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(In)visibilidade Lésbica na Saúde: Análise de Fatores de Vulnerabilidade no Cuidado em Saúde Sexual de Lésbicas

Lesbian Health (In)visibility: Analysis of Vulnerability Factors in Lesbian Sexual Health Care

(In)visibilidad de la Salud de las Lesbianas: Análisis de los Factores de Vulnerabilidad en el Cuidado de la Salud Sexual de Lesbianas

Resumo

O presente estudo teve como objetivo geral analisar a vulnerabilidade em saúde sexual e as práticas preventivas frente a infecções sexualmente transmissíveis (IST) nas relações afetivo-sexuais de lésbicas. Tratou-se de um estudo exploratório e descritivo, de caráter transversal e qualitativo. A amostra foi composta por 18 participantes mulheres, brasileiras, que se autodefinem lésbicas, com idades variando de 19 a 42 anos (M = 26; DP = 6,1). Para a coleta dos dados, foram utilizados um questionário sociodemográfico e entrevistas semiestruturadas. Os dados foram analisados por meio da análise categorial temática. Foram evidenciados que os supostos métodos existentes não seriam próprios, específicos ou pensados para a prevenção às IST entre mulheres, tendo em vista que a maioria destes meios de prevenção seriam adaptações de métodos já existentes ou adaptações de itens que originalmente seriam utilizados com outras finalidades. Conclui-se que elementos de ordem programática parecem influenciar de maneira mais intensa para a situação de maior vulnerabilidade à saúde das lésbicas, embora estes também estejam relacionados a elementos individuais e sociais.

Palavras-chave:
Lésbicas; IST; Prevenção; Cuidado em Saúde

Abstract

This study analyzed the vulnerability in sexual health and preventive practices regarding Sexually Transmitted Infections (STIs) in the affective-sexual relationships of lesbians. This exploratory and descriptive study followed a cross-sectional and qualitative character. The sample consisted of 18 Brazilian women self-reported as lesbians, ranging from 19 to 42 years (M = 26, SD = 6.1). A sociodemographic questionnaire and semi-structured interviews were used to collect the data. The data were analyzed through thematic categorical analysis. The supposed existing methods were shown to not be specific, or target the prevention of STIs among women, since most of these means of prevention would be adaptations of existing methods or of items that would originally be used for other purposes. We conclude that elements of programmatic order seem to affect more intensively for a situation of greater vulnerability to lesbian health, and these are also related to individual and social elements.

Keywords:
Lesbians; STI; Prevention; Health Care

Resumen

El presente estudio tuvo como objetivo general analizar la vulnerabilidad en la salud sexual y las prácticas preventivas frente a las infecciones sexualmente transmisibles (IST) en las relaciones afectivo-sexuales de lesbianas. Se trató de un estudio exploratorio y descriptivo, de carácter transversal y cualitativo. La muestra fue compuesta por 18 participantes mujeres, brasileñas, que se autodefinen lesbianas, con edades entre 19 y 42 años (M = 26, DE = 6,1). Para la recopilación de los datos, se utilizó cuestionario sociodemográfico y entrevistas semiestructuradas. Los datos fueron analizados por medio del análisis categorial temático. Se evidenció que los supuestos métodos existentes no son propios, específicos o pensados para la prevención de las IST entre mujeres, teniendo en cuenta que la mayoría de ellos son adaptaciones de métodos ya existentes o adaptaciones de ítems que originalmente se utilizan con otros fines. Se concluye que los elementos programáticos pueden influir más en una situación de mayor vulnerabilidad a la salud de las lesbianas, aunque también se asocian a elementos individuales y sociales.

Palabras clave:
Lesbianas; IST; Prevención; Cuidado de la Salud

Introdução

Historicamente, entre diferentes épocas, a sexualidade feminina vem sendo socialmente controlada, seja por mecanismos institucionais, como o poder do Estado, ou por meio de aspectos que fazem parte da conjuntura social, como o patriarcado e o machismo (Barbosa, Nascimento, Carvalho, & Cavalcante, 2014Barbosa, B. R. S. N., Nascimento, E. T., Carvalho, I. A. F., & Cavalcante, J. C. D. (2014). Invisibilidade lésbica e a interseccionalidade de opressões. Anais do Redor, 18, 3008-3024.). A exemplo disso, durante o século XIX e parte do século XX, a medicina enfatizou que as características anatômicas das mulheres as destinariam à maternidade de modo que a recusa da maternidade, considerada como a verdadeira essência da mulher, seria um indício de forte ameaça aos padrões e valores estabelecidos para o sexo feminino (Rohden, 2009Rohden, F. (2009). Uma ciência da diferença: Sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz.). Neste contexto de repressão, as práticas sexuais entre mulheres foram silenciadas e moralmente reprimidas, chegando ao quadro das violações de direitos que se impõem a quem não seguir os papéis de gênero1 1 Sobre os papeis de gênero estabelecidos na sociedade, é importante destacar que, segundo Butler (2003), o conceito de gênero deve ser compreendido de forma mais ampla, de modo a ultrapassar as limitações impostas pelo modelo clássico do que seria o feminino e o masculino, visto que este modelo é uma construção social limitada, abstrata e excludente, impondo formas de moldar os indivíduos em padrões socialmente aceitáveis, atribuindo papéis que determinam o que a sociedade espera que uma mulher e um homem cumpram, dentro de uma “normalidade” binária. socialmente criados, nem aceitar a heteronormatividade como regra dentro de um processo de normalização compulsória dos corpos (Barbosa et al., 2014Barbosa, B. R. S. N., Nascimento, E. T., Carvalho, I. A. F., & Cavalcante, J. C. D. (2014). Invisibilidade lésbica e a interseccionalidade de opressões. Anais do Redor, 18, 3008-3024.).

O quadro da invisibilidade da mulher cis lésbica foi bastante marcado pela ênfase que a epidemia da aids (síndrome da imunodeficiência adquirida) atribuiu apenas às práticas homossexuais masculinas como alvo de transmissão do vírus HIV (vírus da imunodeficiência humana), durante a década de 1980. Este fato contribuiu para o incremento posterior da ideia de uma possível existência de baixa vulnerabilidade entre as lésbicas, onde passou a se acreditar que lésbicas, por se relacionarem apenas entre mulheres, desenvolveriam uma proteção à infecção pela via sexual (Almeida, 2009Almeida, G. S. (2009). Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se auto-definem como lésbicas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19, 301-331. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312009000200004
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). Segundo Lima (2016Lima, M. A. S. (2016). Vulnerabilidade e prevenção às DST’s nas práticas afetivo-sexuais de lésbicas (Dissertação de mestrado). Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, PB.), a própria medicina considerava que lésbicas, por se relacionarem apenas entre mulheres, desenvolveriam um fator de proteção às IST.

No entanto, a ideia de uma menor vulnerabilidade não seria real. Dentro do que se pode considerar como vulnerabilidade individual, as lésbicas seriam vulneráveis, entre outros fatores, porque em práticas sexuais desprotegidas entrariam em contato com os fluídos uma da outra, tais como o sangue menstrual e o líquido lubrificante vaginal, que segundo a autora seriam possíveis de transportar agentes infecciosos entre as mulheres, por meio de acessos à circulação sanguínea, como as cutículas e a boca (Carvalho, 2013Carvalho, V. A. (2013). As representações sociais de mulheres lésbicas sobre atenção à sua saúde (Monografia de conclusão de curso). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Pelotas, RS.). Além disso, práticas sexuais desprotegidas mais intensas, que possam ocasionar esfoladuras genitais, também se tornam um fator de risco, bem como a partilha de acessórios para penetração vaginal ou anal, sem que ocorra antes uma higienização ou troca dos preservativos (Almeida, 2009Almeida, G. S. (2009). Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se auto-definem como lésbicas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19, 301-331. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312009000200004
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).

Alguns estudos epidemiológicos existentes na literatura internacional (Marrazzo, 2004Marrazzo, J. M. (2004). Barriers to infectious disease care among lesbians. Emerging Infectious Diseases, 10(11), 1974-1978. http://doi.org/10.3201/eid1011.040467
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; Shirley, et al., 2014Shirley, K. C., Thornton, L. R., Chronister, K. J., Meyer, J., Wolverton, M., Johnson, C. K., . . . Sullivan, V. (2014). Likely Female-to-Female Sexual Transmission of HIV - Texas, 2012. Morbidity and Mortality Weekly Report, 63(10), 1-20. http://www.cdc.gov/mmwr/pdf/wk/mm6310.pdf
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) também apontam para a possibilidade de transmissão de IST nas relações desprotegidas entre lésbicas, bem como uma maior quantidade de casos de doenças que não foram classificadas como IST, a exemplo da vaginose bacteriana (VB) e da candidíase, mas com uma maior ocorrência entre as mulheres que se relacionam sexualmente, de maneira desprotegida, com outras mulheres (Almeida, 2009Almeida, G. S. (2009). Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se auto-definem como lésbicas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19, 301-331. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312009000200004
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).

Contrariamente ao imaginário da baixa vulnerabilidade às IST entre lésbicas, Rodrigues (2011Rodrigues, J. L. (2011). Estereótipos de Gênero e o cuidado em saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo SP.) também aponta a possibilidade de transmissibilidade do HPV (papiloma vírus humano) entre lésbicas que relataram não terem tido nenhum contato sexual prévio com homens. Ainda sobre essa questão, Marrazzo (2004Marrazzo, J. M. (2004). Barriers to infectious disease care among lesbians. Emerging Infectious Diseases, 10(11), 1974-1978. http://doi.org/10.3201/eid1011.040467
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) destaca ter sido recorrente o registro da transmissão sexual de Treponema pallidum (sífilis), Trichomonas vaginalis (tricomoníase) e herpes genital entre lésbicas.

Em relação especificamente ao HIV entre lésbicas, a literatura internacional destaca ser rara a transmissão. No entanto, Pinto (2004Pinto, V. M. (2004). Aspectos epidemiológicos das doenças sexualmente transmissíveis em mulheres que fazem sexo com mulheres (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.) destaca que são conhecidos três estudos que mostram a possibilidade de transmissão do HIV entre mulheres. Um deles é datado de 1987 e foi publicado em um jornal médico norte-americano chamado Lancet, e outro de 2003, publicado nos Estados Unidos. Contudo, em ambos, não foi possível haver a confirmação da fonte de transmissão.

Mais recentemente, no ano de 2014, o Departamento de Saúde de Houston notificou mais um caso comprovado de transmissão de HIV provavelmente pelo contato sexual entre duas mulheres. Até então, poucos relatos cientificamente comprovados descreveram a possibilidade de transmissão do HIV entre lésbicas, e esses, quando o fizeram, careciam de maior investigação. Contudo, mesmo sendo baixa a transmissão do HIV entre mulheres, os profissionais da saúde não deveriam admitir que mulheres que fazem sexo com mulheres teriam naturalmente baixo risco de adquirir quaisquer IST (Pinto, 2004Pinto, V. M. (2004). Aspectos epidemiológicos das doenças sexualmente transmissíveis em mulheres que fazem sexo com mulheres (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.).

No Brasil, os estudos sobre o perfil da epidemia de HIV entre as mulheres deixam a desejar pela ausência de registro da informação sobre orientação sexual das participantes (Melo, 2010Melo, A. P. L. (2010). “Mulher Mulher” e “Outras Mulheres”: Gênero e homossexualidade(s) no Programa de Saúde da Família (Dissertação de mestrado). Universidade Estatual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. http://livros01.livrosgratis.com.br/cp148126.pdf
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), e não há um consenso no meio científico acerca da importância da transmissão da doença por via sexual entre elas (Barbosa & Facchini, 2009Barbosa, R. M., & Facchini, R. (2009). Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 25(Supl. 2), 291-300. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009001400011
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; Pinto, 2004Pinto, V. M. (2004). Aspectos epidemiológicos das doenças sexualmente transmissíveis em mulheres que fazem sexo com mulheres (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.).

Segundo Pinto (2004Pinto, V. M. (2004). Aspectos epidemiológicos das doenças sexualmente transmissíveis em mulheres que fazem sexo com mulheres (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.), no Brasil ainda não há, para fins de registro e critério epidemiológico, uma categoria de transmissão de HIV/aids que enfoque mulheres que fazem sexo com mulheres. Isso torna necessário destacar a possibilidade de existência de subnotificações: os casos de possíveis transmissões do HIV nas relações entre lésbicas poderiam estar sendo erroneamente notificados como ocorrendo a partir de supostas relações heterossexuais.

Neste sentido, entende-se que as relações afetivo-sexuais entre mulheres quase sempre foram percebidas como um tabu e algumas vezes colocadas à margem da sociedade. As formas como as lésbicas são vistas pela sociedade refletem em diferentes setores de suas vidas, inclusive no campo da prevenção e da promoção da saúde.

Analisando este quadro a partir da perspectiva do conceito de vulnerabilidade em saúde (Ayres, Calazans, Salleti Filho & França, 2006Ayres, J. R., Calazans, G., Saletti Filho, H., & França, I., Jr. (2006). Risco, vulnerabilidade e práticas de prevenção e promoção de saúde. In G. W. S. Campos, M. C. S. Minayo, M. Akerman, M. Drumond, & Y. M. Carvalho (Orgs.), Tratado de saúde coletiva (pp. 375-417). São Paulo, SP: Hucitec.; Ayres, Paiva & França, 2012Ayres, J. R., Paiva, V., & França, I., Jr. (2012). Conceitos e práticas de prevenção: da história natural da doença ao quadro da vulnerabilidade e direitos humanos. In V. Paiva, J. R. Ayres, & C. M. Buchalla (Orgs.), Vulnerabilidade e direitos humanos. Prevenção e promoção da saúde: Da doença à cidadania (Vol. 1, pp. 73-93). Curitiba, PR: Juruá.; Mann & Tarantola, 1996Mann, J., & Tarantola, D. (1996). AIDS in the World II. Oxford, NY: Oxford University Press.; Mann, Tarantola, & Netter, 1992Mann, J., Tarantola, D. J. M., & Netter, T. W. (1992). AIDS in the World. Cambridge, MA: Harvard University Press.), considera-se a existência de três planos que se relacionam, a saber: o plano individual (corresponde ao acesso a informação, desejos, valores, atitudes etc.), o plano social (seriam as relações de gênero, processos de estigmatização, discriminação, preconceito etc.) e o plano programático (políticas públicas específicas, equidade, integralidade, disponibilidade dos serviços etc.).

Assim, pode-se dizer que as formas como estas mulheres exercem a prevenção em suas práticas afetivo-sexuais não estariam unicamente relacionadas à existência de fatores de ordem interna e individual, mas também elementos programáticos e aspectos sociais “que compõem a ordem social relacionados aos estigmas, mitos e sentidos construídos na sociedade sobre a homossexualidade feminina” (Lionço, 2008Lionço, T. (2008). Que direito à saúde para a população GLBT? Considerando direitos humanos, sexuais e reprodutivos em busca da integralidade e da equidade. Saúde e Sociedade, 17, 11-21. http://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902008000200003
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, p. 13).

Desse modo, persistiria uma situação de invisibilidade das lésbicas nos serviços de saúde brasileiros, principalmente no que se refere aos cuidados ginecológicos e à promoção da saúde. A ausência de orientação ginecológica advinda dos profissionais de saúde acerca das possibilidades de prevenção para práticas sexuais seguras entre mulheres, associada, muitas vezes, ao preconceito, seria um retrato da invisibilidade dessas mulheres refletida nos serviços de saúde (Carvalho, 2011Carvalho, S. C. (2011). Entre ditos, não-ditos e interditos: saúde sexual de mulheres com práticas afetivo-sexuais com mulheres (Dissertação de mestrado). Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.).

Faz-se fundamental a consideração de que as relações entre mulheres possuem demandas específicas, o que acarretaria na necessidade de orientações focadas nas especificidades para a prevenção de IST em suas práticas sexuais. Além disso, a falta de informação sobre a promoção da saúde sexual das lésbicas e o mito do corpo imune podem ser considerados, em parte, responsabilidade do Ministério da Saúde, em decorrência da ausência de “propostas para modificar os comportamentos sexuais de riscos entre as mulheres lésbicas e almejar a busca por elas nos serviços de saúde” (Gaudad, 2013Gaudad, L. A. (2013). Heteronormatividade em dispositivos visuais: Análise de campanhas governamentais de sexualidade para mulheres lésbicas (Monografia de bacharelado). Universidade de Brasília, Brasília, DF., p. 46).

Ante o exposto, buscou-se realizar um estudo exploratório e descritivo, de caráter transversal, cujo design qualitativo permitiu a verificação na amostra estudada da incidência de elementos influenciadores nas situações de maior vulnerabilidade relacionadas às práticas afetivo-sexuais e no cuidado com a saúde sexual de mulheres cis lésbicas.

Método

Participantes

Para a realização deste estudo, contou-se com a participação de 18 mulheres cis, brasileiras, que se autodefinem como lésbicas. Optou-se por delimitar o objeto de pesquisa, visto que as análises e as discussões realizadas se baseiam nas experiências e vivências de mulheres cis lésbicas (cisgênero, termo utilizado pela primeira vez em 1995 por Carl Buijs para retratar pessoas que não são transexuais, ou seja, aquelas em que a identidade de gênero está em concordância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer) nos serviços de saúde, não se estendendo, no presente estudo, a situações vivenciadas por mulheres transexuais lésbicas nos mesmos serviços.

Trata-se de uma escolha de pesquisa por se partir do entendimento de que as mulheres cisgênero lésbicas podem vir a sofrer violações de direitos pela influência da lesbofobia (preconceitos contra mulheres lésbicas e bissexuais) e da misoginia, enquanto mulheres transexuais lésbicas possivelmente sofram violações de direitos por maior influência da transfobia presente na sociedade.

A transfobia é um conceito que, segundo Carrara (2013Carrara, S. (2013). Discriminação, políticas e direitos sexuais no Brasil. In: S. Monteiro, W. Villela (Orgs.). Estigma e saúde (pp. 143-160). Rio de Janeiro: Editora Fiocruz.), surge com o objetivo de proporcionar visibilidade às questões dos preconceitos e discriminações experienciados pelas pessoas transgêneras. Assim, a transfobia, como bem define Jesus (2012Jesus, J. G. (2012). Orientações sobre identidade de gênero: Conceitos e termos. Brasília, DF. http://www.diversidadesexual.com.br/wp-content/uploads/2013/04/G%C3%8ANERO-CONCEITOS-E-TERMOS.pdf
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, p. 26), seria “o preconceito e/ou discriminação em função da identidade de gênero de pessoas transexuais ou travestis”.

Assim, tendo em vista a necessidade de aprofundamento em fenômenos que, embora próximos, não são idênticos, e com o intuito de traçar uma delimitação teórico-metodológica, mas sem com isso tentar quantificar a relevância de se estudar quaisquer das duas populações, optou-se, neste estudo, por tratar das questões relativas às violações de direitos sofridas por mulheres cisgênero nos serviços de saúde.

Dessa forma, a coleta partiu de uma participante matriz e seguiu para a seleção de novas participantes pelo método de “bola de neve” (Baldin & Munhoz, 2012Baldin, N., & Munhoz, E. (2012). Educação ambiental comunitária: uma experiência com a técnica de pesquisa Snowball (Bola de Neve). REMEA: Revista Eletrônica do Mestrado em Educação Ambiental, 27, 46-60. https://periodicos.furg.br/remea/article/view/3193/1855
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), no qual uma participante indicou outras, e assim por diante. O número amostral foi definido pela técnica de saturação de conteúdos (Minayo, 2004Minayo, M. C. (2004). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde (8a ed.). São Paulo, SP: Hucitec .).

Para a participação, foram adotados os seguintes critérios de exclusão: I) Recusa a participar do estudo; II) Participantes que não se identificaram enquanto mulheres cisgênero lésbicas; III) Participantes que ainda não iniciaram a vida sexual; e IV) Participantes menores de 18 anos.

Material

Para a coleta dos dados, foram utilizados um questionário sociodemográfico e entrevistas semiestruturadas individuais. O questionário sociodemográfico teve o intuito de caracterizar o perfil das participantes da pesquisa, contendo itens que se limitaram a idade, nível de escolaridade, renda, situação laboral, estado civil, orientação sexual, situação afetivo-sexual, tipo de relacionamento, modalidade de serviço de saúde que costuma utilizar e data da última consulta ginecológica.

As entrevistas foram audiogravadas e semiestruturadas, partindo de 14 perguntas norteadoras elaboradas previamente e que buscaram inicialmente verificar o conhecimento das participantes sobre as IST, a dinâmica de suas relações afetivo-sexuais e questões relacionadas ao cuidado de saúde.

Procedimento

O estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição, sob o número de protocolo 0513/14, e Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) 35669314.6.0000.5188, com o intuito de seguir todos os procedimentos éticos de acordo com a Resolução nº 466/2012, sobre pesquisas envolvendo seres humanos, do Ministério da Saúde.

As participantes foram esclarecidas acerca dos objetivos da pesquisa e de que a participação era voluntária, e, portanto, não eram de forma alguma obrigadas a fornecer quaisquer informações e/ou colaborar com as atividades solicitadas pelo pesquisador. Estas também foram esclarecidas sobre a possibilidade de desistência de participação a qualquer momento, sem nenhum prejuízo, ou modificação na forma de tratamento pelo pesquisador.

Para cada uma das mulheres que aceitaram participar do estudo, foi entregue o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, contendo a descrição do estudo, seus objetivos, possíveis riscos e contribuições, e foi solicitada a assinatura individual de cada uma delas.

A primeira participante (matriz) foi contatada a partir de uma indicação a priori, e foi previamente informada sobre a realização da pesquisa e seus objetivos. Em seguida, foi solicitada sua autorização para que seu contato telefônico fosse informado ao pesquisador. Após autorização da participante, ela foi contatada pelo pesquisador, que explicou com mais detalhes os objetivos e procedimentos da pesquisa, solicitando seu consentimento para participar.

A partir desta participante, teve início o processo de indicação para as demais participantes que compõem o estudo. As entrevistas foram realizadas em locais públicos (shoppings e praças) ou no local de residência das participantes, de acordo com a disponibilidade e escolha delas.

Os dados oriundos do questionário sociodemográfico foram analisados por meio de estatísticas descritivas, a partir da elaboração de um banco de dados criado no software IBM-SPSS versão 23. Foram utilizadas medidas de posição (média; mediana) e de variabilidade (desvio-padrão).

Os dados obtidos nas entrevistas foram analisados por meio de análise categorial temática. Este tipo de análise considera a totalidade do texto, passando-o por um aprofundado julgamento no processo de classificação e quantificação dos dados, segundo a frequência de presença ou ausência de itens de sentido (Bardin, 2006Bardin, L. (2006). Análise de Conteúdo (L. A. Rego & A. Pinheiro, Trads.). Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1977)).

Com o intuito de preservar a identidade das participantes, em conformidade com o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foram omitidos os nomes de todas as participantes do estudo, bem como não serão apresentadas as entrevistas na íntegra, de modo que serão apontados apenas fragmentos extraídos a partir do procedimento de análise categorial temática.

Resultados

Aspectos sociodemográficos

A idade das 18 participantes variou de 19 a 42 anos (M = 26; DP = 6,1). Em relação ao nível de escolaridade, 44,4% afirmaram estar cursando ensino superior, e 50% já o concluíram. No que se refere ao nível de renda das participantes, 33,3% possuíam renda de até três salários mínimos; 55,5% das participantes encontravam-se empregadas no momento da entrevista.

Observou-se que a idade com que as participantes tiveram sua primeira relação sexual com outra mulher variou entre 14 e 28 anos (M = 17; DP = 3,2). Sobre a situação afetivo-sexual, a maioria (83,3%) afirmou estar, no momento da pesquisa, em um relacionamento afetivo-sexual com outra mulher.

Quanto ao tempo médio do relacionamento atual ou mais recente, 44,4% afirmaram estar ou já ter estado em um relacionamento com duração maior que um ano. No tocante à dinâmica do relacionamento, todas as participantes que estão em um relacionamento afetivo-sexual afirmaram que mantêm um relacionamento monogâmico, ou seja, apenas com uma pessoa.

Acerca das questões relacionadas à prevenção em saúde, a maioria (66,7%) afirmou fazer uso de serviços de saúde da rede privada. Além disso, 50% responderam que a última consulta ao serviço de ginecologia foi há aproximadamente um ano, levando em consideração a data em que a entrevista estava sendo realizada.

Categorias de análise

O processo de análise categorial temática tomou como base o modelo progressivo proposto por Bardin (2006Bardin, L. (2006). Análise de Conteúdo (L. A. Rego & A. Pinheiro, Trads.). Lisboa: Edições 70. (Trabalho original publicado em 1977)) e Silva e Fossá (2015Silva, A., & Fossá, M. (2015). Análise de conteúdo: Exemplo de aplicação da técnica para análise de dados qualitativos. Qualitas Revista Eletrônica, 16(1), 1-14. http://revista.uepb.edu.br/index.php/qualitas/article/view/2113/1403
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), partindo da leitura flutuante inicial dos materiais e da exploração dos conteúdos a fim de elaborar as categorias a posteriori que compõem a análise baseada no processo de codificação em função da repetição dos conteúdos.

Categorias iniciais

Segundo Silva e Fossá (2015Silva, A., & Fossá, M. (2015). Análise de conteúdo: Exemplo de aplicação da técnica para análise de dados qualitativos. Qualitas Revista Eletrônica, 16(1), 1-14. http://revista.uepb.edu.br/index.php/qualitas/article/view/2113/1403
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), as categorias iniciais configuram-se como as primeiras impressões relacionadas ao tema estudado, sendo provenientes do processo de codificação das entrevistas transcritas. Neste sentido, foram identificadas 15 categorias iniciais.

Tabela 1
Categorias iniciais.

Após a categorização inicial realizada a partir do julgamento de dois juízes, verificou-se a necessidade de realizar uma nova categorização, de maneira a dar prosseguimento ao processo de categorização de maneira mais depurada, em que foram obtidas categorias intermediárias a partir das categorias iniciais anteriormente extraídas.

Categorias intermediárias

Da junção das categorias iniciais emergiram quatro categorias intermediárias: “Percepção de Risco”, que evidencia a forma como as participantes percebem o risco para as IST associado a práticas sexuais desprotegidas entre mulheres; “Conhecimento sobre Insumos Preventivos”, que destaca o conhecimento das participantes acerca da existência, manuseio e eficácia dos insumos preventivos para relações sexuais entre mulheres; “Estratégias de Prevenção”, praticadas pelas participantes para evitar a transmissão de IST nas suas relações sexuais; e, por fim, a quarta e última categoria intermediária, “Atendimento em Saúde”, que aponta para as formas de atendimento em saúde recebidas pelas participantes, especificamente no que se refere ao atendimento ginecológico.

Tabela 2
Categorias intermediárias.

Categorias finais

A partir das categorizações inicial e intermediária, tornou-se possível a construção de categorias finais, que concluem o processo de categorização. A constituição final é composta por três categorias: “Risco e Vulnerabilidade às IST”, “Conhecimentos sobre Prevenção” e “Serviços de Saúde”.

Tabela 3
Categorias finais.

Discussão

Risco e Vulnerabilidade às IST

De maneira geral, a categoria “Risco e Vulnerabilidade às IST” demonstra o conhecimento das participantes sobre a possibilidade de transmissão de IST nas relações afetivo-sexuais desprotegidas entre mulheres e o risco associado a tais práticas, conforme apontam as falas a seguir:

é possível da gente contrair se a gente não tiver um certo cuidado e não conhecer, e mesmo conhecendo a gente ainda corre esse risco. . . . Por causa do contato direto entre as vulvas e por não fazer uso (se existir, porque desconheço) de algum meio para se prevenir (Participante 1, 27 anos).

Saúde tem que ser em primeiro lugar, apesar que no momento eu não estou cuidando da saúde, deixando ela de lado, mas assim eu sei que é em primeiro lugar, que a gente tem que se cuidar, principalmente em relação ao homossexual. Que é uma coisa assim, para pegar, para evitar doença, então é uma coisa que a gente tem que estar se cuidando mais (Participante 5, 32 anos).

Percebe-se que a possibilidade de transmissão de infecções sexualmente transmissíveis nas relações afetivo-sexuais entre mulheres se faz presente no relato das participantes 1 e 2. Neste sentido, sabe-se que a possibilidade já foi comprovada na literatura (Facchini, 2008Facchini, R. (2008). Entre umas e outras: mulheres, (homo)sexualidades e diferenças na cidade de São Paulo (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP.; Marrazzo, 2004Marrazzo, J. M. (2004). Barriers to infectious disease care among lesbians. Emerging Infectious Diseases, 10(11), 1974-1978. http://doi.org/10.3201/eid1011.040467
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; Pinto, 2004Pinto, V. M. (2004). Aspectos epidemiológicos das doenças sexualmente transmissíveis em mulheres que fazem sexo com mulheres (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.; Rodrigues, 2011Rodrigues, J. L. (2011). Estereótipos de Gênero e o cuidado em saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais (Dissertação de mestrado). Universidade de São Paulo, São Paulo SP.), onde são apontadas evidências médicas acerca da possibilidade de transmissão de IST nas relações desprotegidas entre mulheres. No entanto, em outro momento, as participantes apontam a ideia da existência de uma possível diferença entre o nível de vulnerabilidade entre os gêneros:

Inclusive acho que um grupo de risco grande são os grupos de mulheres que são bissexuais. Eu estive pensando muito nisso esses dias. Porque eu já tive relacionamentos bi, com pessoas que eram bi ou que no processo eu descobri que eram bi e foi difícil para mim porque eu acho que esse é um grupo que está muito vulnerável e nos deixa muito vulnerável (Participante 1, 27 anos).

eu acho o homem mais promíscuo e menos cuidadoso com a própria saúde. . . . eu acho que mulher tem mais aquela cultura dePô, a gente vai no médico, a gente está se cuidando. Eu acho que a gente tem uma consciência de meio que tentar não passar para a outra. Claro que tem suas exceções, mas de uma forma geral eu vejo assim. Eu acho no geral o homem promíscuo (Participante 15, 26 anos).

Desse modo, é possível perceber a ideia de maior vulnerabilidade associada à presença masculina na relação, ficando subjacente nos discursos que o relacionamento apenas entre mulheres poderia ser um fator de proteção em decorrência da existência de uma crença de gênero socialmente construída em que as mulheres seriam naturalmente mais cuidadosas e responsáveis com sua saúde e, consequentemente, em suas relações, se comparadas aos homens, sendo estes considerados como descuidados, com comportamentos vulneráveis e, assim, com maior risco de transmitirem IST.

Em um estudo realizado por Barbosa e Facchini (2009Barbosa, R. M., & Facchini, R. (2009). Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 25(Supl. 2), 291-300. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009001400011
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) também foi verificado, nos discursos das participantes, a ideia de que as infecções sexualmente transmissíveis, incluindo-se o HIV/aids, estariam relacionadas a homens, e as respondentes acreditavam ser o relacionamento sexual entre mulheres um fator de proteção. Já um estudo realizado pelo Grupo Arco-íris (Arco-íris, 2008Grupo Arco-íris. (2008). Pesquisa lesbianidade, bissexualidade e comportamento sexual. Rio de Janeiro, RJ: Autor.) verificou que para 44% das mulheres entrevistadas não existiria risco de lésbicas contraírem IST nas relações com outras mulheres, e 54% afirmaram que este risco também não existiria para o HIV. Trata-se de um quadro preocupante, pois de certa forma responsabiliza a figura masculina pela transmissão de IST, o que pode trazer à tona as ideias existentes inicialmente na medicina, e que em seguida se espalharam por toda a sociedade, de que os homens eram responsáveis pela disseminação do HIV, principalmente os homossexuais masculinos. Este fato isenta o corpo feminino lésbico da possibilidade de também ser capaz de adquirir e transmitir IST, o que também pode afetar na forma como essas mulheres mantêm suas práticas sexuais; a exemplo disso, se fazem uso de algum método preventivo ou não, ou se costumam realizar exames preventivos para detectar possíveis IST.

Conhecimentos e Métodos de Prevenção

A categoria “Conhecimentos e Métodos de Prevenção” comporta falas que enfatizam o conhecimento das participantes acerca da existência de insumos preventivos, fontes de informação, adesão ao uso e as estratégias preventivas às IST nas relações afetivo-sexuais entre mulheres.

Pode ser que existam, eu não conheço, então se existe e eu não conheço pode ser que exista uma dificuldade de divulgação. . . . eu já até participei de uma oficina de redução de danos não específica para homem ou mulher que mostraram o uso da camisinha na boca. Eu sinceramente não senti que vale experimentar, por isso não trouxe para mim (Participante 1, 27 anos).

A única vez que eu tive contato com isso foi em um encontro de lésbicas que eu fui e é tudo gambiarra. Não tem nada para a gente, próprio para lésbicas. Eu conheço pouca coisa. Tipo, pôr camisinha no dedo, tirar o anel da camisinha e rasgar e botar na vagina da menina, a camisinha lingual, mas não serve para o resto da boca (Participante 2, 22 anos).

Nos relatos das participantes 1 e 2 evidencia-se a ausência de esclarecimentos sobre a possibilidade de existência de insumos preventivos às IST que possam ser utilizados nas relações entre mulheres. É recorrente na literatura (Almeida, 2009Almeida, G. S. (2009). Argumentos em torno da possibilidade de infecção por DST e Aids entre mulheres que se auto-definem como lésbicas. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 19, 301-331. https://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312009000200004
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; Meinerz, 2005Meinerz, N. E. (2005). Entre mulheres: estudo etnográfico sobre a constituição da parceria homoerótica feminina em segmentos médios na cidade de Porto Alegre - RS (Dissertação de mestrado). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS.) a indicação sobre a falta de esclarecimento entre as lésbicas acerca da existência de métodos preventivos para evitar IST nas relações sexuais. Quando estas possuem algum conhecimento acerca de um ou mais métodos, costumam tratá-los com estranheza e desconfiança, seja por não considerarem métodos adequados e específicos para as práticas sexuais entre mulheres ou por não sentirem interesse em utilizá-los por considerarem adaptações. Subjacentes aos relatos das participantes, encontram-se a ausência de informações claras, a falta de discussões amplas nos setores de saúde sobre os possíveis métodos para prevenção e a dúvida sobre a eficácia desses itens, bem como seus meios corretos de utilização e formas de aquisição.

Além disso, é recorrente nos discursos que os supostos métodos existentes não seriam próprios, específicos ou pensados para a prevenção no sexo entre mulheres, tendo em vista que a maioria destes meios de prevenção seriam adaptações de métodos já existentes, como o preservativo masculino sem lubrificação, ou adaptações de itens que originalmente seriam utilizados com outras finalidades (plástico filme de PVC, luvas cirúrgicas, barreira de látex de uso odontológico). Estes são dois aspectos relevantes e que podem influenciar diretamente na prevenção no sexo lésbico. “Já estou com a pessoa há um tempão, conheço bastante, só tenho uma parceira, então eu acho que não há necessidade.Eu sei que ela não tem nada” (Participante 6, 25 anos). “Não uso nada não [Por quê?] Eu confio nela e ela confia em mim e está tudo certo a gente não tem nada, fizemos exame juntas” (Participante 10, 42 anos). É um quadro preocupante, pois na medida em que não existem insumos preventivos específicos para a prevenção de IST, não há como considerar o uso de meios alternativos para prevenção, já que a maioria desses objetos não foi elaborada para ser usada em práticas sexuais. Cabe a urgência do olhar das políticas públicas em saúde do Estado para que possam fomentar pesquisas e estabelecer parcerias como empresas para que sejam pensados e elaborados insumos para serem usados nas relações entre mulheres, sem prejuízo na erotização ou no desempenho de suas práticas sexuais.

Observa-se também a presença da confiança na fidelidade presumida como um fator de proteção às IST nas relações das participantes. As duas participantes relataram não fazer uso de nenhum meio de prevenção em suas relações sexuais com outras mulheres. Na fala da participante 6 verifica-se a crença de que o tempo de relacionamento associado ao conhecimento adquirido acerca dos comportamentos da parceira seriam estratégias capazes de afirmar a confiança no outro, agindo assim como um fator de proteção. Já a participante 10 relata que, por confiar na sua parceira e por saber, por meio de exames, que a parceira não possui IST, não faz uso de meios de prevenção na relação.

Serviços de Saúde

Na categoria “Serviços de Saúde” destacam-se relatos referentes ao atendimento recebido pelas participantes nos serviços médicos, especialmente nos serviços ginecológicos, evidenciando-se a presença ou não de orientações focadas no cuidado em saúde e prevenção às IST nas relações afetivo-sexuais entre mulheres: “Eu já fui na ginecologista várias vezes e nunca nenhuma tinha me dito que eu poderia usar preservativo feminino com outra mulher. Nunca me foi dada essa opção” (Participante 12, 25 anos).

Os ginecologistas que eu fui não me deram orientações de nada, mesmo eu dizendo que sou lésbica. Eu percebo que são totalmente despreparados para falar da relação de lésbicas. É muito invisibilizada a lésbica mesmo, e eles pouco se importam para isso. Não digo todos, mas acho que é hegemônico dentro do serviço de saúde a questão da não prevenção (Participante 2, 22 anos).

Olha, eu acho que não dão nenhum tipo de orientação. A única orientação que eu tive foi em conversas informais assim, você está conversando, foi com amigos e amigos da área de saúde. Pessoas formadas em enfermagem, amigas que estão se formando em medicina, e a gente sempre conversando. Mas nem eles sabem ao certo sobre os riscos (Participante 7, 27 anos).

Nos relatos das participantes 12, 2 e 7 é recorrente a queixa acerca da ausência de orientações advindas dos ginecologistas sobre métodos de prevenção às IST nas relações entre mulheres. A participante 2 evidencia que, mesmo o profissional de saúde tendo o conhecimento sobre sua orientação sexual, ele não ofereceu orientações sobre prevenção. Este dado corrobora os localizados por Barbosa e Facchini (2009Barbosa, R. M., & Facchini, R. (2009). Acesso a cuidados relativos à saúde sexual entre mulheres que fazem sexo com mulheres em São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública, 25(Supl. 2), 291-300. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2009001400011
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), que identificaram a frustração de mulheres que, ao relatarem a ginecologistas sua orientação sexual na expectativa de que lhe fossem dadas orientações específicas, não receberam nenhum tipo de informação específica. A participante ainda destaca que os profissionais parecem não se importar com as demandas em saúde desta população.

Eu digo que sou lésbica. Uma coisa que acho que não todas, mas a maioria das lésbicas não sabe, é que o ginecologista tem que ter um tratamento diferente com a gente, por isso a questão da necessidade da gente ter que falar que é lésbica para o ginecologista (Participante 2, 22 anos).

Nos relatos das participantes 2 e 5 verifica-se que estas afirmam revelar aos médicos a orientação sexual. A participante 2 evidencia que o ato de revelar a orientação sexual torna-se importante por ser uma informação necessária para que os profissionais de saúde passem a oferecer atendimento adequado e voltado para o cuidado da saúde das lésbicas. Já a participante 5 diz não ter nenhum problema em expor sua orientação sexual para o profissional de saúde: “Eu sempre sou sincera. Eu chego e digoeu sou lésbica, sem nenhum problema” (Participante 5, 32 anos).

Sobre esta situação, Melo (2010Melo, A. P. L. (2010). “Mulher Mulher” e “Outras Mulheres”: Gênero e homossexualidade(s) no Programa de Saúde da Família (Dissertação de mestrado). Universidade Estatual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ. http://livros01.livrosgratis.com.br/cp148126.pdf
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) salienta que existe de fato uma quase inexistência de formação técnica específica em torno da temática LGBT e saúde, fato que se reflete na prática dos profissionais de saúde ao terem que lidar com as demandas e especificidades da população lésbica. Assim, é evidente a necessidade de que políticas públicas voltadas para a promoção da saúde da população LGBT delimitem, de maneira concreta, formas de atuar no processo de formação junto a instituições de ensino, oportunizando a realização de parcerias entre o Estado, através do Ministério da Educação, e as instituições de ensino, sugerindo a inserção de disciplinas que orientem e promovam o conhecimento sobre a saúde sexual, especialmente das minorias sexuais, como as lésbicas.

Considerações finais

No que se refere à percepção das participantes sobre a vulnerabilidade às IST entre lésbicas, foi verificado que as participantes consideram possível a transmissão das IST nas relações sexuais desprotegidas entre mulheres, no entanto, ao mesmo tempo, acreditam na existência de uma menor vulnerabilidade nas práticas sexuais entre mulheres se comparadas às práticas heterossexuais, bissexuais, de homossexuais masculinos ou HsH (homens que fazem sexo com homens). Em relação ao conhecimento sobre meios preventivos às IST nas relações sexuais entre mulheres, identificaram-se a falta de maiores esclarecimentos sobre insumos preventivos e a queixa de que os possíveis métodos existentes seriam adaptações, o que implica grande rejeição para sua utilização.

Como principal estratégia de prevenção utilizada pelas participantes, destaca-se a confiança na parceira e na fidelidade presumida do outro. Entre os principais fatores responsáveis pelo agravo na situação de vulnerabilidade às IST dentre a amostra pesquisada evidenciam-se: o mito da baixa vulnerabilidade do corpo lésbico; a falta de esclarecimentos sobre os meios possíveis de prevenção, suas formas corretas de uso e informações sobre eficácia; a ausência de campanhas voltadas para o público lésbico e com grande repercussão que estimulem o uso de tais meios e orientem sobre os possíveis riscos existentes nas relações desprotegidas. Neste sentido, elementos de ordem programática parecem influenciar de maneira mais intensa para a situação de maior vulnerabilidade à saúde das lésbicas, embora estes também estejam relacionados a elementos individuais e sociais.

Considera-se que os objetivos do presente estudo foram alcançados, contudo salienta-se que os resultados obtidos não podem ser percebidos como conclusivos, tendo em vista aspectos como o andamento de mudanças estruturais no cuidado à saúde da população lésbica que se iniciaram com o surgimento de políticas e campanhas em saúde que objetivam promover e ampliar o cuidado a essas mulheres. Embora possam existir fragilidades em alguns pontos dessas políticas, acredita-se que estas representam um avanço que favorece, progressivamente, as lésbicas se tornarem protagonistas e saírem de vez da situação de invisibilidade social.

Destaca-se que a contribuição do presente estudo repousa na explicitação das experiências de uma população ocultada historicamente pelos estigmas que rodam o imaginário social. Além disso, ressalta-se a necessidade de ampliar a compreensão dos fenômenos que podem influenciar nos agravos para a situação de vulnerabilidade das lésbicas existente dentro dos serviços de saúde, de modo que se propõem novas investigações que abarquem os posicionamentos e atitudes dos profissionais de saúde no manejo do cuidado dessas mulheres.

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  • 1
    Sobre os papeis de gênero estabelecidos na sociedade, é importante destacar que, segundo Butler (2003Butler, J. (2003). Problema de gênero: Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, RJ: Civilização Brasileira.), o conceito de gênero deve ser compreendido de forma mais ampla, de modo a ultrapassar as limitações impostas pelo modelo clássico do que seria o feminino e o masculino, visto que este modelo é uma construção social limitada, abstrata e excludente, impondo formas de moldar os indivíduos em padrões socialmente aceitáveis, atribuindo papéis que determinam o que a sociedade espera que uma mulher e um homem cumpram, dentro de uma “normalidade” binária.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    08 Jun 2018
  • Aceito
    23 Out 2019
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