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Corpo e Finitude: Relato de uma Experiência em Hospital de Câncer

Body and Finitude: an Experience Report from an Oncology Hospital

Cuerpo y Finitud: Relato de una Experiencia en el Hospital de Cáncer

Resumo

O artigo trata da experiência do Grupo de Trabalho (GT) Corpo e Finitude. O GT, multidisciplinar e interinstitucional, é sediado na Clínica da Dor do Instituto Nacional de Câncer (Inca) e ocorre no âmbito do convênio desta instituição com o Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e o Instituto Nacional Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into). Apresentando a experiência do GT, localiza seus objetivos, sua metodologia e os procedimentos usados para desenvolvê-la, e discute os efeitos observados até o momento, com vistas a examinar as condições para sua continuidade. O método do trabalho é dado pelo referencial teórico-clínico da psicanálise. Trata-se de um procedimento que recorre aos textos para delimitar e elaborar os conceitos que servirão de guia para intervenções na prática hospitalar cotidiana. Esta prática é submetida à discussão em grupos semanais que apontam em que o conceito precisa ser ainda mais elaborado, para orientar a clínica desenvolvida nas várias pontas do trabalho. Num procedimento de vaivém da clínica à teoria e desta à prática, vão se estabelecendo rotinas que evitam simples aplicações automáticas de protocolos, dando condições a cada profissional de examinar e fazer uma reflexão crítica sobre sua prática e sua conduta no trabalho hospitalar. Conclui que a experiência tem incidência sobre o próprio ou a própria profissional e sobre os pacientes e colegas de equipe. Dentre os importantes efeitos, encontra-se a possibilidade de dar voz ao sujeito e seu desejo, retirando-o da função de mero distribuidor de serviços.

Palavras-chave:
Câncer; Imagem Corporal; Finitude; Sujeito; Instituição Hospitalar

Abstract

This article presents a case report of the Work Group Corpo e Finitude (Body and Finitude). The group has a multidisciplinary and interinstitucional approach. It is based at the Clínica da Dor of the National Institute of Cancer (INCA), through an agreement with the Graduate Program of Psychoanalytic Theory of the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ), and the National Institute of Traumatology and Orthopedics (Into). This paper first presents the group objectives and purposes and its work methodology. It then discusses its results up to this date, and considers its potential trajectories. The theoretical-clinical framework of Psychoanalysis was adopted. The procedure uses texts to determine and elaborate concepts that serve as guides for interventions in daily hospital practice. This practice is discussed in weekly groups that point out if and when the concept needs to be further elaborated, to guide the clinical practice developed at various points of the project. In a back-and-forth procedure from the clinic environment to theory and from this to practice, routines are established to avoid simple automatic application of protocols, allowing each professional to examine and critically reflect about their practice and conduct in the hospital. This is an experience that affects professional themselves as well as patients and colleagues. Among the most important effects is the possibility of giving voice to subjects and their desires, removing them from the function of a mere service provider.

Keywords:
Cancer; Body Image; Finitude; Subjectivity; Hospital

Resumen

El artículo plantea la experiencia del grupo de trabajo (GT) Cuerpo y Finitud. El GT multidisciplinario e interinstitucional tiene su sede en la Clínica del Dolor del Instituto Nacional de Cancer (INCA) y se realiza en el marco del convenio de esta institución con el Programa de Posgrado en Teoría Psicoanalítica de la Universidad Federal de Rio de Janeiro (UFRJ), y el Instituto Nacional de Traumatología y Ortopedía (INTO). En la experiencia presentada del GT se encuentran sus objetivos, su metodología, los procedimientos usados para desarrollarla, así como se indica y se discute los efectos obtenidos hasta el momento, con miras a examinar las condiciones para su continuidad. El método de trabajo utilizado es el marco teórico-clínico del psicoanálisis. Es un procedimiento que utiliza textos para delimitar y elaborar los conceptos que servirán de guía para las intervenciones en la práctica hospitalaria diaria. Esa práctica se somete a discusión en grupos semanales, que señalan que el concepto necesita ser más elaborado para guiar la clínica desarrollada en los diversos puntos del trabajo. En un procedimiento de ida y vuelta desde la clínica a la teoría y de esto a la práctica, se establecen rutinas que evitan la aplicación automática simple de protocolos, permitiendo que cada profesional examine y haga una reflexión crítica sobre su práctica y su conducta en el trabajo hospitalario. Se concluye que es una experiencia que afecta al profesional mismo y a los pacientes y compañeros de equipo. Entre los efectos importantes está la posibilidad de dar voz al sujeto y su deseo, sacándolo de la función de un simple distribuidor de servicios.

Palabras clave:
Cáncer; Imagen Corporal; Finitud; Sujeto; Institución Hospitalaria

Introdução

Este artigo trata da história e da experiência do Grupo de Trabalho (GT) Corpo e finitude - a escuta como instrumento de trabalho em instituição oncológica. Sediado na Clínica da Dor do Instituto Nacional de Câncer (Inca), ocorre no âmbito do Convênio desta instituição com o Programa de Pós-graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e do Instituto Nacional de Traumatologia e Ortopedia (Into). Conta com a participação, além destas, de duas outras instituições: a Maternidade-Escola da UFRJ e o Instituto Estadual do Coração Aluísio de Castro. O grupo é composto por profissionais de diferentes áreas (Psicologia, Enfermagem, Medicina, Física Médica, Pedagogia e Fisioterapia) e em diferentes estágios de formação em várias disciplinas (pós-doutorado, doutorado, mestrado, residência e iniciação científica).

O GT se dá em um momento no qual o câncer é a segunda causa de morte por doença, na população brasileira. A estimativa para cada ano do triênio 2020-2022 é de que ocorrerão 625 mil casos novos de câncer (450 mil, excluindo os casos de câncer de pele não melanoma) (Instituto Nacional de Câncer, 2019Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. (2019). Estimativa 2020: Incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro, RJ: Inca.). Apesar dos avanços obtidos no que diz respeito ao diagnóstico e ao tratamento oncológico, o câncer assume características diferentes de outras doenças crônicas, pois, desde a realização do diagnóstico, alterações como as causadas pelos efeitos adversos da terapia, quase sempre intensas e muitas vezes letais, além de dor e de mutilações, são evidentes e de grande efeito psíquico. Trata-se do impacto a que está sujeito aquele que depara com o que o câncer traz de traumático, uma vez que ele aponta para a finitude de todos nós - pacientes, evidentemente, mas também familiares, amigos e, não menos importante, os profissionais envolvidos no tratamento.

Objetivo

O objetivo deste artigo, portanto, é apresentar e relatar a experiência do GT Corpo e Finitude numa instituição especializada em oncologia. Procuraremos relatá-la localizando seus objetivos, apresentando seu delineamento, os procedimentos usados para desenvolvê-la, bem como indicando e discutindo os efeitos obtidos até o momento, com vistas a examinar as condições para sua continuidade.

Método

A característica principal da metodologia que orientou a experiência aqui relatada consiste na articulação e na simultaneidade entre os momentos da prática clínica e a discussão dos conceitos e da teoria que orientam esta prática. Ou seja, o trabalho cotidiano é acompanhado pela reflexão sobre a conceituação que guia o fazer no dia a dia na instituição hospitalar.

Utilizou-se a orientação dada pelo método psicanalítico de investigação e tratamento (Freud, 1914/1996aFreud, S. (1996a). Contribución a la historia del movimiento psicoanalítico. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 1-64). Buenos Aires: Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1914); Freud, 1915/1996dFreud, S. (1996d). Pulsiones y destinos de pulsión. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad. Vol. 14, pp. 105-134). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915).). Partimos de definições que, a princípio, são ainda pouco discerníveis e nítidas. Nascem de ideias abstratas que nos surgem de algumas observações, mas que neste estágio não têm muita precisão. Por isso é necessário remetê-las ao material empírico para que nos ponhamos de acordo quanto a seu significado e, neste movimento, as ideias vão passando a ganhar o rigor de conceitos articulados por uma teoria. Esta formulação conceitual e teórica é o que orienta a prática, mas a prática, por sua vez, aponta o que precisa ser mais elaborado na conceituação para dar conta do material empírico. Trata-se, portanto, de um ir e vir da prática à teoria e desta à prática, para que neste movimento se estabeleça com maior rigor e precisão as ações clínicas realizadas.

O método permite a exploração minuciosa do campo dos fenômenos que constituem a prática clínica e, em seguida a esta exploração, torna-se possível “apreender com maior exatidão também seus conceitos científicos básicos e afiná-los, para que se tornem utilizáveis em um vasto campo e, além disso, fiquem por completo isentos de contradição” (Freud, 1915/1996dFreud, S. (1996d). Pulsiones y destinos de pulsión. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad. Vol. 14, pp. 105-134). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915)., p. 113).

Em resumo, o método utilizado compreende as seguintes etapas que, muitas vezes, ocorrem simultaneamente:

  1. Encontro com o problema ou com a situação clínica;

  2. Primeira aproximação à conceituação que se dirige ao problema/situação, com vistas a estudá-los e mapeá-los;

  3. A partir da conceituação estudada, volta à situação ou ao problema clínico, na prática diária;

  4. Reelaboração e estudo, mais uma vez, dos conceitos referentes ao problema;

  5. Construção de uma casuística que englobe as várias situações ou os vários problemas encontrados na clínica, agora com o envolvimento do profissional que passa a pôr em questão o porquê de duas ações e, principalmente, como cada situação o afeta em sua condição de sujeito de desejo.

Neste artigo, veremos essa metodologia de trabalho sendo empregada. Poderemos verificar seus efeitos na constituição de um modo de operar na clínica hospitalar que se exercem tanto sobre a relação profissional/pacientes quanto sobre o funcionamento da equipe. Mas, sobretudo, ressalta-se o lugar criado para que os profissionais reflitam sobre as questões que enfrentam na prática e que dizem respeito não apenas à técnica, mas ao envolvimento de sujeito no desempenho de suas ações clínicas. O profissional não é aqui apenas um distribuidor de serviços, mas acompanha seu trabalho com a reflexão e as justificativas de porque faz o que faz e como é afetado em sua própria vida pelo que faz.

Resultados e discussão

Origem do Grupo de Trabalho - o encontro com o corpo adoecido

Em 2011, no âmbito da coordenação do Programa de Residência Multiprofissional em Oncologia do Instituto Nacional de Câncer na área de Psicologia, foi estabelecido um Plano de Curso cuja base conceitual daria sustentação e orientação às intervenções dos profissionais residentes, articulando teoria e prática. Foi nessa conjunção que, a pedido dos alunos, sob preceptoria e supervisão, criou-se um grupo de estudos sobre o texto “Luto e melancolia” de Freud (1917/1996Freud, S. (1996). Duelo y melancolia. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 237-256). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1917)). Podemos reconhecer agora, do ponto em que nos encontramos, que estava aí tendo origem o GT Corpo e Finitude, concebido a partir do arcabouço teórico-clínico psicanalítico. Na verdade, ainda antes, muitas das conceituações que vieram a ser utilizadas no Grupo foram hipóteses desenvolvidas na tese de doutorado de uma das autoras (Castro-Arantes, 2009Castro-Arantes, J. M. (2009). Ritmo e oralidade: O texto da psicanálise (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.).

No princípio, tínhamos reuniões que aconteciam na enfermaria de cuidados paliativos do Hospital do Câncer IV (Unidade de Cuidados Paliativos do Instituto Nacional de Câncer). Realizado inicialmente com os residentes, logo suscitou o interesse de profissionais de diferentes formações (médica paliativista, cirurgião oncológico, enfermeira, nutricionista e fisioterapeuta).

Em seguida, depois do estudo demandado pelos residentes - “Luto e melancolia” (1917/1996Freud, S. (1996). Duelo y melancolia. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 237-256). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1917)), discutimos outros textos de Freud: “Introdução ao narcisismo” (1914/1996bFreud, S. (1996b). Introducción al narcisismo. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 65-98). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1914)), “O inconsciente” (1915/1996bFreud, S. (1996b). Lo inconsciente. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 153-214). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915)), “O recalque” (1915/1996aFreud, S. (1996a). La repressión. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 135-152). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915).), “O eu e o isso” (1923/1996Freud, S. (1996). El yo y el ello. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 19, pp. 1-66). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1923)). Posteriormente, realizou-se um novo levantamento bibliográfico e passamos a trabalhar ainda com os textos “Por que a guerra?” (1933/1996Freud, S. (1996). ¿Por qué la Guerra? In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 22, pp. 179-198). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1933)), “Nossa atitude para com a morte” (1915/1996cFreud, S. (1996c). Nuestra actitude hacia la muerte (Parte 2). In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 290-301). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915)), “Sobre a transitoriedade” (1916/1996Freud, S. (1996). La transitoriedad. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 305-312). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1916)), “Pulsão e destino de pulsão” (1915/1996dFreud, S. (1996d). Pulsiones y destinos de pulsión. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad. Vol. 14, pp. 105-134). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915).) e “O mal-estar na cultura” (1930/1996Freud, S. (1996). El malestar en la cultura. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 21, pp. 57-140). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1930)). Aí estávamos dando início ao que veio a ser a experiência que é objeto deste relato. E, como veremos, esta leitura realizada não é um mero aprendizado teórico, mas logo vimos como elas se referiam ao nosso dia a dia nos hospitais.

Nessa época, foi firmado um Convênio com o Centro de Estudos do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba, para que os psicólogos residentes do Inca pudessem estagiar na área de psiquiatria. Este convênio - logo diremos por que - ajudará nas questões teóricas e práticas que necessariamente estão concernidas com o trabalho no câncer, que têm como eixo central o conceito de corpo em psicanálise. Neste ponto, temos de abrir parênteses para mencionar que, apesar de aparentemente afastado da área da oncologia, o saber sobre a psicose é, no entanto, fundamental para entender a operação que constitui o corpo. Os estudos sobre os disfuncionamentos de um corpo psicótico nos ajudam a entender as implicações que o dano do corpo, as alterações corporais trazem para o sujeito, ainda que ele não seja um paciente psiquiátrico. No contato com a psicose, portanto, os residentes teriam sua formação complementada com a experiência de atendimento a pacientes de oncologia, cuja estrutura clínica é fundamental para o trabalho do psicólogo, uma vez que esses pacientes nos ensinam, por meio de seus transtornos, sobre a estrutura psíquica em sua relação com o corpo. As disfunções que os acometem nesta relação com o corpo próprio nos permitem reconhecer outros fenômenos que dão novas notícias da constituição corporal (Czermak, 2009Czermak, M. (2009). O discurso liga os órgãos em função. In M. Czermak & J.-J. Tyszler (Orgs.), A pulsão na psicose: Oralidade, mania e melancolia (pp. 15-26). Rio de Janeiro, RJ: Tempo Freudiano.; Castro-Arantes, 2009Castro-Arantes, J. M. (2009). Ritmo e oralidade: O texto da psicanálise (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.).

Uma das prioridades nos tempos iniciais do Grupo passou, em grande parte, pelos estudos da psicose. E, sabendo que não estaria endereçado ao tratamento de psicóticos, mesmo assim, orientados pela bibliografia que citaremos ao longo do texto, consideramos que esses pacientes ensinam sobre a estrutura psíquica de todo aquele que se encontra com a linguagem. No decorrer do trabalho, pretendemos deixar mais explícito o que está aqui apontado. As disfunções, portanto, que acometem o psicótico em sua relação com o corpo próprio, nos permitem reconhecer outros fenômenos que dão novos recursos para o entendimento da constituição pulsional do corpo e das implicações que as intervenções, sobretudo médicas, sobre o corpo trazem para o doente.

Partimos da teoria da clínica psicanalítica que trata os fenômenos apresentados na psicose como indicadores de um funcionamento que é dado de forma estrutural. Não nos deteremos, aqui, na complexa discussão do tipo de estruturalismo que dá base à concepção psicanalítica de psicose, pois esse tópico foge ao nosso objetivo nesta apresentação. Trata-se, conforme já dissemos, de um relato de experiência. Ainda que esta experiência não seja intuitiva nem simplesmente empírica, não se trata de nos centrarmos nas pesquisas e nos problemas teóricos, a não ser que, como também afirmamos, eles nos sirvam, neste ponto, de orientação para o trabalho no hospital. Cada passo da experiência é, pois, informada pela conceituação subjacente à situação que estamos enfrentando, conceituação essa que orienta a prática, ou a intervenção realizada. Por isso cremos ser suficiente afirmar que o psicótico é tocado pela questão do corpo pulsional de maneira particularmente problemática. A concepção que nos orienta de início na psicose é a que descreve e estabelece uma “desespecificação pulsional” (Czermak, 2012Czermak, M. (2012). Observações sobre situações de desespecificação pulsional em sua relação com as funções na psicose. In M. Czermak, Patronimias: Questões da clínica lacaniana das psicoses (pp. 167-183) Rio de Janeiro, RJ: Tempo Freudiano .). Trata-se, nesses casos, de uma não coincidência entre órgão e função. Se do ponto de vista da biologia a cada órgão corresponderiam uma ou mais funções específicas - ou seja, por exemplo, às cavidades bucal e oral corresponderiam as funções de ingestão de alimentos, de respiração e de emissão de sons para a comunicação -, na psicose, encontramos pacientes cuja boca está ligada antes à evacuação de fezes! Do mesmo modo, podemos encontrar situações em que ao ânus, aos intestinos, aos esfíncteres, por exemplo, não está relacionada a função de defecar, pois estes podem estar obstruídos, na lógica de um paciente delirante, não deixando que as fezes sejam eliminadas pelas vias esperadas.

No hospital psiquiátrico com o qual mantivemos convênio, encontramos casos como o de um paciente que, morador da instituição há muitos anos, apresentava quadro de anorexia grave por sistematicamente se recusar a receber as refeições e, não apresentando qualquer quadro de doença orgânica, tinha a convicção delirante de que seu ânus estava obturado e, caso viesse a ingerir algum alimento, as fezes sairiam por sua boca. Como ouvimos algumas vezes na sua fala: “a comida entope, na hora de evacuar não desce”. Trata-se aqui justamente do fenômeno da desespecificação pulsional mencionado, em que se encontra um desligamento entre órgão e função: ânus obstruído por onde não saem as fezes, boca onde não deve entrar o alimento sob pena de por ela saírem fezes. É o discurso que vem ligar os órgãos em função (Czermack, 2012). Na psicose, é como se esse discurso não se instalasse e a conexão entre o órgão e a função não se fizesse. Ou seja, o órgão e sua função estão desarticulados. Neste ponto preciso, vemos que o funcionamento do corpo não é natural. Trata-se de um funcionamento mediado pelo discurso que implica um sujeito.

A pergunta crucial que nos orienta aí é: que consequências essa concepção de corpo tem para o trabalho com o paciente com câncer, que sofre alterações drásticas no corpo, que, por exemplo, tem seu intestino obstruído por um tumor? A questão que se coloca e que procuramos responder no GT tal como ela era estabelecida na época é: como o funcionamento do corpo se liga ao sujeito, a sua imagem corporal e que implicações isso tem para o tratamento em oncologia?

As funções corporais - é o que a psicose nos deixava ver - nem sempre funcionam com o que é esperado e estabelecido pelo conhecimento dado pela fisiologia e pela biologia. Ou seja, procuramos observar se e como a desespecificação pulsional, que vimos operando na psicose, contribui para pensarmos o que a psicanálise chama do corpo pulsional: como ele constitui o corpo de qualquer um de nós. O conceito de corpo pulsional passa, assim, a nos orientar na clínica com o paciente de câncer.

Enfim, recorremos a textos sobre o corporal na psicose, abordando os elementos estruturalmente, e não fenomenologicamente, por entendermos que nessa estrutura encontramos de forma pungente a montagem, recalcada na neurose, que está em jogo na constituição do que chamamos corpo próprio. A psicose nos mostra que o corpo concebido pela psicanálise, com a marca da palavra e da pulsão, contribui para as questões com as quais nos havemos na clínica de pacientes em instituição oncológica, quase sempre de estrutura neurótica. Trata-se, nessa clínica, de um endereçamento ao sujeito que padece, no momento mesmo em que seu desejo está vivamente em questão. Estamos, pois, com a questão do corpo em psicanálise e como ela se liga ao trabalho em oncologia. Voltaremos a isso mais adiante.

Continuação do Grupo de Trabalho 1 - o encontro com a dor

Posteriormente, passamos a atuar na Clínica da Dor do Inca A orientação que havíamos implementado quando do estabelecimento do Plano de Curso da Residência, que valorizava a relação entre teoria e prática centrada na palavra do paciente, foi então retomada no campo dos cuidados paliativos de pacientes com dor crônica. Sabe-se que, em decorrência do tratamento oncológico, muitos pacientes desenvolvem dor incurável, encontrando-se, portanto, em cuidados paliativos permanentes, o que não necessariamente cursa com os cuidados ao fim de vida. A problemática da dor suscitou uma série de questões que foram respondidas no pós-doutorado em Teoria Psicanalítica, em 2012-2013. Este esteve igualmente na base do trabalho que viria a se constituir no Grupo Corpo e Finitude.

No ponto mesmo da formalização do Grupo, foi feito um Termo Aditivo ao Convênio Inca/UFRJ (Termo Aditivo número 053414/08-72), que estabelecia um Acordo entre a Clínica da Dor do Inca e o Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da UFRJ. Na esfera desse Acordo, as reuniões semanais do agora GT começaram a acontecer no Auditório da Física Médica no INCA. Contava, então, com a participação de físicos médicos, pedagogos, psicólogos, enfermeiros, médicos, além dos residentes multiprofissionais do Inca de diferentes áreas. Um Projeto de Pesquisa - do qual não trataremos aqui, pois nos interessa antes refletir sobre a experiência de trabalho - foi submetido, nessa mesma época, ao Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos (CEP/Inca), aprovado e registrado na Plataforma Brasil (CAAE 34279613.7.00005274, ver parecer anexo).

A dor, seu tratamento e a escuta dela passam a trazer questões que, articuladas ao ponto axial que trata do corpo, nos darão mais elementos para a continuidade do trabalho. Para introduzir toda a questão da dor que perpassa a experiência do Grupo, remontamos a mais algumas características da montagem que faz o corpo pulsional.

O acesso do sujeito à realidade - que é realidade corporal - é sempre mediado pelo recalque (Freud, 1915/1996aFreud, S. (1996a). La repressión. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 135-152). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915).). Isto é, o sujeito verá e escutará aquilo que a operação de recalque, que o constitui como sujeito, permitir que veja ou escute. O recalque é uma operação psíquica de defesa contra ideias incompatíveis com o eu, seja por questões morais, seja por seu excesso. Vale dizer que determinados afetos e representações são rejeitados, mas não excluídos, pois na própria condição de recalcados eles constituem o aparato psíquico tanto quanto as representações que consideramos aceitas. Tais “representações e afetos” - os representantes pulsionais, como nos diz Freud (1915/1996dFreud, S. (1996d). Pulsiones y destinos de pulsión. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad. Vol. 14, pp. 105-134). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1915).) -, ao serem retirados da influência consciente, desenvolvem-se com menos interferência e mais profusamente. Eles proliferam nas sombras, por assim dizer, e assumem formas extremas de expressão. Em outras palavras, longe de serem destruídos definitivamente, mantêm sua efetividade psíquica no inconsciente. Não se tem acesso ao inconsciente propriamente dito, aos processos inconscientes só acedemos por meio de seus derivados, traduzidos para o consciente, que são os sonhos e os sintomas.

Mencionamos o processo de recalque, porque, voltando à questão da constituição corporal, vemos que o próprio corpo é recalcado na estrutura neurótica. Não temos consciência do nosso corpo o tempo todo. Uma vez que o ensinamos a andar, por exemplo, passamos a considerar que a marcha é um processo automático e mecânico, que é natural. Só quando alguma coisa vai mal, que não funciona nesse ponto, passamos a considerar que há um corpo que, então, se torna consciente. O corpo que somos, portanto, é inconsciente (Melman, 2001Melman, Ch. (2001). La question du corps en psychanalyse. Bulletin de l’Association Freudienne Internacionale, 94, 7-15.). No entanto o que importa ressaltar acima de tudo é que o corpo assim concebido não coincide com o que é dado a ver com as lentes da ciência da anatomia (Czermak, 2012Czermak, M. (2012). Observações sobre situações de desespecificação pulsional em sua relação com as funções na psicose. In M. Czermak, Patronimias: Questões da clínica lacaniana das psicoses (pp. 167-183) Rio de Janeiro, RJ: Tempo Freudiano .). Ou seja, não se trata do corpo com cabeça, tronco e membros que nos é dado pelo saber anatômico. Tomamos, na verdade, como natural um corpo que só ganha realidade porque há uma operação que o mantém como corpo inconsciente, que nos sustenta - lugar do que nos anima, mas também da angústia de cada um. É no corpo que o sujeito está com o que o deprime, com o que lhe causa estresse, o que lhe traz cansaço, mas poucas vezes se tem nítida a ideia de que é no corpo que está situada a angústia, o medo, a comoção, o que impede e inibe seus movimentos. O que lhe traz sofrimento.

Leriche (citado por Melman, 2001Melman, Ch. (2001). La question du corps en psychanalyse. Bulletin de l’Association Freudienne Internacionale, 94, 7-15.) ressalta a dimensão do corpo recalcado afirmando que a saúde é a vida no silêncio dos órgãos, estamos bem quando o corpo não se faz notar. Aqui, então, podemos ver onde se insere a questão fundamental da dor. Primordialmente, ela nos dá notícia do corpo. Quando, por exemplo, temos uma dor de dentes, a vida é inteiramente tomada pelo molar, lembra Freud (1914/1996bFreud, S. (1996b). Introducción al narcisismo. In Sigmund Freud obras completas (J. L. Etcheverry, Trad., Vol. 14, pp. 65-98). Buenos Aires: Amorrortu . (Trabalho original publicado em 1914)). Quer dizer, o dente, que sempre esteve lá, toma outro lugar na vida do sujeito.

A dor se torna, assim, um conceito importante para orientar a intervenção sobre o corpo doente que sofre alterações físicas com suas consequências para o sujeito, que é sujeito a este corpo. Por estar situado na Clínica da Dor, o Grupo se dedica particularmente ao estudo e aos atendimentos de pacientes que sofrem de dor crônica, muitas vezes consequência do tratamento a que são submetidos para a cura do câncer. Trata-se, pois, com a Clínica da Dor, de uma clínica crucial para o que se passa em um hospital de oncologia.

A definição dada pela International Association for the Study of Pain (1979International Association for the Study of Pain. (1979). Pain Terms: 1979. Pain, 6, 247-252.) afirma que a dor é “uma sensação desprazerosa, uma experiência emocional associada a um dano real ou potencial do tecido, ou descrita em termos de certo dano” (p. 247). Esta definição, apesar de já estar em vigor há algumas décadas, continua atual (Treede, 2018Treede, R.-D. (2018). The International Association for the Study of Pain definition of pain: as valid in 2018 as in 1979, but in need of regularly updated footnotes. PAIN Reports , 3(2), e643. https://journals.lww.com/painrpts/Fulltext/2018/04000/The_International_Association_for_the_Study_of.2.aspx
https://journals.lww.com/painrpts/Fullte...
) e, do ponto de vista que nos interessa, tem duas menções relevantes: de início, enfatiza a dimensão de experiência que inclui aquele/aquela que experimenta e, portanto, aponta para o sujeito que está aí em questão. No entanto a segunda é a que diretamente nos concerne. Em um trabalho que procura escutar cada paciente, a fala deste- o que a definição considera sua “descrição” do padecimento que o atinge - é fundamental para alcançarmos tal objetivo. A dor passa a ser, assim, um guia que nos introduz ao sofrimento e à experiência subjetiva que dele decorre. Ela passa a orientar o profissional na escuta do que aflige o paciente. Pode então ser considerada como um “apelo” (Lehmann, 2014Lehmann, A. (2014). L’atteinte du corps: Une psychanaliste en cancerologie. Paris: Érès.), que fala do que se passa no corpo e, logo, como estamos enfatizando, do que o sujeito experiencia.

Trata-se então de um indicador clínico fundamental do estado da doença, do câncer que está sendo tratado; é também um indicador crucial do estado psíquico do paciente, de seus sofrimentos morais, sua tolerância à doença e às intervenções. Acima de tudo, é um indicador valioso para que o profissional possa escutar a maneira do sujeito estar com o que afeta seu corpo, a posição subjetiva que ocupa em sua vida quando agora se defronta com o dano do corpo.

Todavia falar, especialmente da dor, implica sempre a impossibilidade de tudo dizer (Lacan, 1998Lacan, J. (1998). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: Escritos (pp. 238-324). Rio de Janeiro, RJ: JZE.). É difícil falar da dor de maneira precisa e inequívoca. Esta dificuldade não é apenas devida às habilidades ou inabilidades linguísticas ou à dificuldade de comunicação do paciente, como os autores Cohen, Quintner e Rysewyk (2018Cohen, M., Quintner, J., & Rysewyk, S. (2018). Reconsidering the International Association for the Study of Pain definition of pain. PAIN Reports, 3(2), e634. https://journals.lww.com/painrpts/Fulltext/2018/04000/Reconsidering_the_International_Association_for.3.aspx
https://journals.lww.com/painrpts/Fullte...
), em recente e muito difundido artigo, acreditam. Trata-se, para o paciente, de falar do que é, do real que lhe atinge e o faz sofrer, e isso requer, de um lado, sem dúvida, a disposição do paciente - deste que faz ou não o apelo -, mas, de outro, a disposição daquele que oferece sua escuta. Trata-se, neste ponto, de um desafio. Um dos desafios com que o profissional se defronta por estar mediante situações com as quais é difícil lidar. E aqui estão em jogo não apenas as dificuldades de avaliação da dor, para que esta possa receber o tratamento mais adequado, por exemplo, de um médico que fará uma intervenção medicamentosa, mas o preço a pagar quando se está cotidianamente perante o apelo e o sofrimento do outro. A Clínica da Dor é, portanto, uma das importantes intervenções em que o Grupo de trabalho exerce suas atividades.

Continuação do Grupo de Trabalho 2 - a imagem corporal

Simultaneamente à inserção na Clínica da Dor do Inca, alguns membros do Grupo Corpo e Finitude integravam a Seção de Câncer Ósseo do Into. Foi diante dos casos de amputação e dor fantasma que se verificou a importância das alterações muitas vezes radicais na imagem corporal e como elas se articulavam às questões trazidas pelo corpo adoecido e pela dor que aí era gerada.

Já havendo percorrido uma bibliografia básica freudiana, se impôs a necessidade de recorrermos ao Seminário 1 de Lacan (1953-1954/1975Lacan, J. (1975). Le séminaire, livre 1: Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil. (Trabalho original publicado em 1953-1954)), em que se desenvolve, a partir da física óptica, uma teoria que trata justamente da constituição da imagem corporal. Valemo-nos, neste ponto, dos conhecimentos dos participantes do Grupo, que eram físicos, inseridos no Serviço de Radiologia do INCA para, junto com o restante dos profissionais, reelaborarmos o conceito de um corpo, que é corpo de sujeito do desejo e do inconsciente. Vimos como este corpo se constitui a partir de seu reflexo no espelho em condições determinadas, estudadas pela física óptica.

Vale a pena voltarmos ainda uma vez para o complexo conceito de corpo em psicanálise - introduzido com a clínica da psicose mencionada anteriormente - pois sua formulação fundamenta os passos que foram seguidos no desenvolvimento do trabalho, já agora com a conceituação de imagem corporal. Em linhas gerais, o conceito de imaginário desenvolvido por Lacan (1953-1954/1975Lacan, J. (1975). Le séminaire, livre 1: Les écrits techniques de Freud. Paris: Seuil. (Trabalho original publicado em 1953-1954)) questiona a noção de corpo anatômico, quase sempre apreendido como algo dado e natural. Partimos, ao contrário, da consideração de que o corpo do bebê, de início, é um bricabraque. Desde que nasce, o humano ainda não falante é, no entanto, falado. A mãe encontra ou não no recém-nascido um corpo a ser agasalhado, alimentado, higienizado, acariciado, amado e/ou odiado. A cada ponto em que o corpo é ou não tomado, ele é ou não tomado em uma rede de significações constituída pela palavra. Investindo-se o corpo com palavras, faz-se dele um corpo, como vimos, chamado de pulsional. O sujeito é então efeito do investimento em seu corpo. É resultado disso, mais uma vez, a imagem corporal constituída por meio da imagem especular que reflete não apenas o corpo infantil, mas também o que a circunda - isto é, as pessoas que veem a criança se vendo e os objetos a seu redor. A operação de constituição da imagem corporal é, pois, em grande parte, determinada pelo olhar da mãe (ou daquele que ocupa essa função), que é decisiva para a constituição do que virá a fazer o corpo para a criança. O que nos chamou atenção em nosso trabalho, repetimos, é que essa mesma determinação do olhar é tematizada pela física óptica. E, com esse conhecimento, tendo acesso à sua constituição, pudemos localizar os efeitos de alterações sofridas no corpo assim constituído e, em consequência, considerarmos os recursos para a intervenção profissional nesses casos. Este foi um exemplo privilegiado das oportunidades que vêm se oferecendo para um trabalho conjunto, cujos resultados vão ser colhidos não apenas no endereçamento feito a cada paciente, mas na relação entre os membros de uma equipe e, acima de tudo, na possibilidade do profissional refletir sobre o trabalho que faz e como ele incide em sua própria vida.

Um desdobramento importante para o Grupo Corpo e Finitude, após termos contato com a problemática da imagem corporal, foi a concepção de um projeto de intervenção terapêutica denominado Entre física e psicanálise: novos olhares. A proposta do projeto é, estudando os fenômenos da propagação da luz e sua interação com o meio por meio dos fenômenos da reflexão, refração e difração, problematizar a concepção de que os cinco sentidos - em particular a visão (óptica), audição (acústica) e tato (eletromagmetismo) - limitam o sujeito ao que é observável sensorialmente, impedindo o acesso a um nível de complexidade da realidade maior do que a imediata. Ou seja, a realidade de cada um é construída sobre limitações das quais não se tem uma ideia precisa. O objetivo do projeto desenvolvido com crianças é, com experimentos (especialmente os de ilusão de ótica), mostrar que o que entendemos como a “realidade” corporal é dependente de um constrangimento imaginário, que pode variar de sujeito para sujeito. Trata-se da conjunção da visada psicanalítica com o conhecimento trazido pela física. Psicanálise e física se encontram quando a primeira considera o corpo, como mostramos, não apenas como o corpo da anatomia, por ser antes de tudo constituinte da subjetividade, e a última demonstra como o contorno e os limites do corpo ultrapassam o que é dado de imediato, implicando aí uma dimensão outra e desconhecida.

Continuação do Grupo de Trabalho 3 - corpo, dor e imagem especular

Mais um tempo do trabalho realizado no inca em que os efeitos do GT Corpo e Finitude estão presentes é o do Grupo Multiprofissional de Estudos e Tratamento do Câncer Gástrico. Nele, a problemática da imagem corporal e suas incidências aparecem de modo contundente. Trata-se das experiências relativas à problemática do corpo, no trabalho da equipe interdisciplinar que atende os pacientes com diagnóstico de câncer gástrico, no ambulatório da Seção de Cirurgia Abdomino-Pélvica. O método operacional desse grupo de câncer gástrico é o Programa de Navegação de Pacientes criado por Freeman em 1990. Freeman o conceituou como um modelo centrado no paciente com foco nos seus movimentos ao longo do continuum da assistência, permitindo que ele se mova em um sistema assistencial complexo em tempo adequado. O termo abrange todos os passos da assistência, podendo se iniciar na comunidade e engloba diagnóstico, tratamento e sobrevida (Freeman, 2013Freeman, H. P. (2013). The history, principles and future of patient navigation: Commentary. Seminars in Oncology Nursing, 29(2), 72-75.). Por ter como objetivo principal a melhoria da qualidade dos processos assistenciais centrados no paciente, esse Grupo oferece um campo importante de atuação dos membros do Grupo Corpo e Finitude, pois, nas reuniões semanais, são recolhidos os efeitos da prática clínica que motivam e permitem a construção e disseminação de um savoir-faire com aquele que enfrenta o “dano do corpo” (Lehmann, 2014Lehmann, A. (2014). L’atteinte du corps: Une psychanaliste en cancerologie. Paris: Érès.). O grupo interdisciplinar não tem a visada única da cura do câncer, mas, sobretudo, faz um trabalho que se dirige ao sujeito, na aposta de que ele possa encontrar recursos subjetivos para o enfrentamento daquilo com que vai deparar ao longo do tratamento oncológico.

Escutamos frequentemente dos pacientes que chegam a este ambulatório, com o emagrecimento severo e veloz característico do câncer de estômago, que não reconhecem seu corpo ao se tocarem ou estranham e evitam a imagem no espelho. Como com outros pacientes com câncer, a experiência cotidiana mostra que, nesse momento, está em jogo para o paciente restaurar certo narcisismo ou buscar em si os recursos para restaurar a imagem corporal afetada. É nessa direção que se trata de acompanhar o sujeito: não na busca de uma posição resignada diante de suas limitações, mas na aposta de um trabalho subjetivo de (re)construção da imagem, nisso que estamos chamando de um processo de restauração narcísica (Thibierge, 2011Thibierge, S. (2011). Le nom, l’image, l’objet. Paris: PUF.). E, como nos casos da Clínica da Dor, as situações diante das quais o profissional se encontra exposto, são trazidas para discussão no Grupo que busca oferecer um lugar de acolhimento do penoso trabalho cotidiano em oncologia.

Produção intelectual e técnica do Grupo de Trabalho

Até o momento, como produtos do Grupo de Trabalho e Pesquisa, foram concluídos um pós-doutoramento, um doutorado e cinco dissertações de mestrado. Encontram-se em curso um pós-doutoramento, uma orientação de doutorado e quatro de dissertação de mestrado, realizados e/ou orientados por membros do Grupo.

Foram publicados quatro artigos em periódicos sobre o tema Corpo e Finitude (Castro-Arantes, 2016Castro-Arantes, J. M. (2016). Os feitos não morrem: psicanálise e cuidados ao fim da vida. Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica, 19(3), 637-662.; Castro-Arantes & Lo Bianco, 2013Castro-Arantes, J. M., & Lo Bianco, A. C. (2013). Corpo e finitude: a escuta do sofrimento como instrumento de trabalho em instituição oncológica. Ciência & Saúde Coletiva, 18(9), 2515-2522.; Ferreira & Castro-Arantes, 2014Ferreira, D. M, & Castro-Arantes, J. M. (2014). Câncer e corpo: uma leitura a partir da psicanálise. Analytica: Revista de Psicanálise, 3(5), 17-23.;), uma tese de doutorado (Castro-Arantes, 2009Castro-Arantes, J. M. (2009). Ritmo e oralidade: O texto da psicanálise (Tese de doutorado). Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.), além de um capítulo de livro (Castro-Arantes, 2014) e um livro no prelo (Castro-Arantes, no preloCastro-Arantes, J. M. & Lo Bianco, A.C. (no prelo). Corpo e finitude: Pesquisa e clínica em oncologia. Rio de Janeiro, RJ: Contra Capa.), com financiamento da Fundação de Aparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (nº 210.174/2017).

Como resultado deste primeiro tempo, foram apresentados trabalhos em doze congressos internacionais (Congresso da Associação Latino-americana de Cuidados Paliativos (2011); Congresso Franco-Brasileiro de Psicologia Oncológica (2013); Congrès International de Soins Palliatifs da McGill University (2012, 2014, 2016); Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental (2012, 2014); Congreso de la Sociedad Española de los Cuidados Paliativos (2012); European Pain Federation - EFIC (2013 e 2017), The Multinational Association of Supportive Care in Cancer - MASCC (2015); Seminário de Verão da Association Lacanienne Internacionale (2017); e Seminário de Inverno da Association Lacanienne Internacionale (2018); e um em congresso nacional, o Simpósio de Dor do Inca (2012).

Considerações finais

Para finalizar, gostaríamos de mencionar o que se tornou um diferencial nos procedimentos da experiência do Grupo de Trabalho Corpo e Finitude, resultado de um convênio entre Inca/UFRJ e Into. Uma reunião semanal ancora todo o funcionamento do Grupo: o que é apresentado e discutido nela repercute nas várias ações dos participantes durante a semana. Do encontro participa toda a equipe, que debate um texto não visando aprender ou conhecer melhor seu conteúdo, mas permitindo que surjam da leitura as ressonâncias das experiências que estão sendo enfrentadas no cotidiano do trabalho de cada um. O texto é, assim, um pretexto para que o trabalho seja efetuado. Os conceitos introduzidos e elaborados são articulados com a experiência clínica relatada a cada vez. Iluminam as quase sempre muito pungentes questões trazidas pelos membros da equipe, por meio de fragmentos de suas intervenções, principalmente junto aos pacientes, e não apenas a estes, mas também aos colegas de equipe. Conforme ao método utilizado, este trabalho de articulação faz avançar por essa mesma operação a própria conceituação teórica que mais uma vez orientará a experiência, em um contínuo movimento de vaivém.

Portanto é do lugar de quem em sua vida profissional se encontra com a finitude do corpo, que nos atinge a todos, que concluímos este relato da experiência. Com o trabalho de trazer para discussão com os colegas a experiência do dia a dia, a nós, profissionais, é oferecido um lugar de endereçamento para as questões com que frequentemente deparamos. Estas, em geral, são duras e muitas vezes penosas para nós quando as escutamos. Neste Grupo, nos é dada a oportunidade de compartilhar nossa aflição quando nos encontramos com o que nos afeta no trabalho com pacientes que estão diante da doença e, muitas vezes, confrontados com a morte. Temos a chance de ver reconhecida a dureza a que os trabalhadores são sujeitos quando se encontram com os limites do corpo e da vida (cf. síndrome de burnout). Nesse sentido, vemos que há duas direções possíveis e se trata de tomarmos posição diante delas: poupar-nos a nós mesmos do encontro com a dimensão finita e perecível da vida, sentindo pena do paciente, resignando-nos e demitindo-nos desse encontro; ou escutá-lo com compaixão, reconhecendo o inexorável comum a todos, de modo que se estabeleça e sistematize uma intervenção que ofereça meios para que o sujeito sofra isso não tão sozinho.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Nov 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2018
  • Aceito
    29 Jul 2020
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