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Sistema Prisional e Segurança Pública: Inquietações e Contribuições da/à Psicologia

Prison System and Public Security: Disquietude and Contributions to Psychology

Sistema Penitenciario y Seguridad Pública: Inquietudes y Contribuciones de/a la Psicologia

Quando surgiu a proposta deste número temático, o cenário brasileiro já apontava para um período bastante desafiador, pois era possível acompanhar a gestação de desmantelamentos de direitos e políticas públicas que, com muitos esforços, havíamos, em tese, conquistado. O campo das políticas públicas, aliás, nos últimos anos, vem se configurando como um relevante espaço para a atuação da Psicologia e para seus exercícios críticos, tanto no tocante à produção de conhecimento acadêmico, quanto no que diz respeito a redesenhos da profissão (Ferrazza, 2016Ferrazza, D. A. (2016). Psicologia e políticas públicas: desafios para superação de práticas normativas. Revista Polis Psique, 6(3), 36-58.; Ferreira Neto, 2017Ferreira Neto, J. L. (2017). Psicologia, políticas públicas e o SUS. 2. ed. São Paulo/Belo Horizonte: Escuta/FAPEMIG.; Guareschi, 2017Guareschi, N. M. F. (2017). Psicologia e políticas públicas: as práticas profissionais no campo da saúde e da assistência social. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(2), 253-257. https://doi.org/10.1590/1982-3703003722017
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; Reis, Guareschi, Hunning, & Azambuja, 2014Reis, C., Guareschi, N. M. F., Hunning, S. M., & Azambuja, M. A. (2014). A produção do conhecimento sobre risco e vulnerabilidade social como sustentação das práticas em políticas públicas. Estudos de Psicologia, 31(4), 583-593. https://doi.org/10.1590/0103-166X2014000400012
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).

Dentre essas políticas, o sistema prisional e a segurança pública passaram a contar com incursões psicológicas que criticavam ações recrudescidas baseadas majoritariamente na punição e na psicopatologização dos sujeitos (Bicalho, Kastrup, & Reishoffer, 2012Bicalho, P. P. G., Kastrup, V., & Reishoffer, J. C. (2012). Psicologia e segurança pública: invenção de outras máquinas de guerra. Psicologia & Sociedade, 24(1), 56-65.). Contrapondo-se à lógica punitivista, vimos emergir práticas que, partindo da Psicologia, propunham desde outras formas de manejar o espaço do cárcere e das instituições de segurança, prezando pela integridade da vida e pela defesa dos direitos das populações marginalizadas, de um modo geral, até a problematização das próprias racionalidades a partir das quais operam dispositivos e práticas ligadas à prisão e à segurança pública. Assim sendo, da Psicologia despontam movimentos importantes de análise de políticas institucionalizadas de aprisionamento, não restritas apenas à prisão, que engessam sujeitos a identidades estereotipadas pela criminalização, patologização e gestão punitivista e penalizante da vida (Scisleski, Silva, Galeano, Bruno, & Santos, 2016Scisleski, A. C. C., Silva, J. L. C., Galeano, G. B., Bruno, B. S., & Santos, S. N. (2016). Racismo de Estado e tanatopolítica: Reflexões sobre os jovens e a lei. Fractal: Revista de Psicologia, 28(1), 84-93. https://doi.org/10.1590/1984-0292/1139
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).

Entendemos, portanto, que problematizar as questões sociopolíticas do país e as implicações dos saberes e fazeres da Psicologia neste contexto, em uma perspectiva de defesa irrestrita da democracia, requer a discussão acerca das malhas do sistema prisional e da segurança pública, suas dinâmicas psicossociais e seus efeitos. Isso porque, conforme dados que diversos artigos deste número especial trarão, nosso país ocupa posição preocupante no que concerne tanto ao encarceramento em massa, quanto à escalada da violência letal em meio a apostas em lógicas belicistas no âmbito das políticas de segurança.

Este número especial emerge, então, do e no momento atual em que estamos vivendo, marcado pela desqualificação do campo dos direitos humanos, visando restringi-los, outra vez mais, apenas a certos humanos vistos como dignos de vida (Coimbra, Lobo, & Nascimento, 2008Coimbra, C. M. B., Lobo, L. F., & Nascimento, M. L. (2008). Por uma invenção ética para os Direitos Humanos. Psicologia Clínica, 20(2), 89-102. https://doi.org/10.1590/S0103-56652008000200007
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). Soma-se o desmantelamento de direitos sociais e políticas públicas, principalmente no horizonte que se anuncia, e o recrudescimento de formas de governamentalização que buscam constranger as potencialidades dos modos de viver, maximizando a condição de precariedade de certas existências (Butler, 2015)Butler, J. (2015) Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira., o que podemos notar através de um olhar atento à interseccionalização de marcadores de classe, raça, gênero, geração e território, em meio à articulação de colonialidades, conservadorismos e ascensão neoliberal (Borges, 2018)Borges, J. (2018). O que é encarceramento em massa. Belo Horizonte: Letramento..

Diante de tal panorama, que investe cada vez mais na produção de vidas vivíveis e vidas matáveis, mediante processos de racialização e generificação (Bento, 2018Bento, B. (2018). Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?. Cadernos Pagu, (53), e185305. https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
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), contando inclusive com práticas ligadas ao sistema prisional e ao campo segurança pública, inquietamo-nos com as seguintes questões: quais são as práticas das psicólogas e dos psicólogos no sistema prisional e em instituições do campo da segurança pública, nestes tempos em que se investe cada vez mais não só na produção de modos de fazer viver as vidas vivíveis, mas também na produção de formas de fazer morrer as existências invivíveis/invisíveis? Que redes de saber-poder-subjetivação tais práticas agenciam? Que alianças ético-estético-políticas elas estabelecem?

Certamente estas questões despertam atenção de um grande contingente de pesquisadoras e pesquisadores psi, visto o número expressivo de artigos que recebemos: ao todo, 69 manuscritos. Os artigos reunidos neste número especial privilegiam menos o locus do sistema prisional e dos espaços relativos às políticas públicas de segurança, senão que põem como sobressalente a problematização de tais campos, a partir de contribuições da Psicologia como ciência e profissão, apostando também em suas conexões com saberes e fazeres transdisciplinares. Os textos a seguir, a nosso ver, fornecem algumas importantes pistas para lidarmos com o cenário atual e com o que se anuncia. Além de possibilitarem perscrutar relações de saber-poder e políticas de subjetivação que diferenciam e que conectam sistema prisional e segurança pública, tais artigos também nos auxiliam a vislumbrar algumas possibilidades de resistência e enfrentamento a retrocessos nos campos postos em discussão. Contudo, cabe enfatizar, o presente dossiê não se compõe como um manual que deve ser seguido, mas funciona como uma ferramenta que compartilha interlocuções e experiências oriundas de práticas potentes que se deram no contexto dessas políticas.

O artigo que abre a revista, Investimentos no Cárcere: O Menor dos Males na Política de Segurança Pública, de autoria de Oriana Hadler e Neuza Maria de Fátima Guareschi, aponta para um arranjo arbitrário de legalidades que permite que uma gama de ações seja realizada em nome da segurança a partir de um cálculo mínimo sobre vidas. As autoras, baseadas no referencial teórico de Michel Foucault, compõem a escrita a partir da análise de documentos relacionados a recursos e ações voltadas ao sistema carcerário do estado do Rio Grande do Sul e notícias veiculadas pela mídia impressa e digital.

Na sequência, apresentamos alguns textos que, em conjunto, tecem uma discussão sobre o contexto do encarceramento da população feminina. O artigo de Idilva Maria Pires Germano, Rebeca Áurea Ferreira Gomes Monteiro e Mariana Tavares Cavalcanti Liberato, intitulado Criminologia Crítica, Feminismo e Interseccionalidade na Abordagem do Aumento do Encarceramento Feminino, discute o crescimento da população carcerária feminina no Brasil. Neste trabalho, as autoras debatem a criminalização de mulheres a partir de uma ótica interseccional, realçando aspectos como gênero, raça-etnia, pobreza e outras fontes de subordinação como elementos centrais para problematizar a questão. O referencial teórico que sustenta a análise parte da criminologia crítica feminista.

Já em Performatividades de Gênero em Unidades Prisionais Femininas do Rio de Janeiro, de Luisa Bertrami D’Angelo et al., também há o destaque para o aumento da população carcerária nas unidades femininas porém, para pensar, a partir de algumas linhas que conectam três pesquisas realizadas entre 2009 e 2017 no Rio de Janeiro, como se (des)/(re)/criam performatividades de gênero no contexto de unidades prisionais femininas. O texto conjuga interlocutoras que habitaram os campos de pesquisa, compondo uma cartografia. Tais personagens se narram nas forças que compõem a trama de relações de poder, afeto e erotismo nas experiências de restrição e privação de liberdade.

Sexualidades e Resistências: uma Etnografia sobre Mulheres Encarceradas no Sertão Pernambucano, texto de Laerte de Paula Borges Santos e de Luís Felipe Rios, apresenta uma pesquisa realizada em uma cadeia feminina localizada no interior do sertão pernambucano. Ancorados em uma perspectiva etnográfica, os autores buscam compreender como mulheres encarceradas localizam suas experiências afetivas e sexuais em meio aos procedimentos disciplinares que regulam suas vidas no cotidiano da prisão. O artigo indica que as sexualidades são importantes fios de resistência aos efeitos mortificadores que o cárcere coloca sobre suas trajetórias de vida.

Helena Salgueiro Lermen e Martinho Braga Batista e Silva, em Masculinidades no Cárcere: Homens que Visitam suas Parceiras Privadas de Liberdade, discutem um tema ausente na literatura nacional e internacional: o abandono de mulheres encarceradas por seus companheiros. Visando suprir, em parte, essa lacuna bibliográfica, foram investigados os cônjuges que frequentam duas penitenciárias femininas em dias de visitas. Por meio de uma etnografia, buscou-se compreender os significados atribuídos por eles para a manutenção dos relacionamentos com as companheiras presas.

O texto intitulado Infopen Mulheres de 2014 e 2018: Desafios para a Pesquisa em Psicologia, de Ramon Luis de Santana Alcântara, Carla Priscilla Castro Sousa e Thaís Stephanie Matos Silva, é um estudo sobre os documentos mencionados no título, em que se defende a necessidade de a Psicologia investigar o sistema prisional feminino sob a luz da produção teórica acerca das relações de gênero. O estudo salienta que há um contexto no sistema prisional feminino marcado pelo agravamento dos problemas crônicos comuns ao masculino, em decorrência da invisibilidade das especificidades femininas, concluindo com a finalidade de instigar a novas pesquisas.

Com um outro enfoque, nos deparamos com os artigos que abordam práticas de cuidado no âmbito do sistema prisional e da segurança pública. Nesta segunda parte da revista, ainda afirmando o campo da Psicologia no sistema prisional, mas agora colocando este saber psi em análise, Lucas Gonzaga do Nascimento e Maria Márcia Badaró Bandeira discutem o exercício profissional da Psicologia na garantia do direito à saúde no âmbito do sistema prisional em Saúde Penitenciária, Promoção de Saúde e Redução de Danos do Encarceramento: Desafios para a Prática do Psicólogo no Sistema Prisional. Por meio de pesquisa bibliográfica, o artigo sugere alguns dos principais desafios no campo da saúde penitenciária que, nas recentes pesquisas qualitativas, apontam também para a percepção dos problemas e as estratégias no enfrentamento às graves condições de insalubridade. Ainda que a questão da saúde penitenciária seja enormemente prejudicada pelo superencarceramento e pelas péssimas condições do sistema prisional brasileiro, os profissionais da Psicologia podem ter um importante papel para a redução dos danos dos efeitos do encarceramento, desde que sua prática seja contextualizada e comprometida com a garantia dos direitos humanos.

Em um texto cujo alvo era interrogar a dinâmica de funcionamento do sistema prisional de Pernambuco, A Potência do Cuidado: uma Experiência no Sistema Prisional de Pernambuco, Antonio Lima e José Rodrigues de Alvarenga Filho se utilizam da cartografia como estratégia metodológica e do ensaio como política narrativa, partindo de cenas analisadoras que colocam em análise o cotidiano prisional e as forças que neste território atuam produzindo um cenário de violências, violações de direitos e vidas descartáveis. Através de práticas de cuidado, os autores apostam em intervenções que, mesmo ao se darem em instituições que alimentam práticas de violência, possam ensejar brechas para a emergência de processos de singularização das vidas.

Rafael Albuquerque Figueiró e Magda Dimenstein, no texto Controle a Céu Aberto: Medo e Processos de Subjetivação no Cotidiano de Agentes Penitenciários, buscam mapear os processos de subjetivação presentes no cotidiano dos trabalhadores do sistema penitenciário, em uma cidade do nordeste do Brasil. O texto apresenta a rara discussão sobre o impacto do trabalho na subjetividade dos agentes penitenciários. O artigo traz um interessante debate que aponta para a construção da figura do “bandido perigoso”, que no cotidiano prisional ajuda a forjar subjetividades policialescas, punitivas e, sobretudo, violadoras de direitos.

Ainda no que se refere a agentes penitenciários, Rodrigo Padrini Monteiro e José Newton Garcia Araújo, em Manicômio Judiciário e Agentes Penitenciários: entre Reprimir e Cuidar, buscam debater a atividade desses profissionais, responsáveis por garantir a ordem e a segurança do estabelecimento. Entre a prescrição de reprimir e o apelo a cuidar, os agentes enfrentam uma realidade marcada pelo duplo sofrimento do paciente judiciário: o rótulo da loucura e a privação da liberdade.

No que tange à população trans no contexto prisional, passamos ao texto de José Wellington de Oliveira et al., “Sabe a Minha Identidade? Nada a Ver com Genital”: Vivências Travestis no Cárcere, em que tratam dos desafios do atendimento à população de travestis em uma penitenciária no agreste pernambucano. Parte-se da constatação do crescimento desse grupo social nos contextos de privação de liberdade, bem como do caráter transfóbico do cárcere e, por conseguinte, da acentuação do sofrimento da população de travestis. Os dados produzidos evidenciaram a vivência de cárcere como amplificadora das violências e violações sofridas fora dele e apontaram para a necessidade de ampliação dos estudos sobre gênero, que empreendam intersecções com contextos como o cárcere, história de vida, etnia e indicadores de violência.

Não apenas no cárcere são ampliados os efeitos da incriminação-criminalização de travestis, como mostram Céu Cavalcanti, Roberta Brasilino Barbosa e Pedro Paulo Gastalho Bicalho em Os Tentáculos da Tarântula: Abjeção e Necropolítica em Operações Policiais a Travestis no Brasil Pós-redemocratização. Tomando como acontecimento-chave uma operação policial que teve início em 27 de fevereiro de 1987 na cidade de São Paulo – Operação Tarântula –, o artigo debate como a mesma surge enquanto condição de possibilidade de um contexto sociopolítico específico; mas que, para além dele, apontam-se pistas para um modus operandi que produz corpos travestis a partir de uma política da inimizade e da abjeção. Percebe-se que o acionamento de pânico moral direcionado a corpos travestis mobiliza circuitos de racionalidades capazes de agregar discursos sobre segurança pública em dinâmicas de seletividade penal advindas de composições necropolíticas.

Operando com esse mesmo conceito, Luis Fernando de Souza Benicio et al., em Necropolítica e Pesquisa-Intervenção sobre Homicídios de Adolescentes e Jovens em Fortaleza, Ceará, analisam psicossocialmente, a partir do crescimento da violência letal no Nordeste do Brasil, a problemática dos homicídios de adolescentes e jovens em Fortaleza, sob a perspectiva de adolescentes e jovens de contextos periféricos da cidade mais afetados por essa questão, bem como de profissionais de políticas sociais que trabalham com tais segmentos nessas territorialidades. Para tanto, lançam mão da cartografia como método de pesquisa-inter(in)venção para acompanhar processualidades e o plano coletivo das forças que engendram novas dinâmicas da criminalidade violenta da cidade, sobretudo em regiões periféricas com as maiores taxas de homicídio. De acordo com adolescentes/jovens e profissionais participantes do estudo, a elevação dos homicídios na adolescência/juventude em Fortaleza, Ceará, capital brasileira com o maior índice de homicídios na adolescência, decorre principalmente do agenciamento de três aspectos: transformações da dinâmica da violência urbana em função do acirramento e faccionalização das disputas territoriais de grupos ligados ao tráfico de drogas; direcionamentos equivocados das políticas públicas de segurança frente às dinâmicas da criminalidade violenta e demantelamento/fragilização de políticas sociais destinadas a tais segmentos periferizados em tempos neoliberais, maximizando a condição precária de certas existências pela indução de desigualdades, inclusive no reconhecimento do valor da vida de adolescentes e jovens periferizados, em sua maioria negros.

Ainda no campo da segurança pública, o artigo Polícia e Segurança: o Controle Social Brasileiro, de Gustavo de Aguiar Campos e Flávia Maria Soares Pereira da Silva, discute os principais elementos referentes à relação entre polícia e sociedade, especialmente sobre o trato policial com grupos socialmente marginalizados, nos períodos Colonial e Imperial (1500–1889), República Velha (1889–1930), Era Vargas (1930–1945) e Período democrático (1946–1964). Buscou-se problematizar o processo de criminalização da pobreza para contribuir com a discussão das relações entre Estado e sociedade no Brasil. Constata-se a imbricação da polícia na relação entre Estado e os grupos marginalizados e reprimidos no país, apontando para a interdisciplinaridade necessária para a compreensão dos modos de subjetivação no capitalismo.

Tadeu Lucas de Lavor Filho et al., em Análises Interseccionais a partir da Raça e da Classe: Medo do Crime e Autoritarismo no Brasil, partem de uma análise interseccional quantitativa para discutir em que medida os marcadores de raça/classe interferem no medo do crime e no autoritarismo em contexto brasileiro. Participaram 2.087 pessoas de todas as regiões do país, em uma amostra representativa da população brasileira, majoritariamente com idades entre 25 e 34 anos (26,3%), negros (60,0%) e pertencentes à classe D/E (27,3%), tendo respondido à Escala F de Adorno (versão 17 itens) e escalas para mensurar o medo, a vitimização e as chances de ocorrência de crimes. Discute-se as implicações dos resultados à luz dos estudos decoloniais em uma interlocução entre autores como Hannah Arendt e Crochik, além de teóricos pós-coloniais, como Mbembe, Spivak e Martin-Baró.

Para encerrar, encontramos um último bloco de temas que intersecciona à temática geral desta edição especial: a juventude. O artigo Políticas de Segurança e Guerra aos Pobres: o Caso da Praça Sete Jovens, de Claudia Cristina Trigo de Aguiar e Maria Cristina Gonçalves Vicentin, pretende contribuir para o debate sobre segurança pública a partir da análise do caso da Praça Sete Jovens, situada na periferia da região Norte do município de São Paulo. A Praça é arena de disputa de sentidos na produção do espaço público e da memória coletiva e foi palco de uma chacina contra jovens da região em 2014. Através de entrevistas e diários de campo, foi identificado um conjunto de medidas de segurança para o controle da população pobre, principalmente negra, e da sua circulação, especialmente na forma de “operações urbanas” e “projetos sociais” que articulam “segurança e cidadania” e realizam o controle a céu aberto.

Maria Eduarda Parisan Checa et al., em Desobediência, Alargamento da Punição e Segurança Pública: Jovens Usuários de Drogas em Conflito com a Lei, problematizam o dispositivo de obediência, à luz do pensamento de Michel Foucault, tomado como um articulador entre a moral cristã, o sistema jurídico-penal e a segurança pública no contexto da juventude em conflito com a lei. São discutidos os efeitos que a produção de obediência assegura, em termos institucionais, para os jovens em conflito com a lei que cumprem medida socioeducativa de internação. Nesse cenário, chama-se a atenção para aqueles que são, simultaneamente, usuários de drogas e autores de ato infracional associado ao tráfico de drogas, cuja sobreposição implica em uma relação jurídica-penal que se alarga, a partir do dispositivo da obediência, como estratégia de governo para o possível cerceamento perpétuo da liberdade do jovem a outras instituições e saberes, que passam a atuar também em um viés policialesco.

Luísa Susin dos Santos, Adriano Beiras e Clarissa Moreira Enderle, em Violência de Estado, Juventudes e Subjetividades: Experiências em uma Delegacia Especializada, discutem, diante de recortes da violência de Estado, os processos de subjetivação de jovens considerados em conflito com a lei. Sustentada nas práticas experienciadas na (des)construção e (des)continuidade em uma Delegacia Especializada, a discussão articula os recortes da experiência com conceitos como enquadramento, segurança pública e polícia cidadã. Os autores indicam que, para a Psicologia, é importante não só olhar para esses processos de subjetivação da juventude, mas também levantar a discussão da implicação tanto a partir da posição de representantes do Estado, quanto da posição como sujeitos e cidadãos.

Encerrando o dossiê, Thiago Melicio, em Aproximando (d)o “Bicho de Sete Cabeças”: Alteridade e Práticas de Segurança no Rio de Janeiro e Irlanda do Norte, problematiza o campo da segurança pública carioca como território de acolhida ou eliminação das diferentes formas de expressão psicossociais presentes na contemporaneidade. O texto discute as relações entre o aparato policial e a população, bem como defende a potencialização de práticas de segurança em que o encontro com o “outro” seja vivenciado não pela hierarquia que o coloca em termos de superioridade e inferioridade, mas a partir das possibilidades de mundo que a presença de outrem apresenta.

Ao chegar no final, aproveitamos para agradecer ao Conselho Federal de Psicologia, à editora da Revista Psicologia, Ciência e Profissão e a todas as pessoas envolvidas no processo de produção deste número. Esperamos que esses textos possam servir como um respiro, um fôlego, uma inspiração para seguirmos apostando em estratégias inventivas e insurgentes em tempos sombrios que teimam em se presentificar para o campo das políticas públicas brasileiras e que desafiam a atuação da Psicologia. Que não deixemos de caminhar em direção a uma sociedade justa e ao projeto de país radicalmente democrático que desejamos. Que possamos ter força e traçar alianças solidárias entre nós, como cientistas e profissionais da Psicologia, de modo que a invenção de uma vida digna seja sempre nossa aposta ética para a defesa de direitos humanos para todos os humanos – de todos nós e de quem quer que seja –, o que implica criticidade frente às práticas de desumanização que, tal como outras páginas infelizes da nossa história, seguem a fornecer as condições para a aceitabilidade da violência aniquiladora de corpos considerados indesejáveis.

Boa leitura!

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018
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