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Publicações da Psicologia: Ciência e Profissão à luz da Sociologia das Ausências

Publications of Psicologia: Ciência e Profissão in the Light of the Sociology of Absences

Publicaciones de Psicologia: Ciência e Profissão a la Luz de la Sociología de las Ausencias

Resumo

O artigo tem por objetivo discutir essas lacunas/ausências utilizando, para isso, o levantamento realizado por Guareschi, Galeano e Bicalho (2020)Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B. & Bicalho, P. P. G. de. (2020). 40 anos: o que a Psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão . 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742.
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de temáticas publicadas na revista nos anos de 2005 a 2018 e discutindo-o à luz da sociologia das ausências. Observa-se que, embora em uma primeira reflexão possa se pensar que as temáticas ausentes nesta revista tenham se deslocado para outros espaços de publicação, cabe avaliar de forma mais detalhada o que essas ausências e baixa frequência podem significar. Em geral, revelam que interesses mais localizados, menos cosmopolitas e fora da lógica capitalista tendem a ser considerados residuais, inferiores e locais. A ciência seguindo essa lógica prima por discussões generalizáveis e internacionais com alta validade interna. Contudo, essas discussões nem sempre alcançam temas com validade externa e ecológica ou que respondam a demandas específicas de algumas populações que não se veem representadas nas discussões gerais. Conclui-se que o exercício da ciência é trabalhar nesta tensão com vistas a buscar evidenciar e proporcionar espaços de interlocução para temáticas que, por si só e à luz da ciência globalizada, não encontrarão espaços para revelar-se e seguirão relegadas a escuridão e ausência.

Palavras-chave:
Produção Científica; Publicação; Sociologia das Ausências

Abstract

This article aims to discuss these gaps/absences using, for this, the survey carried out by Guareschi, Galeano and Bicalho (2020)Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B. & Bicalho, P. P. G. de. (2020). 40 anos: o que a Psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão . 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742.
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of themes published in the journal from 2005 to 2018 and discussing it in the light of the sociology of absences. It is observed that although in a first reflection it may be thought that the themes absent in this journal have moved to other publication spaces, it is worth assessing in more detail what these absences and low frequency may mean. In general, they reveal that interests that are more localized, less cosmopolitan and outside the capitalist logic tend to be considered residual, inferior and local. Science following this logic excels in generalizable and international discussions with high internal validity. However, these discussions do not always reach topics with external and ecological validity or that respond to the specific demands of some populations that are not represented in general discussions. It is concluded that the exercise of science is to work in this tension with a view to seeking to highlight and provide spaces for interlocution for themes that, by themselves, and the light of globalized science, will not find spaces to reveal themselves and the darkness and absence will remain.

Keywords:
Scientific Production; Publication; Sociology of Absences

Resumen

Este artículo tiene como objetivo discutir las brechas/ausencias utilizando, para esto, la encuesta realizada por Guareschi, Galeano y Bicalho (2020)Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B. & Bicalho, P. P. G. de. (2020). 40 anos: o que a Psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão . 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742.
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de temas publicados en la revista en los años 2005 a 2018 y debatirla a la luz de la sociología de las ausencias. Se observa que, aunque en una primera reflexión se puede pensar que los temas ausentes en esta revista se han trasladado a otros espacios de publicación, vale la pena evaluar con más detalle lo que pueden significar estas ausencias y baja frecuencia. En general, revelan que los intereses más localizados, menos cosmopolitas y fuera de la lógica capitalista tienden a considerarse residuales, inferiores y locales. La ciencia que sigue esta lógica sobresale en discusiones generalizables e internacionales con alta validez interna. Sin embargo, estas discusiones no siempre alcanzan temas con validez externa y ecológica, o que responden a las demandas específicas de algunas poblaciones que no están representadas en las discusiones generales. Se concluye que el ejercicio de la ciencia es trabajar en esta tensión con el objetivo de resaltar y proporcionar espacios de interlocución sobre temas que, por sí mismos y a la luz de la ciencia globalizada, no encontrarán espacios para revelarse y la oscuridad y ausencia permanecerán.

Palabras clave:
Producción Científica; Publicación; Sociología de las Ausencias

A revista Psicologia: Ciência e Profissão foi criada em 1979 pelo Conselho Federal de Psicologia, fruto das ações deste Plenário para comemoração dos 100 anos da Psicologia. Em seu primeiro número, Antônio Rodrigues Soares, então conselheiro , aponta no prólogo que “o presente trabalho, pela sua dimensão e simplicidade, não quer ser mais que um Ensaio de Psicologia, no Brasil, com todas as lacunas de que temos consciência, quer quanto a nomes de mérito, quer quanto a obras publicadas, quer quanto a institutos, ainda hoje, em franca atividade científica” (Saldanha, 1979Saldanha, Arthur de Mattos. (1979). Nossa revista. Psicologia: Ciência e Profissão , (0), 4-6. Recuperado em 02 de novembro de 2020, de Recuperado em 02 de novembro de 2020, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931979000100001&lng=pt&tlng=pt .
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, p.1).

Nos anos seguintes, a revista ganhou fôlego, sofreu transformações e registrou o desenvolvimento da Psicologia como ciência e profissão no Brasil. Essa mudança histórica foi registrada no artigo de Campos e Bernardes (2005Campos, R. H. F., & Bernardes, L. H. G. (2005). A revista Psicologia: Ciência e Profissão: um registro da história recente da Psicologia brasileira. Psicologia: Ciência e Profissão, 25(4), 508-525. https://doi.org/10.1590/S1414-98932005000400002
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) em comemoração aos 25 anos da revista, em que as autoras analisam capas, contracapas, editoriais, fichas técnicas, sumários, seções e temas dos artigos, em seus 25 anos, e ponderam-nos à luz do período histórico vivido no país e na ciência psicológica. Como conclusão, revelam que a revista possui história extremamente comprometida com a Psicologia brasileira, seus desafios e suas especificidades.

De fato, a revista Psicologia: Ciência e Profissão apresenta como missão “contribuir para a formação profissional do psicólogo, à pesquisa, ao ensino ou à reflexão crítica sobre a produção de conhecimento na área da Psicologia” (CFP, 2020Conselho Federal de Psicologia - CFP (2020). Psicologia: Ciência e Profissão . Sobre a revista. https://www.scielo.br/revistas/pcp/paboutj.htm
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). Neste sentido, é de se esperar que suas publicações respondam a demandas sociais em seus mais diversos aspectos e áreas. Contudo, e apesar de a revista ter como propósito registrar a Psicologia nacional, cabe destacar, conforme apontado anteriormente por Saldanha (1979Saldanha, Arthur de Mattos. (1979). Nossa revista. Psicologia: Ciência e Profissão , (0), 4-6. Recuperado em 02 de novembro de 2020, de Recuperado em 02 de novembro de 2020, de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98931979000100001&lng=pt&tlng=pt .
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), algumas lacunas/ausências que podem ser observadas nas produções científicas ao longo dos anos. Este artigo tem por objetivo discutir essas lacunas/ausências utilizando, para isso, o levantamento realizado por Guareschi, Galeano e Bicalho (2020Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B. & Bicalho, P. P. G. de. (2020). 40 anos: o que a Psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão . 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742.
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) de temáticas publicadas na revista nos anos de 2005 a 2018.

De modo mais específico, o presente artigo pretende apresentar um outro lado da discussão levantada no artigo de Guareschi, Galeano e Bicalho (2020Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B. & Bicalho, P. P. G. de. (2020). 40 anos: o que a Psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão . 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742.
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), em que os autores discutiram as modificações em termos político-sociais que demandaram deslocamentos na produção de conhecimento e práticas em Psicologia nesse período histórico. Complementarmente, nosso objetivo é dar luz a práticas e discussões existentes em nosso país, mas que, por questões políticas, ideológicas e epistemológicas, muitas vezes estão ausentes ou são pouco frequentes no cenário científico nacional e, mais especificamente, nas publicações da revista Psicologia: Ciência e Profissão.

Para isso, este artigo discutirá o significado das ausências a partir do enfoque teórico abordado no artigo seminal de Boaventura de Sousa Santos (2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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), “Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências”, articulando essa discussão com os dados obtidos no artigo acima referenciado. Neste sentido, será apresentada breve revisão sobre o conceito de sociologia das ausências, e posteriormente se articulará essa discussão com os dados obtidos no artigo de Guareschi, Galeano e Bicalho (2020Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B. & Bicalho, P. P. G. de. (2020). 40 anos: o que a Psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão . 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742.
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) sobre as publicações na revista Psicologia: Ciência e Profissão de 2005 a 2018.

A sociologia das ausências

A construção das discussões acerca da sociologia das ausências se inicia com a pesquisa realizada por Boaventura de Sousa Santos em seis países (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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). Cinco países eram semiperiféricos (África do Sul, Brasil, Colômbia, Índia e Portugal), e um era considerado à época um dos mais pobres do mundo (Moçambique). A escolha desses países se deu porque, segundo a hipótese do autor, era onde os conflitos entre a globalização neoliberal hegemônica e a globalização contra-hegemônica eram mais intensos, e com isso importantes iniciativas para a resistência ao avanço do neoliberalismo estavam sendo desenvolvidas.

Entre as iniciativas de resistência ao avanço do neoliberalismo podem-se citar: a democracia participativa; os sistemas de produção alternativos; o multiculturalismo, os direitos coletivos e a cidadania cultural; e as alternativas aos direitos de propriedade. Este contexto revelou uma realidade diversa e, até então, pouco desvelada pela cultura e ciência hegemônica e gerou uma profunda reflexão epistemológica, que resultou na produção dos conceitos da sociologia das ausências e da sociologia das emergências, inaugurados em Santos (2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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).

O contato com realidades tão diversas em termos econômicos, políticos, culturais e epistemológicos nos seis países levou o autor a três conclusões: a) a experiência social no mundo é muito mais ampla e rica do que a reconhecida pela tradição científica ocidental; b) esta amplitude e riqueza estão sendo desperdiçadas, e tal desperdício conduzia à falsa impressão de que a história havia chegado ao fim; e c) para combater o desperdício de experiências, era necessário tornar visíveis as iniciativas e os movimentos alternativos contra-hegemônicos (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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). Acerca desse último aspecto, Santos (2002)Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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afirma que as ciências sociais, tais como as conhecemos, seriam de pouca ajuda, afinal são em parte responsáveis por ocultar e desacreditar as alternativas apontadas anteriormente.

Assim, em vez de sugerir uma nova ciência social, seria necessário propor um modelo diferente de racionalidade, partindo da crítica ao modelo de racionalidade ocidental, ancorada na razão indolente (Leibniz, 1985Leibniz, G. W. (1985). Theodicy: essays on the goodness of God, the freedom of man, and the origin of evil. La Salle: Open Court.). A indolência da razão estaria relacionada à incapacidade de pensar e agir além do modelo monotópico e monocultural imposto pelo Ocidente, sobretudo a partir do século XV, período destacado como primeira modernidade (Dussel, 2008Dussel, E. (2008). Meditaciones anti-cartesianas: sobre el origen del anti-discurso filosófico de la Modernidad. Tabula Rasa, 9, 153-198. http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-24892008000200010&lng=en&tlng=es
http://www.scielo.org.co/scielo.php?scri...
). Para Santos (2000Santos, B. S. (2000), A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. Porto: Afrontamento.; 2002), a razão indolente está estruturada em quatro categorias: a razão impotente, a razão arrogante, a razão metonímica e a razão proléptica. Sobre as duas últimas, Santos (2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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) destaca que a razão metonímica é obcecada pela ideia de totalidade, entendendo que o todo (o Ocidente) tem primazia sobre as partes (o resto). Por outro lado, a razão proléptica é obcecada pela ideia de progresso e linearidade histórica, impondo a redução da multiplicidade de mundos.

Santos (2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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), então, sugere outro modelo de racionalidade, denominado razão cosmopolita, que estaria baseada em três procedimentos sociológicos: a sociologia das ausências, a sociologia das emergências e o trabalho de tradução intercultural.

A sociologia das ausências tem como objetivo expandir o presente, destacando as experiências desperdiçadas pela razão indolente. A sociologia das emergências visaria a contração do futuro, destacando outras possibilidades e expectativas em relação à suposta inexistência de alternativas. Por fim, o trabalho de tradução intercultural seria complementar às sociologias das ausências e das emergências, visando criar inteligibilidade entre as diversas formas de conhecer e viver no mundo.

Esses três procedimentos estão intimamente relacionados à constatação de que a modernidade ocidental acarretou, mais do que uma racionalização ou desencantamento do mundo, como supôs Weber, um empobrecimento da diversidade cultural, política e epistemológica humana quando impôs, de forma unilateral, seu modelo de compreensão do mundo como único e crível racionalmente (Nazareno, 2017Nazareno, E. (2017). Revisitando o debate acerca da modernidade a partir da colonialidade do poder e da decolonialidade. Revista Nós, 2(2), 32-49.; Rodrigues, 2017Rodrigues, S. T. (2017). O modelo de racionalidade ocidental (razão indolente) e os direitos humanos: uma crítica ao conceito hegemônico de cidadania a partir da sociologia das ausências de Boaventura de Sousa Santos. Revista de Educação Pública, 16(31), 69-82. http://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/view/5186
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). Este modelo está baseado em uma suposta temporalidade linear que comprimiu o presente e expandiu o futuro indefinidamente (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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; 2018).

Como contraposição a esse modelo de racionalidade, Santos (2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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) propõe como possibilidade de ampliação do mundo e dilatação do presente a sociologia das ausências. Esta teria como objetivo fundamental transformar a ausência em presença de objetos considerados pela ciência ocidental como impossíveis de ser pesquisados.

Às ausências, provocadas pela imposição da racionalidade monotópica e monocultural, impõe-se a presença dos sujeitos e de seus conhecimentos que foram violentamente racializados, silenciados e subalternizados pela colonialidade do poder (Dussel, 2008Dussel, E. (2008). Meditaciones anti-cartesianas: sobre el origen del anti-discurso filosófico de la Modernidad. Tabula Rasa, 9, 153-198. http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1794-24892008000200010&lng=en&tlng=es
http://www.scielo.org.co/scielo.php?scri...
; Fernandes, 2019Fernandes, R. (2019). O rap nacional e o caso Djonga: por uma sociologia das ausências e das emergências. Revista Latino-Americana de Estudos em Cultura e Sociedade, 5(3). http://periodicos.claec.org/index.php/relacult/article/view/1657/1128
http://periodicos.claec.org/index.php/re...
; Quijano, 2005Quijano, A. (2005). Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In E. Lander (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas (pp. 227-278). Buenos Aires: CLACSO.). Ela é, em parte, provocada pela produção e ação das lógicas da não existência, que são monoculturais e hegemônicas em relação ao saber, ao tempo linear, à classificação social, às escalas dominantes com a conceituação do que é universal e global e ao produtivismo capitalista (Fonseca & Pereira, 2017Fonseca, P. F. C. & Pereira, T. S. (2017). Pesquisa e desenvolvimento responsável?: traduzindo ausências a partir da nanotecnologia em Portugal. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24(1), 165-185. https://doi.org/10.1590/s0104-59702017000100005
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). Como lado oposto a estas lógicas, estão, de acordo com os critérios dualistas ocidentais, respectivamente o ignorante, o residual, o inferior, o local e o improdutivo (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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).

Todas as formas de existências que estão fora das lógicas hegemônicas procedentes do Ocidente foram invisibilizadas e deslocadas para o passado, sendo caracterizadas como atrasadas e primitivas. A sociologia das ausências tem como objetivo revelar o processo de ocultação e desperdício das experiências consideradas passadas para que se manifestem no presente (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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). A resposta à ocultação e invisibilização de outras formas de conhecer e existir no mundo pode ser encontrada na ideia central da sociologia das ausências, de que não há ignorância em geral nem saber em geral. Neste caso, a sociologia das ausências tem por objetivo substituir a monocultura do saber científico por uma ecologia dos saberes (Gomes, 2018Gomes, A. L. F. (2018). A sociologia das ausências e das emergências em sala de aula. Cronos, 18(2), 155-164. https://periodicos.ufrn.br/cronos/article/view/14231
https://periodicos.ufrn.br/cronos/articl...
; Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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).

A sociologia das emergências aposta nas expectativas contextuais e na percepção de outras possibilidades sintetizadas, na expressão cunhada por Santos (2018Santos, B. S. (2018) Construindo as epistemologias do Sul: antologia essencial. Volume I: Para um pensamento alternativo de alternativas. Buenos Aires: CLACSO .), como um pensamento alternativo de alternativas verificado a partir de outras lógicas e formas de organização econômica, política, epistemológica e social vivenciadas em outras partes do mundo. Trata-se, portanto, de impedir o desperdício de experiências, passadas e presentes, que a imposição unidimensional, logocêntrica e monocultural ocidental impôs ao resto do mundo. Essas experiências estão presentes, por exemplo, nas discussões propostas pela biodiversidade, na medicina alternativa, no ecofeminismo, na agroecologia, nos conhecimentos indígenas e afrodescendentes, práticas de milhares de anos em outras partes do mundo (Tybusch & Nunes, 2014Tybusch, J. S., & Nunes, D. S. (2014) A percepção da pós-colonialidade no Brasil: possibilidades emancipadoras aos povos indígenas no combate à biopirataria. Revista Direitos Culturais, 9(19), 77-94. http://dx.doi.org/10.20912/rdc.v9i19.1352
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; Sousa & Tesser, 2017Sousa, I. M. C., & Tesser, C. D. (2017). Medicina tradicional e complementar no Brasil: inserção no Sistema Único de Saúde e integração com a atenção primária. Cadernos de Saúde Pública, 33(1). http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00150215
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; Carmo, et al., 2016Carmo, J. C., Pires, M. M., Jesus Júnior, G., Cavalcante, A. L., & Trevizan, S. D. P. (2016). Voz da natureza e da mulher na Resex de Canavieiras-Bahia-Brasil: sustentabilidade ambiental e de gênero na perspectiva do ecofeminismo. Revista Estudos Feministas, 24(1), 155-180. https://doi.org/10.1590/1805-9584-2016v24n1p155
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; Nodari & Guerra, 2015Nodari, R. O. & Guerra, M. P. (2015). A agroecologia: estratégias de pesquisa e valores. Estudos Avançados, 29(83), 183-207. https://doi.org/10.1590/S0103-40142015000100010
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; Bergamaschi, Doebber, & Brito, 2018Bergamaschi, M. A., Doebber, M. B., & Brito, P. O. (2018). Estudantes indígenas em universidades brasileiras: um estudo das políticas de acesso e permanência. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, 99(251), 37-53. https://doi.org/10.24109/2176-6681.rbep.99i251.3337
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; Costa, 2012Costa, S. (2012). Desigualdades, interdependências e afrodescendentes na América Latina. Tempo Social, 24(2), 123-145. https://doi.org/10.1590/S0103-20702012000200007
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).

Como possibilidade de articulação entre a sociologia das ausências e a sociologia das emergências, após quinze anos de pesquisa e reflexões, Santos (2018Santos, B. S. (2018) Construindo as epistemologias do Sul: antologia essencial. Volume I: Para um pensamento alternativo de alternativas. Buenos Aires: CLACSO ., p. 242) propõe a perspectiva do trabalho de tradução intercultural como processo que contempla relações interepistêmicas nas quais não existe hierarquização entre diferentes formas de saber e de existir, e sim o reconhecimento de sua pertinência e atualidade para o mundo contemporâneo.

O espelho das publicações realizadas nos últimos quinze anos pela revista Psicologia: Ciência e Profissão

Guareschi, Galeano e Bicalho (2020Guareschi, N. M. F., Galeano, G. B. & Bicalho, P. P. G. de. (2020). 40 anos: o que a Psicologia tem produzido enquanto ciência e profissão? Psicologia: Ciência e Profissão . 40, 1-12. https://doi.org/10.1590/1982-3703003237742.
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) analisaram os 866 artigos publicados entre 2005 e 2018 e dividiu-os em 19 temáticas, conforme a Tabela 1.

Tabela 1
Distribuição das publicações por ano e total segundo categorias levantadas.

Os dados referentes às quantidades de artigos publicados em cada temática foram organizados, primeiramente, de acordo com o total de artigos por número publicado, exceto números temáticos/especiais (1, 2, 3 e 4); posteriormente, considerou-se o total por ano. A partir dessa análise, os autores buscaram evidenciar os temas mais frequentes nas publicações, bem como as motivações que podem ter levado à realização de pesquisas em tal campo da Psicologia.

Ao analisar as temáticas mais frequentes, desvelam-se as ausências de temáticas que podem estar presentes nas demandas do cotidiano da categoria, do fazer do psicólogo, dos problemas de pesquisa, entre outros, mas que não aparecem na Tabela 1. Também revela a pouca presença de algumas temáticas. Algumas em especial sequer alcançaram o índice de dez publicações no período, como Psicologia Hospitalar, Mobilidade urbana, História da Psicologia e Relações étnico-raciais, com duas, cinco, seis e sete publicações cada uma, respectivamente.

A Psicologia Hospitalar aparece com apenas duas publicações, em 2006. Trata-se de uma subárea da Psicologia da Saúde ou da Psicologia na Saúde, dependendo de como esses profissionais atuam e/ou se veem. No Brasil, é considerada uma especialidade da Psicologia e um campo de atuação reconhecido pelo Conselho Federal de Psicologia (Resolução CFP nº 13/2007Resolução CFP nº 13/2007, de 14 de setembro de 2007 (2007). Institui a Consolidação das Resoluções relativas ao Título Profissional de Especialista em Psicologia e dispõe sobre normas e procedimentos para seu registro. Brasília: Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2008/08/Resolucao_CFP_nx_013-2007.pdf
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). Possui uma entidade científica representativa, a Sociedade Brasileira de Psicologia Hospitalar (SBPH), que realiza congressos periódicos e conta com uma revista especializada. Além disso, a área possui alta empregabilidade e demanda de estudos.

Outra temática pouco contemplada é a História da Psicologia. Trata-se de um campo do conhecimento eminentemente acadêmico e de extrema utilidade para a identidade e coesão da profissão. Ainda assim, foram encontrados seis artigos ao longo do período histórico analisado. Contudo, cabe ressaltar que, destes seis, um foi publicado em 2005, e cinco, em 2006. Não houve mais publicações na revista Psicologia: Ciência e Profissão em relação à temática. Quanto a isso, cabe discutir os caminhos tomados pelos estudos realizados na área. Embora seja possível suspeitar que a existência de revistas científicas específicas para a temática tenha absorvido essas publicações, chama atenção o fato de uma queda tão brusca posterior a 2006. Da mesma forma que o ocorrido com a Psicologia Hospitalar, cabe suspeitar se efetivamente as pesquisas desenvolvidas na área lograram ser contempladas na revista da área específica ou se tornaram-se invisibilizadas por outras temáticas ou outras áreas da Psicologia, ou mesmo por outros modelos de relato de pesquisas e/ou experiências profissionais. Poderia ser o caso da Psicologia Organizacional, que contou com 80 publicações neste período histórico, apesar de possuir diversas revistas especializadas na área.

A temática das relações étnico-raciais e do racismo também teve baixa frequência nas publicações da revista. Foram identificados apenas sete artigos de pesquisas relacionados. Trata-se de tema que vem sendo discutido no Sistema Conselhos de forma pontual e com maior frequência desde 2002, quando houve uma tentativa de incentivar as submissões de artigos e foi lançado um prêmio monográfico para a categoria Pluralidade Étnica, dando origem a um número especial com os melhores artigos que tangenciaram o tema das relações étnico-raciais.

Por fim, destacamos a temática Mobilidade urbana, que teve apenas seis publicações, concentradas no fim do período estudado, entre os anos de 2015 a 2018. Contudo, consideramos que, embora pouco presente, esta é uma temática que ainda se vê representada nas publicações dos últimos volumes da revista, indicando uma tendência diferente da observada para as temáticas anteriores. Enquanto explicitamente se observam uma ausência de publicações recentes nas temáticas de Psicologia Hospitalar e História da Psicologia e uma dispersão muito grande nas publicações sobre questões étnico-raciais, a temática Mobilidade urbana parece apresentar uma emergência nos últimos anos. Resta-nos observar se a tendência se manterá nos próximos anos de publicação e as particularidades das discussões levantadas nesses trabalhos.

Além das problematizações levantadas a partir da verificação da baixa frequência de algumas temáticas, também cabe destacar, conforme apontado anteriormente, a ausência de outras. De forma mais específica, o que dizer daquilo que sequer apareceu como possibilidade de estudo ou temática nas publicações acadêmicas da revista?

Em um exercício de levantamento de possíveis temáticas, encontramos, por exemplo, religiosidade/espiritualidade, Neuropsicologia, Psicologia Jurídica, emergências e desastres, meio ambiente, entre inúmeros outros. Se considerarmos as possíveis formas de pensar a Psicologia, seja por suas correntes teóricas, seus campos de atuação, suas especialidades ou ainda seus principais processos de trabalho, teremos uma infinidade de temas não visualizados na presente sistematização, para falar de suas ausências. Cabe, portanto, refletir o significado disto.

Alguns possíveis significados das ausências e pouca frequência

Ao refletir sobre esses quatro temas ou campos do conhecimento e de práticas da Psicologia tão distintos e pouco contemplados nas publicações da revista PCP, alguns aspectos podem ser levantados. Em uma primeira reflexão, cabe avaliar se a presença do tema e da produção do conhecimento ocorreu em outros espaços, seja no âmbito da instituição que mantém essa revista (em números especiais, por exemplo, ou outras formas de publicações do Sistema Conselhos), ou por iniciativas diversas.

De fato, em um levantamento sobre as produções científicas em Psicologia Hospitalar, Silva (2010Silva, A. P. O. (2010). Mapeamento da pesquisa em Psicologia Hospitalar (dissertação de mestrado), Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Processos Psicossociais e Coletivos), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.) descreveu as tendências e características da área no Brasil, incluindo as áreas da saúde abordadas, suas questões de estudo e seus procedimentos metodológicos. Os resultados apontaram para contradições no campo da Psicologia Hospitalar. Dentre estas, a autora destaca a ausência de artigos que tratam de temas do cotidiano dos hospitais, como as principais causas de morte no Brasil, que são os acidentes de trânsito e infecções virais. Mas, assim como no presente texto, a autora fica limitada para identificar quais motivos levaram pesquisadores a não se dedicaram aos temas. Contudo, aponta, em linhas gerais, para a necessidade de que discussões acerca da realidade da prática do profissional psicólogo no contexto de sua atuação no hospital deveriam ser mais contempladas em estudos e trabalhos científicos (Silva, 2010Silva, A. P. O. (2010). Mapeamento da pesquisa em Psicologia Hospitalar (dissertação de mestrado), Programa de Pós-Graduação em Psicologia (Processos Psicossociais e Coletivos), Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, Brasil.).

Em linhas gerais, podemos refletir sobre a especificidade da atuação do psicólogo hospitalar no Brasil. Seus desafios e demandas talvez traduzam interesses mais localizados, menos cosmopolitas e, nesta linha, entendidos como não universais e globais e, portanto, fora da lógica capitalista (Fonseca & Pereira, 2017Fonseca, P. F. C. & Pereira, T. S. (2017). Pesquisa e desenvolvimento responsável?: traduzindo ausências a partir da nanotecnologia em Portugal. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 24(1), 165-185. https://doi.org/10.1590/s0104-59702017000100005
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), residuais, inferiores, locais e improdutivos (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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). A busca por uma produção generalizável para diferentes contextos e de alcance internacional pode, desta forma, promover a ausência de temáticas e estudos de relevância e, em termos científicos, com alta validade externa e ecológica (Patino & Ferreira, 2018Patino, C. M. & Ferreira, J. C. (2018). Validade interna e externa: você pode aplicar resultados de pesquisa para seus pacientes? Jornal Brasileiro de Pneumologia, 44(3), 183. http://dx.doi.org/10.1590/S1806-37562018000000164
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).

Ao contrário, a monocultura e o saber hegemônico levam a uma alta validade interna dos estudos desenvolvidos, contudo pouco discutem ou problematizam os problemas reais e específicos das diferentes sociedades. Neste sentido, o exercício da ciência deveria ser trabalhar nesta tensão não com fins de superá-la, haja visto que tais contradições são inerentes à própria visão de mundo e da ciência. Mas buscar evidenciar e proporcionar espaços de interlocução para temáticas que, por si só, e à luz da ciência globalizada, não encontrarão espaços para revelar-se e seguirão relegadas a escuridão e ausência (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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).

Este foi o caso específico da História da Psicologia. Cabe destacar que a temática teve especial atenção do Sistema Conselhos em datas comemorativas, com o investimento em pesquisas que pudessem fornecer subsídios didáticos para a formação em Psicologia e para a categoria conhecer e refletir sobre suas raízes e seus personagens históricos no Brasil. Neste sentido, cabem destacar a produção dos pioneiros da Psicologia desde os jesuítas, a história das instituições da Psicologia e coleções de livros sobre alguns pioneiros de campos e temas em Psicologia. Toda esta produção esteve sob coordenação de comissões da memória em Psicologia, sempre articuladas com grupos de pesquisas sobre a história da Psicologia brasileira, incluindo a iniciativa de alguns Conselhos Regionais, com destaque para o de São Paulo.

Essas louváveis ações do Sistema Conselhos auxiliam a lançar luz sobre temáticas que por si só não encontrarão respaldo na literatura internacional, tendo em vista que efetivamente são específicas de nossa cultura. Embora influenciada e ao mesmo tempo influenciadora do cenário mundial da Psicologia, a história da Psicologia brasileira tem especificidades e características próprias à luz do movimento histórico e político em que se desenvolve. Neste sentido, e conforme apontado anteriormente, isto pode ser entendido como uma existência fora da lógica hegemônica, e, desta forma, ser invisibilizada e deslocada para o passado, caracterizada como atrasada e primitiva (Nazareno, 2017Nazareno, E. (2017). Revisitando o debate acerca da modernidade a partir da colonialidade do poder e da decolonialidade. Revista Nós, 2(2), 32-49.; Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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).

Por outro lado, em relação a questões étnico-raciais, graças às políticas de cotas para negros e indígenas nas universidades públicas, bem como à articulação do Movimento Negro, foi possível a formação de um número significativo de psicólogas/os negras/os nas últimas décadas. Entretanto poucos conseguiram dar sequência em seus estudos de pós-graduação (Vanali & Silva, 2019Vanali, A. C., & Silva, P. V. B. (2019). Ações afirmativas na pós-graduação stricto sensu: análise da Universidade Federal do Paraná. Cadernos de Pesquisa , 49(171), 86-108. https://doi.org/10.1590/198053145911
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; Arboleya, Ciello, & Meucci, 2015Arboleya, A., Ciello, F., & Meucci, S. (2015). “Educação para uma vida melhor”: trajetórias sociais de docentes negros. Cadernos de Pesquisa, 45(158), 882-914. https://doi.org/10.1590/198053143248
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), e isto reflete na produção de pesquisas no campo da Psicologia. Assim, encontramos mais dissertações e livros do que publicações de artigos no campo da Psicologia. Alguns motivos foram apontados no documento de referência técnica (CFP, 2017Conselho Federal de Psicologia - CFP. (2017). Referências técnicas para atuação de Psicólogas/os. Brasília: CFP.), que indica leituras de artigos produzidos por pesquisadoras e pesquisadores reconhecidos nesse campo de estudos.

Assim, as poucas frequências e as ausências podem ser em parte explicadas pelas escolhas que a própria ciência faz em seu percurso, em grande medida condicionadas pelo contexto em que está inserida. Nesse caso, o contexto social, político e econômico propiciará a opção por determinados temas em detrimento de outros. A sociologia das ausências procura entender e transformar os processos que levam à subtração e contração das experiências que estão ausentes, libertando-as das relações de produção que podem condicionar inclusive o que irá ou não ser tratado pela ciência (Santos, 2002Santos, B. S. (2002). Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, outubro 2002: 237-280. DOI: 10.4000/rccs.1285
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).

Como afirma Gadamer (2002Gadamer, H.-G. (2002). Verdade e método II: complementos e índices. Petrópolis: Vozes.), a ciência moderna está condicionada ao ideal do conhecimento pautado pelo conceito de método, que consiste em poder seguir um caminho cognitivo de modo tão consciente, que é possível repeti-lo sempre. “‘Methodos’ significa ‘caminho de seguimento’. Metódico é poder seguir sempre de novo o caminho já trilhado e é isto o que caracteriza o proceder da ciência” (Gadamer, 2002Gadamer, H.-G. (2002). Verdade e método II: complementos e índices. Petrópolis: Vozes., p. 61). Isso explica em parte as ausências e, em alguns casos, a insistente permanência de alguns temas recorrentemente e (re)utilizados pela ciência de um modo geral.

Dessa forma, uma análise que desvele possíveis significados das ausências considerando este estudo das publicações poderá ser útil para orientação de futuros editores da presente revista, das gestões do CFP e, em especial, da comunidade acadêmica e da categoria que necessita reunir seu importante conhecimento acumulado e publicar seus relatos de experiências, exitosas ou não, com aprendizados para futuras gerações, pesquisas realizadas, aperfeiçoamento de processos de trabalhos. E dessa forma poderão entrar para a história da Psicologia e contribuir para superar a dicotomia ainda existente entre ciência e profissão.

Contudo, há que se destacar que as relações e traduções interculturais são muito mais conflitivas e contraditórias do que consensuais, e por vezes intraduzíveis (Walsh, 2018Walsh, C., Oliveira, L. F., & Candau, V. M. (2018). Colonialidade e pedagogia decolonial: para pensar uma educação outra. Arquivos Analíticos de Políticas Educativas, 26(83). https://doi.org/10.14507/epaa.26.3874
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; Nazareno, Magalhães, & Freitas, 2019Nazareno, E., Magalhães, S. M., & Freitas, M. T. U. (2019). Interculturalidade crítica, transdisciplinaridade e decolonialidade na formação de professores indígenas do povo Berò Biawa Mahadu/Javaé: análise de práticas pedagógicas contextualizadas em um curso de Educação Intercultural Indígena. Fronteiras: Journal of Social, Technological and Environmental Science, 8(3), 490-508. https://doi.org/10.21664/2238-8869.2019v8i3.p490-508
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). Reconhecer essas dificuldades de articulação e conexão das diferentes formas de conhecer e viver no mundo contribui muito mais para um trabalho de tradução intercultural do que estabelecer falsas assimetrias entre epistemologias que são inconciliáveis.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Dez 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    07 Maio 2020
  • Aceito
    16 Jun 2020
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