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A Transgeneridade como Resistência a uma Lógica Totalitária: Uma Leitura a partir da Teoria do Self Gestáltico

Transgenderism as Resistance to a Totalitarian Logic: A Reading from the Gestalt Self Theory

La Transgeneridad como Resistencia a una Lógica Totalitaria: Una Lectura de la Teoría del Self Gestáltico

Resumo

Este trabalho trata-se de um estudo teórico de caráter qualitativo e fenomenológico, sobre como a teoria do self gestáltico pode contribuir com as produções sobre a transgeneridade. Foram articulados ao longo do estudo autores como Lévinas, Agamben e Foucault como problematizadores da questão da transgeneridade como fenômeno social com o objetivo de possibilitar o desenvolvimento de aspectos sociais implícitos aos fundamentos da Gestalt-terapia. Para isto, foram tomados discursos divulgados em mídia nacional sobre a experiência de participação de uma mulher transgênero num campeonato esportivo de grande reconhecimento que foram analisados usando o método fenomenológico de redução psicológica articulados com os conceitos de Alteridade, Vida nua e Biopoder. Os principais achados foram que a teoria do self possui uma dimensão social pouco explorada que pode viabilizar novas formas de atuação e reflexão por parte de seus atores, e que, quando vista pelo viés desta teoria a transgeneridade, apresenta-se contemporaneamente como uma produção que demanda acolhimento e luta por produções de espaços onde seja possível construir uma representação objetiva socialmente válida e eticamente integrada.

Transgeneridade; Teoria do Self; Gestalt-terapia; Pós-modernidade

Abstract

This article is a theoretical study based on the qualitative phenomenology method about how the theory of self in Gestalt therapy can contribute to the scientific production on transgenderism. Authors such as Lévinas, Agamben, and Foucault were used as problematizing sources on the transgenderism as a social phenomenon, with the objective of developing implicit social features to the foundations of the Gestalt therapy. In order to create the framework, opinions presented in national media about the participation of a transgender athlete in a renowned tournament were analyzed using the phenomenology method of psychological reduction through the concepts of otherness, bare life, and biopower. The main results were that the theory of self has been poorly explored in its social dimension and in a reverse situation it could assist new forms of understanding it by its players. When the transgenderism is perceived through that theory, it represents a field that requires accommodation and fight for a space that could build an objective representation that could be valid and ethically integrated.

Transgenderism; Theory of Self; Gestalt Therapy; Post Modernity

Resumen

Este trabajo es un estudio teórico de carácter cualitativo y fenomenológico, acerca de cómo la teoría del Self de la Gestalt puede contribuir a las producciones sobre transgénero. Autores como Lévinas, Agamben y Foucault fueron articulados como problematizadores del tema transgénero como un fenómeno social para permitir el desarrollo de aspectos sociales implícitos en los fundamentos de la terapia Gestalt. Para ello, se tomaron discursos difundidos en medios de comunicación nacionales sobre la experiencia de participación de una mujer transgénera en un campeonato deportivo de gran reconocimiento que fueron analizados usando el método fenomenológico de reducción psicológica articulados con los conceptos de Alteridad, Vida desnuda y Biopoder. Los principales hallazgos fueron que la teoría del self posee una dimensión social poco explorada que puede viabilizar nuevas formas de actuación y reflexión por parte de sus actores, y que cuando vista por el sesgo de esta teoría la transgeneridad se presenta contemporáneamente como una producción que demanda aceptación y lucha por producciones de espacios donde sea posible construir una representación objetiva socialmente válida y éticamente integrada.

Transgeneridad; Teoría del Self; Terapia Gestalt; Posmodernidad

Introdução

Pires (2016)Pires, A. (2016, junho). Mídia e travestis: Um caso em que a binaridade social não se aplica. Anais do Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina, PR, Brasil, 4. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/anais/iv-simposio-genero-e-politicas-publicas.php
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apresenta os meios de comunicação como formas de transmissão contínua de normas e ideias que colaboram na manutenção ou reforma de certas identidades culturais. Então, o modo como a mídia se apropria e dissemina certos fenômenos acabam influenciando no modo como a população em geral os percebe, elabora e normatiza. A transgeneridade é um fenômeno humano que ganhou proporções midiáticas nos últimos anos. Contudo, as categorias que são utilizadas para retratar esse fenômeno, de acordo com Pires (2016)Pires, A. (2016, junho). Mídia e travestis: Um caso em que a binaridade social não se aplica. Anais do Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina, PR, Brasil, 4. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/anais/iv-simposio-genero-e-politicas-publicas.php
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, são aquelas já naturalizadas no coletivo social que situa seus atores como agentes ou antagonistas de situações de violência e prostituição, às vezes a primeira decorrente da segunda. A mídia constitui-se, então, como um veículo de expressão cultural dominante.

Mott, Michels e Cerqueira (2017), ao apresentarem as estatísticas nacionais sobre violência contra LGBTs no Brasil, indicam que o Brasil é o país que mais mata essa população, à frente inclusive de países onde a sexualidade não binária é punida com a morte. É uma morte a cada 19 horas, resultado de violência ou suicídio. Algumas dessas mortes são tão chocantes que “viralizam” como notícias em redes sociais. Contudo, toda essa publicidade ainda gira em torno de situações de marginalização e violência, que cumprem o papel de normatizar o lugar do transgênero na margem da sociedade, ou como propõe Carvalho (2006)Carvalho, E. R. ( 2006 ). “Eu quero viver de dia”: Uma análise da inserção das transgêneros no mercado de trabalho. Anais Seminário Fazendo Gênero. Florianópolis, SC, Brasil, 4. Recuperado de http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/E/Evelyn_Carvalho_16.pdf
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, “no escuro da noite” como lugar naturalizado.

À medida que alguns sujeitos transgêneros conseguiram galgar lugares sociais reconhecidos e “prestigiosos”, isso também passou a receber atenção da mídia. Foi o caso da jogada Tifanny, que conseguiu disputar a Liga Feminina de Vôlei. Então, o primeiro elemento que interessa a este trabalho é o modo como essa forma de acesso foi recebida e transmitida pela mídia, considerando que este caso, em tese, representaria uma vitória em termos de representação social para essa população.

Deve-se, porém, considerar com Pires (2016)Pires, A. (2016, junho). Mídia e travestis: Um caso em que a binaridade social não se aplica. Anais do Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina, PR, Brasil, 4. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/anais/iv-simposio-genero-e-politicas-publicas.php
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que a mídia está inserida na cultura, e serve para disseminar certos padrões culturais que estão sedimentados. Logo, vale ressaltar que é assim que o tema da mídia será tratado aqui, como articulador e disseminador de elementos de cultura que atuam na produção de um padrão. Então a segunda questão que se impõe, é sobre quais fatores operam na constituição da cultura enquanto resistência à diferença, pois Pires (2016)Pires, A. (2016, junho). Mídia e travestis: Um caso em que a binaridade social não se aplica. Anais do Simpósio Gênero e Políticas Públicas, Londrina, PR, Brasil, 4. Recuperado de http://www.uel.br/eventos/gpp/pages/anais/iv-simposio-genero-e-politicas-publicas.php
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, Carvalho (2006)Carvalho, E. R. ( 2006 ). “Eu quero viver de dia”: Uma análise da inserção das transgêneros no mercado de trabalho. Anais Seminário Fazendo Gênero. Florianópolis, SC, Brasil, 4. Recuperado de http://www.fazendogenero.ufsc.br/7/artigos/E/Evelyn_Carvalho_16.pdf
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e Mott et al. (2017)Mott, L., Michels, E., Cerqueira, M. (2017). Pessoas LGBT mortas no Brasil: Relatório 2017. Salvador, BA: Grupo Gay Bahia. Recuperado de https://homofobiamata.files.wordpress.com/2017/12/relatorio-2081.pdf
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concordam, cada qual à sua maneira, que conforme cresce a visibilidade deste grupo social minoritário, cresce também as estratégias de repressão e aniquilação. Assim, a transgeneridade acima de tudo é neste contexto, tomada como uma resistência, uma luta por cidadania e uma demanda por um reconhecimento ético que encontra em certos meios de comunicação sua arena. O que leva, então, à terceira questão que este trabalho busca responder, sobre como a Gestalt-terapia vem desenvolvendo o tema da transgeneridade e quais respostas ela pode propor a essa relação de luta entre afirmação-negação da validade social das experiências dos sujeitos transgêneros.

Em síntese, este trabalho, irá se ocupar de providenciar uma análise dos discursos midiáticos sobre a jogadora de vôlei Tifanny, como forma de promover uma articulação entre os elementos desenvolvidos pela teoria do self gestáltico e uma crítica aos elementos da cultura ocidental que sustentam as estratégias de resistência e aniquilação da alteridade neste caso representada pela transgeneridade, com o objetivo de produzir um avanço na teoria gestáltica na direção de fenômenos de relevância social e política como uma estratégia de produção de lugares de acolhimento ético e produção de cidadanias.

Vieses metodológicos

Oxalá houvesse um caminho metodológico estabelecido para elaborar este trabalho. Não há! O que se apresenta como possibilidade são meros vieses produzidos na tentativa de articular esses temas com os quais este trabalho se ocupa, de maneira que para proporcionar uma leitura crítica das estratégias de resistência social endereçada à transgeneridade foi preciso promover uma leitura crítica dos alicerces da Cultura Ocidental revisitando temas e autores da filosofia que incidem diretamente na constituição de outros saberes aqui transversalizados.

Em seguida, foi necessário suscitar uma revisão integrativa sobre como a Gestalt-terapia se apropria do tema das identidades de gênero. Procedeu-se, então, uma pesquisa em bibliotecas eletrônicas de acesso livre, sendo estas SciELO, BVS, LILACS e Bireme, com o intuito de observar se a quantidade de material acerca do tema “Identidade de Gênero” à luz da Gestalt-terapia era significativa. Os termos pesquisados e as associações feitas foram, nesta ordem: gênero; gênero (Psicologia); gênero (Gestalt); gênero (Gestalt-terapia); identidade de gênero; identidade de gênero (Psicologia); identidade de gênero (Gestalt); identidade de gênero (Gestalt-terapia).

O que motivou esse empenho foi a constatação de Santana e Belmino (2017Santana, J. R. S., Belmino, M. C. B. ( 2017 ). Identidades de gênero na perspectiva da teoria do self: Uma leitura “gestáltica” acerca da sexualidade na contemporaneidade. IGT na Rede, 14(27), 136-162., p. 140), que indicam que há uma “escassez de publicações que abordem a temática voltada para o estudo de gênero articulada com a leitura da Gestalt-terapia. Neste sentido, torna-se preocupante o número restrito de publicações, limitando o aprofundamento teórico sobre as identidades de gênero”.

Essa percepção dos autores chama a atenção por dois fatores: o primeiro é a compreensão de que a transgeneridade é um dos temas mais emergentes na contemporaneidade, e o segundo é a dúvida que paira, se esse silêncio sobre o assunto se sustenta na compreensão sedimentada de que a Gestalt-terapia é uma proposta de intervenção clínica de caráter individualista, sem muito a oferecer sobre temas de cunho social e político.

Após esses dois percursos, pode-se enfim dar a materialidade necessária a este trabalho. Assim, foram retomados os discursos produzidos por diferentes atores sociais sobre a participação de uma mulher transgênero em uma equipe de voleibol que disputou a “Superliga feminina de Vôlei”, a competição nacional mais prestigiada da modalidade. Para isso, foram visitados alguns portais de acesso livre de notícias gerais, e outros específicos à temática do esporte e todas as matérias que tinham esse caso como objeto central foram selecionadas, sendo sete no total incluídas nas referências deste trabalho. Posteriormente à seleção e coleta desses dados, as notícias foram organizadas cronologicamente a fim de facilitar a compreensão e periodicidade dos conteúdos.

A organização do material seguiu os três passos da análise fenomenológica, descritos por Giorgi e Souza (2010)Giorgi, A., Souza, D. ( 2010 ). Método fenomenológico de investigação em psicologia. Lisboa: Fim de Século. sendo: a) Identificação das descrições, que visa recolher as experiências vividas por outros sujeitos, mantendo o sentido tal como surge na fala, permitindo inclusive uma visão crítica sobre o assunto; b) Redução Fenomenológico-Psicológica, que propõe sobretudo promover o conhecimento de novas dimensões da experiência, colocando entre parênteses os elementos teóricos ou culturais que determinam a experiência descrita; c) Análise eidética, que objetiva reduzir o fenômeno a uma perspectiva psicológica, promovendo uma síntese e generalizando os resultados.

Como suporte teórico foram utilizados a perspectiva dialógica e do primado da alteridade propostos por Lévinas (1987)Lévinas, E. ( 1987 ). De outro modo de ser para além da essência. Salamanca: Sígueme., o conceito de vida nua de Agamben (2004)Agamben, G. ( 2004 ). Homo saccer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais.; a Biopolítica de Foucault (2007)Foucault, M. ( 2007 ). As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes. e, como não poderia deixar de ser, a teoria do Self (Perls, Hefferline, & Goodman, 1997), mais especificamente pela dimensão da Função de Personalidade e suas vulnerabilidades que permitem vislumbrar a proposta de uma ética anárquica de acolhimento do estranho e de produções de “cidadanias” diversas daquelas já estabelecidas. Destas aproximações e vieses pretende-se oferecer um modo ético de olhar para o fenômeno da transgeneridade, fazer uma denúncia política sobre o modelo totalitário do pensamento moderno e “ousar” no rumo do desenvolvimento de uma dimensão social apenas anunciada na Teoria do Self da Gestalt-terapia.

A modernidade e o “Absurdo” da Alteridade

A modernidade é um período marcado pela exacerbação da racionalidade, é o resultado de um refinamento histórico que remonta aos gregos antigos. Rabinovich (1998) na Apresentação do livro “Lévinas: uma introdução” , faz uma retomada da tradição ocidental no que tange a sua estruturação linguística que aqui propomos como as sendas que permitiram à racionalidade refinar-se para enfim, apresentar-se na sua roupagem mais elaborada, a saber, a violência totalitária, que foi denunciada por Lévinas (1987)Lévinas, E. ( 1987 ). De outro modo de ser para além da essência. Salamanca: Sígueme. um judeu que viveu a experiência de ser despojado de sua humanidade durante a II Guerra Mundial.

A cultura Ocidental é profundamente helênica (Costa, 2000Costa, M. ( 2000 ). Lévinas: Uma introdução. Petrópolis, RJ: Vozes.) e, na centralidade do verbo “ser” nas línguas ocidentais, que se pode vislumbrar os impactos desta tradição (Rabinovich, 2000). O verbo ser em grego possui função de cópula, que opera como síntese, ganhando assim função nominal, que o transforma em substantivo, ele é condição de todos os predicados. Ou seja, para algo ou alguém receber cidadania, ele precisa antes ‘ser’ alguma coisa. É preciso reconhecer seu status ontológico. João é brasileiro; João é homem; Maria é mulher. Apenas movendo-se nessa pré-compreensão do ser é que os entes recebem sentido e significado.

E quando alguém “não é”? E se na frase formulada anteriormente, a construção fosse “João não é homem”. Estar-se-ia lidando com uma categoria que não caberia no “ status quo ” da racionalidade helênica e ocidental. Isso seria um absurdo, “ ab-essere ”, “fora-do-ser”. Aquilo que não pode ser articulado com a lógica ontológica da representação e do “ser” deve, portanto, ser aniquilado, pois o que é absurdo não pode pertencer ao “ser” ou a existência. É vida nua (Agamben, 2004Agamben, G. ( 2004 ). Homo saccer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais.), indiferença (Lévinas, 1987Lévinas, E. ( 1987 ). De outro modo de ser para além da essência. Salamanca: Sígueme.) e Biopoder (Foucalt, 2007).

Esse é o caráter violento da ontologia e do ser, e consequentemente da cultura ocidental. Não se é preparado lógica e linguisticamente para lidar com a diferença, com a alteridade. Apenas se quer reconhecer os sentidos já articulados no horizonte da cultura, aniquilando tudo que se apresenta como diferença. Assim, a transgeneridade aparece aqui como uma transgressão ao ser, consequentemente como uma alteridade entregue ao esvaziamento, à morte e à aniquilação. Trata-se de um hiato que, na letra de Agamben (2004)Agamben, G. ( 2004 ). Homo saccer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais., pode ser chamada de vida nua, ou uma vida entregue à morte.

Tal condição de esvaziamento retoma a própria racionalidade como fundamento, no caso as ciências positivistas, materialistas e factuais. Esse é o elemento central da modernidade, uma constituição de “verdades petrificadas” (Oksala, 2011, p. 7). Verdades constituídas por um sujeito que “pensa” e se emancipa das certezas externas a si mesmo, que se coloca como evidência última de toda certeza de si e do mundo. Nesta perspectiva não seria possível falar de um processo de produção de um sujeito, mas de um sujeito que produz um mundo submetido a si mesmo. Seria a produção mais elaborada da lógica helênica, o constante retorno ao “mesmo”, que se cuida (aniquila) de tudo que é diferente de si. Essa lógica exerceu influências marcantes em outras “filosofias” que vieram posteriormente (Oksala, 2011, p.22) e determinam o modo como se compreende a experiência humana de ser “outro”, na estética, na sexualidade e nas relações sociais. Onde não é possível ser outro, enquanto diferença, mas apenas como reafirmação do que já está estabelecido no domínio do mesmo.

Desta forma, na modernidade e, principalmente, após Descartes (2001)Descartes, R. ( 2001 ). Discurso do método. São Paulo, SP: Martin Claret. com o seu “ cogito ergo sum ”, auge da racionalidade, o sujeito é revestido de um poder de totalização que submete o mundo a uma relação de oposição e representação na qual e, somente na qual, ele pode encontrar o seu sentido. De sorte que o sujeito tem a tarefa fundamental de conquistar e submeter a si o mundo objetivo. Nesta dinâmica, o sentido pode ser definido basicamente como compreensão e representação ou, em outras palavras, redução do mundo à ação tematizadora do sujeito concretizada nas estratégias de governo e nos discursos de segregação.

Esse tema de constituição do pensamento moderno interessa a este trabalho, pois é a partir dele que se pode falar da constituição de uma racionalidade científica totalitária e violenta que, retomando Foucault (2007)Foucault, M. ( 2007 ). As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes., estabelece regimes de verdade que fundamentam regimes de poder e estes engendram formas de vida válidas (que devem viver) e inválidas (que podem morrer).

A objetivação do mundo promovida pelo sujeito manifesta-se pela representação, ou seja, a atividade de colocar o objeto ante o sujeito, em oposição a ele. A representação coloca o objeto diante do sujeito calculante que o tematiza e o controla a fim de ter certeza de sua relação com ele. O sujeito submete a si o que tem diante de si, e coloca em si a condição de possibilidade da certeza de si e do mundo. Então, a relação de conhecimento parece estabelecer-se numa relação binária, onde de um lado estaria o dado estrutural chamado sujeito e, de outro, a representação que esse sujeito é capaz de produzir do objeto, incluindo o mundo e o outro.

Ao se enfrentarem a esse tema, Foucault (2007)Foucault, M. ( 2007 ). As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes. e Lévinas (2011)Lévinas, E. ( 2011 ). Totalidade e infinito. Lisboa: Edições 70. concordam que para encontrar alternativas a essa questão é preciso afastar-se da tradição filosófica de herança aristotélica-kantiana. Para o primeiro, era preciso pensar quais os regimes de verdade que fazem o indivíduo pensar do jeito que pensa. Assim, os jogos de verdade emergem como um tema central na produção focaultiana, e constituem a problematização da subjetividade, por meio das práticas de si. Portanto, é preciso entender as condições e as transformações do sujeito nas diferentes tecnologias de poder, e afastar-se das perguntas sobre os limites e as possibilidades do conhecimento. Para o segundo, a resposta estaria numa condição pré-originária, anterior ao próprio pensamento que seria a ética, enquanto sensibilidade (Costa, 2000Costa, M. ( 2000 ). Lévinas: Uma introdução. Petrópolis, RJ: Vozes.). Aqui, entende-se que os dois autores estão corretos, pois ambos abalam o domínio do “mesmo”, enquanto Foucault viabiliza uma análise das estratégias de engendramento de regimes de verdades, Lévinas dá uma alternativa quanto à atitude frente à Alteridade, que seria a ética. Neste último caso, a constituição de uma clínica gestáltica proposta por Perls et al. (1997)Perls, F., Hefferline, R., Goodman, P. ( 1997 ). Gestalt-terapia. São Paulo, SP: Summus. e, posteriormente desenvolvida por Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a) lembra muito a proposta ética levinasiana que, articulada a um forte componente crítico das estratégias de produções de sujeitos propostas por Agamben (2004)Agamben, G. ( 2004 ). Homo saccer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais. e Foucault (2007)Foucault, M. ( 2007 ). As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes., viabilizam uma perspectiva social do trabalho gestáltico expresso em termos de uma “função personalidade” na Teoria do Self, que será apresentada logo mais.

Então, segundo os autores postos em tela, a racionalidade ocidental é instrumentalizada para defender-se da diferença, e arregimenta para si tecnologias, sejam discursivas ou materiais, para fazê-lo.

No que tange especificamente ao tema deste trabalho, entende-se que a manutenção da marginalização da transgeneridade é uma estratégia racional que usa recursos políticos, éticos e estéticos como uma forma de garantir que o sujeito totalizador, que representa os discursos sociais dominantes, não seja questionado em seu afã de tornar o mundo semelhante e reduzido a si mesmo.

Revisão integrativa

A Psicologia, como ciência, também se apresenta como uma estratégia racional e muitas vezes também funciona como instrumento de dominação e mitigação da alteridade. Seus discursos precisam ser constantemente postos em análise para que, num exercício de autocrítica, imponha limites ao seu próprio fazer e se proponha a avançar na direção de uma prática eticamente respaldada. A Gestalt-terapia faz parte dos arcabouços teóricos desta disciplina e como tal também precisa passar pelo mesmo crivo da autocrítica.

Desta forma, busca-se refletir sobre o paradigma da teoria e clínica gestáltica pois, pela influência de Perls, acaba se desenvolvendo na direção de uma lógica do indivíduo, mas guarda em seu interior a influência de Goodman que propõe colocar em análise a experiência de campo, que inclui o organismo e o ambiente, descortinando os regimes de poder-saber (Robine, 2005Robine, J. M. ( 2005 ). A Gestalt-terapia terá a ousadia de desenvolver seu paradigma pós-moderno? Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, 5(1), 102-125.), como estratégias de produção de subjetividades e relações de dominação. Este trabalho, se alinha com os interesses expressos por Goodman na redação da Teoria do Self. Por isso, entende que é preciso analisar as práticas discursivas como fenômenos de campo, pois estas são heterogêneas e historicamente condicionadas. Analisar o homem nas suas relações com os jogos de verdade, bem como a articulação dos temas da subjetividade, liberdade e da ética, os jogos de poder-saber, permitirão não uma história da verdade, mas uma perspectiva dos jogos entre verdadeiro e falso que configuram o humano como uma experiência. E, neste caso específico, como uma experiência “ trans ”, que atravessa o ser e se afirma como alteridade.

Objetivando entender como essas relações se delineiam no universo da Gestalt-terapia procedeu-se uma revisão integrativa de artigos disponibilizados em revistas indexadas em plataformas de divulgação científica de acesso livre.

Ao se proceder a busca pelos descritores relacionados ao tema no site SciELO, os resultados foram de 26.491 documentos quando o termo “gênero” foi empregado na pesquisa. Para “gênero (Psicologia)”, 1.102 artigos estavam disponíveis. Porém, ao combinar os termos “gênero” e “Gestalt”, somente dois artigos foram encontrados e nenhum deles estava, de fato, relacionado ao tema em questão. Ao articular os descritores “gênero” e “Gestalt-terapia”, nenhum documento foi encontrado. Já ao pesquisar o termo “identidade de gênero”, o resultado foi de 730 artigos, mas, ao refinar a busca pela “Psicologia”, os resultados diminuíram para 65. Por fim, ao relacioná-lo com “Gestalt” e “Gestalt-terapia”, nenhum resultado foi obtido.

Na plataforma BVS, os resultados foram de 375.187 documentos quando o termo “gênero” foi empregado na pesquisa. Ao relacioná-lo com o termo “Psicologia”, os resultados caíram para 94.798. Porém, ao se empregarem os termos “Gestalt (134 resultados)” e “Gestalt-terapia (34 resultados)”, foram contabilizados artigos que não estavam de acordo com o tema deste trabalho – vale ressaltar que o mesmo ocorreu, exatamente da mesma forma, no site Bireme.

Ao se pesquisar o termo “identidade de gênero”, 21.501 artigos foram encontrados e, ao relacioná-lo com “Psicologia”, o resultado foi de 13.817. Contudo, tanto na BVS quanto no Bireme, ao associar “identidade de gênero”, “Gestalt” (13 resultados) e “Gestalt-terapia” (dois resultados), apesar de documentos terem sido encontrados, também não estavam relacionados, de fato, ao tema, abordando.

No site LILACS, os resultados foram de 25.008 documentos quando o termo “gênero” foi empregado na pesquisa. Já quando este foi associado ao descritor “Psicologia”, os resultados caíram para 2.816. Quando foi associado à “Gestalt”, apareceram 9 artigos que não estavam relacionados ao tema em questão, considerando que possuíam conteúdos relativos ao estudo do inconsciente nas obras de Damergian (1991), por exemplo, intituladas “O inconsciente na interação humana” e “O papel do inconsciente na interação humana: um estudo sobre o objeto da Psicologia Social”. Relacionando “gênero” e “Gestalt-terapia”, o resultado foi de três artigos encontrados, porém, estes também não estavam relacionados à temática, mas um deles chama a atenção, produção de Silva; Baptista e Alvim (2015), por tratar de como vivenciamos o contato com o outro na atualidade, nomeado “O contato na situação contemporânea: um olhar da clínica da gestalt-terapia”.

Ainda acerca do LILACS, ao pesquisar o conceito de “identidade de gênero”, o resultado foi de 1.969 documentos encontrados. Associando “identidade de gênero” e “Psicologia”, foram identificados 498 artigos. Ao relacionar o termo com “Gestalt”, somente um documento apareceu – mesmo não fazendo menção ao tema – obra de Flory & Ramozzi-Chiarottino (2006), intitulado “A relação figura-fundo e as estruturas infralógicas na construção da identidade psicossocial de pessoas com transtornos severos do comportamento”. Contudo, associando “identidade de gênero” e “Gestalt-terapia”, nenhum resultado foi obtido.

Por fim, na plataforma Bireme, pesquisando o conceito de “gênero”, 381.174 documentos foram encontrados, mas, ao relacionar “gênero” e “Psicologia”, o resultado cai para 96.478. Já ao pesquisar “identidade de gênero”, 22.554 artigos aparecem e, ao relacionar “identidade de gênero” e “Psicologia”, o resultado cai para 14.092. Sobre os outros termos e associações, o resultado é exatamente igual ao da plataforma BVS, citada anteriormente.

Essa constatação mostra a importância da articulação aqui proposta e o quanto é urgente situar a Gestalt-terapia junto a outras articulações teóricas para que se possa produzir avanços e ressignificações sobre o fazer da(o) psicóloga(o) que toma a abordagem gestáltica como meio de aproximação com a sociedade contemporânea e seus fenômenos.

Desta forma, busca-se produzir uma resposta à provocação feita por Robine (2005)Robine, J. M. ( 2005 ). A Gestalt-terapia terá a ousadia de desenvolver seu paradigma pós-moderno? Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, 5(1), 102-125. quando ele pergunta: “Terá a Gestalt-terapia a ousadia de desenvolver seu paradigma Pós-moderno?”. O modo como se traz o termo pós-moderno aqui é o mesmo daquele utilizado pelo autor em questão, a saber, mais como um problema do que necessariamente uma segurança temporal. Assim, analisar a transgeneridade e os impactos sociais causados por ela pelo viés da Teoria do Self gestáltico significa acima de tudo romper com a lógica moderna de investimento no sujeito, na potencialização do indivíduo, na construção do ‘normal’ para retomar a importância do “campo”, ou seja, das relações sociais produtoras e mantenedoras do “humano”. De maneira que desenvolver-se na direção do paradigma Pós-moderno implica em interessar-se mais pelo modo como as mudanças podem ocorrer do que pelas significações que podem ser descobertas na direção de uma “identidade” formal e normalizada.

A provocação feita por Robine (2005)Robine, J. M. ( 2005 ). A Gestalt-terapia terá a ousadia de desenvolver seu paradigma pós-moderno? Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia, 5(1), 102-125. ainda perdura sem respostas significativas. Pelo menos no âmbito das identidades de gênero e nas discussões sobre a sexualidade humana e suas relações. Abandonar um estado de certezas e embrenhar-se por um campo de possibilidades volúveis não parece ter seduzido muitos pesquisadores na área da Gestalt-terapia. Diante disto, foi necessário revisitar outros interlocutores para construirmos um modo de olhar para o fenômeno que ocupa este trabalho.

Uma polifonia da transgeneridade

Muitas vozes se ocupam de descrever o fenômeno da transgeneridade, cada uma delas buscando para si o grau de evidência necessário para se firmarem como verdade. Mas, o que se impõe é que mesmo as vozes mais dóceis acabam apenas tangenciando um fenômeno que por si só é transgressor e é dado como um excesso ou um “para-além de”. Ainda assim, é interessante visitar essas vozes e dialogar com elas.

De acordo com Modesto (2013)Modesto, E. ( 2013 ). Transgeneridade: Um complexo desafio. Via Atlântica, (24), 49-65. https://doi.org/10.11606/va.v0i24.57215
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, a transgeneridade é uma disposição referente àqueles sujeitos que assumem uma identidade de gênero que diverge daquela identidade designada por ocasião do seu nascimento, ou seja, compatível com suas características biológicas. Em outras palavras, a transgeneridade é aquilo que se distancia de um dualismo estrutural de gênero, tendo em vista que nem todo indivíduo se converterá socialmente em consonância com o que dizem que ele é ao nascer – menino ou menina – segundo sua conformação biológica, mas com o que ele sente que é [grifo dos autores]. É aquilo que, segundo Bagagli (2016)Bagagli, B. P. ( 2016 ). A diferença trans no gênero para além da patologização. Revista Periódicus, 1(5), 87-100. https://doi.org/10.9771/peri.v1i5.17178
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, se apresenta como resistência à cisgeneridade, ao que é tido como preestabelecido e imutável. É, portanto, a diferença.

Santana e Belmino (2017)Santana, J. R. S., Belmino, M. C. B. ( 2017 ). Identidades de gênero na perspectiva da teoria do self: Uma leitura “gestáltica” acerca da sexualidade na contemporaneidade. IGT na Rede, 14(27), 136-162. propõem que para compreender as identidades de gênero a partir da perspectiva da teoria do “ self ” gestáltico, é necessário entender que existe uma lógica cultural vigente e poderosa salientada através de modelos de identidades normativas que são retratados por um grande outro social. Modelos estes que demandam conexão entre o sexo do corpo (masculino ou feminino), a identidade e a orientação do desejo para o sexo oposto. Justificados, sobretudo por um discurso biologicista que visa garantir a “verdade” inerente aos corpos.

Louro (2008Louro, G. P. ( 2008 ). Gênero e sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Revista Pró-posições, 19(2), 17-23. https://doi.org/10.1590/S0103-73072008000200003
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, p. 18) traz uma dissonância a este discurso biologicista “nada há de puramente natural e dado em tudo isso: ser homem e ser mulher constituem-se em processos que acontecem no âmbito da cultura”. O que ocorre é uma espécie de luta plural, protagonizada por aqueles grupos sociais tidos tradicionalmente como subordinados, em que a cultura é o palco do embate e o objetivo é o de tornar visíveis diferentes modos de viver, seus próprios modos: suas questões, suas histórias, suas experiências, suas estéticas e suas éticas.

Porém, articular a dissonância não é tarefa fácil, há resistência. A aniquilação promovida pela totalidade da razão se manifesta nos diferentes tipos de preconceito que, segundo Crochík (1995Crochík, J. L. ( 1995 ). A cultura e o preconceito. In J. L. Crochík, Preconceito: Indivíduo e cultura (Cap. 3, pp. 143-189). São Paulo, SP: Robe., p. 145) “se remete à dominação, e quando é o caso, a proposta de eliminação, do desconhecido para se manter aquilo que já é conhecido”. Aceitando que este fenômeno é produto da cultura, pode-se observar como o modo ocidental se pauta pela inviabilidade do “estranho”, do diferente. Desta forma os indivíduos transgêneros, omitidos quanto aos seus modos de pensar e agir, são relegados à categoria de “ ab-essere ”, absurdo, de alteridade negada.

Quando Modesto (2013Modesto, E. ( 2013 ). Transgeneridade: Um complexo desafio. Via Atlântica, (24), 49-65. https://doi.org/10.11606/va.v0i24.57215
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, p. 60) diz que “a transexualidade desconstrói essa ditadura”, entende-se que ele coloca os transgêneros como modos de vivências transgressoras a esse modo de funcionamento de uma sociedade controladora. Contudo, a cultura e a sociedade que a representa resistem. Lévinas (1987)Lévinas, E. ( 1987 ). De outro modo de ser para além da essência. Salamanca: Sígueme. diz que de todas as barreiras a serem vencidas as barreiras da cultura são as mais difíceis.

Desta forma, para repensar a questão da transgeneridade é imperativo admitir-se que: 1) as posições de gênero e da sexualidade se multiplicaram de uma forma que se torna impossível lidar com elas a partir de esquemas binários e normativos (Louro, 2008Louro, G. P. ( 2008 ). Gênero e sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Revista Pró-posições, 19(2), 17-23. https://doi.org/10.1590/S0103-73072008000200003
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); e 2) as fronteiras da sexualidade estão sempre sendo atravessadas, o que acarreta na necessidade de admitir-se que é preciso dar lugar social aos sujeitos que vivem justamente nelas (Santana & Belmino, 2017Santana, J. R. S., Belmino, M. C. B. ( 2017 ). Identidades de gênero na perspectiva da teoria do self: Uma leitura “gestáltica” acerca da sexualidade na contemporaneidade. IGT na Rede, 14(27), 136-162.). O que nos leva ao modelo interventivo proposto pela Teoria do Self como uma forma de constituir um modo específico desta teoria se aproximar ao fenômeno da transgeneridade.

Sofrimento ético-político-antropológico

Existe uma dimensão antropológica presente nas experiências que envolvem identidade de gênero. Essas experiências estão diretamente relacionadas à chamada função personalidade que, em junção às funções Id e Ego, formam as três funções de campo da Teoria do Self. A função personalidade é uma identidade que, de acordo com Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a) que retomam Perls et al. (1997)Perls, F., Hefferline, R., Goodman, P. ( 1997 ). Gestalt-terapia. São Paulo, SP: Summus., pode ser entendida como a maneira de se experimentar a identidade junto ao outro social, nossos semelhantes, e o conjunto de representações que o constituem. Nesta proposta a personalidade não é um dado estrutural, mas uma função de campo que expressa toda sorte de relações entre desejo, condições de existência e jogos de poder que viabilizam ou não certas representações objetivas que os indivíduos podem ter de si mesmos.

Portanto, pode ocorrer de os sujeitos serem privados das representações sociais ante as quais constituiriam uma identificação, uma identidade reconhecida publicamente. Como afirmam Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a) o próprio “outro social” pode privar os sujeitos de se inserirem em uma ou em várias realidades ou destas se servirem, como se não mais dispusessem das representações sociais que lhes faziam pertencer a determinada identidade ou grupo – é o caso, por exemplo, das experiências que envolvem discriminações de toda ordem, incluindo-se aqui, a identidade de gênero, tema escolhido para ser abordado nesse artigo.

Cabe apontar que essa falência do outro social pode ocorrer, segundo os autores em questão, por conta de três principais grupos de motivos: os antropológicos, os políticos e os éticos. Tendo em vista os objetivos do presente estudo, optou-se por explorar apenas a dimensão ética do fenômeno da transgeneridade. Contudo, vale ressaltar que todo ato de violência acaba sendo transversalizada pelos três grupos citados. Retomando, da falência do outro social decorre um quadro de sofrimento que pode ser definido como o “[...] saldo da perda, do conflito e da exclusão, precisamente, a ausência de uma imagem social pela qual nos sentiríamos incluídos, aceitos, funcionais e respeitados” (Müller-Granzotto, & Müller-Granzotto, 2012a, p. 172).

A exclusão social dos sujeitos de atos, na teoria do Self é associada a um tipo de sofrimento ético onde os indivíduos ficam inteiramente desprovidos da possibilidade de conquistar representações sociais e dispor destas. São as experiências que ocorrem em virtude do estado de exceção – uma espécie de soberania exercida diante daqueles sujeitos que são obrigados a sujeitarem sua vida ao poder soberano. Esse poder, por sua vez, mais do que transformar as representações sociais em recursos de satisfação da aspiração por poder, mais do que dominar o outro social, agora aniquila as identificações dos sujeitos para dispor da nudez dos atos e respectivos hábitos (Agamben, 2004Agamben, G. ( 2004 ). Homo saccer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais.). Os sujeitos aos quais nos referimos são aqueles despidos de qualquer assistência e representação. São os “quase-cidadãos”, como se isso representasse, de certa forma, alguma ameaça que justifique as ações discriminatórias que experienciam, a exclusão social, o aniquilamento e, muitas vezes, o extermínio.

Para estes, quase não há alteridade disposta a ajudar. Afinal, não há de fato horizontalidade possível entre cidadãos e criminosos, normais e loucos, brancos e negros, homens e mulheres, e por aí afora. Os cidadãos não se reconhecem nos criminosos, nem os normais nos loucos, ou os brancos nos negros, os homens nas mulheres. Ao contrário, para os cidadãos normais masculinos brancos e heterossexuais a horizontalidade com o diferente é por demais ameaçadora ” [...] motivo por que àqueles não resta alternativa que não decretar a exceção, o estado de exceção; condição para que possam descumprir suas próprias legislações, autorizando-se a rechaçar, confinar e agredir, chegando até a matar qualquer um que represente ameaça ao poder que ostentam (Müller-Granzotto, & Müller-Granzotto, 2012b, p. 388, grifo dos autores).

Assim, o dominador destitui o outro social através do qual os sujeitos de ato seriam capazes de refletir-se como sujeitos e estes, desprovidos de representações, como definem Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012b), não seriam nada mais do que corpos sem lugar social, sem possibilidade de interlocução e reconhecimento. Existiriam em estado de sofrimento ético, a mais drástica das destituições subjetivas. Os sujeitos, para além de serem submetidos aos desejos do dominador – branco, heterossexual, masculino e “normal” – são rigorosamente excluídos do sistema partilhado de identidades sociais, constituinte da função personalidade. Mais do que terem recusada a escuta a seus direitos, em alguns casos, seus valores, práticas e instituições “alternativas” tornam-se justificativa para intervenções violentas por parte do estado de direito e da sociedade enquanto coletivo.

Nesse contexto, a violência de gênero pode ser compreendida como um fenômeno que vai muito além dos impactos causados por conflitos políticos inerentes às relações entre diferentes. Não se trata apenas de dominar o diferente, mas de aniquilar os desejos que divergem daqueles dos dominantes (heterossexuais masculinos, “normais” e brancos), afinal, eles não atendem à condição de servir de objeto dominado. “Em alguma medida, falar em nome de outra raça ou estar identificado a outro gênero é corromper a lógica de produção de saberes e poderes dominados” (Müller-Granzotto, & Müller-Granzotto, 2012b, p. 391). Esses sujeitos são excluídos do estado de direito e, ainda, são dominados ante a uma soberania aniquiladora e congruente com um regime totalitário.

Destarte, é importante ressaltar que, enquanto sociedade, devemos caminhar rumo a tentativas de uma reinserção psicossocial digna, que valha a esses sujeitos de atos desnudados como forma de garantir o acolhimento, um lugar social e a solidariedade da qual foram negligenciados, sabendo escutar e dando voz aos medos, indignações e discursos produzidos por eles devido à vulnerabilidade ética que os acomete – mais conhecida como violência de gênero.

Narrativas Sobre uma Mulher Transgênero no Esporte

As narrativas aqui analisadas foram recolhidas de notícias veiculadas sobre o caso da jogadora Tifanny Abreu, a primeira atleta transexual a jogar no vôlei brasileiro. A escolha do caso se deu pelo seu caráter emblemática, pela repercussão causada e também pelo avanço social em relação aos espaços ocupados por pessoas “trans” que ela representa.

O primeiro emissor elencado foi o ex-voleibolista e treinador de voleibol brasileiro Cacá Bizzocchi, que segundo o portal de notícias se escondeu atrás do “politicamente correto” e comunicou “Não é uma questão de inclusão ou de tolerância, mas de equidade fisiológica, igualdade de competitividade e legitimidade” (Lancellotti, 2018Lancellotti, S. (2018, janeiro 15). Voleibol no mundo: reflexões (serenas) sobre o “caso Tiffany”. São Paulo, SP: R7 Esportes. Recuperado de https://esportes.r7.com/prisma/silvio-lancellotti/voleibol-no-mundo-reflexoes-serenas-sobre-o-caso-tiffany-15012018
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). O comentário destaca um posicionamento pautado pelo reducionismo às teorias biológicas. Nota-se um recurso à racionalidade científica como a “detentora” da verdade sobre os processos humanos. É como se o jogo, a criatividade, a estratégia, tudo ficasse reduzido ao que é “fisiológico”. É uma transgressão, uma mulher com o fisiológico de um homem. Um regime de verdade que estabelece uma hierarquia de corpos. A alteridade é negada, e o sofrimento de não encontrar uma representação social aceita é imposto como regime de exceção.

Outra fala significativa foi o da bicampeã olímpica Sheilla, que em um podcast comentou “Imagina se todos os gays resolverem jogar a Superliga Feminina. Vai virar uma Superliga que vai tirar nosso espaço porque a gente não consegue competir com eles” (IG Esporte, 2018IG Esporte. (2018, janeiro 21). Caso Tiffany: Sheilla vê vantagem física e se diz contra: Opinião gera polêmica. São Paulo, SP: o autor. Recuperado de https://esporte.ig.com.br/maisesportes/volei/2018-01-21/caso-tiffany-sheilla.html
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). A fala salta à percepção por evidenciar um fenômeno no qual, quando se inicia uma reivindicação legal de alguns espaços e proteções que são próprios do reconhecimento exclusivo de identidades heterossexuais cisgênero, os discursos e práticas trans – destoantes das relações dominantes – são alvos de todo tipo de resistência.

Enquanto servem de espetáculo ou modo de entretenimento ao outro dominador, as práticas homoafetivas e as identidades transexuais não representam nenhuma ameaça. Porém, quando começam a reivindicar reconhecimento legal, a fim de poder desfrutar de proteções e prerrogativas reconhecidas apenas às identidades heterossexuais [...] os discursos e práticas homo/trans são vítimas de todos tipo de resistência (Müller-Granzotto, & Müller-Granzotto, 2012b, p. 395).

Interessante que a fala da jogadora evidencia um binômio muito pertinente: “nós e eles”. O “nós” é a identidade estabelecida, os modos de vida aceitos e normatizados e o “eles” são os corpos transgressores, o risco, o patológico. Portanto, é preciso cuidar-se do outro, curar-se dele, aniquilá-lo na sua diferença. Para fazê-lo, é necessário retomar os saberes necessários ao controle dos corpos. É preciso reduzir o humano ao que é mensurável e controlável, esvaziando aquilo que escapa a esta totalização.

Avançando para o trecho seguinte, dessa vez enunciado por Breiller Pires, autor da notícia em questão, versa sobre as mensagens discriminatória dirigidas à Tifanny que “insinuam um suposto oportunismo da atleta, como se jogar com mulheres cisgênero fosse uma escolha para sobressair pela imposição física” (Pires, 2018). Esta colocação remonta Tifanny a um conceito retomado de Agamben (2004)Agamben, G. ( 2004 ). Homo saccer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte, MG: Universidade Federal de Minas Gerais. por Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012b) dos sujeitos que restam como vida nua, compreendidos como “quase-cidadãos”, são os que se encontram desprovidos de cidadania ou qualquer assistência, vivendo às margens, e como se sua vida nua, destituída de qualquer representação social, representasse uma ameaça que justificasse ações discriminatórias e de exclusão social.

Neste sentido, quando insinuam um suposto oportunismo por parte de Tifanny, uma simples escolha para se sobressair num esporte, isso já reflete como o fenômeno é percebido como uma ameaça. Portanto, justificando essa leitura discriminatória e pejorativa, que entende a sua presença e participação como um mero oportunismo, uma tentativa mal-intencionada de tirar proveito de uma oportunidade, e ignorando totalmente sua reivindicação por reconhecimento e acolhimento enquanto sujeito com lugar social.

É válido ressaltar que os trechos apresentados a seguir foram retirados de diversos portais de notícias, mas foram todos enunciados pelo mesmo sujeito, a saber, a ex-jogadora de vôlei Ana Paula: “[...] homens biológicos ocuparão o lugar de mulheres nos times” (Pires, 2018Pires, B. (2018, 29 janeiro). A primeira transexual na Superliga feminina de vôlei, entre a ciência e o preconceito. São Paulo, SP: El País. Recuperado de https://brasil.elpais.com/brasil/2018/01/27/deportes/1517010172_234948.html
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), ou ainda: “[...] essa pauta sai da esfera da tolerância e vira uma questão científica, biológica” (Wilkson ,& Schimidt, 2018), “[...] não tem como competir. É biologia humana” (Wilkson, & Schimidt, 2018), e até mesmo que “[...] minoria barulhenta que quer empurrar a todo custo que sentimentos são mais importantes que fatos e biologia. Não são!” (Lance!, 2019)Lance! (2019, abril 03). Relembre o caso Tifanny, primeira atleta trans a disputar a superliga. Rio de Janeiro, RJ: o autor. Recuperado de https://www.lance.com.br/galeria-premium/tifanny.html
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, remontam um mesmo tema, e que é recorrente nas falas daqueles estranhos à transgeneridade.

Este tema é o do retorno ao biológico, mais especificamente à distinção anatômica, como único critério para definição do gênero. Mais que isso, vincula-se essa concepção a um modelo único e universal que constituiria a “ciência”, definindo este conjunto como o provedor da suposta e única verdade. É o recorrente “culto aos fatos”, já atravessado anteriormente no artigo, mas que é retomado nessas colocações enquanto exemplos deste fenômeno.

Para elucidar esta questão, é válido retomar a colocação de Louro (2008Louro, G. P. ( 2008 ). Gênero e sexualidade: Pedagogias contemporâneas. Revista Pró-posições, 19(2), 17-23. https://doi.org/10.1590/S0103-73072008000200003
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, p. 18), onde afirma que “[...] não é o momento do nascimento e da nomeação de um corpo como macho ou como fêmea que faz deste um sujeito masculino ou feminino. A construção do gênero e da sexualidade dá-se ao longo de toda a vida, continuamente, infindavelmente”. Portanto, a biologia retomada dessa forma não se estabelece como um critério válido para a definição do modo de funcionamento da realidade – muito menos do funcionamento das relações sociais e de identificação. Também é interessante pensarmos estes comentários enquanto “culto aos fatos” referenciados por Crochík (1995)Crochík, J. L. ( 1995 ). A cultura e o preconceito. In J. L. Crochík, Preconceito: Indivíduo e cultura (Cap. 3, pp. 143-189). São Paulo, SP: Robe., que descreve esta fixação e naturalização do indivíduo e dos demais fenômenos como se já tivessem a sua verdade determinada a priori . Um modo de operar com a realidade que a imobiliza, gerando um hiperrealismo que impede ela própria de ser pensada e assimilada a partir da forma como se apresenta no campo.

Também é válido recuperar o conceito de vida nua de Agambem (2004) e de biopoder de Foucault (2007)Foucault, M. ( 2007 ). As palavras e as coisas. São Paulo, SP: Martins Fontes., para compreender algumas atitudes de repúdio presente nas falas. Como aponta Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012b, p. 392) “[...] os sujeitos dominados que pleiteiam uma identidade social são reduzidos à condição de vida nua, à condição de animais destituídos de qualquer cidadania, o que justifica – para os sujeitos dominantes – a suposta legitimidade de ações discriminatórias, de rechaço [...]”. É este modo de se tensionar sobre o fenômeno que fica claro quando Ana Paula menciona uma suposta “[...] militância a favor de trans no esporte feminino, e contra as mulheres [...]” (Lance!, 2019Lance! (2019, abril 03). Relembre o caso Tifanny, primeira atleta trans a disputar a superliga. Rio de Janeiro, RJ: o autor. Recuperado de https://www.lance.com.br/galeria-premium/tifanny.html
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), quando diz que “[...] Tifanny tem um ataque de homem” (Lance!, 2019Lance! (2019, abril 03). Relembre o caso Tifanny, primeira atleta trans a disputar a superliga. Rio de Janeiro, RJ: o autor. Recuperado de https://www.lance.com.br/galeria-premium/tifanny.html
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), e principalmente quando afirma que uma minoria “quer empurrar a todo custo que sentimentos são mais importantes que fatos e biologia”(Lance!, 2019Lance! (2019, abril 03). Relembre o caso Tifanny, primeira atleta trans a disputar a superliga. Rio de Janeiro, RJ: o autor. Recuperado de https://www.lance.com.br/galeria-premium/tifanny.html
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), evidenciando a hostilidade na compreensão e percepção do fenômeno, e mais ainda, o rechaço e não acolhimento dessas formas de ser, dessas representações objetivas às quais um grupo (trans) não dominante está identificado.

Outro comentário que ganhou muita repercussão foi o pronunciado pelo treinador de vôlei Bernardinho, ex-treinador da seleção masculina, que após um ponto da jogadora em uma partida exclamou, “um homem, é foda” (Lance!, 2019Lance! (2019, abril 03). Relembre o caso Tifanny, primeira atleta trans a disputar a superliga. Rio de Janeiro, RJ: o autor. Recuperado de https://www.lance.com.br/galeria-premium/tifanny.html
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) – e após a repercussão, tentou pedir desculpas à atleta. Entretanto, vale destacar como a situação posta pelo treinador implica numa falência ética do outro social. Uma negação da sua condição e de sua humanidade, como se ser quem ela é, não tivesse espaço entre as produções aceitas, acarretando numa produção de sofrimento ético na qual a representação social à qual está identificada é atacada e destituída de seu lugar, quando em sua fala não a reconhece como uma mulher trans, mas como um homem. Serve como exemplo de uma clara tentativa de dominação e exercício do poder sobre o outro.

E como resposta à repercussão desta novidade (a saber, a participação de uma mulher trans numa liga oficial), foi noticiado um projeto de lei proposto pelo deputado estadual de São Paulo, Altair Moraes do Partido Republicano Brasileiro (PRB), que estabelece o sexo biológico como o único critério para a definição do gênero de competidores em partidas esportivas oficiais no estado brasileiro em que atua. Essa atitude que vedaria a atuação de atletas transexuais no esporte, caracteriza uma clara tentativa de exercício de um poder soberano que nega a condição de possibilidade de certas formas de vida. É uma destituição ético-político-antropológica da subjetividade que se vê numa condição de hiato social.

Esse tipo de vulnerabilidade, como apontam Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a), refere-se justamente aos sujeitos que apresentam dificuldades para encontrar um lugar de amparo e aceitação social, afinal, nesse tipo de situação acabam se encontrando privados das representações que lhes assegurariam uma inclusão social e uma identidade antropológica. Sob esse tipo de vulnerabilidade, são privados da oportunidade de pertencer, por exemplo, a instituições importantes, ou are comunidades e organizações onde desenvolveriam projetos políticos.

Portanto, a ainda pequena abertura que a permitia existir e ser reconhecida naquele campo é rechaçada e negada, a materialidade que a permitia pertencer é desfalecida, atacada. Diante disso, vale lembrar como boa parte de nossas representações sociais, em razão da condição material na qual estão apoiadas, se fazem ocorrências finitas, podendo assim desaparecer. Também é válido discutir sobre a responsabilidade humana sobre os eventos e atitudes que implicam na destruição das representações do outro social, inclusive os que atacam a materialidade que às permitem se apoiar. Tudo isso, para refletirmos modos mais humanos e inclusivos de operar com a alteridade, garantindo a ela também um lugar social, e não agindo no sentido de seu aniquilamento, exclusão e silenciamento. Ou como diria Foucault (2008)Foucault, M. ( 2008 ). História da sexualidade I: A vontade de saber. São Paulo, SP: Graal. o poder soberano que antes deixava viver e fazia viver, agora dá lugar ao poder do Estado que faz viver e deixa morrer. Faz viver os tipos de vida no qual se pode investir, e isto é definido a partir de um regime de saber, e se deixa morrer as vidas que são destituídas de validade. Não é possível ao Estado destruir o corpo da Tifanny, mas é possível destruir sua possibilidade de expressão e sua cidadania, impondo-lhe um tipo de morte social.

Considerações finais

A análise do caso da jogadora Tifanny permitiu um vislumbre sobre como a racionalidade ocidental pode ser violenta. À medida que estabelece que o único modo de ser é aquele constituído no âmbito das representações e compreensões logicamente estabelecidas, inviabiliza a manifestação espontânea e criativa do outro que fica subsumido à esfera do “mesmo”. Lévinas (1987)Lévinas, E. ( 1987 ). De outro modo de ser para além da essência. Salamanca: Sígueme. propõe que a alternativa a esta estratégia seria a ética. Uma ética tomada como filosofia primeira, ou seja, anterior às totalizações ontológicas que fariam do “mesmo” um “ser-para-o-outro”. Isso significaria dizer que a ética seria a dimensão da experiência humana que tornaria possível superar as imposições da razão totalizadora e acolher o outro como novidade, aceitando-o na sua diferença. Tal ética, contudo, é uma escolha, um propósito que sempre deve ser retomado, pois trata-se de uma alternativa ao modo como operamos racionalmente.

Essa dimensão da resposta levinasiana relaciona-se em algum nível com a alternativa proposta pela Teoria do Self na Gestalt-terapia (Perls et al., 1997Perls, F., Hefferline, R., Goodman, P. ( 1997 ). Gestalt-terapia. São Paulo, SP: Summus.), quando Müller-Granzotto e Müller-Granzotto (2012a) propõem que a clínica gestáltica se constitui como uma experiência ética de “acolhimento ao estranho”. Esse estranho de que tratam não se deixa aprisionar por uma categoria, é sempre uma novidade porque sempre se reapresenta de modos diversos. Essa ética é um reflexo da ética anárquica de Goodman que influencia a redação da Teoria do Self (1997), já que não interage com um tipo específico de modo de ser. Pelo contrário, admite no seu interior todo modo de ser, todo desejo, toda diferença.

Essa dimensão da Teoria do Self revela sua potencialidade criativa na direção de um paradigma pós-moderno que toma o campo como dimensão de análise e trabalho, o que significa descortinar as relações sociais nele implicadas e os regimes de poder-saber que tornam as relações possíveis. Neste sentido, ao construir uma teoria sobre o sofrimento, a Gestalt-terapia propõe uma estratégia de análise das violências totalitárias que situam a transgeneridade no âmbito do sofrimento ético-político-antropológico, pois é um fenômeno que simultaneamente se vê privado de sua possibilidade de representação objetiva, de seu status de humanidade e de seus direitos e de cidadania.

Portanto, a experiência totalitária da razão ocidental, que doutrina os corpos, domestica as relações e controla as formas de vida precisa ser confrontada por uma atitude ética de autorização do outro, de acolhimento da diferença e de luta política em nome das representações objetivas necessárias ao exercício da cidadania. Nesta dimensão, o modelo de clínica antropológica que se desenvolve a partir da Teoria do Self é acima de tudo um exercício de luta e de autorização que demanda dos seus atores novas articulações e novas reflexões que viabilizem o desenvolvimento deste novo paradigma.

A transgeneridade é acima de tudo um fenômeno humano, uma experiência que transcende os limites de uma explicação biologicista e reducionista. De maneira que se pode afirmar que a fisiologia não detém a verdade sobre o que é ser homem ou mulher, e por mais que haja tentativas de fundamentação racional para a segregação, no fundo continua sendo apenas isso: medo do que é diferente e do que transgride a norma estabelecida. Ser homem ou mulher transgênero é afirmar-se como alteridade e é também um ato de resistência à uma lógica totalitária. E a gestalt-terapia, nessa perspectiva, possui os elementos necessários para lutar por cidadania para essa produção. Cabe agora aos seus interlocutores aceitarem ou não o desafio de ‘ousar’ na direção de um novo modo de atuação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    8 Maio 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    11 Set 2019
  • Aceito
    04 Out 2019
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