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Psicologia Social e Pesquisa com Memória: Método e Reparação de Danos da Ditadura Civil-Militar

Social Psychology and Memory Research: Method and Repair for Damages of the Civil-Military Dictatorship

Psicología Social e Investigación con Memoria: Método y Reparación de los Daños de la Dictadura Cívico-Militar

Resumo:

As marcas profundas deixadas pela ditadura civil-militar atingiram não somente os perseguidos políticos e seus familiares, mas todos cidadãos, pois seu legado permanece vivo ainda hoje na memória individual e memória social de todos. O fim da ditadura impôs silenciamento e esquecimento forçados, que impedem o direito à memória, verdade e justiça, bem como a elaboração dos danos produzidos. O enfrentamento de um problema político deve necessariamente atuar em seu caráter político, e não apenas no aspecto psicológico. Depois da Abertura, as possibilidades de reparação dos danos ficaram restritas a organizações sociais que prestaram assistência e atendimento psicológico em grupo. Recentemente, a criação das Clínicas do Testemunho e da Comissão da Verdade foi uma importante iniciativa do Estado em direção à averiguação dos crimes, ao reconhecimento público de suas responsabilidades, à politização do dano e a sua elaboração. Inicialmente, apresentaremos as Clínicas do Testemunho e a Comissão da Verdade como alternativas de reparação psíquica e política dos danos provocados pela ditadura civil-militar. Para, em seguida, discutirmos uma possibilidade metodológica de pesquisa com memória em Psicologia Social e possíveis contribuições dessa atuação para a reparação destes danos. A Psicologia Social atua na fronteira entre o indivíduo e o social, entre o psicológico e político, e é importante para a reparação dos danos da ditadura. O trabalho do psicólogo social com a evocação da memória pode contribuir tanto para elaboração e reflexão da experiência do depoente, quanto para a tarefa política de pensar seus fundamentos, para que esta experiência não se repita.

Palavras-chave:
Memória; Elaboração; Ditadura; Psicologia Social

Abstract:

The deep marks left by the civil-military dictatorship reached not only the politically persecuted and their families, but also every citizen. Its legacy remains alive today in individual memory and social memory of citizens. The end of the dictatorship imposed forced silence and forgetfulness, avoiding the right to memory, truth and justice, as well as the elaboration of the damage produced. Facing a political problem must necessarily involve its political aspect, and not only its psychological one. After the Opening, the possibilities for repair for damage were restricted to social organizations that provided assistance and group psychotherapy. Recently, the creation of the Clinics of Testimony and Truth Commission were important initiatives of the State towards the investigation of crimes, public recognition of their responsibilities, politicization of the damage and its elaboration. Initially, we intend to present the Clinics of Testimony and Truth Commission as psychic and political reparations of the damages caused by the civil-military dictatorship. Then, we discuss a methodological possibility of research involving memory in Social Psychology and possible contributions of this action for the repair of damages. Social psychology works at the boundary between the individual and the social spheres, between the psychological and political aspects, important for repairing the damage caused by dictatorship. The work of the social psychologist with the evocation of memory can contribute to both elaboration and reflection of the experience of the person who produces testimony, as to the political task of thinking its foundations, so that this experience is not repeated.

Keywords:
Memory; Elaboration; Dictatorship; Social Psychology

Resumen:

Las profundas cicatrices dejadas por la dictadura cívico-militar llegaron no solo a los perseguidos políticos y sus familias, sino también para todos los ciudadanos. Su legado sigue vivo hoy en día en la memoria individual y la memoria social de los ciudadanos. El fin de la dictadura impuso el silencio y el olvido forzado, evitando el derecho a la memoria, la verdad y la justicia, así como la elaboración de los daños producidos. El enfrentamiento de un problema político necesariamente debe actuar en su carácter político, y no solo en el aspecto psicológico. Después de la Apertura, las posibilidades de reparación de daños se limitaron a las organizaciones sociales que proporcionan asistencia y psicoterapia de grupo. Recientemente, la creación de la Clínica del Testimonio y Comisión de la Verdad fueron iniciativas importantes del Estado hacia la investigación de los delitos, el reconocimiento público de su responsabilidad, la politización de los daños y su elaboración. Inicialmente, presentaremos las Clínicas del Testimonio y la Comisión de la Verdad como alternativas de reparación psíquica y política de los daños provocados por la dictadura civil-militar. Luego discutiremos una posibilidad metodológica de investigación con memoria en Psicología Social y posibles contribuciones de esa actuación para la reparación de estos daños. La psicología social opera en el límite entre lo individual y lo social, entre lo psicológico y lo político, importante para la reparación del daño de la dictadura. El trabajo del psicólogo social con la evocación de la memoria puede contribuir tanto a la elaboración y reflexión de la experiencia del quien da testimonio, como a la tarea política de pensar sus fundamentos, por lo que esta experiencia no se repite.

Palabras clave:
Memoria; Elaboración; Dictadura; Psicología Social

La memoria que me persigue a mí no está en el Olimpo, sino en los rincones más sórdidos y tristes, y en la esperanza más obstinada del drama humano.

Ignacio Dobles Oropeza (2009)Oropeza, I.D. (2009). Memorias del Dolor: consideraciones acerca de las Comissiones de la Verdad en América Latina. Costa Rica: Arlekín.

Introdução

Este artigo foi desenvolvido com base no legado dos 21 anos de ditadura civil-militar no Brasil e seus impactos no cotidiano do brasileiro e naqueles que lutaram contra o regime autoritário. O objetivo deste escrito é apresentar uma possibilidade metodológica de pesquisa com memória com base na Psicologia Social e levantar possibilidades de reparação e elaboração que este trabalho com a memória possa oferecer.

Inicialmente, pretende-se: apresentar brevemente as Clínicas do Testemunho e as Comissões da Verdade como alternativas de reparação psíquica e política dos danos provocados pela ditadura civil-militar. Para, em seguida, discutir uma possibilidade metodológica de pesquisa com memória em Psicologia Social e possíveis contribuições dessa atuação para a reparação destes danos. Trata-se de uma articulação entre um método de pesquisa baseado na memória de depoentes e o contexto psicossocial que a ditadura civil-militar estabeleceu no Brasil. Nas palavras de Bosi (2009)Bosi, E. (2009). Memória e sociedade: lembrança dos velhos (3a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., pode-se dizer que a articulação proposta neste trabalho “situa-se na fronteira em que cruzam--se os modos de ser do indivíduo e da sua cultura (política): fronteira que é um dos temas centrais da psicologia social” (p. 37), fundamento principal deste texto. Em outras palavras, esta disciplina de fronteira caracteriza-se não pela focalização da subjetividade no homem separado, mas pela exigência de encontrar o homem na cidade, o homem no meio dos homens, a subjetividade como aparição singular, vertical, no campo intersubjetivo e horizontal das experiências (Gonçalves Filho, 1998aGonçalves Filho, J. M. (1998a). Humilhação social: um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11-67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
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).

Passadas mais de três décadas do fim da ditadura no país, uma nebulosidade ainda obscurece a verdade sobre os acontecimentos do regime e reluta abrir espaço para a justiça, memória e reparação. Esse fundo lodoso contribuiu para que a ditadura brasileira encontrasse diversas maneiras “de não passar, de permanecer em nossa estrutura jurídica, em nossas práticas políticas, em nossa violência cotidiana, em nossos traumas sociais que se fazem sentir mesmo depois de reconciliações extorquidas” (Safatle, & Teles, 2010, p. 09Safatle, V., & Teles, E. (2010). Apresentação. In V. Safatle, & E. Teles (Eds.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira (pp. 9-12). São Paulo, SP: Boitempo.).

De nossa história recente, ainda identificamos hoje o legado disciplinar do regime de intensa repressão militar que impôs, também durante a transição, um registro de silenciamento que, embora não proíba dizer, incita a calar (e esquecer), muitas vezes em meio a uma ofuscante prolixidade aparente (Kolker, & Mourão, 2002Kolker, T. & Mourão, J. C. (2002). Marcas Invisíveis ou Invisibilizadas?. In C. M. Rauter, E. Passos, & R. Benevides (Eds.). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos (pp 239-245). Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá.; Rodrigues, & Mourão, 2002Rodrigues, H. B. C., & Mourão, J. C. (2002). A herança da violência: o silêncio e a dor das famílias atingidas: aspectos do tratamento. In C. M. Rauter, E. Passos, & R. Benevides (Eds.), Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos (pp. 205-214). Rio de Janeiro, RJ: Instituto Franco Basaglia.). As estratégias de silenciamento e acobertamento dos crimes da ditadura impostas nos anos de redemocratização (e ainda hoje) relegam nossa história recente ao caráter de esquecimento institucionalizado.

Durante o regime, a política repressiva do Estado dirigiu-se não apenas ao opositor político, considerado inimigo interno, mas sua maquinaria de terror atingiu o campo social como um todo. A abrangência da violência se deu de modo que “a cultura da violência e do terror penetra dos espaços mais íntimos aos mais coletivos da vida social” (Almeida, 2002, p. 46Almeida, S.S. (2002) Violência e subjetividade. In C. Rauter, E. Passos, & R. Benevides (Eds.), Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos (pp. 45-50). Rio de Janeiro, RJ: Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá.), atravessando as instituições e instaurando a vigilância e o medo no cotidiano do brasileiro (Jardim, 2016Jardim, L. E. (2016). A ditadura militar na vida e no trabalho de cidadãos brasileiros. Um estudo de depoimentos (tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.).

Para além da obtenção de informação, o objetivo da tortura era fundamentalmente a quebra de toda e qualquer resistência e iniciativa do opositor e da população. A experiência clínica com atendimento às vítimas da ditadura, de Kolker e Mourão (2002)Kolker, T. & Mourão, J. C. (2002). Marcas Invisíveis ou Invisibilizadas?. In C. M. Rauter, E. Passos, & R. Benevides (Eds.). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos (pp 239-245). Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá., revelou que “os métodos utilizados tanto podiam ser físicos como psicológicos. Os últimos tinham a vantagem de não deixar marcas visíveis e seus efeitos serem mais duradouros” (p. 241). É fundamental entender que o impacto de toda tortura, necessariamente, resulta em marcas físicas e psicológicas. Não há tortura física que não tenha um impacto psicológico que não se desfaz (Arantes, 2013Arantes, M. A. A. C. (2013) Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

A violência não atingiu apenas aqueles que foram presos e torturados ou as mães que ainda hoje choram “a dor de quem viu um ente querido desaparecer atrás das grades da cadeia, sem mesmo poder adivinhar o que lhe aconteceu”, de acordo com o relatório Brasil Nunca Mais – BNM (Arns, 2009, p. 12Arns, P. E. (2009). Brasil: nunca mais. 38a ed. Petrópolis, RJ: Vozes.). Sua amplitude estende-se, por vezes, velada e insidiosa, a todo cidadão que viveu aquela época, e também aos que hoje, sem saber, transitam por entre os emaranhados ocultos da malha política tecida pelo regime. Para o historiador Coggiola (2001)Coggiola, O. (2001). Governos militares na América Latina. São Paulo, SP: Contexto., “as consequências desse período são sentidas até hoje, não se tratando de algo superado” (p. 9).

Seja pelas marcas pessoais que carregam, seja pelas mudanças nas condições de vida e de trabalho, muitos dos que sobreviveram à repressão tiveram suas vidas alteradas para sempre: perseguições, carreiras interrompidas, vocações abandonadas, exílios (Coggiola, 2001Coggiola, O. (2001). Governos militares na América Latina. São Paulo, SP: Contexto.; Jardim, 2016Jardim, L. E. (2016). A ditadura militar na vida e no trabalho de cidadãos brasileiros. Um estudo de depoimentos (tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.). A ausência de uma Justiça de Transição e de uma reparação dos danos da ditadura contribuíram para que o impacto da violência na população se estendesse após a redemocratização, presente ainda hoje também pelas marcas impostas nas relações cotidianas na cidade, no trabalho e nas relações sociais.

A ideologia dominante e os anos de negação desta violência pelo Estado ocultam o caráter político dessa violência e individualizam o sofrimento das vítimas diretas e indiretas. Sofrimentos políticos não são enfrentados apenas psicologicamente, uma vez que são políticos. Mas enfrentá-los politicamente inclui enfrentá-los psicologicamente (Gonçalves Filho, 2004Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo.; 2007Gonçalves Filho, J. M. (2007). Humilhação social: humilhação política. In B. P. Souza (Ed.), Orientação à queixa escolar (pp. 206-236). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.). Deste modo, qualquer possibilidade de elaboração deste tipo de dano deve, necessariamente, também perpassar a dimensão do político, da politização do dano (Brasil, 2012Brasil. Ministério da Justiça. Comissão de Anistia (2012). Edital da I Chamada Públic: Projeto Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia. Edital da Primeira Chamada Pública do Projeto Clínicas do Testemunho, da Comissão de Anistia, para formação de núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados pela violência de Estado no período abrangido pela Lei 10.559/02. Recuperado de http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletim/edicao24/edital_clinicas_do_testemunho.pdf
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; Kolker, 2009Kolker, T. (2009). Problematizaciones clínico-políticas acerca de la permanencia y transmisión transgeneracional de los daños causados por el terrorismo de Estado. In CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). Danõ Transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur (pp. 253-287). Santiago: LOM.; Kolker, & Mourão, 2002Kolker, T. & Mourão, J. C. (2002). Marcas Invisíveis ou Invisibilizadas?. In C. M. Rauter, E. Passos, & R. Benevides (Eds.). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos (pp 239-245). Rio de Janeiro: Instituto Franco Basaglia/Editora TeCorá.).

Até muito recentemente, todas as iniciativas de elaboração dos danos decorrentes da ditadura estavam concentradas nas mãos de associações e/ou organizações sociais1 1 Os Grupos Tortura Nunca Mais por todo o Brasil foram responsáveis por parte significativa dos atendimentos psicológicos às vítimas do regime civil-militar nos anos pós-democratização. Até a década de 2010, as principais publicações sobre clínica nessa área proviam da experiência do GTNM/RJ. , muitas vezes apoiadas por entidades internacionais. Dentre diversas outras atividades voltadas à elaboração de danos, essas organizações prestaram e prestam atendimento psicológico em grupo às vítimas da ditadura. Em 2013, com a instalação das Clínicas do Testemunho2 2 Ao longo dos dois editais das Clínicas do Testemunho, em 2012 e 2015, o projeto foi conduzido em São Paulo pelo Instituto Sedes Sapientiae, Instituto Projetos Terapêuticos e Margens Clínicas. por meio da Comissão da Anistia vinculada ao Ministério da Justiça, pela primeira vez, o Governo Federal financia um projeto de atendimento psicológico a sua população atingida pelas marcas da ditadura.

Outra importante contribuição para verdade e recuperação da memória são as comissões da verdade ao redor de todo o país, especialmente a Comissão Nacional da Verdade (Lei n° 12.528/2011, Brasil, 2011), instalada em 2012 e concluída em 10 de dezembro de 2014.

Essas medidas de reparação são fundamentais nesse processo, no entanto, não esgotam as possibilidades de reparação desses danos irreversíveis. Neste sentido, o psicólogo social, por atuar na fronteira entre psicológico e político, pode oferecer uma importante contribuição por meio da pesquisa com a memória. De modo complementar às outras iniciativas – e não substitutivo –, a pesquisa com a memória de pessoas que viveram o período da ditadura e/ou sofreram em decorrência da força do Estado autoritário atua na articulação entre o privado e o político. O tempo da memória é social. Descrever a substância social da memória – a matéria lembrada – revela que a lembrança é tanto individual quanto social. E, principalmente, esse trabalho deve prestar-se à reflexão e ao pensamento sobre os elementos sociais que fundam esta violência em sua especificidade.

A relevância do resgate da memória e reflexão sobre o esquecimento relativo a este período sombrio, não está apenas na elaboração individual daqueles que experienciaram diretamente a violência de Estado, mas também por seu caráter político, em direção à verdade e esclarecimento sobre a abrangência do impacto da barbárie da ditadura. Trata-se de um esforço visando não mais permitir que as ressonâncias autoritário-ditatoriais permaneçam na silenciosidade obscura do esquecimento, para romper com a proibição e clandestinidade de uma memória que ocupa a cena cotidiana e para que as memórias subterrâneas (Pollak, 1989Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15. Recuperado de http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf
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) da ditadura possam invadir os espaços públicos.

A partir das reflexões deste possível papel do psicólogo social no trabalho com a memória daqueles que viveram a ditadura, pretende-se que este artigo seja um pequeno eco para a voz das pessoas que lutaram e lutam quase solitárias pela memória, justiça e verdade em no Brasil. Concordamos com Coggiola (2001)Coggiola, O. (2001). Governos militares na América Latina. São Paulo, SP: Contexto. que “lutar pela memória, como arma de recusa ao atual estado de impunidade que perpassa aqueles anos, é transformar a capacidade de lembrar em instrumento político de mudança e justiça” (p. 62). Eis aqui um esforço para que a lembrança do passado ajude a compreender o presente e contribua para que a história não se repita e a violência de Estado não se perpetue.

Sobre a especificidade do dano produzido pela ditadura

Para que se possa pensar as possibilidades de reparação dos danos decorrentes da violação dos direitos humanos durante a ditadura, é fundamental que se faça algumas considerações sobre a especificidade do dano produzido por este tipo de violência.

O Estado tem como função principal proteger os cidadãos e garantir seus direitos e integridade física. Para este fim, é o único órgão que detém o poder de uso da violência. Quando esta violência se volta contra a mesma população que deveria ser protegida, o Estado transgride sua própria norma. Portanto, o que distingue um dano produzido por violência de Estado de outras formas de violência é seu caráter político, agravado pela relação com o momento histórico de gestão da ditadura, que repercutiu em exclusão social e destruição (Vital Brasil, 2009Vital Brasil, V. (2009). Efectos transgeneracionales del terrorismo de Estado: entre el silencio y la memoria. In CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). Danõ Transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur (pp. 289-325). Santiago: LOM.).

As ações do Estado durante a ditadura possuem abrangência para além do sofrimento individual dos perseguidos, e revelam seu fundamento político. Na medida em que se tratava de uma violência de um grupo ideológico contra outro, a repressão aos opositores do regime mostra-se como um processo político. Para Gonçalves Filho (1998aGonçalves Filho, J. M. (1998a). Humilhação social: um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11-67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
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; 2004Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo.; 2007Gonçalves Filho, J. M. (2007). Humilhação social: humilhação política. In B. P. Souza (Ed.), Orientação à queixa escolar (pp. 206-236). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.), os processos políticos informam a subjetividade, desdobram-se internamente, desdobram-se “para dentro”, mas um tal desdobramento sofre metabolismo pessoal e assume figura singular – metabolismo e figura que exigem detida consideração e consideração diferenciada. Sobre esse processo, Kolker (2009)Kolker, T. (2009). Problematizaciones clínico-políticas acerca de la permanencia y transmisión transgeneracional de los daños causados por el terrorismo de Estado. In CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). Danõ Transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur (pp. 253-287). Santiago: LOM. entende que todos somos afetados por esta violência, mas não se pode ignorar que aqueles atingidos diretamente pela violência carregam marcas distintas daquelas que afetam o conjunto da sociedade.

Um dano que possua, ao mesmo tempo, um caráter político e psicológico, não pode ser enfrentado apenas psicologicamente, uma vez que também é político. Mas enfrentá-lo politicamente inclui enfrentá-los psicologicamente (Gonçalves Filho, 2004Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo.; 2007Gonçalves Filho, J. M. (2007). Humilhação social: humilhação política. In B. P. Souza (Ed.), Orientação à queixa escolar (pp. 206-236). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.).

O reconhecimento público do dano é uma parte essencial do processo de reparação e elaboração. A elaboração de um acontecimento histórico-político necessariamente perpassa o reconhecimento público do acontecido e devida punição dos atores. O reconhecimento pelo Estado da própria responsabilidade pelo uso da violência durante a ditadura é um dos primeiros passos para a legitimação do sofrimento das vítimas e politização do dano. A memória não se constitui como um encapsulamento solitário, mas, com base na experiência, que é sempre experiência com o outro em meio a um determinado contexto histórico, delineiam-se as possibilidades e os modos de se estar em sociedade.

Atendimento psicológico e Clínicas do Testemunho

Com o fim da ditadura em 1985, algumas políticas públicas e o autoperdão impostos pelos próprios torturadores instalaram uma atmosfera de silenciamento e obscurecimento que, pela negação, inibiu a possibilidade de elaboração da memória coletiva da ditadura. A tortura, o silenciamento e a impunidade, juntamente com a aprovação da violência por uma parcela significativa da população, relegaram o sofrimento dessa violência à dimensão somente individual. O silenciamento e a desresponsabilização do Estado pelas próprias ações repressivas estabeleceram uma espécie de legitimação pública desta violência e de deslegitimização do sofrimento, mantendo-o no âmbito privado, no isolamento e desamparo.

Esta privatização dos danos e desamparo às vítimas repercutiu também nas parcas possibilidades de elaboração existentes no período de redemocratização. Desde o fim do regime autoritário, as possibilidades de elaboração desse sofrimento concentraramse em organizações sociais mantidas por doações e recursos de entidades internacionais, na maioria das vezes, sem apoio algum do Governos Federal. Dentre estas organizações sociais, os Grupos Tortura Nunca Mais em todo o Brasil têm grande importância na luta pelo direito à memória e verdade e prestação de atendimento psicológico às vítimas do regime. Os membros do Rio de Janeiro (GTNM-RJ) merecem destaque pela ampla gama de atividades psicológicas promovidas com este propósito e pelas publicações de seus trabalhos (CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC, 2009CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). (2009). Danõ transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur. Santiago: LOM.; Mourão, 2009Mourão, J. C. (Ed.). (2009). Clínica e política 2: subjetividade, direitos humanos e invenção de práticas clínicas. Rio de Janeiro, RJ: Abaquar:; Rauter, Passos & Benevides, 2002Rauter, C. M., Passos, E., & Benevides, R. (Eds.) (2002). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Franco Basaglia.) nas primeiras décadas após o fim do regime.

Para o GTNM-RJ, a clínica tem um caráter político. Isto significa entender sua implicação com as políticas de subjetivação, seja em sentido da reprodução como da desconstrução da subjetividade instituída (Kolker, 2009Kolker, T. (2009). Problematizaciones clínico-políticas acerca de la permanencia y transmisión transgeneracional de los daños causados por el terrorismo de Estado. In CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). Danõ Transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur (pp. 253-287). Santiago: LOM.; Mourão, 2009Mourão, J. C. (Ed.). (2009). Clínica e política 2: subjetividade, direitos humanos e invenção de práticas clínicas. Rio de Janeiro, RJ: Abaquar:; Rauter et al., 2002Rauter, C. M., Passos, E., & Benevides, R. (Eds.) (2002). Clínica e política: subjetividade e violação dos direitos humanos. Rio de Janeiro, RJ: Instituto Franco Basaglia.; Vital Brasil, 2009Vital Brasil, V. (2009). Efectos transgeneracionales del terrorismo de Estado: entre el silencio y la memoria. In CINTRAS, EATIP, GTNM/RJ, SERSOC (Eds.). Danõ Transgeneracional: consecuencias de la represion política en el Cono Sur (pp. 289-325). Santiago: LOM.).

No que se refere ao atendimento psicológico às vítimas da ditadura, a modalidade grupal tem uma importância significativa pelo compartilhamento com outros que viveram sofrimento semelhante. A modalidade em grupo já é um grau de politização do dano. No grupo, o absolutamente esquecido, aquilo que permanece obscuro, espalhando suas raízes subterrâneas que alimentam o existir com a seiva da violência sofrida, pode ganhar certa voz e atingir alguma elaboração (Jardim, 2014Jardim, L. E. (2014). Contribuições fenomenológico-hermenêuticas à psicoterapia de grupo para vítimas de violação dos direitos humanos. Fenomenologia e Psicologia, 2(1), 35-53.).

O grupo é lugar de pensar junto, o que se aproxima do que Arendt (2000)Arendt, H. (2000) A vida do Espírito. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará. chamou de ato de julgar. No entendimento de Gonçalves Filho (2004)Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo., com base no pensamento de Arendt, o julgamento é uma experiência que acontece em meio aos outros e implica o pensar e também o conversar; é o pensamento que conversa com o pensamento dos outros: “as visões parecem desembaçar, porque vão passando por vários olhos que tocaram seus pontos de vista. Começo respondendo pelo que vejo e passo para o que vêem os outros” (p. 14).

O pensamento que conversa com o pensamento do outro é um elemento da politização do dano. A politização do dano retira-o da esfera isolada do “eu” para olhá-lo em suas irradiações na coexistência. Em um grupo de psicoterapia, conseguindo-se estabelecer um espaço de acolhimento e confiança entre os membros daquele microcosmo, abre-se também para que cada um seja tal como ele é na relação de um com o outro (Jardim, 2012Jardim, L. E. (2012). Mundo como fundamento da psicoterapia de grupo fenomenológica. Estudos e Pesquisa em Psicologia, 12(3), 938-951.). Ser tal como se é em grupo, a partir do dano, abre a possibilidade inicial de lidar com o dano em seu caráter político e não apenas individualizado. No que concerne à elaboração psicológica do sofrimento de cada participante do grupo, cada um processará esses danos em diferentes graus e modos, de acordo com as possibilidades ao seu alcance. Contudo, é importante ressaltar que, para os danos produzidos pela violência de Estado com a tortura, perseguição, extermínio, desaparecimento de corpos, não existe reparação e elaboração plenas. A experiência como ex-presa política e como psicóloga de Arantes (2013)Arantes, M. A. A. C. (2013) Tortura: testemunhos de um crime demasiadamente humano. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo. nos alerta que “as consequências do excesso e da crueldade produzidas pela tortura não se extinguem e nada do que uma vez se formou pode perecer” (p. 386). A reparação e elaboração serão sempre parciais e, prioritariamente, simbólicas.

Outra importante inciativa nesse âmbito são as Clínicas do Testemunho, via Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. No ano de 2013, passados quase 30 anos do fim da ditadura, entrou em vigor a primeira iniciativa do Governo Federal com o intuito de promover a elaboração psicológica dos danos das vítimas do regime autoritário. O projeto oferece atendimento psicológico de grupo às vítimas da ditadura numa parceria do Estado com a iniciativa privada, visando reparações coletivas, projetos de memória e ações para a não repetição com o claro objetivo de permitir a toda a sociedade conhecer, compreender e, então, repudiar tais erros (Brasil, 2012Brasil. Ministério da Justiça. Comissão de Anistia (2012). Edital da I Chamada Públic: Projeto Clínicas do Testemunho da Comissão de Anistia. Edital da Primeira Chamada Pública do Projeto Clínicas do Testemunho, da Comissão de Anistia, para formação de núcleos de apoio e atenção psicológica aos afetados pela violência de Estado no período abrangido pela Lei 10.559/02. Recuperado de http://www.sedes.org.br/Departamentos/Psicanalise/boletim/edicao24/edital_clinicas_do_testemunho.pdf
http://www.sedes.org.br/Departamentos/Ps...
).

As Clínicas do Testemunho têm um caráter político. O grupo de psicoterapia é parte de um processo de elaboração de um dano, que, muito antes, é um dano a um povo, não circunscrito “apenas” aos afetados diretamente. Neste sentido, para que a psicoterapia de grupo não “saia pela culatra” e, ingenuamente, reforce ainda mais o caráter de dominação reforçado pelo regime, é de fundamental importância que o psicólogo de um grupo de vítimas com essa especificidade tenha profundo conhecimento e crítica em relação à história e aos acontecimentos políticos em jogo na ditadura civil-militar brasileira. É fundamental que o terapeuta esteja intimamente implicado com a questão e com os participantes do grupo, cuidando para que esta prática, em hipótese alguma, se preste a reproduzir o discurso do opressor e a individualizar ainda mais o sofrimento daqueles que foram mais diretamente afetados3 3 Em 2016, com o impeachment da Presidenta eleita, as verbas para a Comissão da Anistia foram cortadas e as Clínicas do Testemunho somente puderam manter-se, reduzidamente, com financiamento britânico do Fundo Newton. .

Memória, comissões da verdade e reparação política

A partir do ano 2012 no Brasil, dezenas de comissões da verdade – municipais, estaduais, em universidades e entidades de classe – atuaram em parceria com a Comissão Nacional da Verdade. As comissões são órgãos oficias de investigação e apuração de abusos e violações dos direitos humanos com importância fundamental para a reelaboração da memória histórica do país.

O artigo 1° da Lei n° 12.528 de 2011, que cria a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, estabelece a necessidade “de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional” (Brasil, 2011Brasil. (2011, 18 de novembro). Lei Nº 12.528, de 18 de novembro de 2011. Cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República. Diário Oficial da União.). Seu principal objetivo é possibilitar o estabelecimento de um registro apurado do passado histórico e dar voz às vítimas caladas pelo terror e relegadas ao esquecimento, para assim, “descobrir, esclarecer e reconhecer abusos do passado” (Núcleo de Preservação da Memória Política, s.d., p. 8Núcleo de Preservação da Memória Política - São Paulo – NPMP (Eds.). (s. d.). A Comissão da Verdade no Brasil – Por quê, O que é, O que temos de fazer?. São Paulo, SP: Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, da Cidadania, da Participação e das Questões Sociais.).

As comissões da verdade pretendem estabelecer o direito à memória e buscar respostas sobre a violência imposta no passado, na maioria das vezes, ocultas pelas forças hegemônicas do país. Sua ação repercute no âmbito coletivo da memória social. A relevância da luta pelo direito à memória e o enfrentamento dos danos políticos permanentes provocados em nosso passado recente estão em “lembrar de onde vem o que impede nossa experiência democrática de avançar” (Safatle, & Telles, 2010, p. 11Safatle, V., & Teles, E. (2010). Apresentação. In V. Safatle, & E. Teles (Eds.). O que resta da ditadura: a exceção brasileira (pp. 9-12). São Paulo, SP: Boitempo.).

Por se tratar de uma iniciativa do Estado para investigação de suas próprias ações e pelo caráter de garantia do direito à memória e verdade, as comissões da verdade são um primeiro reconhecimento da própria responsabilidade do Estado nos crimes da ditadura e reparação de danos. Reparação não significa aceitar o dano, tampouco adequar ou apaziguar a dor. Não há aceitação cabível para a violência. Muito pelo contrário, antes de tudo, reparar é dar voz e reconhecimento ao sofrimento. Dar um lugar ao sofrimento e escutá-lo. A partir deste lugar, podem surgir o questionamento e a crítica e, talvez, novas ações.

Apesar da inegável importância dos trabalhos das comissões da verdade, enquanto recuperação de uma memória dos acontecimentos da ditadura e da responsabilização do Estado, o trabalho com a memória pode ainda ir além destas possibilidades.

Bosi (2003)Bosi, E. (2003). O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo, SP: Ateliê Editorial. indica que “nos depoimentos biográficos é evidente o processo de re-conhecimento e de elucidação” (p. 33). No entanto, o trabalho amplo das comissões não consegue acolher suficientemente o sofrimento do depoente, que rememora experiências dolorosas, e em sua evocação da lembrança, pode acessar zonas obscuras que há muito permaneciam esquecidas.

Sobre método de pesquisa com memória e a possibilidade de reparação de danos

A pesquisa com a memória não se resume à transcrição do relato do depoente. Bosi (2009)Bosi, E. (2009). Memória e sociedade: lembrança dos velhos (3a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras. ressalta que “uma lembrança é diamante bruto que precisa ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma imagem fugidia” (p. 81). A escuta da memória exige que se debruce sobre sua história, visões de mundo, os sentimentos e esquecimentos, sobre aquilo que foi escolhido ser contado, no modo como foi contado. A atuação do psicólogo social busca abrir a possibilidade de realizar um trabalho, ao mesmo tempo que ampliado e social, também aprofundado e íntimo com o depoente e a memória. “Uma pesquisa é um compromisso afetivo, um trabalho ombro a ombro com o sujeito da pesquisa” (Bosi, 2009, p. 38Bosi, E. (2009). Memória e sociedade: lembrança dos velhos (3a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.).

O trabalho de pesquisar a memória das vítimas dos crimes da ditadura perpassa a realização de entrevistas que permitam a aproximação mais livre e a recuperação da memória dos depoentes. A interrogação pela memória garante a permanência na questão, ao mesmo tempo em que, quando posta em movimento, traz consigo todas as outras funções psicológicas do pensamento, sentimento e elaboração.

Na entrevista, um aspecto fundamental a ser considerado é a escolha das perguntas e a postura na condução do encontro, de modo que o roteiro deve suscitar a narrativa sobre uma experiência, a expressão informada pela memória do depoente (Gonçalves Filho, 2005Gonçalves Filho, J. M. (2005). Problemas de método em Psicologia Social: algumas notas sobre a humilhação política e o pesquisador participante. In A. M. B. Bock (Ed.), Psicologia e compromisso social (pp. 193-239). São Paulo, SP: Cortês.). A elaboração do roteiro das entrevistasdepoimentos visa superar a cristalização da opinião e evitar a possibilidade de o depoimento decair em uma articulação de conceitos ou um punhado de ideias abstratas, sem conteúdo. Ao mesmo tempo, deve permitir reflexão, discussão e, possivelmente, alguma elaboração do sofrimento. As perguntas devem servir de iscas para a lembrança que não deve sofrer interrupções inconvenientes e abruptas que busquem adequar a narrativa a uma sequência esperada pelo entrevistador. Sobre o roteiro e a condução da entrevista, Svartman (2010)Svartman, B. P. (2010). Trabalho e desenraizamento operário: um estudo de depoimentos sobre a experiência de vida na fábrica (Tese de doutorado). Universidade de São Paulo, SP. sintetiza: “o entrevistador deve acompanhar o depoente pelas regiões apresentadas, jamais tentar reduzir a complexidade do que observa ou forçar a passagem por espaços em que não foi convidado” (pp. 42-3).

A atuação do psicólogo social na interrogação pela memória é uma tarefa a ser realizada como caminho de enfrentamento político e psicológico. A evocação da lembrança da experiência das vítimas da ditadura pretende alcançar elementos que permitam uma atenção concreta, e não abstrata, sobre o que se passou com todos os cidadãos. Os depoentes são pessoas que têm a possibilidade de se pronunciar sobre uma experiência própria de sofrimento, a respeito da qual muitos brasileiros estão implicados politicamente e também são afetados.

Sobre os depoimentos, ouçamos as palavras de Bosi (2003)Bosi, E. (2003). O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo, SP: Ateliê Editorial.:

“grande mérito dos depoimentos é a revelação do desnível assustador de experiência vivida nos seres que compartilham a mesma época; a do militante penetrado de consciência histórica e a dos que apenas buscam sobreviver” (p. 19).

O esforço na escuta da memória perpassa também a lapidação da memória do militante para encontrar, em um relato mais consciente, traços psicossociais pertinentes à vida cotidiana de muitos outros brasileiros (Jardim, 2016Jardim, L. E. (2016). A ditadura militar na vida e no trabalho de cidadãos brasileiros. Um estudo de depoimentos (tese de doutorado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.). Traços que desvelem a experiência de cidadania interrompida, de vigilância constante, medo, censura e autocensura, mesmo que muitos nem se apercebessem disso.

A possibilidade de que a pesquisa com a memória contribua, em algum grau, com a reparação de danos ganha corpo na própria relação do depoente com sua memória (e esquecimento) e no convite à reflexão, próprio da pesquisa. A lembrança remete ao modo como entendemos a nós mesmos em determinada situação, remete à significação e aos sentidos do recordado e, inevitavelmente, aos afetos e emoções da experiência. Entendemos que a recuperação da memória é um modo de registro de como “a pessoa sofre e habita a experiência comum: em alguma medida, sofrendo-a, vem afetá-la por traços originais, por qualidades surpreendentes que tornam irredutível a fisionomia de cada homem” (Gonçalves Filho, 1998a, p. 3Gonçalves Filho, J. M. (1998a). Humilhação social: um problema político em psicologia. Psicologia USP, 9(2), 11-67. https://doi.org/10.1590/S0103-65641998000200002
https://doi.org/10.1590/S0103-6564199800...
).

No processo de entrevista, o cuidado deve levar em conta a complexidade da experiência pessoal do depoente, considerar que a memória remete também a áreas densas e sombrias da biografia de cada um e a obstáculos e/ou regiões abandonadas ou claras da história de cada um (Bosi, 2003Bosi, E. (2003). O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo, SP: Ateliê Editorial.; 2009Bosi, E. (2009). Memória e sociedade: lembrança dos velhos (3a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras.). A própria extensão do encontro admite que a entrevista possa tornar-se, assim, um valoroso momento de elaboração da experiência, podendo conduzir a consciência por veredas ainda mais longe nos depoimentos.

No curso da pesquisa, a transcrição das entrevistas para revisão do seu conteúdo pelos depoentes também pode favorecer a oportunidade de apropriação de suas memórias e de aspectos esquecidos, que possam vir ou ter vindo à tona e, talvez abrir para alguma elaboração.

O acesso à memória a partir da interrogação da experiência na ditadura pode trazer elementos concretos que contribuam tanto para alguma reparação de danos individualmente aos depoentes, quanto para futuras análises sobre as marcas deixadas pelo regime autoritário na experiência coletiva do brasileiro, enfrentando um aspecto político da questão.

Uma análise qualitativa das entrevistas, buscando discutir as dimensões psicossociais da ação política ditatorial sobre o cidadão, possibilita identificar e articular impactos do regime militar na vida do cidadão brasileiro. Trata-se de uma análise que leva em conta os elementos concretos que emergem da memória dos depoentes sobre a experiência cotidiana na ditadura. Aprendemos com Gonçalves Filho (2004)Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo. que “a luta por cancelar a dominação passa por também pensar o seu fundamento” (p. 18). De modo que a análise proposta para o trabalho com a memória torna-se relevante na medida em que possibilite pensar o fundamento desta violência, e contribua para a luta contra as heranças do regime autoritário.

Reparação coletiva na pesquisa com memória

Como sugestão de caminho metodológico para análise da memória dos depoentes – que permita a reflexão sobre fundamentos da ditadura e sua violência –, recomenda-se uma pesquisa histórica que retome as origens e o desenvolvimento das estruturas sociais e econômicas de dominação no Brasil. O amplo conhecimento das raízes históricas brasileiras – assim como o aprofundamento nas características constitutivas próprias do regime civil-militar brasileiro – permite alcançar maior clareza na compreensão da inserção da ditadura e suas ações no percurso deste processo histórico. Mas, sobretudo, é essa relação que permitirá pensar as condições que fundamentam a possibilidade de um fenômeno como a ditadura e a intensa repressão que se passou. Pensar o fundamento da dominação é essencial como reparação coletiva dos danos da ditadura e para que essa violência estanque e não se repita.

A desigualdade corresponde a um fato histórico-político anterior ao capitalismo e nele renovado. Fomos precedidos por sociedades que admitiam soluções pela monarquia, oligarquia, escravismo e servidão. O poder ficou confundido com a força de alguns, a força de comandar e coagir, a força que se tornou força econômica e força armada (Gonçalves Filho, 2004Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo.). As ações do regime autoritário aprofundaram as marcas da concentração de renda e desigualdade social, contribuindo para a intensificação da concentração econômica e de poder nas mãos de uma elite minoritária. Para Furtado (2002)Furtado, C. (2002). Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea. São Paulo, SP: Paz e Terra., “o autoritarismo político, que a partir de 1964 neutralizou por duas décadas todas as formas de resistência dos excluídos, exacerbou as tendências perversas do nosso desenvolvimento mimético” (p. 32). O autor analisa que esse processo “abriu espaço para a concentração do poder econômico e para a emergência das estruturas transnacionais” (p. 10).

O crescimento do setor industrial no Brasil na segunda metade do século XX e, posteriormente, o chamado “milagre econômico” no início dos anos 1970, somados ao aumento de renda per capita do conjunto da população “não são suficientes para provocar modificações significativas da estrutura ocupacional do país” (Furtado, 2002, p. 31Furtado, C. (2002). Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea. São Paulo, SP: Paz e Terra.), não refletindo ganhos e benefícios proporcionais à população. Pelo contrário, esse crescimento foi absorvido por uma pequena parcela dominante, ampliou o abismo social e reforçou “tendências atávicas da sociedade ao elitismo e à exclusão social” (Furtado, 2002, p. 27Furtado, C. (2002). Em busca de novo modelo: reflexões sobre a crise contemporânea. São Paulo, SP: Paz e Terra.).

Levar em conta a formação econômica e social do Brasil, anterior ao Golpe Civil-militar, é um importante passo para que, na análise e reflexão da memória dos depoentes, seja possível refinar a compreensão da experiência das vítimas, bem como identificar e pensar as peculiaridades desse acontecimento em um âmbito político.

O aspecto da elaboração política dos danos da ditadura a partir da análise e reflexão sobre a memória não parte de uma proposta de amostragem, tampouco busca apurar o caráter de veracidade das informações fornecidas, mas busca ter acesso à experiência de quem viveu durante o período da ditadura militar, com as afetividades e emoções que os dados e relatórios de época não podem transmitir. Recorrendo às palavras de Bosi (2009)Bosi, E. (2009). Memória e sociedade: lembrança dos velhos (3a ed.). São Paulo, SP: Companhia das Letras., concordamos que “este registro alcança uma memória pessoal que, como se buscará mostrar, é também uma memória social, familiar e grupal” (p. 37).

Para Arendt (2003)Arendt, H. (2003) A condição humana (10a ed., R. Raposo, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária., somente o homem é capaz de se relacionar e exprimir a igualdade e a diferença. E somente o homem, por meio da ação e discurso, pode comunicar a si próprio, e não apenas comunicar alguma coisa ou necessidade:

“Na ação e no discurso, os homens mostram quem são, revelam ativamente suas identidades pessoais e singulares, e assim apresentam-se ao mundo, […] na conformação singular do corpo e no som singular da voz” (Arendt, 2003, p. 192Arendt, H. (2003) A condição humana (10a ed., R. Raposo, trad.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.).

No discurso, o homem não revela apenas quem é e a constituição de suas relações, mas também o contexto no qual está inserido e sua compreensão deste. Em outras palavras, na fala, o mundo se revela em sua rede de significações compartilhadas. Nos depoimentos das vítimas, portanto, deve-se explicitar não somente a constituição deste imaginário da sociedade, todo o contexto político e social no qual a experiência lembrada aconteceu, como também revelar quem são estes cidadãos.

Uma análise desta base material, que emerge da memória dos depoentes, é o substrato para que os fundamentos das relações de dominação na ditadura e a violência do período possam ser pensados e elaborados. Mas pensar estes fundamentos não é um pensar isolado, é imprescindível que este pensar seja uma conversa. A conversa, no sentido pensado por Arendt (2000)Arendt, H. (2000) A vida do Espírito. Rio de Janeiro, RJ: Relume-Dumará., é a troca entre o pensamento de um com o pensamento do outro. Na conversa cada um é tocado e transformado pelo pensamento e opinião do outro. A conversa coloca a alternância dos interlocutores, os sentidos e novos sentidos vão e vêm e se constroem no respeito às opiniões alheias (Gonçalves Filho, 2004Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo.).

O exercício do pensar e a troca pela conversa possibilita um deslocamento do lugar familiar. Abre a possibilidade de se fazer uma experiência, isto é, ser tocado por algo que nos vem ao encontro, ser atravessado e transformado por uma outra compreensão. A conversa põe em movimento a essência do pensar compartilhado e rompe com o instituído, podendo inaugurar novos sentidos e visões de mundo, alargar as compreensões sobre a cidade, sobre as relações de uns com os outros e inaugurar novos modos de ser.

O direito à memória e à verdade são peças centrais no processo de reparação e elaboração das marcas deixadas pelos vinte e um anos de regime autoritário. Reparação nunca pode ser entendida como um ponto final que reinstala um esquecimento, mas como processo, conversa perene, algo que mantém viva a lembrança de uma história que não pode ser esquecida. É a conversa pensante e constante sobre os fenômenos que marcaram a ditadura e a violência do regime, que não permite que a história de dominação e violência caia no esquecimento e impeça que, mais uma vez, os mesmos fundamentos atuem cegamente na população.

Reparação é ponto de partida para um outro modo de pensar a sociedade, um início de novos modos de relações, uma vez que ficaram explícitos os desdobramentos do modelo antigo. Significa manter politicamente viva a memória daquilo que somos e do que podemos fazer uns com os outros, possibilitar novos modos de ser e reorganizar a cultura. Enquanto conversa que se mantém viva, reparar os danos possibilita que uma ditadura como a que vivemos e golpes antidemocráticos não se repitam mais.

O direito à verdade é o direito à democracia. É direito ao diálogo, à escuta e à voz do cidadão. É o poder construído na pluralidade do humano, na convivência entre diferentes, é o poder que surge da igualdade de direitos entre os homens e da liberdade. Com base no pensamento de Hannah Arendt, ouçamos Gonçalves Filho (2004)Gonçalves Filho, J. M. (2004). A invisibilidade pública (prefácio). In F. B. Costa, Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social (pp. 1-27). São Paulo, SP: Globo. sobre a verdade, em seu entendimento político:

“resultado crescente e nunca terminado do diálogo entre cidadãos. […] A verdade imanta acordos ou desacordos entre as primeiras opiniões cruzadas. Conduz, sem parar, a um ponto cada vez maior e mais complexo, porque alcança, reúne e supera pontos de vista particulares” (p. 26).

Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é lutar contra o esquecimento. É tarefa de todo cidadão brasileiro. As marcas produzidas pela ditadura afetaram e afetam toda população: os que foram perseguidos pelo regime, os que se calaram, os que seguiram sua vida como se nada acontecesse e também aqueles que, muito depois, já nasceram em uma história obscurecida pelos véus do silenciamento, sobre as tramas ocultas que continuam à espreita, exercendo sua força e violência.

Aprendemos com Bosi (2003)Bosi, E. (2003). O tempo vivo da memória: ensaios de psicologia social. São Paulo, SP: Ateliê Editorial. que

“quando as relações, as leis do sistema, não são evidentes, ficam em nosso conhecimento lacunas entre a ação e a consequência. Compreender a ação social nos torna participantes inteligentes desse campo mutuamente compartilhado” (p. 118).

O esquecimento obscurece o campo social, o campo da experiência compartilhada e política. As memórias esquecidas e tamponadas pela história dominante continuam a atuar silenciosamente no subterrâneo (Pollak, 1989Pollak, M. (1989). Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, 2(3), 3-15. Recuperado de http://www.uel.br/cch/cdph/arqtxt/Memoria_esquecimento_silencio.pdf
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). O esquecimento é a maior arma a favor da manutenção do status quo e da permanência das marcas produzidas pelas diversas violências perpetradas à sociedade durante a ditadura. Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é lutar contra o esquecimento!

Considerações finais

As ações do Estado durante ditadura civil-militar imprimiram marcas profundas na história do Brasil. Marcas estas que permanecem arraigadas na estrutura social, econômica e trabalhista do país, não restringindo seu impacto à vida daqueles que foram presos, perseguidos, torturados ou tiveram familiares nestas condições, mas atingindo também a todos brasileiros.

As marcas da ditadura permanecem na memória individual de quem foi vítima da força autoritária do Estado e daqueles que, em algum momento, sentiram medo, sufocamento, impotência ou revolta com o que se passou; e permanecem também na memória coletiva de uma sociedade que foi forçada a silenciar mais uma vez, mesmo terminada a ditadura.

O fim do regime militar foi caracterizado por mais uma violência social. A imposição do autoperdão aos torturadores e assassinos do regime, o não reconhecimento pelo Estado da tortura e de sua responsabilidade nos crimes, bem como as barreiras para averiguação das violências cometidas e silenciamento das vítimas criaram uma atmosfera de obscurecimento e esquecimento forçado. O processo de Abertura “lenta, gradual e segura” promovido pelo regime impediu que o Estado democrático se consolidasse, conservando até hoje marcas do autoritarismo em sua estrutura debilitada.

Apesar do longo atraso e de haver ainda extenso caminho pela frente em diversos âmbitos, pela primeira vez o Estado financiou ações visando a apuração (mesmo que parcial) dos crimes da ditadura, ações de reparação financeira (desde 1995) e psicológica às vítimas e familiares (2013–2016). Pela primeira vez houve um esforço real do Estado em direção ao direito à memória e verdade, em direção ao combate do esquecimento institucionalizado imposto com a redemocratização – exceto no campo da justiça, onde os avanços foram ínfimos. Hoje, o Brasil é o país da América Latina que mais abriu seus arquivos à população4 4 Informação amplamente debatida por historiadores de todo o Brasil na III Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos (2015), organizada pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul (Apers) em Porto Alegre-RS. Parte dos arquivos considerados mais importantes para averiguação da ditadura ainda permanecem fechados ao acesso: arquivos das Forças Armadas e os documentos secretos e ultra-secretos do Governo. Episódios e personagens significativos da história do golpe de 1964 e do regime civil-militar no Brasil vieram ao conhecimento público graças à liberação de documentos oficiais dos EUA e da CIA relativos ao período. , sendo que boa parte já está disponível para consulta na internet. No entanto, com o impeachment de 2016, estas medidas de reparação e elaboração dos danos da ditadura sustentadas pelo Estado foram extintas, voltando às mãos das poucas organizações sociais capazes de levantar recursos privados para a manutenção parcial de seus trabalhos.

Apesar da atmosfera de obscurecimento, alguns núcleos da Psicologia e algumas organizações sociais ativas nunca adormeceram ou silenciaram sua luta pelo direito à memória, verdade e justiça. Estes núcleos, nunca deixaram de lado os esforços pela elaboração dos danos produzidos pelo regime autoritário. Elaborar é antes de tudo dar voz e reconhecimento ao sofrimento. Dar um lugar ao sofrimento e escutá-lo. A partir deste lugar pode surgir questionamento, crítica e ações. Mas a elaboração não pode circunscrever sua ação “apenas” ao caráter psicológico das vítimas diretas do regime. A violência da ditadura é um problema político, e como tal, uma elaboração dos danos deve necessariamente ser enfrentada psicologicamente, mas também politicamente. É importante ressaltar que nenhuma das possibilidades de elaboração é completa e se esgota em si, mas devem complementar suas ações nos aspectos políticos e psicológicos.

Iniciativas como as Clínicas do Testemunho (2013–2016) e a Comissão Nacional da Verdade (2012–2014) são de significativa importância na tarefa de elaboração individual e coletiva dos danos produzidos pela ditadura. Além da importância na apuração dos crimes da ditadura, as comissões da verdade também são parte do reconhecimento público do Estado da sua responsabilidade nas ações do regime autoritário.

Outra possibilidade apresentada, a pesquisa com memória em Psicologia Social, por ser uma prática que atua numa região fronteiriça entre os modos de ser individuais e sociais (políticos), também tem um papel importante na possibilidade de elaboração dos danos da ditadura. O trabalho ombro a ombro com a memória das experiências das vítimas da ditadura pode abrir a possibilidade de elaboração dos danos no caráter individual do depoente, como também a memória pode trazer uma base concreta de material para reflexão compartilhada e elaboração em seu caráter político e social. A evocação da memória traz à tona toda rede de significado na qual se constituiu a experiência e abre à rearticulação de sentidos. No desvelamento dessa significância, desvela-se também o fundamento no qual se assentam e determinam a compreensão de si e as possibilidades cotidianas. O trabalho do psicólogo social a partir da memória da ditadura visa trazer ao diálogo pensante os fundamentos da barbárie. Uma escuta à voz do cidadão. E assim, contribuir democraticamente para a constituição do poder construído na pluralidade do humano, na convivência entre diferentes, é o poder que surge da igualdade de direitos entre os homens e da liberdade.

O direito à memória, verdade e justiça são elementos centrais para que haja uma elaboração política e psicológica dos danos produzidos pela ditadura. Lutar pelo direito à memória, verdade e justiça é lutar contra o esquecimento. Elaboração é o ponto de partida para um outro modo de pensar a sociedade, a inauguração da possibilidade de não repetição. A memória mantém politicamente vivo aquilo que somos e o que podemos fazer uns com os outros, possibilitando novos modos de ser, mas, sobretudo, que novos golpes e uma ditadura como a que vivemos não se repitam mais.

  • 1
    Os Grupos Tortura Nunca Mais por todo o Brasil foram responsáveis por parte significativa dos atendimentos psicológicos às vítimas do regime civil-militar nos anos pós-democratização. Até a década de 2010, as principais publicações sobre clínica nessa área proviam da experiência do GTNM/RJ.
  • 2
    Ao longo dos dois editais das Clínicas do Testemunho, em 2012 e 2015, o projeto foi conduzido em São Paulo pelo Instituto Sedes Sapientiae, Instituto Projetos Terapêuticos e Margens Clínicas.
  • 3
    Em 2016, com o impeachment da Presidenta eleita, as verbas para a Comissão da Anistia foram cortadas e as Clínicas do Testemunho somente puderam manter-se, reduzidamente, com financiamento britânico do Fundo Newton.
  • 4
    Informação amplamente debatida por historiadores de todo o Brasil na III Jornada de Estudos sobre Ditaduras e Direitos Humanos (2015), organizada pelo Arquivo Público do Rio Grande do Sul (Apers) em Porto Alegre-RS. Parte dos arquivos considerados mais importantes para averiguação da ditadura ainda permanecem fechados ao acesso: arquivos das Forças Armadas e os documentos secretos e ultra-secretos do Governo. Episódios e personagens significativos da história do golpe de 1964 e do regime civil-militar no Brasil vieram ao conhecimento público graças à liberação de documentos oficiais dos EUA e da CIA relativos ao período.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    30 Jun 2017
  • Revisado
    02 Out 2017
  • Aceito
    04 Out 2017
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