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“Sabe a Minha Identidade? Nada a Ver com Genital”: Vivências Travestis no Cárcere

“My Identity? It has Nothing to do with Genital”: Transvestite Experiences in the Jail

“¿Sabe mi Identidad? Nada que ver con lo Genital”: Vivencias Travestis en la Cárcel

Resumo

Este trabalho visa colocar em discussão a experiência de travestis no sistema prisional brasileiro, a partir de uma pesquisa realizada na penitenciária Juiz Plácido de Souza, no Agreste Pernambucano, no município de Caruaru. Parte-se da constatação do crescimento desse grupo social nos contextos de privação de liberdade, bem como do caráter transfóbico do cárcere e, por conseguinte, da acentuação do sofrimento da população de travestis. As discussões apresentadas inserem-se no âmbito da Psicologia social e visam, a partir da identificação de situações de vulnerabilidade social, apontar os desafios para garantia de direitos desta população, inscrevendo as contribuições da Psicologia e problematizando o papel do/da psicólogo/a no cárcere. Trata-se de uma pesquisa de ordem qualitativa, estruturada em quatro etapas: I) Escolha das travestis selecionadas para realização das entrevistas; II) realização de entrevistas; III) caracterização do perfil sociodemográfico da população; e IV) observação do cotidiano institucional. Os dados produzidos evidenciaram a vivência de cárcere como amplificadora das violências e violações sofridas fora dele. E apontaram para a necessidade de ampliação dos estudos sobre gênero, em especial daqueles voltados às travestis e/ou transexuais, realizando intersecções com contextos como o cárcere, sua história de vida, raça, indicadores de violência. À Psicologia cabem os questionamentos sobre a reprodução de um modelo biologizante, centrado na lógica médica, excludente e individual. E, ao mesmo tempo, o convite para maior atenção às demandas interseccionais e ao compromisso com o enfrentamento de desigualdades sociais, sobretudo, as de gênero.

Travestis; Identidade; Gênero; Cárcere; Psicologia

Abstract

This work aims to discuss the experience of transvestites in the Brazilian penitentiary system, based on a survey carried out at the Juíz Plácido de Souza Penitentiary, in the city of Caruaru, eastern Pernambuco. It stems from the realization of the growth of this social group in the context of deprivation of liberty, as well as from the transphobic nature of the prison and hence from the accentuation of the suffering of the population of transvestites. The discussions presented are embedded in social psychology and aim, from the identification of socially vulnerable situations, to identify the challenges to guarantee the rights of this population, including the contributions of psychology and problematizing the role of the psychologist in jail. The research is qualitative, structured in four stages: I) Choice of transvestites to conduct interviews; II) conduction of interviews; III) characterization of the sociodemographic profile of the population; and IV) observation of institutional everyday life. The data obtained evidenced the experience of jail as an amplifier of the violence and violations suffered outside prison. And they pointed to the need of expanding studies on gender, especially those aimed at transvestites and/or transsexuals, making intersections with contexts such as jail, their life history, race, and indicators of violence. Questions about the reproduction of a biologizing model, centered on the medical logic, excluding and individualistic, belongs to psychology. At the same time, the call for greater attention to the intersectional demands and the commitment to face social inequalities, especially those of gender.

Transvestites; Identity; Genre; Prison; Psychology

Resumen

Este trabajo pretende poner en discusión la experiencia de travestis en el sistema penitenciario brasileño, a partir de una investigación realizada en la penitenciaría Juiz Plácido de Souza, en el Agreste Pernambucano, en el municipio de Caruaru. Parte de la constatación del crecimiento de ese grupo social en los contextos de privación de libertad, así como del carácter transfóbico de la cárcel y, por consiguiente, del incremento del sufrimiento de la población de travestis. Las discusiones presentadas se insertan en el ámbito de la psicología social y visan, partiendo de la identificación de situaciones de vulnerabilidad social, apuntan los desafíos para garantir los derechos de esta población, utilizando las contribuciones de la psicología social y problematizando el papel del/de la psicólogo(a) en la cárcel. Se trata de una pesquisa de orden cualitativa, estructurada en cuatro etapas: I) Selección de travestis para la realización de las entrevistas; II) realización de entrevistas; III) caracterización del perfil sociodemográfico de la población; y IV) observación del cotidiano institucional. Los datos producidos evidenciaron la vivencia en la cárcel como amplificadora de las violencias y violaciones sufridas fuera de ella. Y apuntaron para la necesidad de ampliar los estudios sobre género, especialmente aquellos dirigidos en travestis y/o transexuales, realizando intersecciones con contextos como la cárcel, su historia de vida, raza e indicadores de violencia. Cabe a la psicología los cuestionamientos sobre la reproducción de un modelo biologizante, centrado en la lógica médica, excluyente e individual. Yal mismo tiempo, la invitación a una mayor atención a las demandas interseccionales y al compromiso con el enfrentamiento de desigualdades sociales, sobre todo, las de género.

Travestis; Identidad; Género; Cárcel; Psicología

Abrindo as grades

Este trabalho visa colocar em discussão a experiência de travestis no sistema prisional brasileiro, a partir de uma pesquisa realizada na penitenciária Juiz Plácido de Souza, no Agreste Pernambucano, no município de Caruaru. Parte-se da constatação do crescimento desse grupo social nos contextos de privação de liberdade, bem como do caráter transfóbico do cárcere e, por conseguinte, da acentuação do sofrimento da população de travestis (Lago, & Zamboni, 2016Zamboni, M. (2016). Travestis e transexuais privadas de liberdade: A (des)construção de um sujeito de direitos. Revista Euroamericana de Antropología, (2), 15-23. ).

A pesquisa teve como público-alvo as travestis detidas na penitenciária Juiz Plácido de Souza. Neste local, não há uma ala específica para elas, nem tampouco precisão sobre números e dados de detentas que se identificam como travestis. O estudo desenvolvido foi de ordem qualitativa e adotou como principal ferramenta metodológica a entrevista (Denzin, & Lincoln, 2006; Pinheiro, 2013)Pinheiro, O. G. (2013). Entrevista: Uma prática discursiva. In: N. K. Denzin, Y. S. Lincoln O planejamento da pesquisa qualitativa: Teorias e abordagens (pp. 156-187). Rio de Janeiro, RJ: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. . A análise dos dados se deu a partir das referências dos estudos das práticas discursivas, que para Spink e Frezza (2014). Participaram da pesquisa todas as pessoas identificadas como travestis na unidade prisional.

As discussões aqui apresentadas se inserem no âmbito da Psicologia social e visam, a partir da identificação de situações de vulnerabilidade social, apontar os desafios para garantia de direitos desta população, inscrevendo as contribuições da Psicologia e problematizando o papel do/da psicólogo/a no cárcere.

Para melhor situar a violência brutal que afeta a travestilidade no nosso país, destaca-se que o Brasil é o país que mais mata pessoas por conta de sua orientação sexual e identidade de gênero no mundo. Somente em 2017, foram mortas 445 pessoas. Dentre elas, 191 eram transexuais e travestis (Mott; Michels, & Paulinho, 2017).

Importa destacar que estatísticas sobre crimes de homofobia/transfobia/lesbofobia no Brasil são levantadas por organizações não governamentais através de notícias da mídia. Isto porque inexistem números oficiais, visto que este tipo de violência não se configura como um crime no código penal do Brasil, o que sinaliza o descaso da Segurança Pública com pessoas LGBT.

Em relação a dados internacionais sobre o Brasil, Nogueira, Aquino e Cabral (2017), asssinalam que a Transgender Europe expõe que, entre 2008 e 2015, foram assassinadas na América do Sul cerca de 1.500 travestis e transexuais, sendo o Brasil responsável por 802 dos casos registrados. Um número assustador, que é somado às centenas de travestis e mulheres transexuais que morrem vítima da ingestão ilegal de silicone industrial ou do uso indiscriminado de hormônios, uma vez que não são asseguradas por uma política de saúde efetiva, salvo alguns avanços decorrentes nos últimos anos ( Carvalho, 2011Carvalho, M. F. L. (2011). Que mulher é essa? Identidade, política e saúde no movimento de travestis e transexuais (Dissertação de mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. ).

Estas estatísticas sinalizam que as identidades de gênero que divergem daquela apontada como padrão, a saber, a cisgênera, são alvo de violações e violências baseadas em mecanismos de poder e dominação, uma vez que assumem performances diferentes dos construtos históricos e culturais. Para as pessoas transexuais, a realidade pode ser ainda pior e apresentar maiores requintes de crueldade e violação de direitos, pois o corpo transexual contradita as normas binárias, heteronormativas e cissexistas, e é visto como abjeto ( Ferreira, 2014Ferreira, G. G. (2014). Travestis e prisões: A experiência social e a materialidade do sexo e do gênero sob o lusco-fusco do cárcere (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. ).

Além do aumento dos crimes de ódios contra a população LGBT, aqui, em particular, as travestis, têm-se o crescimento desse público nos contextos de privação de liberdade. Zamboni (2016)Zamboni, M. (2016). Travestis e transexuais privadas de liberdade: A (des)construção de um sujeito de direitos. Revista Euroamericana de Antropología, (2), 15-23. aponta que dados da Secretaria de Administração Penitenciária de São Paulo informam que só neste estado existem 431 mulheres trans e 19 travestis em privação de liberdade.

Neste local, práticas comuns de transfobia se manifestam em: “Dormir de cabelo comprido e acordar de cabelo raspado”, “Ser obrigada a agir como mulas para o tráfico”, “Ser obrigada a esconder entorpecentes em cavidades do corpo”, “Estupros coletivos”, “Agressões corporais”, “transmisoginia”, essas são apenas algumas situações transfóbicas vivenciadas por mulheres trans e travestis no contexto de privação de liberdade.

Bento (2016)Bento, B. (2016). Transfeminicídio: Violência de gênero e o gênero da violência. In: L. Colling (Org.), Dissidências sexuais e de gênero (pp. 45-67). Salvador, BA: EDUFBA. estabelece uma relação entre esses tipos de situação de violência transfóbica no Brasil, em especial nos casos que culminam em morte, com os acontecimentos que cunharam o termo feminicídio, no México. Assim como no contexto mexicano, o que acontecia com mulheres cisgêneras pode ser observado no Brasil com as pessoas transgêneras. Os assassinatos de travestis carregam muitas particularidades, inclusive na forma da morte que geralmente é obtida a partir de tortura e violência sexual, sendo na maior parte dos casos os órgãos sexuais alvos dos assassinos. Não é um crime com características similares a qualquer homicídio, é uma tentativa de expurgar o corpo de um mal iminente.

Indo além dos índices de mortalidade dessa população, vislumbramos dificuldades no exercer dos direitos básicos, como: educação, saúde, segurança, habitação e trabalho. Segundo Amaral (2013)Amaral, T. C. (2013). Travestis, transexuais e mercado de trabalho: Muito além da prostituição. Anais do Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador, BA, Brasil, 3. Recuperado de http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2013/06/Travestis-transexuais-e-mercado-de-trabalho-muito-al%C3%A9m-da-prostitui%C3%A7%C3%A3o.pdf
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, tal população apresenta dificuldades de reconhecimento e respeito, desde o momento em que assumem sua identidade. As portas das escolas são fechadas a essa população muito cedo; as do mercado de trabalho, na maioria dos casos, não são sequer abertas. Além disso, estereótipos de criminalidade parecem estar sempre atrelados à vivência travesti.

Em contrapartida, seu corpo é objeto sexual desejado, inclusive no acesso virtual de sites pornográficos, como mostra Leite Junior (2014). A elas, no entanto, não cabem os espaços ditos femininos, assim como não cabem os ditos masculinos, como se fossem homens vestidos de mulher, são direcionadas à convivência prisional masculina, tendo seu corpo violado e sua subjetividade aniquilada.

Como forma de perceber como estas questões são estudadas e quais as contribuições da Psicologia nesse contexto, realizamos buscas em bases de dados on-line . O levantamento realizado aponta para lacunas, no que concerne ao estudo das identidades transexuais e travestis de modo geral; quando vislumbramos essas identidades no contexto de cárcere, a produção científica é ainda mais limitada. E, se considerarmos a produção acadêmica no campo da Psicologia, perceberemos uma escassez ainda maior.

Como exemplo, ao utilizarmos os termos de busca “cárcere” e “Psicologia” no Scientific Electronic Library Online (SciELO), uma das bases de dados de referência de produção científica, só localizamos cinco artigos. Desses, nenhum aborda questões referentes a identidades de gênero ou travestilidades.

Tais limitações podem ser decorrentes de inúmeros construtos sociais e mesmo científicos que colocaram e colocam as identidades de gênero diferentes da cisgênera, no campo dos transtornos, parafilias e/ou adoecimentos orgânicos. Amaral, Silva, Cruz e Toneli (2014) confirmam tais impressões apontando que os estudos de cunho social e subjetivo destas identidades são recentes e ainda pouco difundidos.

Dessa forma, comprometemo-nos a produzir conhecimento no sentido de favorecer a garantia de direitos desta população e, assim, comprometer a Psicologia com a construção de estratégias que visem minimizar as violações e violências vivenciadas por ela.

A presentificação dos referidos moldes binários também está no cárcere. Em dados fornecidos pelo Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), no que concerne à distribuição de penitenciárias no Brasil, constam: 75% masculinas, 7% femininas e 17% mistas, não havendo nenhuma menção às travestis e/ou transexuais encarceradas em instituições opostas à sua identidade de gênero. Num recorte detalhado sobre grupos específicos, a pesquisa aponta que 86% das penitenciárias não apresentam alas ou celas específicas para comunidade LGBT; 5% apresentam celas diferenciadas e 1% alas específicas, não havendo informações sobre os 8% restantes (BRASIL, 2014).

Num país onde a expectativa de vida dessa população é de apenas 35 anos ( Antunes, 2010Antunes, P. P. S. (2010). Travestis Envelhecem? São Paulo, SP: PUC. ), onde não há acesso à educação, saúde e segurança de qualidade e onde o espaço científico não arrisca se enveredar, algo precisa ser mudado. É preciso olhar e enxergar as pessoas transexuais e travestis a partir de óticas, que não aquelas nas quais estão constituídos os saberes científicos do mundo ocidental apontados por Haraway (1995)Haraway, D. (1995). Saberes Localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu , (5), 7-41. em estudos referentes ao feminismo. É preciso localizar os saberes em campos outrora negados e subjugados, é preciso (trans)formar a realidade de centenas de travestis e mulheres transexuais que vivem no cárcere a maximização das violações sofridas fora dele.

Desta forma, o objetivo central deste trabalho é conhecer as condições de vida da população de travestis e mulheres transexuais em situação de cárcere na cidade de Caruaru, identificando situações de vulnerabilidade social, estratégias de promoção de qualidade de vida e desafios na garantia dos direitos humanos dessa população, refletindo sobre as contribuições e intervenções da Psicologia nesse contexto.

Caminhos metodológicos

Este trabalho assumiu uma postura qualitativa, tomando como ferramentas estratégias criativas e diversas de intervenção e interpretação. Denzin e Lincoln (2006)Denzin, N. K., Lincoln, Y. S. (2006). Introdução: A disciplina e a prática da pesquisa qualitativa. In: N. K. Denzin, Y. S. Lincoln, O planejamento da pesquisa qualitativa: Teorias e abordagens (pp. 15-41). Porto Alegre, RS: Artmed. apontam que este tipo de pesquisa atravessa disciplinas e temas, não se limitando a uma forma de coleta e análise de dados.

Quando se vislumbra o histórico das pesquisas no âmbito da sexualidade humana, assim como das identidades de gênero, percebe-se que estes estudos apresentam relação direta com a pesquisa qualitativa. Ganson (2006)Ganson, J. (2006). As sexualidades, a teoria queer e a pesquisa qualitativa. In: N. K. Denzin, Y. S. Lincoln O planejamento da pesquisa qualitativa: Teorias e abordagens (pp. 345-362). Porto Alegre, RS: Artmed. alerta que há muitas pesquisas enquadradas nos moldes positivistas que tentam vislumbrar estas demandas pela via da patologização e/ou da genética, mas que na prática do cuidado e na aplicação de sentidos a essas experiências, a pesquisa qualitativa tem se mostrado efetiva. Segundo o autor, este tipo de pesquisa possibilita que as vozes escondidas e/ou deslegitimadas, pela construção histórica, conquistem espaço e abrangência.

Desta forma, este trabalho teve como público-alvo as travestis detidas na penitenciária Juiz Plácido de Souza, na cidade de Caruaru-PE. Foram entrevistadas três travestis, com idades entre 26 e 39 anos. Duas delas autodeclaradas pardas e uma autodeclarada branca, de Caruaru e de Campina Grande, duas delas com ensino fundamental incompleto e uma analfabeta, tendo como renda entre um e dois salários mínimos, sendo duas reincidentes e uma ingressa pela primeira vez em uma instituição carcerária. A Tabela apresenta dados das entrevistadas, identificadas por nomes fictícios.

Tabela
Perfil das detentas travestis entrevistadas na penitenciária Juiz Plácido de Souza.

Na penitenciária onde foi realizada a pesquisa, o público-alvo se encontrava localizado em meio a um amplo percentual de detentos, não havendo precisão nos dados fornecidos sobre a quantidade de travestis encarceradas. Atualmente a penitenciária se encontra em superlotação. Os dados obtidos através dos órgãos responsáveis não oferecem os números exatos, mas a partir das informações obtidas junto aos profissionais da instituição, foi possível constatar que o espaço fundado em 1988, com capacidade para 380 detentos, hoje é ocupado por 1.300 reeducandos. É em meio a este cenário caótico que se encontram as pessoas sobre e com as quais este trabalho foi construído.

A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética, recebendo o número: 74200517.4.0000.5666. Teve como primeira etapa o contato com a instituição prisional. Por meio do serviço de atendimento psicossocial da mesma, tornou-se possível identificar as travestis em pena privativa de liberdade ou à espera de julgamento, sendo algumas delas, de modo aleatório, convidadas a conversar com o pesquisador, espaço no qual foram esclarecidos os objetivos da pesquisa e lido o Termo de Consentimento Livre Esclarecido.

A produção de dados esteve estruturada a partir de quatro etapas: I) Escolha das travestis selecionadas para realização das entrevistas, a partir dos direcionamentos institucionais; II) realização de entrevistas; III) caracterização do perfil sociodemográfico da população, a partir da análise dos dados secundários presentes nos processos das detentas; e IV) observação do cotidiano institucional. É válido destacar que tais etapas não aconteceram, necessariamente, em ordem cronológica.

Na produção de dados utilizamos como ferramenta principal a entrevista. Segundo Aragaki, Lima, Pereira e Nascimento (2014) a entrevista possibilita muito mais que a constatação de respostas que já se encontram prontas; dá margem para a produção de sentidos, do entrevistado, perante o olhar atento do entrevistador. Essa ferramenta oferece subsídios objetivos, mas não finda nestes, podendo ser ampliada para questões complexas e de cunho subjetivo.

A ferramenta da entrevista pode ser entendida como instrumento de ação, ou interação, que se dá a partir de um campo circunscrito pelo contexto e disponibilidade das pessoas nela envolvidas. Há, portanto, uma negociação das posições, possibilitando ao entrevistador inferir em aspectos cuja relevância pareça ser evidente, assim como ao entrevistado explorar suas experiências pessoais, transcendendo a circunscrição das perguntas ( Pinheiro, 2013Pinheiro, O. G. (2013). Entrevista: Uma prática discursiva. In: N. K. Denzin, Y. S. Lincoln O planejamento da pesquisa qualitativa: Teorias e abordagens (pp. 156-187). Rio de Janeiro, RJ: Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. ).

A análise dos dados se deu a partir das referências dos estudos das práticas discursivas, que para Spink e Frezza (2014) compõem uma leitura contemporânea da Psicologia social. Tal perspectiva de análise e construção de saberes se afasta da naturalização perpetuada pelo saber científico, abrindo espaço para formas de enxergar as vivências e experiências, dando, pois, subsídio para a emergência de sentidos outrora não vistos, ou ignorados.

Na tentativa de absolver o máximo de informações e de sentidos expressos na construção desta pesquisa, usou-se como ferramenta de registro e análise o diário de campo. Medrado, Spink e Mello (2014) apontam que o uso deste mecanismo permite o acúmulo de textos e de sentidos, que muitas vezes passam por despercebido na análise dos dados. Há neste processo uma escrita implicada, que se volta para o objeto de estudo com um olhar diferenciado, enxergando o contexto e as possibilidades que a pesquisa apresenta, não tomando a ótica do cientista como uma verdade absoluta. Além disso, possibilita uma escrita livre dos moldes que por vezes atravessam e dificultam a absorção dos sentidos manifestos.

A análise deste material, assim como das entrevistas, perpassou a construção de mapas de associação de ideias, geralmente apresentados em forma de quadros que orientam o pesquisador sobre fatores apresentados com intersecções ou afastamentos entre os discursos dos entrevistados.

Produção de sentidos sobre travestilidade no cárcere

No processo de análise dos dados produzidos nas entrevistas, na análise documental e na observação do campo foram construídos cinco eixos que serão aqui discutidos. A saber: I) a realidade carcerária numa penitenciária masculina; II) autorreconhecimento e identidade de gênero; III) família, trabalho e escola como instrumentos de exclusão; IV) intersecções de gênero, etnia e classe social; e V) acesso aos serviços psicossociais na instituição.

A construção dos eixos foi resultante da produção de quadros associativos de ideias, nos quais foram elencados pontos de intersecção entre a fala das entrevistadas, apontando para vivências comuns ou distintas da experiência de vida de cada uma. A análise, por se tratar de uma construção baseada no princípio das práticas discursivas, traz como premissa a não construção apriorística de categorizações; estas se constroem a partir das falas e desdobramentos das entrevistas.

Antes de tratar dos eixos de análise é importante salientar alguns componentes que podem ter interferido na produção de sentidos desta pesquisa. Um desses fatores diz respeito ao acesso ao grupo de travestis. Poucos profissionais da instituição realizam ou realizaram trabalho com essas pessoas, o que acabou dificultando a chegada das informações ao grupo. Outra dificuldade observada diz respeito ao acesso do material individual das detentas, que por não apresentar nenhuma identificação ou menção ao gênero, acaba tornando o trabalho de localização do material dificultoso e complexo, sendo preciso acessar as travestis para identificar seu nome civil e, só assim, acessar tais materiais.

Uma das entrevistas teve ainda como agravante o fato da detenta, sem oferecer nenhum risco ao pesquisador, ter sido obrigada a direcionar-se algemada, permanecendo assim até seu retorno ao pavilhão, não havendo um motivo claro sobre tal determinação, uma vez que as demais entrevistadas foram ouvidas sem o uso do objeto. Em outro caso, embora a detenta tenha chegado algemada, foi direcionada pela psicóloga da instituição para remoção da mesma. A utilização de algemas, no nosso entendimento, dificulta a comunicação, uma vez que esta não pode ser compreendida apenas através daquilo que é nomeado, pois perpassa o corpo e suas performances.

Passaremos agora a descrever o conteúdo produzido, organizado a partir dos cinco eixos de análise já citados, bem como a apresentar considerações teórico-políticas suscitadas a partir deles.

I - “Fatura da viatura, que não atura pobre preta revoltada”: a realidade travesti na penitenciária masculina

O modo de funcionamento do cárcere, de maneira geral, está atrelado a experiências de violação. Ferreira (2004) sinaliza que a população de travestis e transexuais sofre uma amplificação dessas violências, uma vez que apresenta particularidades e similaridades, no que concerne à sua identidade de gênero. Em algumas penitenciárias masculinas, percebendo estas especificidades foram criadas alas especiais para tal população, como mostram Frois e Valentim (2017)Frois, F. F., Valentim, S. S. (2017). A ala lgbt em presídios brasileiros: possiblidades ou controvérsias? Anais do 11 Seminário Internacional Fazendo Gênero, Florianópolis, SC, Brasil, 11. Recuperado de: http://www.en.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/1500251768_ARQUIVO_FazendoGenero-VersaoNova.pdf
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, apontando a realidade de uma instituição pioneira, em Minas Gerais. A princípio a ala das travestis foi vislumbrada em cenário nacional com certo estranhamento, mas a partir de então, outras penitenciárias têm aderido ao modelo proposto.

Sobre esta realidade houve mudanças ao longo do desenrolar da pesquisa na penitenciária Juiz Plácido de Souza. Durante a realização das duas primeiras entrevistas as travestis se encontravam numa ala exclusiva; no intervalo de uma semana, foram transferidas para a convivência nos pavilhões gerais. A justificativa da direção é que a área passará por uma reforma. Sobre essa mudança de espaços Dandara afirma: “Quando tava isolada era melhor, só a gente. A gente era mais à vontade, né? Do que no meio de um monte de macho”. O descontentamento por parte das detentas diz de uma negação da identidade travesti, que já é vivenciada no direcionamento às instituições masculinas e que só se amplia quando são expostas à convivência masculina, em muitos momentos sendo obrigadas a transitar peladas entre os pavilhões.

Não tem precisão de eles tá botando travesti ou homossexual, homossexual nem tanto porque se veste de homem, é normal, mas tá botando travesti, pra tá tirando roupa na frente dos homem. Como é que eles querem respeito com a gente, eles querem que a gente desça feito os homens, desse jeito?

É possível identificar que esta parcela da população carcerária vivencia aquilo que Butler (2012)Butler, J. (2012). Problemas de Gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira. aponta como abjeção. Os corpos marcados pela necessidade de reconhecimento identitário contrastam com a realidade do sistema prisional, levantando questionamentos e atritos. Os sujeitos egressos neste sistema já são vistos como a escória da sociedade, “o lixo” que nós produzimos, mas do qual nos anulamos de qualquer responsabilidade. Quando se associam a estes estereótipos os de identidade de gênero, a invisibilidade se amplia. As travestis que já recebem da sociedade as periferias, as noites e os guetos, como únicos espaços de existência, recebem no cárcere uma enxurrada de novos desafios.

Tais desafios ocorrem nas experiências diárias e vão desde os apelidos ao assédio, perpassando por situações de violência, que chegam a se amplificar em momentos de maior conflito. Evelin, no período de rebelião teve parte de sua orelha arrancada, pois segundo a mesma, os alvos de violência neste contexto são os abusadores sexuais e as travestis.

Oxi, já faz um ano que eu passei por essa rebelião. Passei pela morte, passei pelo fogo, perdi tudo que eu tinha dentro do meu pavilhão, perdi televisão, DVD, roupa, dinheiro, tudo, perdi tudo, passei pela morte. É até prova que um pedaço dessa minha orelha foi arrancada. O cara, no meio da... na hora da multidão, os policiais metendo bala sem dó, aí os cara querendo torar o pescoço dos viados, degolar os viados, os tarados, era uma confusão.

Estes dados apontam para uma realidade de omissão por parte das instituições carcerárias. O Infopen, órgão responsável pelo fornecimento de dados das instituições penitenciárias brasileiras, não disponibiliza números sobre a quantidade de travestis ingressas no sistema prisional; isto serve como ferramenta de opressão e invisibilidade destas identidades ( Nascimento, 2016Nascimento, F. E. (2016) Patriarcado, capitalismo e opressão de gênero: Notas sobre travestis privados de liberdade no Ceará. Jornada Internacional Políticas Públicas . São Luis, MA, Brasil, 7. ). O fato se repete dentro das próprias instituições, onde não há um registro quantitativo de detentas travestis, muitas vezes havendo por parte dos funcionários uma confusão entre sexualidade e gênero. Os documentos de identificação das detentas, na penitenciária Juiz Plácido de Souza, não contêm dados sobre a identidade de gênero; em apenas um dos documentos analisados foi possível constatar o nome social, no campo destinado ao apelido, nos demais prontuários não há nenhuma menção ao nome ou qualquer outra informação sobre o gênero.

Nascimento (2016)Nascimento, F. E. (2016) Patriarcado, capitalismo e opressão de gênero: Notas sobre travestis privados de liberdade no Ceará. Jornada Internacional Políticas Públicas . São Luis, MA, Brasil, 7. aponta que muitos agentes penitenciários se referem às travestis fazendo uso de pronomes masculinos, em muitos casos ignorando o nome social e agindo com brutalidade e arrogância para com estas. Tais dados corroboram com o discurso de Evelin quando diz: “Tem alguns que tratam a gente até bem, mas tem uns... Que nem tem um que me algemou agora. Não precisava pra eu subir aqui, pra falar com você, não precisava de botar algema”. A violência passa, assim, a ser institucionalizada, refletindo preconceitos e violações oriundos dos mais diversos espaços sociais, como a família, a escola, a religião e o mercado de trabalho. A experiência de encarceramento se torna uma maximização das violações sofridas em liberdade. Seus corpos e subjetividades, marcados pelo feminino, são apagados e negligenciados, o que prevalece como marcador central de suas identidades são seus órgãos genitais. Quando questionada sobre sua experiência de cárcere Pâmela afirma que está sendo uma experiência devastadora. “Tenebroso. Não tem um filme de terror? É o que está se transformando minha vida”.

Outra violação vivenciada pelas travestis em cárcere diz respeito à negação do direito de acesso à hormonização. “Não tô tomando nem a perlutan nem a estradiol, porque quando a gente chega aí pra pedir para aplicar na gente, não querem aplicar, já manda logo a gente descer”. Esta situação contraria a Resolução Conjunta n° 1, de 15 de abril de 2014 (CNCDLGBT/CNPCP) que afirma: “À pessoa travesti, mulher ou homem transexual em privação de liberdade, serão garantidos a manutenção do seu tratamento hormonal e o acompanhamento de saúde específico”. Desta forma, seus corpos passam por modificações durante o processo de cárcere, afetando diretamente sua autoimagem. É uma tentativa de apontar para os traços masculinos, negando sua feminilidade.

Levando-se em conta a interferência das construções sociais acerca do gênero e de todas as nuances decorrentes de suas variações, assim como realizando análise do sistema penitenciário brasileiro, que como aponta Julião (2009)Julião, E. F. (2009). Ressocialização através do estudo e do trabalho no Sistema Penitenciário Brasileiro. Rio de Janeiro, RJ: UERJ. , apresenta defasagens estruturais, assistenciais e físicas, é possível vislumbrar a necessidade de um olhar diferenciado para a parcela de travestis e mulheres transexuais aprisionadas e invisibilizadas pelas políticas criminais brasileiras.

II - “Ser viada não é só close , batão, glitter e purpurina”: autorreconhecimento e identidade de gênero

“O gênero serve para construir corpos, é uma máquina de produção em série de seres humanos” (Bento, 2017a, p. 157). É assim que Berenice Bento, em entrevista realizada por Diego Madi Dias, define a utilidade do termo. Declaradamente, a autora faz uma crítica ao conceito e às suas reverberações práticas que têm servido para regulamentar, normatizar e determinar os corpos e as subjetividades. Quando a autora, na mesma entrevista, propõe o fim da noção de gênero, não é numa tentativa de erradicar as discussões, mas de repensar a forma como se lança o olhar para estas questões, interpelada pelas normas binoculares, deterministas e em muitos casos médicas ou falocêntricas. Para a mesma, é preciso repensar as teorias universalizantes em prol de pensamentos relativos, que reflitam a travestilidade e a transexualidade, a partir de uma ótica plural e diversa, não tomando um modelo universal de identidade.

Tais definições corroboram com os discursos das travestis encarceradas que, em muitos momentos, sentiram-se ou sentem-se oprimidas e/ou reprimidas pela forma como as discussões de gênero se encontram postas na sociedade, tomando sempre como base um modelo biologizante, que teima em dizer que seus corpos não são femininos ou, mesmo que o sejam, não correspondem à normalidade esperada. O corpo, assim como a linguagem, acaba sendo reprodutor de uma norma dominante que determina o que pertence ao universo feminino e o que pertence ao masculino, não havendo brechas para as intersecções, para a fluidez, para aquelas que não se encaixam na lógica cisgênera ( Silva, 2014Silva, A. P. D. (2014). O conceito de “corpo” nos estudos de gênero, feministas, gays, lésbicas e queers. In: A. P. D. Silva, R. M. Morais, T. V. A. Silva (Orgs), Artimanhas do desejo: Ensaios de literatura, psicologia, linguagens (pp. 141-161). São Paulo, SP: Scortecci. ).

Louro (2004Louro, G. L. (2004). Um corpo estranho: Ensaios sobre sexualidade e teoria queer. Belo Horizonte, MG: Autêntica. , p. 82-83) sinaliza que: “aqueles que escapam ou atravessam esses limites, ficam marcados como corpos – e sujeitos – ilegítimos, imorais ou patológicos”. Evelin, uma das entrevistadas, quando questionada sobre sua identificação, apresenta-se confusa, pois sente-se mulher, mas lhe dizem o tempo todo que isso ela não pode ser. “Porque assim não tem como eu me sentir mulher, porque eu não sou que nem muitas é, operada, essas coisas. Tá entendendo? Aí eu sou como travesti, mas eu me sinto como mulher”.

Os limites das classificações não dão conta das manifestações de desejo, as formas de expressar o feminino ultrapassam as definições e os enquadres de um rótulo. Estas travestis vivem o dilema de que sempre apontam para seus órgãos sexuais como deslegitimadores de sua identidade. Se há pênis não há feminilidade, logo estas ou estes, como são geralmente chamadas, são homens e precisam ser tratadas como tal.

Apesar das construções que lançam sobre estes corpos difamações, piadas, desrespeito e preconceito, fazem de seus corpos e de sua subjetividade instrumentos de reinvindicação, de resistência e de luta. Essas posturas apontam para aquilo que Bento (2017b) sinaliza como armas de guerra, é em nome da abominação desses corpos abjetos que se lançam farpas, pedras, lâmpadas e merda. Nossos guetos se tornaram necrotérios de travestis, nosso país um imenso abatedouro que nos coloca no topo do ranking mundial de assassinatos de mulheres trans e travestis (Bento, 2017c). Mesmo sob essa égide dominante, as travestis têm resistido e têm lançado sua insatisfação com os enquadres que tentam tolher seus corpos; para muitas delas não há nenhum problema com sua subjetividade, muito menos com seu aparelho biológico.

Pâmela, outra entrevistada, referindo-se às possibilidades de relacionamento, expressa, com clareza, os sentidos de não aceitar que lhe digam quem ela é ou como deveria ser. “[...] para ficar comigo tem que me aceitar do jeito que eu sou. Me sinto bem do jeito que eu sou”. Seus corpos, e não só eles, são mais do que massa biológica, suas sexualidades e suas identidades não se findam num pênis ou num discurso, extrapolam as nomenclaturas, pois são vivências singulares.

O pensamento ocidental, fortemente influenciado por um conhecimento dominante, colonial, branco, heterossexual e cisgênero, teima em tomar as experiências travestis como patológicas, desordenadas e/ou aberrantes. A lógica de olhar para essas pessoas, em especial para seus corpos, mantém-se na binaridade, além de que passa a ser construída com base num pensamento ontológico essencialista. O corpo que é gerado, é investido de estigmas antes mesmo de nascer. Ousar romper com a predeterminação é uma tarefa com consequências posteriores uma vez que a lógica feminilidade-masculinidade se encontra colada na conexão vagina-pênis; romper com essa dualidade é lançar-se na abjeção, abrir mão de lugares de privilégio. Podemos comparar a transição a um novo nascimento que não precisa estar atrelado aos cromossomos, aos órgãos sexuais, ou aos papéis de gênero, um nascer que mesmo marcado pela binaridade aponta para novas possibilidades dimórficas e ambíguas, questionáveis, móveis e fluídas ( Silva, 2014Silva, A. P. D. (2014). O conceito de “corpo” nos estudos de gênero, feministas, gays, lésbicas e queers. In: A. P. D. Silva, R. M. Morais, T. V. A. Silva (Orgs), Artimanhas do desejo: Ensaios de literatura, psicologia, linguagens (pp. 141-161). São Paulo, SP: Scortecci. ).

Pâmela se refere ao processo de transição apontando a necessidade de ser vista de acordo com sua identificação, pois apesar de ter renascido, de ter encontrado um espaço de vivência onde se sente completa, inteira, renovada, precisa reafirmar sua identidade diariamente, em alguns momentos não chegando a ser aceita. “Por mais que a gente diga que somos travesti, não somos reconhecidas por isso”. As falas de todas as entrevistadas apontam para esse lugar impreciso, para esses olhares categorizadores e para esses discursos normatizantes que lançam em seus corpos uma lógica perversa, de exclusão, agenciamento e violência, não permitindo que sua forma de ser no mundo se manifeste de forma natural.

III - “Ela sempre desejou ter uma vida tão promissora, desobedeceu seu pai, sua mãe, o estado, a professora”: família, trabalho e escola como instrumentos de exclusão

A história de vida de uma pessoa é marcada por itinerários que variam de acordo com as particularidades pessoais, os ditames culturais, a época histórica, os grupos de pertencimento, dentre outros contextos. No caso das travestis, esse itinerário apresenta pontos de intersecção, geralmente marcados pela violência que perpassa espaços e instituições como a família, a escola, o mercado de trabalho e os espaços de lazer. Entendemos violência como um termo amplo e diverso, que abarca desde as violações corpóreas, a negligência, perpassando pelos contextos de exclusão e negação da efetivação de direitos (Souza, Malvasi, Signorellie, & Pereira, 2015).

Pelúcio (2005)Pelúcio, L. (2005) Na noite nem todos os gatos são pardos: Notas sobre a prostituição travesti, Cadernos Pagu, 1 (25), 217-248. , em pesquisa etnográfica, constata que muitas travestis se sentem abandonadas pelas famílias, um sentimento que causa solidão e angústia. Para estas, a família é sempre um espaço de ambivalência, no qual alguns membros acolhem a transição e outros repugnam, rechaçam e, não raro, expulsam de casa. Algumas delas relatam que precisam encontrar vias de conseguir dinheiro para reatar o laço afetivo familiar, sendo na maioria dos casos a prostituição a escolha mais rentável, visto que o mercado de trabalho formal dificilmente as absorve.

Essa relação conflituosa com os familiares pôde ser constatada nas três entrevistas aplicadas na penitenciária Juiz Plácido de Souza. Em todos os casos há ou houve ao menos um membro familiar que não aceitou as vivências travestis. Pâmela relata que seu pai nunca aceitou sua forma de falar, “Ele não aceitava que eu era travesti”. Evelin e Dandara têm irmãos com quem não mantêm relações, uma vez que estes se apresentam preconceituosos e transfóbicos. “Tem meu irmão que nem comigo não fala. Eu acho que é porque eu sou assim, preconceito. Meu pai no começo também não aceitou”. Desta forma podemos constatar que uma das primeiras esferas de violência que acomete a população travesti é a própria família. Tais dados corroboram com aqueles levantados por Amaral (2013)Amaral, T. C. (2013). Travestis, transexuais e mercado de trabalho: Muito além da prostituição. Anais do Seminário Internacional Enlaçando Sexualidades. Salvador, BA, Brasil, 3. Recuperado de http://www.uneb.br/enlacandosexualidades/files/2013/06/Travestis-transexuais-e-mercado-de-trabalho-muito-al%C3%A9m-da-prostitui%C3%A7%C3%A3o.pdf
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, sobre os quais se verifica que há dificuldades no reconhecimento da identidade, desde o momento em que estas apresentam rompimentos com o modelo cisgênero, heteronormativo.

Sendo o espaço familiar ambiente violador das identidades travestis, estas muito cedo saem de casa, enveredando-se pelos espaços que as aceitam; estes lugares quase nunca são as escolas, o mercado de trabalho formal ou as ruas em plena luz do dia. Restam-lhes os guetos, as margens e à noite as esquinas, onde lhes arremessam ovos e lixo, enquanto trabalham para se sustentar. “Tem uns filhinhos de papai que jogam ovos... A rua é muito perigosa, do jeito que as coisas tão, é difícil a gente chegar nos 40”. A fala de Dandara expõe uma realidade assustadora, que aponta para a expectativa de vida das travestis no Brasil. Enquanto outros segmentos populacionais têm como média de vida entre 60 e 70 anos, as travestis têm como expectativa os 35 anos ( Antunes, 2010Antunes, P. P. S. (2010). Travestis Envelhecem? São Paulo, SP: PUC. ). Dandara chega a relatar um caso em que uma amiga foi assassinada aos 16 anos, pouco depois de se apresentar como travesti.

Outro ambiente em que a violação se apresenta de forma manifesta é a escola. Bohm (2009)Bohm, A. M. (2009). Os “monstros” e a escola: Identidade e escolaridade de sujeitos travestis (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. trata destas questões apontando que as travestis são vistas como monstros, não havendo espaço para existirem dentro dos ditames normativos da educação. Segundo a autora as dificuldades iniciam desde a matrícula, perpetuando-se no respeito ao nome social, nas relações com os demais alunos e consequentemente com os professores e funcionários de um modo geral, quase sempre despreparados para lidar com demandas de identidade de gênero diferentes do modelo padronizado, sobre o qual estão instituídas as normativas da educação.

Das três entrevistadas, duas discorreram brevemente sobre seu acesso às escolas, uma delas na modalidade de ensino para jovens e adultos, uma vez que quando em idade regular não conseguiu manter-se na escola e outra que abandonou a escola ainda muito jovem, tendo como motivo sua inadequação ao ambiente. “A escola não é pra gente, travesti na escola só serve de piada”. Duas não completaram o ensino fundamental e uma delas é analfabeta, dados que podem ser fundamentados através da pesquisa de Bortolini (2005)Bortolini, A. (2005). Diversidade sexual na escola. Saúde e Educação para a Cidadania, 1 (1) 52-56. , que sinaliza o despreparo de profissionais da educação ao lidar com demandas como nome social e uso do banheiro, além da estereotipação e reprodução de preconceitos.

“Infelizmente ainda é no escuro da noite que se concentra a maior porcentagem da carreira profissional e da visibilidade das transgêneros” ( Carvalho, 2006Carvalho, E. R. (2006). “Eu quero viver de dia”: Uma análise da inserção das transgêneros no mercado de trabalho. Anais Seminário Fazendo Gênero (pp. 1). Florianópolis, SC, Brasil, 4. Recuperado de http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/E/Evelyn_Carvalho_16.pdf
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, p. 1). Dados comprovam que o índice de travestis que ingressa no mercado da prostituição é imenso; tal dado aponta para uma realidade social que dá pouca abertura para outras possibilidades de trabalho. Não queremos aqui fazer uma crítica à prostituição, mas lançamos reflexões sobre o motivo de encontrarmos essas figuras com maior facilidade numa esquina noturna, que em qualquer outro ambiente de trabalho. Dandara transita entre a Paraíba e Pernambuco realizando programas noturnos, é algo que gosta de fazer, relatando que foi o espaço encontrado para conseguir dinheiro. “Tenho minhas contas para pagar e na rua eu consigo ser meu próprio sustento, em outros lugares não aceitam a gente”.

As travestis são, assim, impedidas de vivenciar aspectos que são comuns para a maioria das pessoas cisgêneras, tais como: acesso à educação, vivências familiares, saúde, mercado de trabalho. O espaço doméstico se torna violento, obrigando a saída de muitas travestis de suas famílias, a escola não consegue acolher suas demandas, o mercado de trabalho limita-se à estética, arte ou prostituição. As experiências travestis são lançadas no campo da abjetificação, da monstruosidade, da marginalidade e do caos; o controle que lança sobre seus corpos exigências e lança normativas não permite a vivência em espaços que não aqueles predeterminados pelo sistema vigente. Estas seguem afastadas dos centros, são, por assim dizer, subjetividades periféricas.

IV - “Que eu sou uma bicha, louca, preta, favelada”: intersecções de gênero, etnia e classe social

As intersecções entre gênero, etnia e classe social correspondem a agravantes das violências e violações sofridas por quase todos os grupos sociais. Faremos aqui aproximações entre estas esferas e a população de travestis. Tomando como base as discussões de Barata (2009)Barata, R. B. (2009). Como e porque as desigualdades sociais fazem mal à saúde. Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz. , sobre as desigualdades sociais em saúde, e ampliando estas para outros contextos, vislumbramos óticas interseccionais que em muitos casos são utilizadas para negligenciar, negar ou retirar direitos das travestis. Ser travesti negra, pobre, no interior pernambucano, certamente tem especificidades diferentes de uma travesti branca, da classe média, de uma grande capital. O espaço do interior ainda guarda consigo, de forma talvez mais acentuada, ranços acerca das identidades travestis.

Uma das entrevistadas, Pâmela, costumava viajar para outros estados, tendo residido em duas capitais, uma no Nordeste, outra no Sudeste, além da cidade de Caruaru. Num destes espaços chegou a morar com um juiz, modificando assim seu status social. Os fatores regionais e de classe interferiram diretamente na forma como era percebida. Pâmela fala que as experiências entre ser travesti na cidade de Caruaru e em uma capital do Sudeste são extremamente díspares, uma vez que o contexto que a circunda apresentava desdobramentos diferenciados. “Se eu pudesse eu não teria nem voltado desses lugares, eu me arrependo muito. Se arrependimento matasse eu não estaria nem aqui fazendo essa entrevista com você”.

Dessa forma, podemos compreender que para além dos estigmas de gênero, sofridos pela vivência travesti, pode haver agravantes, quando associados a esses contextos se encontram fatores como classe social, regionalidades e etnia. As três travestis entrevistadas fazem parte de um contexto social de vulnerabilidade, em determinados momentos não chegando a receber sequer um salário mínimo. Dandara e Evelin relatam a carência de suas famílias, uma delas afirma precisar ajudar financeiramente a mãe, mesmo estando presa, em muitos momentos pegando dinheiro emprestado e pagando com serviços diversos, como a lavagem de roupa.

Eu pedi 40 reais emprestado ao menino lá embaixo, pra poder quando eu lavar as roupas essa semana pagar a ele, porque minha mãe tava sem nada dentro de casa. Ela chega chorou na minha frente. Chega eu olhei assim pra ela que eu comecei chorar na frente da visita que tava lá no pavilhão da gente.

Para além destas esferas já observadas como possíveis agravantes das relações de violação e violência, podemos associar questões como a profissão e o uso de drogas, não num viés de criminalização, mas numa análise de conjuntura que marginaliza os usuários de drogas e as prostitutas, realidades muito próximas das três entrevistadas que relatam ter feito uso de variados tipos de drogas, além de trabalharem com a prostituição em algum momento de sua vida. “Já usei o crack , já usei o pó, mas não gostei do pó. O crack é pior do que o pó, que destruiu foi minha vida, tempos atrás quando eu era mais nova já cheirei cola, já usei tíner, já usei pedra, já usei o pó e a maconha e o cigarro”. Os dados obtidos aqui convergem com os apontados por Garcia (2008)Garcia, M. R. V. (2008). Prostituição e atividades ilícitas entre travestis de baixa renda. Cadernos de Psicologia Social do Trabalho, 11 (2), 241-256. https://doi.org/10.11606/issn.1981-0490.v11i2p241-256
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, que em análise do perfil de travestis em São Paulo, obteve informações de que o uso de substâncias psicoativas de forma excessiva entre estas era uma realidade comum, havendo o vício principalmente no crack . “Eu acho que eu tô aqui mesmo é môde o crack ”.

Dandara, por sua vez, expõe sua realidade de travesti e prostituta noturna apontando os riscos que se amplificam para aquelas que ganham a vida nas esquinas e ruas da cidade. “Passa um macho, tira onda, tem uns que desce pra bater. Eu já fui agredida, já levei tiro e tudo. Carreira com um facão”. Vemos, através deste relato, que o risco de agressão durante o turno de serviço é ainda maior, não há respeito aos corpos e subjetividades que se encontram nas praças e esquinas, a sensação é de que a norma vigente, os fatores culturais, os lugares ocupados por estes corpos femininos naturalizam a violência, lançam-se sobre elas ovos, gritos, piadas e não raro balas e facas. Corpos estirados no chão, como que em um frigorífico humano, parecem escandalizar menos que corpos vivos, potentes, femininos; no final das contas a legitimação da violência toma como base as construções biológicas, sendo seus órgãos genitais o alvo central dos ataques ( Bento, 2016Bento, B. (2016). Transfeminicídio: Violência de gênero e o gênero da violência. In: L. Colling (Org.), Dissidências sexuais e de gênero (pp. 45-67). Salvador, BA: EDUFBA. ).

V - “Você finge não escutar, abusa da minha inteligência”: contribuições da Psicologia às detentas travestis

O Conselho Federal de Psicologia traz em uma de suas referências técnicas recortes da prática profissional no cárcere, levantando críticas às intervenções nos moldes rígidos e patológicos que fundaram a intervenção psicológica em tais instituições, mas em nada se refere à população travesti (Conselho Federal de Psicologia, 2012). Tais pressupostos apontam para a necessidade de discussões e formulações que aproximem as intervenções psicológicas das variações de gênero no cárcere.

Quando questionada sobre o acesso ao setor psicossocial da instituição Pâmela diz: “Eu já subi aqui com umas coisas que as meninas fazem que é GSBT, mas as vezes quando estão com raiva, ou colocam algo na cabeça deles. Aí as vezes pode impedir a gente de fazer”. Tal fala aponta para os agenciamentos institucionais que em muitos momentos são responsáveis pela não efetivação do atendimento psicológico às travestis. A Psicologia precisa romper com os moldes que se encontram na origem de sua prática, a saber, a clínica tradicional, na qual se espera a chegada da demanda. Numa perspectiva social, a lógica se inverte, sendo dever do profissional ir em busca das situações de vulnerabilidade. Como visto através dos recortes das falas das entrevistadas, torna-se primordial intervir junto a essa população.

Rauter (2016)Rauter, C. (2016) O trabalho do psicólogo em prisões. In: F. França, P. Pedro, T. Rodrigo (Orgs.), O Trabalho da(o) psicóloga(o) no sistema prisional: Problematizações, ética e orientações (pp. 43-52). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. sinaliza o aumento da população carcerária brasileira, em especial após os anos 2000, em contrapartida não se verificam grandes mudanças nos aparatos governamentais e públicos. Nas lacunas da garantia de assistência que deveria ser oferecida pelo Estado, multiplicam-se os problemas e as demandas de detentas e detentos, muitas vezes “solucionados” numa via distante da laicidade, por intermédio das igrejas, cada vez mais presentes nesses espaços, ou coladas num modelo assistencialista, adotado por muitas facções, também reforçadas ao longo dos últimos anos.

Apesar dos investimentos do Conselho Federal de Psicologia e dos Conselhos Regionais, no que concerne à ampliação da atuação dos profissionais nas penitenciárias, as intervenções permanecem, em sua grande maioria, atreladas às demandas judiciais, principalmente aquelas oriundas no processo de finalização de pena. A Psicologia se encontra desta maneira oferecendo respostas ao direito, quando poderia atuar em outras perspectivas como, na garantia de direitos, fortalecimento de vínculos e melhoria da qualidade de vida dos detentos e das detentas ( Rauter, 2016Rauter, C. (2016) O trabalho do psicólogo em prisões. In: F. França, P. Pedro, T. Rodrigo (Orgs.), O Trabalho da(o) psicóloga(o) no sistema prisional: Problematizações, ética e orientações (pp. 43-52). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. ).

Quando somados a estes aspectos se encontram recortes interseccionais, em especial aqueles voltados a gênero, numa perspectiva ainda mais detalhada voltada ao público de travestis e transexuais, vemos emergir um novo desafio, uma vez que o próprio conselho, apesar de oferecer diretrizes sobre a atuação dos psicólogos no sistema prisional, não traz nos materiais fornecidos orientações no que concerne à atuação junto às travestis encarceradas em instituições que negam sua identidade de gênero (Conselho Federal de Psicologia, 2012).

Talvez de maneira utópica, neste último momento da análise surgem reflexões sobre a atuação dos profissionais de Psicologia no contexto de cárcere. O aumento do efetivo de profissionais inseridos nas instituições de privação de liberdade poderia ser entendido como a solução dos problemas vivenciados no cárcere? A resposta já se apresenta bastante evidente, uma vez que se percebe que a inserção desses profissionais nada resolverá, se mudanças estruturais não forem realizadas. No caso da penitenciária Juiz Plácido de Souza, por exemplo, três profissionais de Psicologia precisam responder as demandas de 1.300 detentos e detentas, em muitos momentos sem espaço físico para atuação, em outros, limitadas devido aos agenciamentos institucionais e/ou às demandas jurídicas. Em condições insalubres, perpetuam-se atuações pontuais que não atingem a grande massa de encarcerados ( Rauter, 2016Rauter, C. (2016) O trabalho do psicólogo em prisões. In: F. França, P. Pedro, T. Rodrigo (Orgs.), O Trabalho da(o) psicóloga(o) no sistema prisional: Problematizações, ética e orientações (pp. 43-52). Brasília, DF: Conselho Federal de Psicologia. ).

Enquanto nossa atuação se perpetuar numa lógica de produção de laudos e pareceres, que em muitos casos são produzidos a partir de poucos contatos com a/o detenta/detento; enquanto o efetivo de profissionais for ínfimo em relação ao quantitativo de encarceradas/encarcerados, não havendo a possibilidade de trabalhos significativos na vida das pessoas privadas de liberdade, não haverá grandes avanços. A forma como lidamos com o sistema carcerário aponta para negligência e abandono, afinal na lógica da meritocracia e do capitalismo, “bandido bom é bandido morto” ( Bueno, 2014Bueno, S. (2014). Bandido bom é bandido morto: A opção ideológico-institucional da política de segurança pública na manutenção de padrões de atuação violentos da polícia militar paulista (Dissertação de mestrado). Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, SP, Brasil. ). Para além disso, se as/os detentas/detentos carregam outros estigmas, seja por pertencerem a um grupo étnico divergente do padrão, por apresentar uma sexualidade dita desviante ou por expressar sua identidade de gênero numa lógica subversiva, as violações se amplificam.

Travestis encarceradas, por exemplo, são vistas como homens fantasiados de mulher, como veados ou como sujeitos inferiores. Sobre seus corpos recai o assédio, sobre seu discurso a incompreensão e sobre sua subjetividade a indiferença. O que a Psicologia faz ou fará para mudar esta realidade é um questionamento que esta pesquisa não consegue alcançar em sua totalidade; afinal de contas, não encontramos subsídios científicos e/ou técnicos para lidar com tais demandas. Mas enquanto nos calarmos frente aos problemas vivenciados pelas travestis encarceradas seremos reprodutores de um saber técnico científico distante da realidade, dos discursos e das experiências singulares. A mudança só será efetiva quando nos desprendermos dos modelos fixos de atuação e conduta profissional; caso contrário, estaremos reproduzindo uma ciência elitista, branca, cisgênera e heteronormativa.

Algumas considerações

Este trabalho aponta para a necessidade de ampliação dos estudos sobre gênero, em especial daqueles voltados às travestis e/ou transexuais, realizando intersecções com contextos como o cárcere, sua história de vida, raça, indicadores de violência, dentre outras aproximações que apontam para a realidade de tal população em nosso país.

As evidências aqui apresentadas sinalizam uma realidade que perpassa pela violência, através dos altos índices de assassinatos de travestis e transexuais no Brasil, pela incompreensão, em muitos momentos oriunda dos contextos familiares, além da negligência e ineficiência do Estado em oferecer subsídios para que estas pessoas tenham acesso digno à saúde, educação, emprego e renda. A baixa expectativa de vida de travestis, em comparação com outros recortes, dá indícios que vão além dos dados de violência, aponta a omissão do Estado, a negligência da ciência e o descaso ou incompreensão por parte da sociedade. As manifestações travestis se encontram à margem de qualquer discussão, as abjetificações perpetuam-se, mesmo em ambientes que deveriam colocar tais corpos e subjetividades em evidência.

Quando somados aos aspectos mencionados, encontra-se a intersecção com o cárcere, vemos emergir ainda mais violações, a começar pelo direcionamento desses corpos femininos para penitenciárias masculinas, desconsiderando parcial ou totalmente suas identidades. O cárcere se torna, desta forma, uma amplificação das violências e negligências sofridas fora dele. As penitenciárias foram construídas numa lógica cisgênera heterossexual e masculina, corpos e subjetividades que se afastam deste modelo são obrigados a enquadrar-se, numa lógica perversa, violenta e desumana.

Neste meandro de situações conflituosas e violentas surge o questionamento sobre o papel da Psicologia nesses contextos. Tal reflexão nos põe num lugar de incômodo e impasse para com a ciência, uma vez que, apesar dos novos espaços ocupados por ela, em muitos momentos há a reprodução de um modelo psicológico biologizante, centrado na lógica médica, excludente e individual. Uma Psicologia que não atenta para as demandas interseccionais pode ser considerada por demais limitada, uma vez que seu saber se direciona a grupos específicos, negligenciando identidades já marginalizadas socialmente.

Este trabalho não tem por perspectiva esgotar as discussões acerca desta temática, pelo contrário o objetivo aqui é problematizar sobre os lugares das travestis, em especial daquelas inseridas no contexto carcerário masculino, além de oferecer visibilidade às discussões que associam gênero, cárcere e Psicologia, verificando, assim, os devires da atuação profissional de Psicologia na penitenciária, realizando interseções com travestis e/ou transexuais.

A fala, o choro e o silêncio das travestis encarceradas precisam ser escutados e manejados; afinal de contas, suas identidades já são tolhidas em muitos espaços, não cabe à Psicologia reforçar estigmas ou negligenciar atendimento. Uma ciência que não se propõe a construir um conhecimento que possibilite mudança efetiva na vida de pessoas marginalizadas se torna reprodutora de conceitos e perpetuadora de violência. Precisamos assumir nossa responsabilidade frente aos desdobramentos das vivências travestis. Qual nossa incumbência frente aos corpos mortos e jogados nos guetos? Qual nossa atuação frente à negação da identidade feminina das travestis e/ou transexuais? Como podemos contribuir para melhoria da qualidade de vida dessa população? A quem nosso conhecimento serve? Que este trabalho seja grito. Convite contundente para implicação da Psicologia na proposição de caminhos! Que a construção de conhecimentos na Psicologia seja via potente de transformações sociais que visem à garantia de direitos e minimização de desigualdades, no cárcere, das travestis e onde houver marginalização e violação de direitos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2018

Histórico

  • Recebido
    19 Ago 2018
  • Aceito
    23 Ago 2018
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