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Mapeamento dos Riscos Psicossociais no SAMU/DF

Mapping of Psychosocial Risks in the SAMU/DF

Mapeo de los Riesgos Psicosociales en el SAMU/DF

Resumo

Com o objetivo de mapear os riscos psicossociais no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) do Distrito Federal, este estudo baseia-se nos preceitos da teoria da Psicodinâmica do Trabalho (PdT), para pensar as relações entre saúde e trabalho e as implicações da relação organização do trabalho, gestão e trabalhador, envolvendo a noção de intersubjetividade. Propõe-se que a intersubjetividade pode ser investigada, ainda que de maneira indireta, em instrumentos de avaliação por meio de categorias empíricas, fundamentadas teoricamente em abordagens críticas e clínicas como a Psicodinâmica do Trabalho e a Psicanálise. Como ferramenta quantitativa optou-se por aplicar o Protocolo de Avaliação dos Riscos Psicossociais (PROART), uma ferramenta desenvolvida no Brasil, que abarca a investigação de quatro dimensões que envolvem a relação trabalhador-organização do trabalho, a saber: organização prescrita do trabalho (normas e regras instituídas); estilos de gestão; sofrimento patogênico; e danos psicossociais. Como amostra de conveniência, também foram realizadas cinco entrevistas semiestruturadas para investigar os dados fornecidos referentes aos adoecimentos. Os resultados obtidos apontam que os riscos psicossociais mais críticos para o desenvolvimento da tarefa referem-se à insuficiência de recursos de trabalho, espaço físico inadequado, equipe reduzida e injustiça na distribuição de tarefas. Também é relatado o forte controle das regras e valorização da hierarquia. O sofrimento patogênico refere-se à exaustão emocional, expressa pelos respondentes na submissão do trabalho às decisões políticas, ao cansaço e desgaste pelo excesso de horas extras e esforço físico nos atendimentos. Os resultados puderam embasar discussões para ações e políticas de prevenção em saúde e trabalho.

Saúde do Trabalhador; SAMU; Protocolo de Riscos Psicossociais no Trabalho

Abstract

With the goal of mapping the psychosocial risks in the Mobile Emergency Service (SAMU) in the Federal District, this study is based on the precepts of Psychodynamic theory (PdT) to think about the relationship between health and work and the implications of the relationship of organization of work, management and workers, involving the notion of intersubjectivity. It is proposed that intersubjectivity can be investigated, even if indirectly, in evaluation tools through empirical categories theoretically based in critical approaches and clinics as the Psychodynamics work and psychoanalysis. As a quantitative tool we decided to apply the Protocol for the evaluation of psychosocial risks (PROART), a tool developed in Brazil, which includes the investigation of four dimensions involving the relation worker-organization of work, namely: prescribed organization of work (established standards and rules); management styles; pathogenic suffering. As a convenience sample, five semi-structured interviews were also carried out to investigate data provided related to the diseases. The results obtained show that the most critical psychosocial risks to the development of the task refer to insufficient work resources, inadequate physical space, reduced staff and injustice in the distribution of tasks. It is also reported the strong control of the rules and the valuation of the hierarchy. The pathogenic suffering refers to emotional exhaustion, expressed by respondents in submitting work to policy decisions, fatigue and wearing out by excess overtime and physical effort in work. The results could support discussions to prevention actions and policies on health and work.

Worker’s Health; SAMU; Protocol of Psychosocial Risks at Work

Resumen

Con el objetivo de mapear los riesgos psicosociales en el Servicio de Atención Móvil de Urgencia (SAMU) del Distrito Federal, este estudio se basa en los preceptos de la teoría de la Psicodinámica del Trabajo (PdT), para pensar las relaciones entre salud y trabajo y las implicaciones de la relación de la organización del trabajo, gestión y trabajador, envolviendo la noción de intersubjetividad.. Se propone que la intersubjetividad pueda ser investigada, aunque de manera indirecta, en instrumentos de evaluación por medio de categorías empíricas, fundamentadas teóricamente en abordajes críticos y clínicos como la Psicodinámica del Trabajo y el Psicoanálisis. Como herramienta cuantitativa se optó por aplicar el Protocolo de Evaluación de los Riesgos Psicosociales (PROART), una herramienta desarrollada en Brasil, que abarca la investigación de cuatro dimensiones que envuelven la relación trabajador-organización del trabajo, a saber: organización prescrita del trabajo (organización) normas y normas establecidas); estilos de gestión; sufrimiento patógeno; y daños psicosociales. Como muestra de conveniencia, también se realizaron cinco entrevistas semiestructuradas para investigar los datos suministrados referentes a las enfermedades. Los resultados obtenidos apuntan que los riesgos psicosociales más críticos para el desarrollo de la tarea se refieren a la insuficiencia de recursos de trabajo, espacio físico inadecuado, equipo reducido e injusticia en la distribución de tareas. También se informa el fuerte control de las reglas y la valoración de la jerarquía. El sufrimiento patogénico se refiere al agotamiento emocional, expresado por los respondedores en la sumisión del trabajo a las decisiones políticas, al cansancio y desgaste por el exceso de horas extras y esfuerzo físico en las atenciones. Los resultados pudieron basar discusiones para acciones y políticas de prevención en salud y trabajo.

Salud del Trabajador; SAMU; Protocolo de Riesgos Psicosociales en el Trabajo

Introdução

A revisão da literatura e estado da arte, referente aos fatores de risco psicossocial, foi baseada na metodologia em Psicodinâmica do Trabalho (PdT) e no Protocolo de Investigação dos Riscos Psicossociais no Trabalho (PROART), fundamentado em abordagens críticas e clínicas do trabalho. Sua aplicação é voltada primordialmente para o mapeamento dos riscos psicossociais no trabalho, a partir de instrumentos que envolvam a investigação de diversas dimensões que envolvem a inter-relação saúde-trabalho.

Conhecer a que riscos os trabalhadores estão expostos nos contextos de trabalho vem sendo um dos grandes desafios para a promoção da saúde e segurança ocupacional e um dos grandes pilares da gestão para redução do absenteísmo e readaptação ao trabalho.

Investigar a organização, as condições de trabalho, as oportunidades de desenvolvimento que este permite, ao balanço entre trabalho e vida fora dele, o envelhecimento da população ativa, a precarização são algumas contribuições que podem auxiliar na busca pela integridade física, psíquica e social pelos trabalhadores em sua organização do trabalho e se viabiliza pelo uso eficaz de estratégias de mediação para responder às diversidades do contexto de produção, possibilitando a ressignificação ou transformação do sofrimento no trabalho. Entende-se que a saúde não pressupõe a ausência de sofrimento no trabalho, mas as possibilidades de o trabalhador transformá-lo. Para tal, é necessário que o trabalhador seja reconhecido em seu esforço e investimento na tarefa, possibilitando assim que o sofrimento vivenciado tenha sentido (Facas, Machado, & Mendes, 2012; Ferreira, 2008Ferreira, M. C. (2008). “Chegar feliz e sair feliz do trabalho”: aportes do reconhecimento no trabalho para uma ergonomia aplicada à qualidade de vida no trabalho. In: A. M. Mendes (Org.), Trabalho e saúde: O sujeito entre emancipação e servidão. Curitiba, PR: Juruá.; Mendes, 2007a, Ferreira, & Mendes, 2003).

Riscos psicossociais

Em artigos publicados pela European Agency for Safety and Health at Work (Agência Européia para a Segurança e Saúde no Trabalho, 2015Agência Européia para a Segurança e Saúde no Trabalho. (2015). Inquéritos e estatísticas. Bilbao: o autor. Recuperado de https://osha.europa.eu/en/tools-and-publications/publications
https://osha.europa.eu/en/tools-and-publ...
), sobre o manejo do estresse e dos riscos psicossociais no trabalho, sete1 1 Países pesquisados: Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Espanha, Polônia, Eslovênia e Finlândia. países europeus relacionaram problemas na organização do trabalho, tais como pressão excessiva, planejamentos sem a presença dos trabalhadores e seus representantes sindicais, gestores autoritários, falta de capacitação com o aumento de absenteísmo e adoecimento nas organizações. O inquérito realizado no ano de 2014 no Observatório sobre Saúde e Trabalho na Comunidade Europeia (EU-OSHA), que recolheu as respostas de 50 mil empresas em matéria de gestão de segurança e saúde no trabalho, apontou maior prevalência nos riscos psicossociais (OSHA, 2015).

Na América Latina, o governo do Chile, por meio de um Grupo de Trabalho do Ministério da Saúde (Suseso, 2009Superintendencia de Seguridad Social – Suseso. (2009). Istas 21: Cuestionario de evaluación de riesgos psicosociales en el trabajo: Manual de uso. Chile: Superintendencia de Seguridad Social.), produziu um Protocolo de Vigilância dos Riscos Psicossociais no Trabalho. Para os integrantes do Grupo de Estudos, o Chile tem grandes desafios em matéria de saúde ocupacional, não só do ponto de vista das regulações e normativos, mas também a uma série de situações e condições, como os riscos psicossociais, em que ocorre um grande número de adoecimentos.

Em pesquisa realizada pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), no período de 2000 a 2011, há evidências de que durante 12 anos os afastamentos por riscos ergonômicos e sobrecarga mental têm superado os traumáticos (Brasil, 2016Brasil. Ministério do Trabalho e Previdência Social. (2016). Ícone saúde e segurança do trabalhador: Estatísticas de saúde e segurança no trabalho (2016). Brasília, DF: o autor. Recuperado de http://www.mtps.gov.br
http://www.mtps.gov.br...
).

Em relatório do governo do Distrito Federal, referente ao biênio 2011-2012, com objetivo de analisar o absenteísmo-doença dos servidores, observou-se que os motivos relacionados aos Transtornos Mentais e Comportamentais (CID F) são os motivos mais críticos, os que mais afastam, afastam por mais tempo e custam mais ao Estado, além de apresentar uma situação crítica também para o quantitativo de servidores afastados (Conselho Nacional de Secretarios de Estado da Administração Pública, 2011-2012).

Assim, conhecer a que riscos os trabalhadores estão expostos torna-se fundamental para que ações sejam tomadas.

Psicodinâmica do trabalho

No Brasil, no campo da Psicologia Social, o modelo teórico-conceitual da PdT vem sendo utilizado para a análise do conflito entre organização do trabalho e o trabalhador a fim de entender quais processos são mobilizados pelos sujeitos para garantir sua saúde no trabalho. Pesquisar a organização do trabalho significa investigar a forma como as tarefas são definidas, divididas e distribuídas, a forma como são concebidas as prescrições, bem como a forma como se operam a fiscalização, o controle, a ordem, a direção e a hierarquia. Trata das representações relativas à natureza e à divisão das tarefas, normas, controles e ritmos de trabalho.

Dejours (2004)Dejours, C. (2004). Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, 3(14), 27-34. explica: a PdT defende que o trabalho não é redutível a uma atividade de produção no mundo objetivo, ao colocar sempre a subjetividade do trabalhador à prova, fazendo com que saia transformada. Trabalhar, então, é transformar a si mesmo, uma possibilidade privilegiada para a subjetividade se testar, se realizar – nas palavras do autor, “uma provação que a transforma” (Dejours, 2004Dejours, C. (2004). Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, 3(14), 27-34., p. 30). Na PdT, o desenvolvimento da subjetividade passa pela relação dinâmica entre o sofrimento e o prazer.

A PdT, para Alderson (2004)Alderson, M. (2004). La psychodynamique du travail: Objet, considerations épistémologiques et premisses théoriques. Santé mentale au Québec, 29(1), 243-260. https://doi.org/10.7202/008833ar
https://doi.org/10.7202/008833ar...
, considera que o sofrimento é inseparável de qualquer situação de trabalho, isto é, inerente à condição do homem no trabalho. Define como um estado de mobilização constante dos trabalhadores para não sucumbirem ao adoecimento. As contradições nas regras de trabalho, a comunicação inapropriada são os motivos que conduzem ao adoecer do trabalhador e ao sofrimento físico, psíquico e emocional. O sofrimento também pode ser definido, segundo Ferreira (2008)Ferreira, M. C. (2008). “Chegar feliz e sair feliz do trabalho”: aportes do reconhecimento no trabalho para uma ergonomia aplicada à qualidade de vida no trabalho. In: A. M. Mendes (Org.), Trabalho e saúde: O sujeito entre emancipação e servidão. Curitiba, PR: Juruá., como:

[...] uma vivência individual e/ou compartilhada frequente e permanentemente, muitas vezes inconsciente, de experiências dolorosas como angústia, medo e insegurança, provenientes dos conflitos entre as necessidades de gratificação das pessoas e as restrições impostas no contexto de produção do trabalho (Ferreira, 2008Ferreira, M. C. (2008). “Chegar feliz e sair feliz do trabalho”: aportes do reconhecimento no trabalho para uma ergonomia aplicada à qualidade de vida no trabalho. In: A. M. Mendes (Org.), Trabalho e saúde: O sujeito entre emancipação e servidão. Curitiba, PR: Juruá., p. 80).

O sofrimento será patogênico quando não houver possibilidade de adaptação entre a organização do trabalho e o desejo dos sujeitos, quando as margens de liberdade na transformação, gestão e aperfeiçoamento da organização do trabalho já foram utilizadas e esgotadas. O trabalhador, impedido de exercitar sua capacidade criadora, vivencia persistentemente o fracasso, podendo chegar a comprometer sua saúde. Essa capacidade criadora, de origem pulsional, não deve ser subempregada – ou levará o sujeito à patologia. A potencialização e a recorrência do sofrimento podem levar à desestabilização e resultar em uma crise de identidade, na medida em que o trabalhador passa a duvidar de sua capacidade e competência. Esse processo abre caminho para a manifestação de patologias – psíquicas e/ou somáticas – caracterizando assim o sofrimento como patogênico (Dejours, 2011Dejours, C. (2011). Para uma clínica da mediação entre psicanálise e política: A psicodinâmica do trabalho. In: S. Lancman, L. I. Sznelwar (Orgs.), Christophe Dejours: Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.; Moraes, 2013Moraes, R. D. (2013). Sofrimento criativo e patogênico. In: F. O. Vieira, A. M. Mendes, A. R. C. Merlo, Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. Curitiba, PR: Juruá.).

São marcas do agravamento desse sofrimento patogênico a cultura do individualismo e as decorrentes precarizações da cooperação, do reconhecimento e do espaço de convívio. Destacam-se também, nesse cenário, os modelos de avaliação individualizada, que contribuem para o aumento da competição e para a consequente desestruturação da rede de solidariedade e cooperação. Esse isolamento dos trabalhadores leva à intensificação do sofrimento e aumenta os riscos psicossociais no trabalho (Dejours, 2011Dejours, C. (2011). Para uma clínica da mediação entre psicanálise e política: A psicodinâmica do trabalho. In: S. Lancman, L. I. Sznelwar (Orgs.), Christophe Dejours: Da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Fiocruz.; Moraes, 2013Moraes, R. D. (2013). Sofrimento criativo e patogênico. In: F. O. Vieira, A. M. Mendes, A. R. C. Merlo, Dicionário crítico de gestão e psicodinâmica do trabalho. Curitiba, PR: Juruá.).

Kaes (1991) considera que a realidade psíquica é mobilizada, elaborada e apoiada na dinâmica organizacional, e que as instituições estruturam e sustentam uma identidade, representando assim um objeto para o indivíduo, passando a funcionar como um sistema de vínculos do qual o sujeito é parte interessada e integrante. As instituições regulam as relações, sendo a vida psíquica particular influenciada pela presença do outro, que funciona como modelo aliado e adversário, introduzindo o indivíduo no mundo simbólico pela apresentação da lei, de uma linguagem articulada e pelos procedimentos de aquisição dos referenciais de identificação.

Gaulejac (2005)Gaulejac, V. (2005). Gestão como doença social. São Paulo, SP: Ideias e Letras. escreve que o ethos da promessa sedutora e cativante da linguagem empresarial contribui para que, em momentos de incertezas, o indivíduo tenha garantias de que, seguindo as leis da organização, alcançará a completude. Pode-se entender como completude a redução das excitações psíquicas no organismo.

Neste cenário, a preocupação com a saúde dos trabalhadores deve ser central nas organizações. Contudo, o que se vê é uma inversão da lógica proposta pelas ciências da saúde: as ações organizacionais estão muito mais atreladas a uma lógica curativa e assistencialista – espera-se o trabalhador adoecer para só então intervir. E mesmo quando existem ações preventivas, elas são desconectadas da realidade de trabalho e muitas vezes não há preocupação com o que, no contexto de trabalho, causam ou potencializam o adoecimento. A pergunta que deve ser feita pelos gestores é: “o que é que está causando esse adoecimento?”. Para propor ações que sejam efetivas para a saúde do trabalhador, é necessário pensar o que causa ou poderá causar o adoecimento. Historicamente nas organizações essa investigação de causas parece ter sido negligenciada (Facas, 2013Facas, E. P. (2013). Protocolo de avaliação dos riscos psicossociais no trabalho: Contribuições da psicodinâmica do trabalho. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF.).

A proposta é que a saúde do trabalhador seja pensada antes do adoecimento, buscando substituir um modelo curativo e assistencialista por uma lógica preventiva. Faz-se necessário que as práticas sejam refletidas e discutidas não somente com uma visão tecnicista, mas principalmente no nível de políticas de saúde, que envolvam todos os níveis organizacionais – gestores, chefias, subordinados.

Um ponto de partida para práticas preventivas são as pesquisas e diagnósticos organizacionais. A compreensão da relação saúde e trabalho envolve o entendimento e conhecimento de diversas dimensões organizacionais – cultura, valores, clima, contexto de trabalho, qualidade de vida no trabalho, dentre outras. Os resultados de pesquisas funcionam como “mapas”, no sentido de orientar a elaboração de práticas mais adequadas ao contexto organizacional.

A escolha do tipo de instrumento de coleta de dados a ser utilizado nos mapeamentos e diagnósticos é uma etapa de suma importância para o delineamento da pesquisa. É fundamental que essa escolha esteja alinhada a uma concepção teórica do que será investigado. Para isso, o pesquisador deve ter clareza das dimensões que compõe, a partir dessa teoria, esse fenômeno. Trata-se de uma etapa fundamental de qualquer processo de construção de pesquisa, visto que a escolha de instrumentos fundamentados em teorias que muitas vezes não dialogam entre si pode levar a algumas dificuldades, como a própria leitura, interpretação e discussão dos resultados e a própria construção de ações voltadas para lidar com as demandas que os resultados mostram. Essa elaboração de ações tem que levar em consideração toda a concepção do fenômeno.

Metodologia

A pesquisa é do tipo exploratório, com abordagem quanti e qualitativa utilizando a triangulação de métodos. Nesse sentido, a triangulação metodológica pode “iluminar a realidade a partir de vários ângulos, o que permite confluências, discordâncias, perguntas, dúvidas, falseamentos, numa discussão interativa e intersubjetiva na construção e análise dos dados” (Marsiglia, & Gomes, 2003, p. 136).

Busca-se combinar a abordagem qualitativa – investiga diretamente com as pessoas envolvidas questões relativas a situações da vida humana; conhece e compreende significados e práticas individuais e coletivas, focalizando crenças, expectativas, valores, desejos, conhecimentos e sentimentos – com métodos quantitativos. Com base nestes princípios, a intervenção pretendeu engajar os diferentes atores como porta-vozes na investigação da inter-relação saúde-trabalho no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU). A partir da utilização de levantamento documental, observações, aplicação do PROART, entrevistas semiestruturadas e posteriores análises estatísticas e de conteúdo, buscou-se caracterizar os riscos psicossociais existentes e avaliar a adequação do conteúdo do PROART para a realidade do SAMU.

O PROART foi validado com uma amostra de 3.205 respondentes, de instituições públicas e privadas, de diversas naturezas. Seguiu os critérios propostos por Facas (2013)Facas, E. P. (2013). Protocolo de avaliação dos riscos psicossociais no trabalho: Contribuições da psicodinâmica do trabalho. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF., como número de amostra, correlações e índices de confiabilidade.

O cenário

O cenário estudado foi o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência do Distrito Federal.

Participantes

A equipe do SAMU conta com 940 servidores. Para um índice de confiabilidade de 90%, participaram desta pesquisa 100 respondentes. Dentre os 100 participantes, 54% são do sexo masculino e 46% do sexo feminino. A idade média é de 41 anos, sendo que o mais jovem possui 26 anos e o mais velho 61 anos, 12 anos de serviço no SAMU. A maioria dos respondentes possui especialização (35%), são casados (74%), e 44% dos servidores precisou de um ou dois atestados médicos no último ano.

Foram incluídos no estudo os servidores do Órgão, lotados em qualquer setor de trabalho. Os cargos ocupados pelos respondentes da pesquisa dividem-se em: 34% enfermeiros, 30% condutores, 23% enfermeiros, 6% técnicos administrativos, 5% auxiliares de enfermagem e 2% médicos.

Instrumentos

Protocolo de Avaliação dos Riscos Psicossociais no Trabalho – PROART

Desenvolvido por Facas (2013)Facas, E. P. (2013). Protocolo de avaliação dos riscos psicossociais no trabalho: Contribuições da psicodinâmica do trabalho. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF. em sua tese de doutorado, o instrumento procura apreender as relações intersubjetivas no trabalho. O autor identifica as diversas finalidades do protocolo para pesquisas de mapeamento de riscos psicossociais no trabalho: “[...] para embasar ações de saúde ocupacional, qualidade de vida no trabalho, reestruturação de processos organizacionais e de estilos de gestão” (Facas, 2013Facas, E. P. (2013). Protocolo de avaliação dos riscos psicossociais no trabalho: Contribuições da psicodinâmica do trabalho. Tese de Doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília, Brasília, DF., p. 140). Estes fatores podem afetar de forma positiva ou negativa a saúde física, psíquica e social dos trabalhadores.

Os Riscos Psicossociais são entendidos como decorrentes dos efeitos negativos da organização do trabalho sobre os estilos de gestão, sofrimento patogênico e danos físicos, psicológicos e sociais, e que provocam o adoecimento do trabalhador e comprometem a qualidade do trabalho (p. 29). É composto por quatro escalas:

A primeira Escala Organização Prescrita do Trabalho é composta por 19 itens e dois fatores: Divisão social do trabalho e divisão das tarefas. O primeiro fator, busca avaliar o ritmo, prazos, condições oferecidas para a execução das tarefas. O segundo, busca avaliar as normas, comunicação, avaliação, autonomia e participação relativas ao trabalho.

A segunda escala refere-se ao Estilo de Gestão, composta por 22 itens que contemple tais características, organizados em dois fatores, que representam estilos de gestão: Coletivista e Gerencialista. É preditora das seguintes dimensões: riscos de sofrimento patogênico e riscos de danos psicossociais. Entende-se assim visto que os padrões de comportamento nas organizações definem o modo como as relações sociais de trabalho se dão, as possibilidades e flexibilidades que o trabalhador tem em seu trabalho e as relações simbólicas estabelecidas entre o sujeito e sua organização.

O estilo gerencialista, baseia-se no controle de normas e regras. Os indivíduos têm seus comportamentos caracterizados pelo envolvimento parcial com a organização, por meio da qual buscam segurança. São culturas que se caracterizam por determinar normas e manter a ordem e possibilitam a implantação de métodos e caminhos que geram eficácia, mas, às vezes, pouco racionais e desumanos. No estilo de gestão coletivo, a organização é vista como um grupo perfeito, refletindo orgulho, confiança e autoestima organizacional. Os membros apresentam comportamentos de lealdade, dependência e corporação. São estimulados os sacrifícios pessoais e os membros agem pelos interesses organizacionais, mesmo que recebam pouco retorno. Esse estilo de funcionamento espera trabalhadores comprometidos, “vestindo a camisa da organização”.

A terceira escala investiga os Indicadores de Sofrimento Patogênico no Trabalho é formada por 27 itens. Refere-se às vivências dos servidores em relação ao seu trabalho atual: às formas de sentir, pensar e agir compartilhadas na organização, as entendendo como parte constituinte do estilo de gestão adotado. É formada por três itens – Falta de Sentido do Trabalho, Esgotamento Mental e Falta de Reconhecimento – construídos a partir dos itens propostos para essas categorias teóricas de acordo com Mendes e Araújo (2012).

O fator Falta de Sentido do Trabalho pode ser definido como sentimentos de desvalorização, ao fazer um trabalho que não tem sentido para si mesmo, nem é importante e significativo para a organização, clientes e/ou para a sociedade.

A quarta escala é a Escala de Danos Psicológicos, Sociais e Físicos é composta por 23 itens. Refere-se às disfunções físicas, psicológicas e sociais provocadas pelo confronto com determinada organização do trabalho e seus decorrentes estilos de gestão e vivências de sofrimento. É formada por três fatores: danos psicológicos, sociais e físicos.

O primeiro fator danos psicológicos é definido como sentimentos negativos em relação a si mesmo e a vida em geral. O segundo fator é danos sociais, definido como isolamento e dificuldades nas relações familiares e sociais. O terceiro fator é danos físicos, que diz respeito a dores no corpo e distúrbios biológicos.

Estrutura

O PROART é formado por quatro instrumentos compostos por escalas do tipo likert de frequência, compostas por 5 pontos, variando entre 1 (Nunca) e 5 (Sempre), conforme Figura.

Figura
Escala de frequência do tipo likert.

Entrevistas com gestores

A entrevista pode ser definida como um processo de interação social entre pessoas, em que uma é o entrevistador, que objetiva o alcance de informações por parte do outro, o entrevistado. A preparação da entrevista deve ser guiada pelos objetivos da pesquisa, levando em consideração a escolha e a disponibilidade do entrevistado, as condições para a realização da entrevista (ambiente silencioso e sigilo) e a preparação do roteiro (Lakatos, & Marconi, 1996).

Para fins desta pesquisa, adotou-se a entrevista semiestruturada. Ela é caracterizada por combinar questões abertas e fechadas. O entrevistado tem a possibilidade de discorrer sobre o tema. O pesquisador segue um conjunto de questões pré-definidas, mas tem a liberdade de fazer perguntas adicionais para elucidar questões que não ficaram claras ou para recompor o andamento da entrevista, caso o informante fuja do tema (Bauer, & Gaskell, 2002).

Neste estudo, foi feita uma amostra de conveniência, em que o pesquisador selecionou os membros da população mais acessíveis, devido a diversos problemas de disponibilidade de participantes (Schiffman, & Kanuk, 2000, p. 27). Foram feitas as seguintes questões abertas para os gestores: assessoria do gabinete da Gerência do SAMU (27 de setembro de 2016), três Chefes de Núcleo (3 de outubro de 2016); responsável pelo Observatório do SAMU (28 de setembro de 2016).

Perguntas norteadoras

  1. Fale-me sobre o seu trabalho (características da atividade, normas, ritmo, processos e controle de trabalho; ambiente físico, equipamentos, materiais utilizados, apoio institucional e práticas de Gestão de Pessoas; fluxo de comunicação e interações profissionais entre os pares).

  2. O seu trabalho tem afetado o seu comportamento e sua saúde?

  3. Quais os principais problemas enfrentados por você na execução do seu trabalho?

  4. Como você lida com essas dificuldades para dar andamento a sua atividade?

  5. Você tem alguma sugestão para melhorar a organização do trabalho no SAMU?

  6. Você poderia listar os principais riscos psicossociais vivenciados no SAMU?

  7. Você considera suficiente os itens do Protocolo para investigar os fatores que propiciam o adoecimento no SAMU? Se a resposta for negativa, quais os itens que você acrescentaria?

Procedimentos

A primeira etapa consistiu em uma visita ao Diretor do SAMU-DF para apresentação do projeto de pesquisa. Foi exposto o objetivo: avaliar quantitativa e qualitativamente os riscos psicossociais no SAMU-DF, com vistas a subsidiar ações de prevenção e promoção da saúde.

A pesquisadora solicitou o ofício da Secretaria de Estado de Saúde, Diretoria de Urgência e Emergência para encaminhar, juntamente aos demais documentos, ao Comitê de Ética da ENSP/Fiocruz.

Após a aprovação do projeto no Comitê de Ética, a pesquisadora participou de uma reunião com o Diretor e os Chefes de Núcleos (seis) para iniciar a pesquisa:

Análise documental: a pesquisadora se reuniu com a servidora responsável pelo Observatório do SAMU no dia 18 de agosto de 2016 para conhecer os estudos realizados e demais documentos que pudessem enriquecer a pesquisa. Nessa etapa, foram fornecidos os procedimentos operacionais padrões dos diferentes setores de trabalho; o regimento interno do SAMU-Distrito Federal (DF); a média mensal dos atendimentos realizados; as unidades de saúde que oferecem atendimento de emergência no DF; as unidades de saúde que oferecem serviço de internação no DF.

No dia 26 de setembro de 2016, a pesquisadora solicitou uma entrevista com a assessoria da Gerência do SAMU para conhecer o organograma e validar o modelo lógico de funcionamento do SAMU-DF.

Apresentação da pesquisa aos Núcleos: Após a apresentação da pesquisa aos chefes de Núcleo, a pesquisadora visitou as unidades para reforçar junto aos servidores os objetivos da investigação, explicar a origem da demanda de pesquisa, a qual instituição o pesquisador está vinculado e para qual propósito os resultados serão utilizados, além de dúvidas complementares dos respondentes. A pesquisadora deixou claro para todos – respondentes e demais instâncias/setores envolvidos na aplicação da pesquisa – que a participação era voluntária e que os Protocolos respondidos seriam tratados coletivamente e que não haveria identificação dos respondentes. Foi explicado também que o respondente poderia desistir a qualquer momento da pesquisa e que sua desistência não geraria prejuízo para a pesquisa nem punições ao servidor. Foram visitados os seguintes Núcleos: Gama (27de setembro de 2016), Central (29 de setembro de 2016), Asa Norte (3 de outubro de 2016), Taguatinga (4 de outubro de 2016), Ceilândia (21 de outubro de 2016), Sobradinho (21 de outubro de 2016), Planaltina (24 de outubro de 2016), Samambaia (25 de outubro de 2016) e Riacho Fundo (25 de outubro de 2016).

Aplicação presencial do PROART nos Núcleos do SAMU: a proposta inicial era a pesquisadora aplicar os Protocolos nos Núcleos. Nas visitas para apresentação da pesquisa, percebeu-se a dificuldade de reunir a equipe em data agendada para a aplicação do Protocolo, pois os servidores trabalham por escala, ou seja, nem todos estariam presentes no mesmo horário. Ademais, por ser uma época de chuva, muitos chamados urgentes eram recebidos e não poderiam esperar a finalização do preenchimento da pesquisa para atendimento. Além disso, interferiria no repouso dos servidores nas diferentes unidades, que, devido ao número insuficiente de profissionais, vêm cumprindo um número excessivo de horas extras.

Assim, diante dos empecilhos, a pesquisadora compartilhou a percepção com a gerente de enfermagem e decidiu-se enviar os Protocolos em envelopes pardos fechados aos Núcleos. Ficaram disponíveis na sala de repouso de cada unidade e à medida que eram preenchidos, eram colocados no envelope e retornavam para Central do SAMU. O material ficou disponível nos Núcleos nos meses de setembro e outubro de 2016. Devido ao pouco número de respondentes em alguns Núcleos, no mês de novembro, a pesquisadora foi às bases do Gama, Taguatinga e Ceilândia e permaneceu durante o dia para aplicar o Protocolo aos servidores nas diferentes escalas de trabalho. No final do mês de novembro de 2016, a pesquisadora reuniu 135 Protocolos respondidos. Foram excluídos 16 Protocolos que estavam apenas com a assinatura e sem preenchimento de nenhuma das Escalas investigadas, sete que responderam apenas uma Escala e 12 que pontuaram apenas algumas variáveis das diferentes Escalas.

A amostra final foi de 100 servidores. Segundo critérios psicométricos, a validade de uma amostra pode ser comprovada por meio de cálculo de erro cometido. Levando em consideração o tamanho da presente amostra, considerando um desvio-padrão de 1,00 e um nível de confiança de 90%, obtêm-se um erro de 7%. Com tal amostra, teremos 90% de confiança em que as médias amostrais aqui descritas diferem em, no máximo, 7% da verdadeira média populacional. Esses resultados indicam, segundo Conboy (1995), que há uma representatividade aceitável e, assim, os resultados podem ser generalizados para a população.

A restituição ocorreu no dia 26 de janeiro de 2017, na sede do SAMU-DF, com a presença do diretor e 23 servidores, entre chefes de Núcleos e servidores de diversas áreas.

Nessa data, a pesquisadora agradeceu a oportunidade de realizar o trabalho no SAMU e ressaltou a importância de a teoria e a prática serem percebidas no momento das intervenções realizadas.

Privilegiou-se na apresentação os resultados estatísticos das Escalas do Protocolo e a Análise Categorial Temática, expondo as verbalizações.

No dia 4 de abril de 2017, a pesquisadora, apresentou a pesquisa ao Conselho de Saúde do DF com a participação do Secretário de Estado de Saúde para melhorias nas condições de trabalho. No dia 11 de abril foi feita nova apresentação dos resultados da pesquisa na Comissão Intersetorial de Saúde. Os riscos psicossociais apontados na pesquisa geraram a discussão e propostas de ações para definição de práticas a serem adotadas nas Organizações do Trabalho, corroborando com as diretrizes na Política Nacional de Saúde do Trabalhador e da Trabalhadora.

Análise dos dados

Foram realizadas as seguintes análises quantitativas dos protocolos recebidos: à técnica da análise fatorial (AF), Análises Descritivas de Média, Desvio-Padrão e Frequência, bem como Análises de Variância a um Fator (Oneway Anova) e Regressão Stepwise das diferentes Escalas.

Qualitativamente, as entrevistas passaram pela análise de conteúdo categorial temática. Os temas foram categorizados pelo critério de semelhança de significado semântico e lógico, bem como foram observadas a homogeneidade, a exclusividade, a exaustividade, a objetividade e a pertinência para elaboração de categorias, critérios estabelecidos por Bardin (1977)Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa: 70..

Foram seguidas as normas presentes na Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sobre a realização de pesquisas envolvendo seres humanos. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da ENSP/Fiocruz e autorizado com o número CAAE 57133616.3.0000.5240.

Resultados

Após a análise qualitativa e quantitativa dos riscos psicossociais no processo de trabalho do SAMU-DF, diagnóstico com base nos normativos, na aplicação do Protocolo e entrevistas apresentam-se os resultados a seguir.

Dejours (1986)Dejours, C. (1986). Por um novo conceito de saúde. Revista Brasileira de Saúde, 14(54), 7-11. define a organização do trabalho, com o conteúdo da tarefa e as relações de poder que envolvem o sistema hierárquico, as modalidades de comando e as questões de responsabilidade. Considera as relações de trabalho como todos os laços humanos originados na organização do trabalho. Assim, o sofrimento surgiria quando não é mais possível a negociação entre o sujeito e a realidade imposta pela organização do trabalho.

Dejours, Abdoucheli e Jayet (1994) ainda escrevem, que o sofrimento pode intensificar-se à medida que a organização do trabalho torna cada vez mais rígidas suas regras, evitando a variabilidade no modo de fazer a tarefa e ignorando a percepção do trabalhador sobre o fazer.

Nesse estudo, do total dos participantes, 67% apontam riscos médio e alto sobre os fatores investigados na Escala de Organização Prescrita do Trabalho. Ressaltaram a precariedade para o desenvolvimento da tarefa, tais como a insuficiência de recursos de trabalho, espaço físico inadequado, equipe reduzida, uniformes desconfortáveis, poucas ambulâncias disponíveis e sobrecarga física. Observaram ainda, que há pouca flexibilidade nas normas para a execução das tarefas, há falta de autonomia dos servidores na participação sobre o trabalho e injustiça na distribuição das tarefas. Também foi relatado o forte controle das regras e valorização da hierarquia.

Os resultados da amostra para a escala sobre o Estilo de Gestão, indicam que 28% dos servidores consideram o estilo gerencialista predominante, enquanto 25% percebem o estilo coletivo como dominante. Os itens com maiores médias que caracterizam a Organização como gerencialista são: o forte controle do trabalho; a importância das regras, a valorização da hierarquia e a desorganização do trabalho com mudanças. A gestão coletiva é caracterizada pelo compromisso dos servidores com a organização, mesmo quando não há retorno adequado. O resultado do trabalho é visto como uma realização do grupo.

Uma fonte de vivência de prazer no trabalho é, conforme Dejours (2004)Dejours, C. (2004). Subjetividade, trabalho e ação. Revista Produção, 3(14), 27-34., a mobilização subjetiva, identificada como um meio para lidar com o sofrimento. A mobilização subjetiva é central, e faz parte da própria concepção de trabalho para a psicodinâmica, considerando as exigências e os desafios posto pelo trabalho ao sujeito.

O estilo de gestão coletiva, na percepção dos servidores, relaciona-se a dinâmica do reconhecimento: “o resultado do trabalho é visto como uma realização do grupo”. Dejours (1997)Dejours, C. (1997). A loucura do trabalho: Estudo de psicopatologia do trabalho (5a ed.). São Paulo, SP: Cortez-Oboré. relaciona a mobilização subjetiva ao reconhecimento, um modo específico de retribuição simbólica dada ao sujeito, como compensação por sua contribuição aos processos da organização do trabalho, pelo engajamento da subjetividade e inteligência. Pode se dizer que o grupo de servidores utiliza o espaço público de discussões entre eles e que esse fato, permite a ressignificação das situações geradoras de sofrimento. Uma forma de subverter os efeitos prejudiciais do trabalho.

A terceira escala investiga os Indicadores de Sofrimento Patogênico no Trabalho. Apontam que o trabalho tem sentido 87% dos respondentes, que é relevante para a sociedade e que as tarefas não são banais. O reconhecimento do serviço prestado à sociedade e a valorização do esforço para o cumprimento da tarefa são percebidos pelos servidores. O encontro com situações inusitadas no dia a dia faz com que esses servidores utilizem a inteligência prática, a qual o trabalhador lança mão quando do confronto com o fracasso. Ela não é dada de antemão – se faz produzir justamente no exercício do próprio trabalho.

Para Mendes (2002)Mendes, A. M. (2002). Algumas contribuições do referencial psicanalítico para pesquisas sobre organizações. Revista Estudos em Psicologia, 7(especial), 89-97. https://doi.org/10.1590/S1413-294X2002000300010
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a inteligência prática, identifica-se com a construção da identidade no trabalho, um movimento em busca de imprimir a marca pessoas, delimitar a singularidade. Neste sentido, realiza-se pela interação dialética do “eu”, indivíduo, com o “outro”. Produz-se dinamicamente, em um processo de troca com o meio nos quais o indivíduo está inserido.

O reconhecimento da sociedade pelo serviço prestado pelo SAMU parece protegê-los da patologia para o esgotamento mental, um sentimento de injustiça, desânimo, insatisfação e desgaste com o trabalho. Aproximadamente 60% dos servidores apresentam riscos médios e 29% riscos baixos para o sofrimento patogênico.

Segundo Honneth (2003)Honneth, A. (2003). Luta por reconhecimento. São Paulo. 34., na medida em que o sujeito se sabe reconhecido, existe a possibilidade de identificar-se consigo a buscar apoio dos parceiros na interação: “uma relação afirmativa consigo próprio, ligada ao reconhecimento intersubjetivo da particularidade sempre individual” (p. 56).

Diante dos desafios diários nos atendimentos, tais como a precariedade das condições de trabalho e de relações hierárquicas, os servidores não se contrapõem uns aos outros como agentes egocêntricos, mas trabalham como membros de um todo.

No entanto, cabe um sinal de alerta para os fatores que contribuem para a exaustão emocional, expressas pelos respondentes na submissão do trabalho às decisões políticas, ao cansaço e desgaste pelo excesso de horas extras e esforço físico nos atendimentos.

A quarta escala é a Escala de Danos Físicos, Psicológicos e Sociais: 82% apontam riscos baixos a médio aos danos físicos. Para os servidores, a sobrecarga física, por exemplo, carregar macas e levantar pessoas, causam muitas dores nas costas e no corpo. São riscos que se acentuam, pois é uma atividade de rotina e exige esforço físico. Lazslo (1996)Lazslo, A. (1996). Investigação psicossomática psicanalítica: Doenças do corpo e da alma. São Paulo, SP: Escuta. ressalta que, com o passar dos anos, as dores se agravam e como consequência o relaxamento do corpo não ocorre, causando alterações no sono.

Para 96% dos participantes, há baixos a médios danos psicológicos na execução da atividade. Favorece a minimização do dano psicológico as reuniões semanais dos servidores, espaço no qual compartilham suas experiências, abrindo um canal de comunicação, permitindo a circulação da palavra, a elaboração e a ressignificação da realidade de trabalho, bem como a participação na gestão dos problemas que os afetam no dia a dia. 98% dos respondentes consideram os danos sociais baixos a médios.

Considerações finais

A Política Nacional de Atenção às Urgências foi instituída pela Portaria no 1.863/GM, de 29 de setembro de 2003, em trabalho conjunto do Ministério da Saúde e Conselho Nacional de Saúde. O SAMU é um importante serviço disponibilizado por essa Política e compõe o Sistema Único de Saúde (SUS) que tem como diretrizes a universalidade, a integralidade, a descentralização e a participação social. Objetiva reduzir o número de mortes, o tempo de internação nos hospitais, as sequelas decorrentes da falta de socorro imediato e as filas nas emergências hospitalares.

É reconhecida a importância dessa Política pelos servidores. Nas entrevistas realizadas foram exemplificadas situações nas quais os servidores expressaram sentimentos ao cumprirem a tarefa, com dedicação, conhecimento e autoconfiança na tarefa desempenhada.

No que diz respeito à organização prescrita do trabalho há carência de insumos. Os servidores relatam episódios de um trabalho social fragmentado, no qual existe descontinuidade nas regras combinadas. As equipes que atendem aos chamados se deparam com a ambivalência, entre seguir as normas e regras prescritas pelos normativos da Secretaria de Estado de Saúde ou dar conta da tarefa de acordo com a realidade que encontram nas ruas.

Sugere-se que o espaço de discussão realizado pelas equipes, possa ascender em todos os níveis da organização, viabilizando o “retrato” do vivido e assim diminuir as tensões comunicativas que medeiam as regras e a realidade dos atendimentos.

Segundo Sposito (2008) é possível a criação de espaços de interação, assim como a abertura dos canais institucionais. Isso propicia de forma significativa os espaços de participação.

A utilização do Protocolo de Avaliação dos Riscos Psicossociais apontou para fatores importantes e adequados sobre a organização do trabalho que influenciam no adoecimento e prejudicam o funcionamento do SAMU. A complementariedade dos métodos quanti e qualitativo permitiu o detalhamento, fazendo com que os servidores se reconhecessem no resultado da pesquisa.

No entanto, não existe uma solução pronta para uma mudança imediata, mas apresenta o que afeta os servidores, uma possibilidade de lidar com o dito, bem como repensar o orçamento destinado a esse serviço, diminuir as relações de poder, permitindo maior participação dos servidores, flexibilizando assim, as injunções severas de planejamentos impostos pela organização do trabalho.

Alguns limites foram encontrados para a realização deste estudo. O primeiro deles relaciona-se ao descrédito em pesquisas pelos servidores. Há estudantes de diversas áreas procurando o SAMU para realizar estudos, no entanto, poucas devolutivas foram realizadas. Esse fato desmotiva os servidores a responderem a inventários, questionários e protocolos. Também houve dificuldades de ordem prática, como impossibilidade de reunir os servidores para aplicação do Protocolo. As jornadas são diferenciadas, a equipe é reduzida, houve interrupção no preenchimento diante da necessidade de sair para atender um chamado. No período de aplicação do Protocolo, o órgão estava reestruturando os Núcleos, houve troca do Diretor e dos chefes de equipe, os telefones estavam cortados e havia a ameaça de corte de abastecimento nas ambulâncias. A Portaria nº 995, de 11 de maio de 2016, também havia suspendido a transferência de recursos financeiros destinados ao custeio mensal das Unidades de Suporte Básico, Avançado e Motolâncias pertencentes à Central de Regulação das Urgências (CRU) do DF.

A devolutiva da pesquisa aos servidores provocou a participação dos presentes. As manifestações foram de um possível recomeço, um espaço em que os servidores se identificaram com o que pronunciaram, a palavra que emergiu do coletivo, do qual cada um é parte.

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    Países pesquisados: Bélgica, Dinamarca, Alemanha, Espanha, Polônia, Eslovênia e Finlândia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    16 Ago 2017
  • Aceito
    10 Set 2018
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