Introdução
Este artigo tem como objetivo retomar parte da historiografia dos psicólogos e estudantes de Psicologia que integraram agrupamentos armados contra o golpe de classe de 1964. Partimos dos pressupostos teórico-metodológicos do materialismo histórico-dialético e recompusemos, no plano textual, parte do movimento real produzido pela ação daqueles sujeitos. Para tal, nos aprofundamos no estudo bibliográfico do tema, buscando em nossa investigação a tomada daquilo que já foi produzido.
Iniciamos o artigo descrevendo como a particularidade societária brasileira constitui a Psicologia em seu processo de reconhecimento enquanto ciência e profissão engendrando as condições para a formação do psicólogo enquanto fração da classe trabalhadora no Brasil. Em seguida, consideramos como a politização de estudantes de Psicologia da década de 1960 foi uma ruptura com o caminho institucional trilhado até então pela Psicologia como profissão. A partir de casos ilustrativos, indicamos a participação daqueles sujeitos em agrupamentos políticos caracterizados por especificidades que indicavam a perspectiva ideológica a qual se filiavam. No final, destacamos o processo que culminou com a transição da forma ditadura para a forma democrática de Estado no Brasil, inaugurando um novo pacto entre as elites econômicas no país.
A formação do psicólogo enquanto fração da classe trabalhadora brasileira
Para compreendermos a maneira pela qual a Psicologia brasileira é transformada em ciência e reconhecida como profissão, é necessário termos em vista o movimento pelo qual um país de economia periférica do capital se liga aos seus centros econômicos, já que:
o estudo da história da ciência em países periféricos passa necessariamente por colocar em cena questões políticas, de dependência, de autonomia ou de colaboração e intercâmbio em relação ao centro, entendido como alguns países da Europa e os Estados Unidos (Jacó-Vilela, 2009, p. 125).
Isto mostra que existe um processo desigual e combinado na sociabilidade do capital que, em sua reprodução em escala ampliada, tende a se alastrar pelos diferentes cantos do globo. Prado Junior (1988) afirmou: “o nosso enquadramento no sistema internacional do capitalismo, […] vem a ser o imperialismo, na posição de simples dependência dele” (p. 345). Aquilo que acontece no centro do capital é refratado na periferia que, com suas particularidades, dá diferentes expressões para aquele movimento. Isto também acontece no âmbito das próprias ciências que se desenvolvem na modernidade.
Neste sentido, a Psicologia se apresenta em um dos complexos momentos pelo qual parte da classe trabalhadora brasileira, em sua multiplicidade de contradições estruturantes, se desenvolve. Inicialmente, ainda que não institucionalizada como profissão, emerge em diferentes setores e áreas que representavam os interesses de uma elite modernizadora que se formava no Brasil1. Sodré (1990) afirmou: “a década de 30 assinala novo período na acumulação de capitais aqui” (p. 100). É a partir deste momento que as novas bases estruturais para o desenvolvimento institucional de uma Psicologia começam a ser alargadas.
Em 1932 foi elaborado o primeiro projeto de Curso de Formação de Psicólogos Profissionais (Centofanti, 1982). Nas décadas seguintes, tivemos a fundação, em 1945, da Sociedade de Psicólogos de São Paulo e, em 1949, da Associação Brasileira de Psicotécnica, no Rio de Janeiro (Angelini, 2011; Castro, & Alcântara, 2011). Mas, somente em 1962, é reconhecida nos marcos legais a profissão de psicólogo, pela Lei n° 4.119, que regulamenta os cursos e a profissão (Jacó-Vilela, 2002). Até a década de 1960, vemos que a constituição da Psicologia, que buscava seu reconhecimento enquanto profissão, seguiu um caminho trilhado no interior da institucionalidade (Jacó-Vilela, 2012).
Com o golpe de classe2 (Dreifuss, 1986, p. 146) de 1964, uma nova situação foi imposta na sociedade brasileira. Fernandes (2015) afirmou que se institucionalizou um verdadeiro “totalitarismo de classe” (p. 35). A fratura da forma democrática de Estado serviu para colocar em primeiro plano novos problemas, fazendo com que existissem preocupações com questões que, até o determinado momento, não foram consideradas. Para alguns dos então psicólogos e estudantes de Psicologia também foi exigido “[…] travar o mesmo combate nas trevas da pior opressão que já se abateu sobre o povo brasileiro desde a conquista da Independência” (Gorender, 2014, p. 181).
Se, de um lado, parte da teorização da própria Psicologia não oferecia subsídios para um enfrentamento contra um regime ditatorial, por outro, a prática de alguns psicólogos e estudantes, que estava subordinada a sua ação militante, implicou a abertura de uma ampla gama de discussões que foram incorporadas, posteriormente, pela própria Psicologia.
O terrorismo de estado
Não existe formação de estados nacionais sem a constituição de um exército armado para a sua proteção e defesa contra ameaças internas e externas. Estas aparecem, simultaneamente, como a constituição daquelas e justificam a sua existência e manutenção (Lenin, 2010). Neste sentido, as formações estatais são expressão política do movimento pelo qual a ordem do capital internacionaliza seus interesses e constitui a formação do mundo moderno3.
Parte considerável da formação societária latino-americana foi marcada pelo chamado terrorismo de estado. Esta categoria analítica, que significou um verdadeiro ganho teórico para a explicação do movimento do real, foi incorporada por alguns psicólogos em suas análises. Basta lembrarmos que, em El Salvador, Martin-Baró (2017) avaliava que:
[…] a guerra suja utiliza-se da repressão aterrorizante, isto é, a execução visível de atos cruéis que desencadeiam na população um amplo e incontrolável medo. Assim, enquanto a repressão produz a eliminação física de pessoas que são o alvo direto de suas ações, o seu caráter aterrorizante tende a, ao mesmo tempo, paralisar todos que, de uma forma ou de outra, se identificam com alguma característica da vítima; o terrorismo de estado e, concretamente, a guerra psicológica têm a necessidade de possibilitar que a população saiba dos fatos, ainda que a publicidade enquanto tal possa ser contraproducente […] (p. 277-278. Destaques no original).
Na particularidade sul-americana, o caso da Colômbia é outro exemplo. Bravo (2016), trabalhando com parentes das vítimas desaparecidas no confronto entre grupos guerrilheiros armados e o estado colombiano que se prolongou por décadas, afirmou: “La expresión terrorismo de Estado pasó a significar las acciones descritas. El Estado podia operar diretamente, por médio de sus agentes, o inderectamente, por médio de grupos paramilitares” (p. 25-26. Destaques no original). O terrorismo de estado chileno, que resultou no assassinato de Salvador Allende no Palacio de la Moneda pelas tropas de Augusto Pinochet, serviu de base para a “experiência psicoterapêutica no Chile pelo grupo liderado por Elizabeth Lira […]” (Martin-Baró, 2017, p.327). No Brasil, Coimbra (2011), uma das psicólogas que ajudou a incorporar a discussão do terrorismo de estado dentro da própria Psicologia, afirmou: “silenciava-se e massacrava-se toda e qualquer pessoa e/ou movimento que ousasse levantar a voz: era o terrorismo de Estado que se instalava; a ditadura sem disfarces” (p. 43).
A politização estudantil e a Psicologia: na vanguarda da luta armada e na retaguarda da resistência
O processo de politização e radicalização nas fileiras da Psicologia levou alguns estudantes a romperem com o processo de institucionalização que marcou a Psicologia brasileira. O exemplo das estudantes encarceradas no Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE) de 1968, em Ibiúna, realizado de forma clandestina, nos mostra a participação de estudantes de Psicologia enfrentando o regime dominante4.
É importante notarmos o papel de vanguarda que estes estudantes tiveram, pois levantaram questões relacionadas a ações contra a ditadura de classe em seus cursos. Se parte da Psicologia estava presa na armadilha institucional que prendeu a atuação de profissionais, há, por outro lado, importante fratura da ordem efetivada pela juventude e pelos estudantes (Hur, 2012).
Parte destes estudantes já participava em estavam integrados a organizações políticas e o papel dos congressos estudantis foi o de ajudar a ampliar a rede de contato entre estes militantes. Contra o terrorismo de estado, germinado e cultivado na constituição societária brasileira, estudantes e psicólogos utilizaram diferentes formas de luta e resistência. Aqui, nos interessa uma em específico: a luta armada.
Poderíamos defender que a viagem à luta armada de psicólogos e estudantes estaria apartada da história da própria Psicologia? Ou, pelo contrário, são esses sujeitos concretos, que vivem e transformam a realidade em determinado período histórico, que abrem frestas e alargam as bases de discussão para atividades que naquele momento não são reconhecidas como parte das atribuições de sua própria categoria profissional? Para qualquer tipo de resposta, é necessário o resgate da trajetória destes estudantes e militantes de Psicologia. Aqui, defendemos a concepção de que a prática destes psicólogos e estudantes, ainda que não tivesse imediatamente uma relação identitária com a Psicologia de seu tempo, é parte inseparável da história da Psicologia.
Se não houvessem psicólogos que assumissem a vanguarda na luta contra a ditadura não existiria possibilidade alguma de discutir temas como as consequências psicossociais da ditadura, memória e história social e lutas insurgentes na América Latina, temas que constam na convocatória deste dossiê. Alguns pagaram com sua própria vida e foram essenciais para desbravar caminhos que não poderiam ser abertos de outra forma5. Portanto, podemos afirmar que a história da Psicologia no Brasil, em um dos seus momentos, é atravessada pela história da luta armada.
A completa subordinação de estudantes e profissionais à prática militante nos indica que não é possível a compreensão da história destes sujeitos sem a consideração da mediação grupal6, já que o grupo é fundamental para compreender quais foram as teses incorporadas em sua prática militante. Assim, com a finalidade de resgatar as trajetórias destes militantes que participaram da luta armada contra o terrorismo de estado, faz-se necessário recorrer à história de suas organizações, cada um processo de gênese, desenvolvimento e contradições internas, que ajudam a compreender a maneira pela qual estes militantes estavam inseridos na luta.
Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)
Inicialmente, um grupo de dissidentes do Partido Comunista Brasileiro (PCB) formou a Dissidência da Guanabara (DI-GB) a partir de quadros oriundos, principalmente, do movimento estudantil. Após realizar a opção pela guerrilha urbana e luta armada, o grupo foi rebatizado com nome de Movimento Revolucionário 8 de outubro (MR-8), em uma homenagem a Che Guevara, que havia morrido na Bolívia nesta data (Arquidiocese de São Paulo, 1985).
No interior desta organização, destaca-se a atuação de, pelo menos, uma psicóloga e duas estudantes de Psicologia. As três foram mortas na luta contra a ditadura. Primeiramente, será descrita a trajetória da psicóloga Iara Iavelberg, que inicialmente foi militante da Organização Revolucionária Marxista Política Operária (Polop)7 e, posteriormente, integrou os quadros do MR-8.
Ainda era estudante, quando, em 1964, prenderam o professor Florestan Fernandes na USP. Sua soltura “lotou de alunos e professores o saguão da Faculdade, Iara no meio” (Patarra, 1992, p. 97). O ostensivo clima de repressão criava a atmosfera da época, em que diferentes setores da classe trabalhadora, entre eles professores e estudantes, eram gradativamente atingidos pelos conflitos sociais em curso.
O depoimento da professora de Psicologia Ecléa Bosi, da USP, revela parte das atividades de Iara:
Eu me lembro da Iara já não como colega de classe, mas como colega de departamento naqueles caracóis que hoje estão lá perto da FEA [Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo], ali que era a Psicologia Social, e a Iara estava fazendo uma análise de conteúdo. Só que a Iara fazia a análise de conteúdo dos discursos do Fidel Castro. Eu me lembro muito bem disso. E ela não chegou a terminar esse trabalho porque ela desapareceu. Nessa época, entrou pra luta clandestina, num movimento chamado MR-8. Movimento Revolucionário 8 de outubro. E ela […] depois nós soubemos, pelos jornais, pelos livros, que ela foi combater no Vale da Ribeira e foi assassinada na Bahia em 1972. Ela foi companheira do célebre guerrilheiro capitão Lamarca. E nós perdemos a Iara (Centro Acadêmico Iara Iavelberg, 2014).
Ao mesmo tempo em que Iara fez sua graduação em Psicologia, foi professora no cursinho do grêmio da Faculdade de Filosofia, e se tornou, posteriormente, professora na Universidade de São Paulo (USP). Sobre sua curta atuação profissional na universidade, dizem-nos que: “Nas aulas que deu, poucas, Iara divertia-se em contestar a Psicologia behaviorista e a ciência oficial” (Patarra, 1992, p. 198). Por outro lado, quando já estava integrada na militância da luta armada, teve a sensibilidade de considerar que o acompanhamento psicológico de militantes poderia ser um dos papéis específicos que os psicólogos poderiam desempenhar em suas ações. As duras medidas impostas na clandestinidade impunham implicações para subjetividade. É por isso que, em sua organização, “Iara insistiu no atendimento psicológico aos militantes, seu nicho na luta armada8” (Patarra, 1992, pp. 348-349).
Ficou conhecida por ter seu rosto estampado, ao lado de seu companheiro Carlos Lamarca, em diversos cartazes com a frase: “Terroristas Procurados. Ajude a proteger sua vida e a de seus familiares. Avise a polícia” (Gaspari, 2002). No Vale do Ribeira, lecionou marxismo no campo de treinamento para militantes.
A relação de amor-camaradagem entre Iara Iavelberg e Carlos Lamarca, germinada e cultivada na ação clandestina, terminou com a morte dos dois. Foi morta quando membros da repressão pretendiam, na ânsia de eliminar a guerrilha urbana e rural, destruir fisicamente todos os quadros que poderiam se posicionar contra a ditadura.
Sobre a destruição do psiquismo e a desorganização mental em situações de extrema pressão, um caso ligado ao MR-8 chama a atenção. A estudante de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Solange Lourenço Gomes, ficou dois anos presa. Teve um surto psicótico enquanto estava na clandestinidade, se dirigindo a uma delegacia e entregando parte de sua organização:
Solange Lourenço Gomes, a Emília, dirigente do MR-8, marcara um “ponto” na Fonte Nova e estivera na arquibancada enlouquecida. Em estado de choque, entrou numa delegacia informando: “Eu sou uma subversiva, eu sou uma subversiva”. Uma semana depois, tendo contado tudo o que sabia a respeito do MR-8, levou a polícia ao encontro do seu companheiro. No final de maio o MR-8 baiano estava nas mãos do DOI. Tinha-se conhecimento até mesmo da existência de um dispositivo rural, coordenado por um certo Dino, ou João Lopes Salgado (Gaspari, 2002, p. 351).
Com traumatismos psicológicos devido à situação pela qual passou, que incluía abusos sexuais, e sem jamais ter se recuperado, Solange se matou em 1982.
Outra vítima do terrorismo de estado brasileiro que pertenceu ao MR-8 foi a estudante de Psicologia Marilene Villas-Boas Pinto. Era conhecida como “a Índia do MR-8, [e] foi entregue ao DOI […]. Mataram-na com um tiro no pulmão” (Gaspari, 2002, p. 382). Sobre a sua trajetória e sua biografia
Marilena era estudante de Psicologia na Universidade Santa Úrsula, cursando até o 2° ano, quando, em 1969, por sua participação no movimento estudantil, foi obrigada a viver na clandestinidade. Inicialmente militou na ALN e, posteriormente, ligou-se ao MR-8. Nasceu no Rio de Janeiro e foi morta aos 22 anos (Miranda, & Tibúrcio, 2008, p. 481).
Vanguarda Popular Revolucionária
A Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) era formada por militantes remanescentes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e da Polop. O primeiro contava em suas fileiras com ex-militares que foram cassados em 1964. Com o exílio de Leonel Brizola para o Uruguai, parte do auxílio financeiro e de armamentos, vinha a partir dele. O MNR protagonizou a primeira experiência de guerrilha pós-golpe de 1964 na área do Caparaó (Arbex, 2015). Com a derrota a partir do cerco da Polícia Militar, parte destes quadros se dirigiu a outras organizações. Já a Polop, tinha em sua base estudantes de diversas tendências marxistas e de diferentes agrupamentos espalhados pelo Brasil (Miranda, & Falcón, 2010). Parte de seus militantes se fundiria com o MNR, para formar a VPR.
Na VPR, uma psicóloga que integrou seus quadros foi Pauline Philipe Reichstul. Nascida na Tchecoslováquia, foi para a Suíça, onde “estudou com Jean Piaget” (Carvalho, 1998, p. 417)9. Depois, se mudou para a França, onde viveu o maio de 1968 e travou contatos sistemáticos com militantes sul-americanos exilados. Vindo para o Brasil para integrar as fileiras da luta armada, foi morta no massacre da Chácara São Bento10. Neste mesmo episódio também foi derrubada Soledad Barret, em um dos maiores casos de infiltração e traição realizadas por Cabo Anselmo11.
Ação Libertadora Nacional
A Ação Libertadora Nacional (ALN) foi formada por um grupo de dissidentes expulsos e desligados do PCB, liderados por Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira. Em 1965, Marighella (1994) afirmou: “fiz questão de tornar público que vivemos sob uma ditadura militar fascista” (p. 115). Já em 1966, prescrevia: “sem o emprego da força, não há como derrubar a ditadura” (Marighella, 2013, p. 200). Aquilo que chamou de “golpes militares antipovo” não poderia ser confrontado pelo voto, já que “Todos veem que o caminho da derrubada da ditadura não pode ser por via eleitoral” (Marighella, 2013, p. 202). Em 1969, a análise da particularidade da situação brasileira em meio à crise estrutural se mostrava como importante termômetro para se avaliar a polarização de diferentes forças que decorria do golpe:
A crise estrutural crônica característica do Brasil de hoje, e sua resultante instabilidade política, são as razões pelo abrupto surgimento da guerra revolucionária no país. A guerra revolucionária se manifesta na forma de guerra de guerrilha urbana, guerra psicológica, ou guerra guerrilheira rural. A guerra guerrilheira urbana ou a guerra psicológica na cidade depende da guerrilha urbana (Marighella, 1969, s/p).
No interior da ALN, encontramos, pelo menos, uma estudante de Psicologia e um psicólogo, à época estudante. Luiz Celso Manço, professor da Universidade Católica de Santos. Este foi preso e brutalmente torturado na prisão e relembra a armadilha que vitimou uma das principais figuras da luta armada da seguinte maneira: “Nosso comandante, o Marighella, é traído e morto em São Paulo” (Conselho Federal de Psicologia, 2013, p. 542). O depoimento revela que o impacto da morte de uma das principais figuras da luta revolucionária no Brasil se fez sentir, inclusive, em meios estudantis da Psicologia.
Quando foi preso, Manço teve que lidar com situação em que seu carrasco, no domínio da situação, começa a utilizar de jogos psicológicos para extrair informações para prender outros membros de sua organização. A utilização de tortura psicológica pelos agentes da repressão, inclusive com o envolvimento de elementos sádicos, era comum:
Durante a tortura, uma das coisas que me pegaram muito… eles falaram: “Nós sabemos que você está com o casamento marcado […] Só que é o seguinte, você nunca mais vai ter ereção, você se prepare, vou te amarrar pendurado no pau de arara, nunca mais você pensa que vai ter ereção, acabou, cara, tu sai daqui inútil, e você sabe como é que nós vamos começar? Com um pau de vassoura com uma mecha de tecido embebido em gasolina, vamos te penetrar e por aí vai começar a sua esterilização, sua impotência (CFP, 2013, p. 549).
Aurora Maria Nascimento Furtado, estudante de Psicologia que pertenceu à ALN, foi morta aos seus 26 anos de idade, depois de ser presa e torturada. Fon (1980), que teve seu irmão mandado para a formação de guerrilheiros em Cuba diretamente por Marighella, lembra que:
foi o torniquete que matou Aurora Maria Nascimento, 26 anos, no DOI-CODI do I Exército […]. Seu atestado de óbito, feito pelo IML do Rio de Janeiro, indica como causa da morte: “dilaceração encefálica” […] seu corpo apresentava um afundamento de dois centímetros em volta de todo o crânio e, devido à pressão do torniquete, seu olho esquerdo saltara do globo ocular (p. 76).
Depois de sua morte, ganhou um romance, escrito por seu cunhado, Tapajós (1979), em sua homenagem. “Em câmara lenta” é um livro que narra a guerrilha das décadas de 1960 e 1970 e Aurora da ALN é a protagonista de uma das lutas pela derrubada da ditadura. Em sua narrativa, os detalhes da morte de Aurora, que se negou a entregar seus companheiros enquanto estava sendo torturada, são aterrorizadores:
Furiosos, os policiais tiraram-na do pau-de-arara, jogaram-na ao chão. Um deles enfiou na cabeça dela a coroa-de-cristo: um anel de metal com parafusos que o faziam diminuir de diâmetro. Eles esperaram que ela voltasse a si e disseram-lhe que se não começasse a falar, iria morrer lentamente. Ela nada disse e seus olhos já estavam baços. O policial começou a apertar os parafusos e a dor a atravessou, uma dor que dominou tudo […]. Ele continuou a apertar os parafusos e um dos olhos dela saltou para fora da órbita devido à pressão no crânio. Quando os ossos do crânio estalaram e afundaram, ela já havia perdido a consciência, deslizando para a morte com o cérebro esmagado lentamente (p. 172).
Partido Comunista do Brasil, Ação Popular e a Guerrilha do Araguaia
O Partido Comunista do Brasil (PCdoB) foi formado a partir de uma fratura do PCB em 1962, quando parte de seus quadros organizativos, entre eles Pedro Pomar, Maurício Grabois, João Amazonas e Ângelo Arroyo, rompeu com a linha preconizada pelo partido12. O PCdoB, inicialmente recusando o caráter revisionista do Relatório de Khrushchev13, incorporou o maoismo herdado da Revolução Chinesa, de que parte dos combates decisivos seriam decididos a partir da luta no campo, através de uma guerra popular prolongada que faria o cerco a cidade. A Ação Popular (AP) foi um grupo cristão que também se aproximou das teses maoistas e, posteriormente, foi incorporado na estrutura do PCdoB (Arquidiocese de São Paulo, 1985).
No PCdoB, destaca-se a atuação de Idalísio Soares Aranha Filho, estudante de Psicologia morto na Guerrilha do Araguaia. A tragédia do Araguaia (a qual, até hoje, não teve descobertas as ossaturas e o número total de mortos, estimados em pelo menos 61) foi um dos momentos mais brutais e ferozes das forças de repressão: “Pelo número de mortos, a guerrilha pagou caro. […] Oito morreram em áreas de combate ou em emboscadas” (Gaspari, 2002, p. 424). Entre os mortos na emboscada, estava Idalísio.
A psicóloga Maria Auxiliadora de Almeida Cunha Arantes14, que viveu 11 anos na clandestinidade, pertenceu aos quadros organizativos da AP. Fez parte da militância no momento em que a influência maoista traçou os caminhos táticos da organização, tendo a política de integração na produção sendo instituída. Na prática, isso significava que os militantes seriam deslocados pela organização para ingressar em áreas geográficas distantes com o objetivo de se integrarem a base social camponesa para: “comer junto, trabalhar junto, lutar junto. Os ensinamentos de Ho Chi-Min e Mao Tsé-tung encontram um terreno receptivo entre os militantes da AP” (Arantes, 1994, p. 32).
Para desenvolverem tal tática de luta, a clandestinidade era um momento fundamental para a luta contra a ditadura: “o clandestino se esconde do inimigo, que está no poder, para combatê-lo” (Arantes, 1994, p. 129). Mas, com as opções de luta sendo sistematicamente estranguladas e os militantes sendo fisicamente eliminados e brutalmente torturados, as duras condições de luta na clandestinidade atuaram para transformá-la em peso no transcorrer do tempo: “o disfarce que era pra protegê-lo […] vai se tornando um fardo e se constituindo em um processo de marginalização de suas relações pessoais e familiares tão queridas” (Arantes, 1994, p. 130)
Maria Auxiliadora relata o momento em que o coronel Brilhante Ustra coordenou a operação – conhecida como Chacina da Lapa – que eliminou fisicamente parte do núcleo revolucionário do PCdoB, assim como prendeu seu companheiro Aldo Arantes:
Chacina da Lapa foi comandada pelo Brilhante Ustra, uma operação casada entre o Exército, o DOPS de São Paulo e outros órgãos militares, e o Brilhante Ustra era um dos “cabeças” dessa operação. Ele e o [Sérgio Fernando Paranhos] Fleury. O Fleury passou a me procurar (CFP, 2013, p. 580).
Não raro era o envolvimento de militantes em que parte da família estava presente como uma unidade dentro da luta. A presença de irmãos, pais e mães fizeram da luta contra a repressão algo que os unisse. José Dalmo Ribeiro Ribas, formado em Psicologia pela Universidade São Marcos de São Paulo, militante do PCdoB, que teve um de seus irmãos mais novos como um “combatente do Destacamento B na Guerrilha do Araguaia, permanece como desaparecido político” (CFP, 2013, p. 491). Tendo conhecido diversos membros da guerrilha do Araguaia, que foram exterminados, como Maurício Grabois, Pedro Pomar e Osvaldão.
José Dalmo, em uma de suas ações, serviu como guarda-costas de um conhecido membro do movimento revolucionário latino-americano em 1967: “Então, vi o [Che] Guevara chegando acompanhado por um guarda-costas. Sei que logo depois foi noticiada a presença do Guevara na Bolívia e eu fiquei sabendo que ele havia sido morto” (CFP, 2013, p. 506).
A luta não armada na retaguarda
Além da ação armada de vanguarda, houve importante luta de resistência na retaguarda que foi caracterizada por atividades de denúncia de torturadores, agitação e propaganda sobre o que ocorria no Brasil, atendimento de militantes que precisavam de alguma intervenção psicológica depois de terem passado por torturas e abertura das portas de suas casas para servirem como aparelhos.
A psicóloga Coimbra (1995) 15, foi membro do PCB, presa e torturada, participou da criação, na década de 1970, do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM). Ela foi uma das responsáveis pela denúncia do famoso caso do médico psicanalista Amilcar Lobo, que agiu como colaborador dos agentes repressivos do Estado:
Seu “trabalho” até 1974 é “atender” os presos políticos antes, durante e depois das sessões de torturas. Com o codinome de Dr. Carneiro, Amilcar Lobo “acompanha” o terror que se abate sobre o país fazendo parte eficaz de sua engrenagem. Antes, durante e depois! Antes das torturas, executa um “trabalho preventivo”, no sentido de torná-las mais eficazes, procurando saber se há alguma doença, se o preso é cardíaco, etc. (a primeira “entrevista” antes das torturas de muitos que são conduzidos para o DOI-CODI/RJ é feita com o Dr. Carneiro, que vai às celas dos recém-chegados). Durante, executa também um “trabalho de prevenção”, no sentido de testar a resistência do torturado, e avaliar até que ponto ele pode agüentar. Depois das torturas, faz “curativos” quando “cuida” dos farrapos humanos em que o terror converte as pessoas para que, se necessário, voltem a ser torturadas (p. 99).
O trabalho de atendimento psicológico a militantes vítimas de torturas foi parte importante da atuação da Psicologia na retaguarda da luta, assim como no período posterior, já que as marcas se mantiveram por toda a vida dos torturados.
Sobre a importância dos atendimentos de militantes no período pós-ditadura, um caso é bem sintomático. Carlos Eugênio Paz da ALN, sucessor no comando militar de Joaquim Câmara Ferreira e Carlos Marighella que ficou conhecido por ter desferido os tiros que acabaram com a vida de Henning Boilesen – figura repudiada por sua participação no financiamento da repressão e em sessões de tortura no DOI-CODI16. Depois da luta armada, do exílio e do retorno ao Brasil, o primeiro agradecimento de um de seus livros, que carrega o singular título de Viagem à Luta Armada, vai à: “minha terapeuta Heloísa Abrantes, que me deu instrumentos para ser feliz” (Paz, 1996, p. 5).
A ditadura de classe e o pacto das elites: a forma democrática assume o poder
A forma democrática de dominação de classe no Brasil resultou de um processo lento, seguro e gradual, pelo qual se deu a passagem do poder executivo dos militares a um presidente civil que não foi eleito diretamente. Na verdade, a “transição” foi um acordo pactuado entre as elites econômicas para obter fins que a instrumentalidade militar já não poderia mais conseguir.
Novos conglomerados econômicos se desenvolveram e, com isso, a transição se deu de forma a consolidar a elite que havia florescido no interior da ditadura. Basta lembrarmos que grandes empreiteiras, que transnacionalizaram seu capital, só puderam se desenvolver com o apoio institucionalizado do terrorismo de Estado:
As três grandes empreiteiras da ditadura sobreviveram a ela até que, em 2014, foram apanhadas na Operação Lava-Jato. Sebastião Camargo, o “China”, morreu em 1994, deixando seu império para três filhas. […] A Camargo Corrêa foi a maior empreiteira do país de 1964 a 1985. Chegou a ser a maior do mundo. […] Roberto Andrade, fundador da Andrade Gutierrez (Itaipu), morreu em 2006 e a empresa passou a ser dirigida por um de seus filhos. Seu presidente foi preso em 2015 e meses depois a empresa passou a colaborar com as autoridades. Norberto Odebrecht, fundador e mola mestra da empreiteira que suplantou todas as demais, morreu em julho de 2014, aos 93 anos, meses antes do envolvimento de sua empresa nas investigações da Lava-Jato. Seu neto Marcelo, que comandava o grupo, foi preso em junho de 2015 (Gaspari, 2016, pp. 333-334. Destaques no original).
Por isso, pode-se afirmar que parte da corrupção que existe atualmente no interior do aparelho estatal brasileiro foi apenas fruto de um processo ampliado e fomentado durante os anos 1964–1985. A corrupção é a expressão nítida dos interesses de uma elite econômica que não mediu esforços para articular a instrumentalidade da repressão estatal e fazer valer seus interesses. A união entre capital internacional, capital nacional e Estado brasileiro formaram a santíssima trindade que constituiu o terrorismo como prática de estado. Contra eles, a insurgência dos de baixo e a luta das organizações, que tinham entre seus quadros, psicólogos e estudantes de Psicologia que não aceitaram o estado de terror.
Se de um lado, houve o silenciamento e complacência de frações inteiras da Psicologia, por outro, existiram aqueles que resistiram. A luta de classes, com todas as suas complexas contradições, se mostrou no interior da própria Psicologia. Sua história não seria mais a mesma17.
Recuperar a memória histórica, e a maneira pela qual são lembrados determinados fatos em detrimento do velamento e ocultação de outros, passa pela disputa dos instrumentos mnemônicos que se tornam disponíveis para as diferentes frações de classe na sociedade. Quem domina os instrumentos mediadores mnemônicos, domina a maneira pela qual se constrói a própria história. Não por acaso, Dom Paulo Evaristo, uma das incansáveis vozes de toda esta luta, com a sensibilidade que lhe era peculiar disse: “O “desaparecido” transforma-se numa sombra que ao escurecer-se vai encobrindo a última luminosidade da existência terrena” (Arquidiocese de São Paulo, 1985, p. 12). Contra o terrorismo de Estado em uma sociedade de classes, a lembrança retomada significa a instrumentalização para o desenvolvimento das novas gerações.