para a terapia familiar. Porto Alegre, RS: Artes Médicas.
  • Casalis, M. P. (2003). Lesão medular. In E. Teixeira, F. N. Sauron, L. S. B. Santos, & M. C. Oliveira, Terapia ocupacional na reabilitação física (pp. 41-61). São Paulo, SP: Roca.
  • Casellato, G. (2005) Luto não reconhecido: um conceito a ser explorado. In G. Casellato (Org.), Dor silenciosa ou dor silenciada? Perdas e lutos não reconhecidos por enlutados e sociedade (pp.19-33). Campinas, SP: Livro Pleno.
  • Cerezetti, C. R. N., Nunes, G. R., Cordeiro, D. R. C. L., & Tedesco, S. (2012). Lesão medular traumática e estratégias de enfrentamento: revisão crítica. O Mundo da Saúde. 36(2), 318-326. Recuperado de http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mundo_saude/lesao_medular_traumatica_estrategias_enfrentamento.pdf
    » http://bvsms.saude.gov.br/bvs/artigos/mundo_saude/lesao_medular_traumatica_estrategias_enfrentamento.pdf
  • Corr, C. A. (2002). Coping with challenges to assumptive worlds. In J. Kauffman (Ed.), Loss of the assumptive world: a theory of traumatic loss (pp. 127-138). New York, NY: Routledge.
  • DeLisa, J. A., Currie, D. M., & Martin, G. M. (2002). Medicina de reabilitação: passado, presente e futuro. In J. A. DeLisa, & B. M. GANS (Orgs.), Tratado de medicina e reabilitação: princípios e prática (3a ed, v. 1, pp. 3-33). Barueri, SP: Manole.
  • Dicionário Aurelio Online. (2008). Dicionário português: reconstruir. Recuperado de https://dicionariodoaurelio.com/reconstruir
    » https://dicionariodoaurelio.com/reconstruir
  • Dicionário Aurelio Online. (2008). Dicionário português: reestrutrar. Recuperado de https://dicionariodoaurelio.com/reestruturar
    » https://dicionariodoaurelio.com/reestruturar
  • Diniz, I. V., Soares, R. A. S., Nascimento J. A., & Soares, M. J. G. O. (2012). Caracterização das vítimas de acidente de trânsito que apresentaram traumatismo raquimedular. Revista Brasileira de Ciências da Saúde, 16(3), 371-378. https://doi.org/10.4034/RBCS.2012.16.03.14
    » https://doi.org/10.4034/RBCS.2012.16.03.14
  • Eriksonl, E. H. (1976). Identidade, juventude e crise Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Fechio, M. B., Pacheco, K. M. D. B., Kaihami, H. N., & Alves, V. L. R. (2009). A repercussão da lesão medular na identidade do sujeito. Acta Fisiátrica, 16(1), 38-42. https://doi.org/10.5935/0104-7795.20090005
    » https://doi.org/10.5935/0104-7795.20090005
  • França, I. S. X., Coura, A. S., França, E. G., Basílio, N. N. V., & Souto, R. Q. (2011). Qualidade de vida de adultos com lesão medular: um estudo com WHOQOL-bref. Revista da Escola de Enfermagem da USP, 45(6), 1364-1371. https://doi.org/10.1590/S0080-62342011000600013
    » https://doi.org/10.1590/S0080-62342011000600013
  • Gillies, J., & Neimeyer, R. (2006). Loss, grief and the search for significance: toward a model of meaning reconstruction in bereavement. Journal of Constructivist Psychology, 19(1), 31-65. Recuperado de http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10720530500311182
    » http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/10720530500311182
  • Greve, J. M. D., & Castro, A. W. (2001). Avaliação clínica e funcional da lesão medular: índices motores e sensitivos e funcionais utilizados. In J. M. D. Greve, M. E. P. Casalis, & T. E. P. Barros Filho. Diagnóstico e tratamento da lesão medular espinhal (pp. 65-73). São Paulo, SP: Roca.
  • Lianza, S., Casalis, M. E. P., & Greve, J. M. D. (2007). A lesão medular. In S. Lianza, Medicina de reabilitação (4a ed.; pp. 304-326). Rio de Janeiro, RJ: Guanabara Koogan.
  • Lianza, S., Sposito, M. M. M. (1994). Reabilitação: a locomoção em pacientes com lesão medular. São Paulo, SP: Sarvier.
  • Macedo, S. P., Chiattone, H. B., Lianza, S., & Vieira, M. S. R. (1995). Avaliação dos aspectos psicológicos de pacientes portadores de lesão medular. Revista Medicina de Reabilitação, (40), 11-15.
  • Minayo, M. C. S. (2010) O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde (12a ed.). São Paulo, SP: Hucitec.
  • National Spinal Cord Injury Statistical Center - NSCISC. (2013). Spinal Cord Injury Model Systems. 2013 Annual report: complete public version Birmingham (AL): National Spinal Cord Injury Statistical Center. Recuperado de https://www.nscisc.uab.edu/PublicDocuments/reports/pdf/2013%20NSCISC%20Annual%20Statistical%20Report%20Complete%20Public%20Version.pdf
    » https://www.nscisc.uab.edu/PublicDocuments/reports/pdf/2013%20NSCISC%20Annual%20Statistical%20Report%20Complete%20Public%20Version.pdf
  • Neimeyer, R. A. (2011). Reconstructing meaning in bereavement. Rivista di Psichiatria, 46(5-6), 332-336. https://doi.org/10.1708/1009.10982
    » https://doi.org/10.1708/1009.10982
  • Neimeyer, R. A. (2006) Widowhood, grief and the quest for meaning: a narrative perspective on resilience. In D. S. Carr, R. M. Nesse, & C. B. Wortman. Spousal bereavement in late life (pp. 227-252). New York, NY: Springer.
  • Neimeyer, R. A., Botella, L., Herrero, O., Pacheco, M., Figueiras, S., & Wildner, L. A. W. (2002). The meaning of your absence. traumatic loss and narrative reconstruction. In J. Kauffman (Ed.), Loss of the assumptive world: a theory of traumatic loss. (pp. 31-47), New York, NY: Routledge.
  • Parkes, C. M. (1998). Luto: estudos sobre a perda na vida adulta (3a ed.; M. H. F. Bromberg, trad.). São Paulo, SP: Summus.
  • Parkes, C. M. (2009). Amor e perda: as raízes do luto e suas complicações (M. H. P. Franco, trad.). São Paulo, SP: Summus.
  • Puhlmann, F. (2000). A revolução sexual sobre rodas: conquistando o afeto e a autonomia São Paulo, SP: O Nome da Rosa.
  • Stokes, M. (2000). Neurologia para Fisioterapeutas. São Paulo, SP: Premier.
  • Taricco, M. A. (2001). Etiologia das lesões medulares. In: J. M. D. Greve, M. E. P. Casalis, & T. E. P. Barros Filho. Diagnóstico e tratamento da lesão medular espinal (pp. 1-8). São Paulo, SP: Roca.
  • Tavares, M. C. G. C. F. (2003) Imagem corporal: conceito e desenvolvimento. Barueri, SP: Manole.
  • Vash, C. C. (1988). Enfrentando a deficiência: a manifestação, a psicologia, a reabilitação São Paulo, SP: Pioneira.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Mar 2017

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2016
  • Aceito
    13 Dez 2016
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br