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Narrativas de Adoecimento de Trabalhadoras da Indústria do Vestuário em Município de Santa Catarina, Brasil

Illness Narratives of Female Garment Workers from a Municipality of Santa Catarina, Brasil

Relatos de Enfermedad de Trabajadoras de la Industria Indumentaria en un Municipio de Santa Catarina, Brasil

Resumo

O presente estudo propôs analisar, sob a perspectiva feminista de pesquisa e da psicologia social do trabalho, os sentidos do trabalho e de gênero que emergiram das narrativas de adoecimento de trabalhadoras da indústria do vestuário de Criciúma, Santa Catarina. Trata-se de uma pesquisa do tipo empírica - com a realização de entrevistas -, de caráter exploratório e qualitativa, que parte da perspectiva do construcionismo social e da análise narrativa. Os sujeitos da pesquisa foram quatro trabalhadoras da indústria do vestuário. Evidenciou-se que o trabalho se apresenta como via de socialização e subjetivação de trabalhadoras, bem como de adoecimento, seja nos meios fabril, doméstico ou de cuidado. Com base na perspectiva de gênero, postula-se que a divisão sexual do trabalho ainda é um entrave à equidade nos contextos laborais, mediante uma atualização do caráter exploratório das atividades realizadas por mulheres, sobretudo pela invisibilidade, no âmbito reprodutivo, e pela precarização do trabalho produtivo.

Palavras-chave:
Indústria do Vestuário; Trabalho; Gênero; Adoecimento; Sentido do Trabalho

Abstract

Based on a feminist perspective and on the social psychology of work, this study aimed to analyze the meanings of work and gender arising from illness narratives of female workers of the garment industry of Criciúma, Santa Catarina. This exploratory empirical research was conducted from the social constructionism perspective, with qualitative data collected by means of interviews conducted with four garment workers. The results indicate that the work in the garment industry comprises a means of socialization and subjectivation of workers, besides triggering illness in the relation between factory, domestic, and care work. From a gender perspective, the sexual division of labor remains as an obstacle to reaching equity in the labor context before the constant maintenance of the exploratory nature of activities performed by women, the invisibility in the reproductive scope, and the precarization of productive work.

Keywords:
Garment Industry; Work; Gender; Illness; Sense of Work

Resumen

El presente estudio propuso analizar, desde la perspectiva feminista de investigación y de la psicología social del trabajo, los sentidos del trabajo y de género que emergieron en los relatos de enfermedad de las trabajadoras de la industria indumentaria de Criciúma, Santa Catarina (Brasil). Esta es una investigación empírica - con la realización de entrevistas -, de carácter exploratorio y cualitativo, que parte de la perspectiva del construccionismo social y del análisis narrativo. Los sujetos de la investigación fueron cuatro trabajadoras de este ramo. Se evidenció que el trabajo es una vía de socialización y subjetivación de las trabajadoras, así como de enfermedad, producida entre la fábrica, el hogar y el trabajo de cuidado. Con base en la perspectiva de género, se postula que la división sexual del trabajo sigue siendo un obstáculo a la equidad de género en los contextos laborales, bajo una actualización del carácter exploratorio de las actividades realizadas por mujeres, especialmente por la invisibilidad, en el ámbito reproductivo, y la precarización del trabajo productivo.

Palabras clave:
Industria Indumentaria; Trabajo; Género; Enfermedad; Sentido del Trabajo

Introdução

O presente estudo propôs analisar, a partir da perspectiva feminista de pesquisa e da psicologia social do trabalho, os sentidos do trabalho e de gênero que emergiram das narrativas de adoecimento de trabalhadoras da indústria do vestuário de Criciúma, Santa Catarina. A temática e a análise em foco integram o estudo defendido para a obtenção do grau de bacharel em psicologia, de forma que o interesse na temática foi construído ao longo da trajetória de pesquisas de iniciação científica da primeira autora durante o curso de graduação.

Para a construção de uma interlocução entre escolhas teóricas e metodológicas, nos âmbitos da pesquisa feminista, da psicologia social do trabalho e da pesquisa narrativa, compreende-se a interface saúde e adoecimento produzida nas relações de trabalho, que por sua vez são constituídas por questões de gênero, classe, entre outros marcadores de opressão e desigualdade social. No caso das trabalhadoras, é central considerar as relações entre gênero e classe, sobretudo quanto ao modo como podem produzir desigualdades e adoecimento ao longo das trajetórias laborais de mulheres.

Nesse sentido, como será observado pela literatura reunida na presente introdução, parte-se do pressuposto de que a trajetória de trabalhadoras é marcada pelo adoecimento. Considera-se, então, que um estudo sobre o tema na indústria do vestuário, por meio da pesquisa narrativa como opção metodológica, vem ao encontro do que se objetiva analisar no tocante a narrativas de adoecimento, à medida que permite aos sujeitos narrar sobre si mesmos, oportunizando identificar sentidos de trabalho e de gênero implicados em tais processos, assim como evidenciar o paradoxo do trabalho como espaço de reconhecimento e de adoecimento.

Conforme demonstra Reigota (2016Reigota, M. (2016). Aspectos teóricos e políticos das narrativas: Ensaio pautado em um projeto transnacional. In R. Cordeiro, & L. Kind (Orgs.), Narrativas, gênero e política (pp. 49-66). CRV.), uma das funções políticas da pesquisa narrativa é oportunizar que o sujeito fale de si mesmo e seja escutado, deixando, assim, de ser mero alvo de produções acadêmicas. É crescente a utilização da narrativa em pesquisas das ciências humanas e sociais e há não apenas uma abordagem para tal uso, mas uma variância de acordo com a perspectiva e a área disciplinar da pesquisa (Tamboukou, 2016Tamboukou, M. (2016). A aventura da pesquisa narrativa. InR. Cordeiro , & L. Kind (Orgs.), Narrativas, gênero e política (pp. 67-84). CRV.). Para ampliar a compreensão acerca das escolhas teóricas e metodológicas, na sequência são apresentados e articulados alguns dos pressupostos que sustentam a investigação do tema em questão.

A indústria da confecção de artigos do vestuário e acessórios constitui uma divisão da seção indústria de transformação, de acordo com a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE) adotada pelo Sistema Estatístico Nacional do Brasil (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2018). Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). http://cnae.ibge.gov.br/?view=secao&tipo=cnae&versaosubclasse=9&versaoclasse=7&secao=C
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). Na referida Classificação, a indústria da confecção de artigos do vestuário e acessórios é considerada um setor que compreende serviços de confecção de roupas em qualquer material e escala, desde que seja realizada por meio de costura.

De acordo com a Relação Anual de Informações Sociais (Rais), em 2016, a indústria de transformação empregou 43.333 trabalhadores/as na microrregião de Criciúma, sendo aproximadamente 62% (26.779) dessa população composta por homens (Ministério do Trabalho e Emprego, 2017Ministério do Trabalho e Emprego. (2017). Relação Anual de Informações Sociais de (RAIS) - Ano-Base 2017. https://agpsa.com.br/wp-content/uploads/2018/02/ORIENTACAO-TECNICA-RAIS-2017-v1.pdf
https://agpsa.com.br/wp-content/uploads/...
). Das 16.554 mulheres empregadas na transformação no mesmo ano, 7.945 delas, ou seja, 48%, estavam inseridas na confecção de artigos de vestuário e acessórios. O referido setor é marcado como polo de trabalho feminino, visto que, no período entre os anos de 2006 e 2016, a parcela de trabalhadoras não ficou aquém de 80%.

Considerando que Santa Catarina é polo empregador desse setor e que estudos (Augusto, Sampaio, Ferreira, & Kirkwood, 2013Augusto, V. G., Sampaio, R. F., Ferreira, L. M., & Kirkwood, R. N. (2013). Capacidade para o trabalho e saúde: Oquepensamastrabalhadorasdaindústriadevestuário. Fisioterapiae Pesquisa, 20(3), 256-261. https://dx.doi.org/10.1590/S1809-29502013000300010
https://doi.org/https://dx.doi.org/10.15...
; Bordin, 2019Bordin, É. Z. (2019). Ofício costureira: Um estudo sobre educação e as posições ocupadas no mercado de trabalho da confecção de vestuário na região metropolitana de Porto Alegre [Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/193385
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; Cecilio, Costa, Silva, & Marcon, 2013Cecilio, H. P. M., Costa, M. A. R., Silva, R. L. D. T., & Marcon, S. S. (2013). Condições de saúde da mulher trabalhadora na indústria do vestuário. Revista da Rede de Enfermagem do Nordeste, 14(2), 372-384.; Polizelli & Leite, 2010Polizelli, K. M., & Leite, S. N. (2010). Quem sente é a gente, mas é preciso relevar: a lombalgia na vida das trabalhadoras do setor têxtil de Blumenau-Santa Catarina. Saúde e Sociedade, 19(2), 405-417. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902010000200016
https://doi.org/https://dx.doi.org/10.15...
; Prazeres & Navarro, 2011Prazeres, T. J., & Navarro, V. L. (2011). Na costura do sapato, o desmanche das operárias: Estudo das condições de trabalho e saúde das pespontadeiras da indústria de calçados de Franca, São Paulo, Brasil. Cadernos de Saúde Pública , 27(10), 1930-1938. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2011001000006
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; Silva, 2018Silva, S. M. (2018). Estrutura produtiva da indústria de confecção em Goiânia-GO. Áskesis, 7(2), 108-118.; Veiga & Galhera, 2017Veiga, J. P. C., & Galhera, K. M. (2017). Ação coletiva transnacional na cadeia de confecção do vestuário e a questão de gênero. Sociologias, 19(45), 142-174. https://doi.org/10.1590/15174522-019004506
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) observaram, ao longo do tempo, a prevalência de mulheres e um cenário de precarização e adoecimento, percebeu-se a necessidade de realizar uma pesquisa sobre tais condições a partir de uma perspectiva analítica de gênero e da divisão sexual do trabalho.

Hirata e Kergoat (2007Hirata, H., & Kergoat, D. (2007). Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cadernos de Pesquisa, 37(132), 595-609. https://dx.doi.org/10.1590/S0100-15742007000300005
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) definem a divisão sexual do trabalho como desinente e regulatória das relações sociais de sexo. Essa divisão, baseada nas relações sociais de sexo, é fundamentada em dois princípios organizadores: o princípio de separação e o princípio hierárquico. O primeiro consiste na diferenciação do trabalho de homens e de mulheres, enquanto o segundo estipula que o trabalho de homens vale, em diversos sentidos da palavra, mais que o de mulheres.

Hirata (2015a)Hirata, H. (2015a). Globalização, trabalho e gênero. Revista de Políticas Públicas, 9(1), 111-128. propõe atualizar o debate sobre a divisão sexual do trabalho. Ela expande o conceito como uma divisão sexual do saber e do poder que sustentam as relações no âmbito do trabalho, da família e da sociedade. Para possibilitar a condição de equidade a mulheres e homens na sociedade, planeia uma reestruturação da divisão sexual do trabalho em seus diferentes contextos, sobretudo no do cuidado. Conforme a autora, as relações de gênero estão na base da globalização neoliberal e na manutenção das desigualdades sociais, de forma que não é possível compreender as desigualdades entre mulheres e homens como específicas e localizadas.

Dois processos atrelados à divisão sexual do trabalho são definidos por Yannoulas (2011Yannoulas, S. C. (2011). Feminização ou feminilização? Apontamentos em torno de uma categoria. Temporalis, 2(22), 271-292.) como feminilização e feminização de ocupações e profissões. A feminilização corresponde ao aumento significativo da participação de mulheres em determinada ocupação, enquanto a feminização se refere às transformações da ocupação feminilizada em termos de precarização do trabalho e de seu significado social. Logo, compreende-se que analisar a inserção de mulheres no mercado de trabalho requer problematizar a precarização do trabalho decorrente do processo descrito como feminização.

Quando se usa como alicerce a concepção de teóricas feministas da divisão sexual do trabalho sobre a desvalorização do trabalho feminino, em diferentes momentos históricos e diversos modelos societários, utilizar a categoria gênero na análise das condições de trabalho compreende lançar o foco nos atravessamentos existentes nas relações que colocam as mulheres em posição de subalternidade e desigualdade nos espaços de trabalho. Significa compreender como as hierarquias são construídas e legitimadas.

Conforme a compreensão de Scott (1995Scott, J. W. (1995). Gênero: Uma categoria útil de análise histórica. Educação e Realidade, 20(2), 71-99.), gênero constitui as relações que constroem padrões normativos de masculinidade e feminilidade, os quais são atribuídos aos corpos dos sujeitos. Tais significados são construídos nas relações e também as constroem quando estipulam a compreensão dos sujeitos a partir de certa concepção binária, por meio da qual se institui que a masculinidade está para o homem e a feminilidade, para a mulher.

Nicholson (2000Nicholson, L. (2000). Interpretando o gênero. Revista Estudos Feministas, 8(2), 9-41.) problematiza o marco teórico binário que está na base dos significados de dois conceitos centrais na teoria feminista: mulher e gênero. Conforme discorre a autora, o caráter encontrado em diferentes abordagens feministas se fundamenta na premissa de que a socialização se dá a partir do corpo, ou seja, homens e mulheres são socializados/as como tais pela materialidade do sexo.

Portanto, como categoria analítica, o gênero possibilita problematizar normas binárias que sustentam a construção de diferenças e desigualdades entre os sujeitos. No caso da divisão sexual do trabalho, oportuniza analisar as normas que fundamentam a construção de espaços laborais específicos para homens e mulheres. Tal divisão pode contribuir para processos de adoecimento de trabalhadoras à medida que atribui, sobrecarrega e desvaloriza atividades realizadas por elas nos âmbitos considerados privado e público. No que se refere ao trabalho na indústria do vestuário, podem ser problematizados, entre outros fatores, processos de adoecimento decorrentes da divisão sexual do trabalho e da feminização do setor. Certamente, são questões importantes para o campo de estudos da psicologia social do trabalho, que, de acordo com Sato (2010Sato, L. (2010). Psicologia, saúde e trabalho: Distintas construções dos objetos “trabalho” e “organizações”. In A. I. Leonardi, C. C. Coelho Netto, C. Moreira, D. C. Façanha, K. Eidelwein, & R. Oliveira (Orgs.), Psicologia crítica do trabalho na sociedade contemporânea (pp. 47-53). Conselho Federal de Psicologia. https://site.cfp.org.br/ wp-content/uploads/2010/05/psic_trabalhoFINAL.pdf
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), é uma área do saber que se ocupa da saúde do/a trabalhador/a e nasceu da articulação entre a Psicologia e a Medicina Social. De modo geral, busca compreender as relações nos espaços de trabalho e os modos de reconhecimento de trabalhadores/as, bem como denunciar o aspecto de adoecimento no/em decorrência do trabalho.

Para Bernardo, Oliveira, Souza e Souza (2017Bernardo, M. H., Oliveira, F., Souza, H. A., & Souza, C. C. (2017). Linhas paralelas: As distintas aproximações da Psicologia em relação ao trabalho. Estudos de Psicologia - Campinas, 34(1), 15-24. https://doi.org/10.1590/1982-02752017000100003
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), é característica da psicologia social do trabalho, ainda que haja um amplo leque de perspectivas nessa área, compreender o trabalho de modo crítico em seu aspecto psicossocial, marcado pelas relações de poder e inserido em um contexto social mais amplo. Além disso, de acordo as autoras e o autor, o campo da produção acadêmico-científica em psicologia social do trabalho aborda:

. . . os processos de subjetivação de trabalhadores em variados contextos, partindo da análise do cotidiano e da perspectiva dos próprios sujeitos, tomando como pano de fundo a assimetria de poder no campo do trabalho, bem como as práticas de resistências dos trabalhadores (p. 21).

É também a partir de tal perspectiva que a temática das condições de trabalho e saúde e das demandas de trabalhadores/as é debatida, com base nas teorias da saúde e da sociologia do trabalho, a partir de uma etiologia social do adoecimento. De acordo com Caponi (2003Caponi, S. (2003). A saúde como abertura ao risco. In D. Czeresnia, & C. M. Freitas (Orgs.), Promoção da saúde: Conceitos, reflexões, tendências (pp. 55-77). Fiocruz.), percebe-se uma ambivalência do vínculo saúde-trabalho: se, por um lado, o trabalho é um espaço de subjetivação e de relações em que se evidencia o reconhecimento, por outro, é fator do adoecimento massivo por suas configurações estruturais. Evitando a normativa biomédica descritiva de quadros patológicos, para Caponi (2003)Caponi, S. (2003). A saúde como abertura ao risco. In D. Czeresnia, & C. M. Freitas (Orgs.), Promoção da saúde: Conceitos, reflexões, tendências (pp. 55-77). Fiocruz., o adoecer é antes um processo subjetivo. Sendo assim, entende-se que é essa perspectiva que torna possível a articulação de categorias necessárias para analisar as condições de saúde e adoecimento de trabalhadoras, como se pretendeu neste estudo.

Com base no debate apresentado sobre o processo de trabalho e as construções de gênero, argumenta-se que a relação entre saúde/adoecimento e trabalho se dá de formas diferentes entre homens e mulheres, tendo em vista a prevalência do adoecimento de trabalhadoras relacionada às condições impostas pela divisão sexual do trabalho e pelas desigualdades de gênero. Há diferenças também entre as próprias trabalhadoras, considerando os diferentes contextos e formas de precarização do trabalho feminino marcados, sobretudo, pelas questões de classe e étnico-raciais. Dessa forma, de acordo com Brito (2000Brito, J. C. D. (2000). Enfoque de gênero e relação saúde/trabalho no contexto de reestruturação produtiva e precarização do trabalho. Cadernos de Saúde Pública, 16(1), 195-204. https://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2000000100020
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, p. 196), entendendo que a saúde seja uma “expressão de condições sociais, culturais e históricas das coletividades . . .” e admitindo que os contextos de trabalho são “determinado[s] por complexo entrelaçamento de relações de poder, sociais, econômicas e políticas . . .”, o adoecimento pelo trabalho deve ser concebido sob a perspectiva de gênero.

A saúde mental, quando analisada a partir dessa perspectiva, possibilita uma ótica não biologicista e não reificante do adoecimento. Nessa direção, compreender as nuances da desigualdade, da violência e de diferentes aspectos das relações de poder no âmbito institucional autoriza compreender o adoecimento mental como um processo relacional, ou seja, antes como produto do que como algo desencadeado por fatores intrínsecos e isolados da pessoa que adoece (Diniz, 2004Diniz, G. (2004). Mulher, trabalho e saúde mental. In G. Diniz, I. Vasques-Menezes, M. Tavares, M. E. A. Lima, & W. Codo (Orgs.), O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho (pp. 105-138). Vozes.).

O adoecimento de mulheres marcado pela divisão sexual do trabalho, quando comparado em pesquisas que analisam o sentido e a vivência individual, provoca certo estranhamento devido aos resultados à primeira vista antagônicos, uma vez que a queixa se relaciona, em menor grau, diretamente ao trabalho. Entretanto, como pontuam Zanello, Fiuza e Costa (2015Zanello, V., Fiuza, G., & Costa, H. S (2015). Saúde Mental e gênero: Facetas gendradas do sofrimento. Fractal: Revista de Psicologia, 27(3), 238-246. http://dx.doi.org/10.1590/1984-0292/1483
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, p. 240), além da vulnerabilidade ao adoecimento, há uma propensão ao silenciamento e à desvalia das queixas, sobretudo pelo valor atribuído ao trabalho considerado feminino, evidenciando, dessa forma, que “a experiência do adoecimento psíquico e o sentido/vivência da doença são gendrados . . .”.

Zanello (2017Zanello, V. (2017). Saúde Mental, Gênero e Interseccionalidades. In M. O. Pereira, & R. G. Passos (Orgs.), Luta antimanicomial e feminismos: Discussões de gênero, raça e classe para a reforma psiquiátrica brasileira (pp. 52-69). Autobiografia.) pontua a interface de gênero nos processos de subjetivação e produção de sofrimento psíquico, bem como na mediação no reconhecimento de sintomas e no ato diagnóstico. A autora enfatiza a diferença nos processos de socialização e de produção de homens e mulheres, abrindo a possibilidade de analisar como a mediação subjaz processos de adoecimento de mulheres na interface com a divisão sexual do trabalho.

Assim, a perspectiva de articulação ora anunciada permite focar a análise na temática que envolve os sentidos do trabalho e de gênero nas narrativas de adoecimento de trabalhadoras da indústria da confecção de artigos de vestuário e acessórios de Criciúma. No tópico seguinte, apresenta-se o caminho metodológico que possibilitou a realização do estudo.

Metodologia

Foram entrevistadas quatro mulheres, cujos critérios de seleção foram orientados pelos seguintes aspectos: ser trabalhadora no setor do vestuário na cidade do estudo; reconhecer a ocorrência de algum tipo de adoecimento pelo trabalho; concordar em participar da pesquisa. Não houve especificidade de faixa etária, tempo, local e função de trabalho. A seleção se deu por acessibilidade, a partir da rede de contatos da pesquisadora.

Como parte do processo de seleção das participantes, é importante detalhar que inicialmente se propôs a técnica da bola de neve, em que uma entrevistada indicaria a próxima e assim sucessivamente. A primeira entrevistada, indicada a partir da rede de contatos da pesquisadora, forneceu o contato de trabalhadoras que poderiam ser entrevistadas, pois atendiam aos critérios do estudo. Dentre os nomes indicados, apenas uma teve interesse e participou da pesquisa, mas não fez novas indicações, o que demandou a mobilização de outras redes que indicassem participantes que atendessem ao perfil do estudo. Assim, a terceira entrevistada foi localizada a partir da indicação de uma parente que já havia trabalhado em uma fábrica de costura. A quarta entrevistada foi localizada após contato disponibilizado por uma marca de roupas da cidade, com números telefônicos de confecções terceirizadas que costuravam suas peças.

A pesquisa originária do presente estudo foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Humanos (CEP) da instituição universitária, Parecer n. 2798527, em agosto de 2018, com a garantia de sigilo e privacidade assegurada pela resolução n. 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). As entrevistadas assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). As entrevistas foram gravadas em áudio, mediante autorização das trabalhadoras, e transcritas na íntegra.

A perspectiva teórico-metodológica utilizada foi o construcionismo social, um movimento contra-hegemônico de produção científica alternativo aos parâmetros positivistas que propõe uma visão não reificante e não essencialista de sujeito, assim como a não fixação do conhecimento e da verdade em uma forma de saber anterior. Gergen (2009Gergen, K. J. (2009). O movimento do construcionismo social na psicologia moderna. Revista Internacional Interdisciplinar INTERthesis, 6(1), 299-325. http://dx.doi.org/10.5007/1807-1384.2009v6n1p299
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) defende que a produção científica seja antes da ordem da construção que se dá nas relações do que do manuseio e da cognição de dados empíricos obtidos por meio de um rigor científico impessoal.

Sob essa perspectiva, Spink e Medrado (2013Spink, M. P., & Medrado, B. (2013). Produção de Sentido no Cotidiano: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In M. J. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: Aproximações teóricas e metodológicas (pp. 41-61), Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. http://www.bvce.org.br/DownloadArquivo.asp?Arquivo=SPINK_Praticas_discursivas_e_producao_FINAL_CAPA_NOVAc.pdf
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) apresentam uma abordagem de análise do discurso que tem como foco as práticas discursivas na produção de sentido no cotidiano, isto é, as formas como as pessoas produzem sentidos e posicionamentos nas relações cotidianas por meio da linguagem em ação, noção que será mobilizada pela teoria para descrever a dinâmica, as formas e os conteúdos balizadores da prática discursiva.

A segunda noção é a de história, que propõe que o sentido deve ser contextualizado e a temporalidade deve ser considerada na análise da relação constante entre o presente e o passado, nas/pelas demarcações do tempo longo, tempo vivido e tempo curto. Por fim, a noção de pessoa é mobilizada como alternativa à concepção de indivíduo, de sujeito universal que descaracteriza as especificidades de contextos e relações (Spink & Medrado, 2013Spink, M. P., & Medrado, B. (2013). Produção de Sentido no Cotidiano: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In M. J. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: Aproximações teóricas e metodológicas (pp. 41-61), Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. http://www.bvce.org.br/DownloadArquivo.asp?Arquivo=SPINK_Praticas_discursivas_e_producao_FINAL_CAPA_NOVAc.pdf
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).

Na perspectiva evidenciada, o sentido deve ser contextualizado e a temporalidade deve ser considerada na análise das práticas discursivas, a partir da relação constante entre o presente e o passado. Para tanto, Spink e Medrado (2013Spink, M. P., & Medrado, B. (2013). Produção de Sentido no Cotidiano: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In M. J. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: Aproximações teóricas e metodológicas (pp. 41-61), Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. http://www.bvce.org.br/DownloadArquivo.asp?Arquivo=SPINK_Praticas_discursivas_e_producao_FINAL_CAPA_NOVAc.pdf
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) discorrem sobre a demarcação de tempo longo, tempo vivido e tempo curto. O tempo longo diz dos conhecimentos anteriores à pessoa, mas que se presentificam por meio da reprodução social, isto é, da manutenção das produções dos domínios de saberes como religião, ciência e tradição, que permeiam e constituem os enunciados nas práticas discursivas.

O tempo vivido diz da aprendizagem das linguagens sociais, do tempo da socialização do sujeito e “também o tempo da memória traduzida em afetos. É nosso ponto de referência afetivo, no qual enraizamos nossas narrativas pessoais e identitárias” (Spink & Medrado, 2013Spink, M. P., & Medrado, B. (2013). Produção de Sentido no Cotidiano: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In M. J. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: Aproximações teóricas e metodológicas (pp. 41-61), Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. http://www.bvce.org.br/DownloadArquivo.asp?Arquivo=SPINK_Praticas_discursivas_e_producao_FINAL_CAPA_NOVAc.pdf
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, pp. 3233). O tempo curto, por sua vez, trata da interação dialógica que viabiliza a dinâmica da produção de sentido, ou seja, das interações diretas entre pessoas (Spink & Medrado, 2013Spink, M. P., & Medrado, B. (2013). Produção de Sentido no Cotidiano: Uma abordagem teórico-metodológica para análise das práticas discursivas. In M. J. Spink (Org.), Práticas discursivas e produção de sentidos no cotidiano: Aproximações teóricas e metodológicas (pp. 41-61), Centro Edelstein de Pesquisas Sociais. http://www.bvce.org.br/DownloadArquivo.asp?Arquivo=SPINK_Praticas_discursivas_e_producao_FINAL_CAPA_NOVAc.pdf
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).

No que se refere à pesquisa narrativa, Tamboukou (2016Tamboukou, M. (2016). A aventura da pesquisa narrativa. InR. Cordeiro , & L. Kind (Orgs.), Narrativas, gênero e política (pp. 67-84). CRV.) propõe que se busque compreender como a narrativa funciona antes de se ater à estrutura da linguagem, ou seja, como a subjetividade é posta e se dá no ato do sujeito de narrar a si. Do foco na construção singular de significados em contextos sociais, procurando “entender como os sujeitos constroem significados sobre si mesmos e seu mundo social” (Tamboukou, 2016Tamboukou, M. (2016). A aventura da pesquisa narrativa. InR. Cordeiro , & L. Kind (Orgs.), Narrativas, gênero e política (pp. 67-84). CRV., p. 69), emerge a subjetividade. Ao considerar as marcas da socialização e dos discursos anteriores ao sujeito que se narra, o passado se coloca no presente a partir do ato da narrativa. “A pesquisa narrativa é, portanto, sobre o poder constitutivo das histórias em produzir realidades e sujeitos” (Tamboukou, 2016Tamboukou, M. (2016). A aventura da pesquisa narrativa. InR. Cordeiro , & L. Kind (Orgs.), Narrativas, gênero e política (pp. 67-84). CRV., p. 78). Tal abordagem possibilita, dessa forma, a não separação entre aquilo que se tem como sujeito e objeto, indivíduo e sociedade, intrapsíquico e interacional, como também proporciona o reconhecimento da participação do processo e do contexto histórico que se procura analisar e compreender (Tamboukou, 2016Tamboukou, M. (2016). A aventura da pesquisa narrativa. InR. Cordeiro , & L. Kind (Orgs.), Narrativas, gênero e política (pp. 67-84). CRV.).

Como argumentado na introdução, saúde e adoecimento são processos interligados e não lineares, os quais podem ser evocados por trabalhadoras ao narrar suas trajetórias laborais. Sendo assim, parte-se do pressuposto de que as trabalhadoras entrevistadas, enquanto sujeitos constituídos nas e pelas relações de trabalho, ao narrarem suas condições laborais em indústrias do vestuário, trazem processos de adoecimento e evidenciam o paradoxo do trabalho como espaço de reconhecimento e de adoecimento.

Para a apresentação e análise das narrativas, optou-se por nomear as entrevistadas pelos nomes fictícios de Joana, Nísia, Magda e Dafne, apresentadas a seguir.

Quem foram as trabalhadoras entrevistadas?

Joana, 31 anos, branca, nascida e residente em Criciúma, casada e mãe de dois filhos (com 14 e dois anos de idade), trabalhava como encarregada durante o dia em uma fábrica de grande porte e cursava Tecnologia em Design de Moda no período noturno. Trabalhou como faxineira e em um frigorífico antes de entrar no setor do vestuário há 12 anos. Ocupou diferentes cargos - de serviços gerais, revisão, contagem, fechamento de pedidos, expedição, passadoria, costura, pilotagem e, no momento da entrevista, encarregada. O adoecimento não foi explicitamente evidenciado como tal em seu discurso, apesar de ter indicado sentir dores nos braços, quando trabalhava com costura, e cansaço mental e nas pernas, no cargo atual, além de estresse e dores no corpo associados ao trabalho de cuidado.

Nísia, 60 anos, negra, nascida e residente em Criciúma, viúva e mãe de duas mulheres (de 37 e 30 anos), trabalhava na mesma fábrica que Joana, que nos passou seu contato. Entre idas e vindas, trabalhou no vestuário em diferentes fábricas por mais de 44 anos e mantinha um relacionamento com a costura desde a infância. Iniciou como passadeira, exerceu o ofício de costureira em diferentes setores e foi até pilotista. No momento da entrevista, trabalhava como analista de qualidade. O adoecimento foi marcado em diferentes contextos de sua trajetória de vida e de trabalho: sentia dores na coluna, nos braços, nas mãos e no peito, até receber os diagnósticos de bursite, tendinite e rompimento de tendão.

Magda, 42 anos, branca, natural de uma cidade litorânea do sul de Santa Catarina, mudou-se para Criciúma em 1999. Casada, mãe de uma menina de 14 anos, trabalhou como cuidadora e como empregada doméstica antes de entrar para o vestuário, no ano de 2001, em uma fábrica de médio porte na qual trabalhava até o momento da entrevista. Exercia, desde então, a mesma função: finalizar e pregar bolsos em casacos. Relatou dores nas mãos e no pescoço na troca de função dentro da fábrica, sem caracterizá-las como algo atípico ao trabalho.

Dafne, 45 anos, branca, natural do extremo sul do Rio Grande do Sul, mudou-se para Criciúma em 1996. Estava em uma união estável há 17 anos. Mãe de duas filhas (uma de 27 e outra de 11 anos) e de um filho (de 17 anos). Trabalhou como balconista, comerciante, empregada doméstica, costureira, pilotista e faccionista. Sua história com o vestuário teve início quando foi morar em Criciúma e procurou saber onde as mulheres da cidade trabalhavam. Sentia dores nos braços, nas pernas, no pescoço, na coluna; bico de papagaio, “bico de periquito”; labirintite, osteoporose; depressão, cansaço, insônia, “loucura”: o adoecimento ficou marcado pelas vias do corpo e da “cabeça”, cansadas.

Discussão: A indústria do vestuário como um espaço de mulheres

Nísia foi contratada como costureira no setor de pilotagem em uma fábrica com produção em larga escala para diferentes tipos de marcas de fast fashion, modelo de produção rápida, como sugere o nome, em diversos sentidos: fabricação, consumo e descarte das roupas. A fast fashion propõe um modelo de lançamento de coleções não pautado nas estações, mas em tendências rapidamente renováveis, a fim de expandir o consumo de vestuário sob a égide da democratização da moda (Jacques, 2015Jacques, C. D. G. (2015). Trabalho Decente e Responsabilidade Social Empresarial nas Cadeias Produtivas Globais: O modelo fast fashion em Portugal e Brasil. [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina; Universidade de Lisboa]. Repositório Institucional da UFSC. https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/135124/334499.pdf?sequence=1
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).

Esse modelo prevê uma terceirização da terceirização, ou uma quarteirização do trabalho: na fábrica em questão, são desenvolvidos os modelos, produzidas as peças-piloto e feitos os cortes e a finalização. Os cortes são enviados para facções em outras cidades de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, que produzem as peças e, depois, devolvem-nas à fábrica para sua finalização. Apenas uma parcela da produção é realizada na própria empresa, corroborando a tese de Jacques (2015Jacques, C. D. G. (2015). Trabalho Decente e Responsabilidade Social Empresarial nas Cadeias Produtivas Globais: O modelo fast fashion em Portugal e Brasil. [Tese de Doutorado, Universidade Federal de Santa Catarina; Universidade de Lisboa]. Repositório Institucional da UFSC. https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/135124/334499.pdf?sequence=1
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) de que, no Brasil, as fábricas que produzem para fast fashion são responsáveis por etapas que vão da concepção à finalização das peças. A relação comumente apontada entre tecnologização, automatização do trabalho e expansão global da produção proposta pela lógica da fast fashion, quando analisada pela perspectiva de gênero neste estudo, evidencia certa atualização da divisão sexual do trabalho, uma vez que nem todos os setores são automatizados e nem todos os que são automatizados são acessíveis às mulheres operárias. A máquina de costura eletrônica em que Magda trabalha é a mesma há 17 anos. As tecnologias chegam apenas a alguns espaços da produção, ocupam funções específicas e substituem um contingente de trabalhadores/as por um/a operador/a (Hirata, 2015bHirata, H. (2015b). Mudanças e permanências nas desigualdades de gênero: Divisão sexual do trabalho numa perspectiva comparativa. Friedrich Ebert Stiftung Brasil, Análise n. 7. https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/12133.pdf
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). Sob perspectiva analítica, a partir do construcionismo social, verifica-se a articulação dos tempos longo e vivido no que se refere às normas de gênero e à divisão sexual do trabalho.

Magda trabalha em uma fábrica de médio porte da cidade de Criciúma, que produz tanto roupas sociais de confecção própria quanto terceirizadas de outras marcas. Dafne está na ponta da produção desse sistema, de forma que responde pela grande parcela de trabalhadoras do setor, aquela correspondente à subcontratação. É faccionista, mas, apesar de também possuir confecção própria, depende, sobretudo, da terceirização de outras marcas para produzir.

Nas fábricas, cenários de trabalho de Joana, Nísia e Magda, a divisão sexual do trabalho está posta de maneira muito semelhante no que tange à ocupação de cargos: majoritariamente, os homens estão alocados em setores específicos, com destaque para o corte; já as mulheres ocupam, sobretudo, a produção. Novamente, evidencia-se uma articulação entre os tempos longo e vivido nas formas de divisão sexual do trabalho atuais.

Apesar do aumento da escolarização entre as mulheres trabalhadoras, elas permanecem em cargos hierarquicamente inferiores também em espaços de trabalho feminizados. As lideranças são mistas, mas se evidencia a existência de uma hierarquia nos postos de trabalho. As encarregadas são majoritariamente mulheres, e os patrões, ou até os encarregados gerais, como na empresa onde trabalha Magda, são homens. Esse fato pode ser/estar associado aos diferentes modos de qualificação para o trabalho, próprios da indústria do vestuário. Fonseca (2000Fonseca, T. M. G. (2000). Gênero, subjetividade e trabalho. Vozes.) apontou que não há um plano pedagógico pronto para o processo de aprendizagem do trabalho com a costura, entretanto, existem atravessamentos subjacentes ao gênero que proporcionam a ascensão na carreira, mediada pela aprendizagem. Em sentido análogo, Bordin (2019Bordin, É. Z. (2019). Ofício costureira: Um estudo sobre educação e as posições ocupadas no mercado de trabalho da confecção de vestuário na região metropolitana de Porto Alegre [Dissertação de Mestrado, Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul]. Lume Repositório Digital. https://lume.ufrgs.br/handle/10183/193385
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, p. 104) sinalizou que uma “separação entre o fazer e o pensar está absolutamente visível na educação da costureira que normalmente recebe conteúdos práticos que reforçam sua atividade laboral e de maneira alguma lhes oferecem a compreensão da confecção do vestuário”.

A promoção no trabalho, no contexto do vestuário, é marcada pela aprendizagem por meio do próprio trabalho, uma vez que o conhecimento dele é requisito para a ascensão de cargos. Entende-se que a promoção se dá mediante as marcas de gênero, contudo, não apenas pela naturalização do trabalho da costura como feminino, mas também pelas particularidades do processo de qualificação nessa indústria. Por exemplo, em retrospecto, Joana pôde se tornar encarregada pela experiência de trabalho como pilotista, função na qual foi admitida devido ao histórico de trabalho em que manuseou todas as máquinas de costura e executou todas as etapas da produção das peças; Nísia ascendeu à modinha, na qual se produzem roupas mais complexas, diferenciadas da produção, pelo tempo de trabalho e desempenho nos setores anteriores.

É central considerar todo o processo anterior à posição de liderança e às promoções, o que integra as trajetórias de trabalho no vestuário. Verifica-se uma relação contraditória entre os movimentos de flexibilização do trabalho, uma vez que preveem a polivalência e a qualificação como condições da mão de obra, mas não como características próprias do trabalho feminino. Entretanto, a força de trabalho feminina é constantemente a mais passível de ser flexibilizada em contextos fabris como o do vestuário (Hirata, 2015bHirata, H. (2015b). Mudanças e permanências nas desigualdades de gênero: Divisão sexual do trabalho numa perspectiva comparativa. Friedrich Ebert Stiftung Brasil, Análise n. 7. https://library.fes.de/pdf-files/bueros/brasilien/12133.pdf
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).

Em comum, as trabalhadoras entrevistadas aprenderam a profissão trabalhando. De uma forma ou de outra, a profissionalização veio antes com a prática do trabalho do que com uma formação anterior à entrada na indústria, mesmo entre aquelas que participaram de cursos de corte e costura ou tiveram acesso a ela em casa. O vestuário apresenta essa característica do processo de aprendizagem e de qualificação atrelado ao trabalho. Em todos os itinerários, a menção a um aprendizado que acompanha a mudança de funções no interior da fábrica foi registrada. De Magda, que trabalha na máquina reta há 17 anos, a Dafne, que trabalhou em diferentes fábricas até se tornar dona de sua própria facção, há uma transição entre os espaços mediada pela aprendizagem.

Além disso, a profissionalização mediou a entrada na indústria do vestuário, que se apresentou como uma alternativa aos trabalhos de cuidado e doméstico. Joana e Magda relataram trajetórias de cuidado anteriores ao vestuário e trajetórias de trabalho diversas no interior da indústria. Devido à gravidez precoce, Joana interrompeu seus estudos para assumir o cuidado e prover a criação do filho. Ela trabalhou em um frigorífico, como faxineira e em serviços gerais, trabalhos que não requeriam ensino médio completo, mas foi no vestuário que encontrou uma possibilidade de ascender profissionalmente a partir da extensão da jornada de trabalho e da qualificação interior e exterior à fábrica. Para Magda, que trabalhou como empregada doméstica e cuidadora no período entre a chegada a Criciúma e a contratação como costureira, o trabalho fabril foi sugerido como possibilidade por uma cunhada que já trabalhava na fábrica e, anteriormente, também a havia estimulado a participar de um curso de corte e costura. Os tempos longo e vivido são evidenciados quando se visibiliza a entrada dessas mulheres no mercado de trabalho pelas vias das profissões consideradas femininas, de trabalho de reprodução social, espaços de subjetivação e de reprodução de feminilidades, descaracterizados como fundamentais ao processo de produção.

Para Dafne, o trabalho com o vestuário teve relação com sua mudança para a cidade e com a aproximação com o locus de trabalho das mulheres. Jovem, mãe solo, chegou a Criciúma e procurou conhecer as fábricas onde a maioria das mulheres da cidade trabalhavam, demarcando a institucionalização da ideia de ser o setor do vestuário um espaço de trabalho feminino, o que, de acordo com a perspectiva do construcionismo social, estaria localizado não apenas em um tempo vivido, uma vez que atualiza um tempo longo. A entrada de Nísia, de certa forma, teve aproximação com o tom de destinação das mulheres ao trabalho da costura que emergiu da narrativa de Dafne. Foi a única entre as entrevistadas que descreveu uma relação de identificação com a costura anterior ao trabalho com o vestuário, que se tornou uma profissionalização daquilo que faziam as mulheres no espaço privado: a costura amadureceu de uma brincadeira na infância à produção de roupas para si mesma na juventude e se tornou uma carreira de 45 anos na indústria.

Dafne narrou a posição de cuidadora como marca na trajetória de trabalho, antes vista como um hiato no período em que costurava, quando abdicou do labor na fábrica para diminuir o tempo de trabalho produtivo, por ter considerado o doméstico uma alternativa para que pudesse dedicar mais tempo ao trabalho reprodutivo. O retorno à costura, por meio da facção, foi uma estratégia de articulação entre os trabalhos produtivo e reprodutivo no âmbito doméstico. A alternativa encontrada por Dafne foi trabalhar em casa para cuidar da filha e garantir a independência financeira. Manter o lar e o trabalho produtivo em um mesmo espaço, para Veiga e Galhera (2017Veiga, J. P. C., & Galhera, K. M. (2017). Ação coletiva transnacional na cadeia de confecção do vestuário e a questão de gênero. Sociologias, 19(45), 142-174. https://doi.org/10.1590/15174522-019004506
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), é uma alternativa de aglutinar, em uma jornada de trabalho exaustiva, a renda oportunizada pela costura e o trabalho doméstico, delegado às mulheres pela divisão sexual do trabalho.

Kergoat (2016Kergoat, D. (2016). O cuidado e a imbricação das relações sociais. InA. R. D. P. Abreu , H. Hirata , & M. R. Lombardi (Orgs.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: Perspectivas interseccionais (pp. 17-26). Boitempo.) evidencia o cuidado como trabalho que se materializa em diferentes atividades e relações com o objetivo de responder às necessidades de outra pessoa. Tal definição, apresentada no Colóquio Internacional Teorias e Práticas do Cuidado, em Paris, no ano de 2013, permite compreender o cuidado “como uma relação de serviço, apoio e assistência, remunerada ou não, que implica um sentido de responsabilidade em relação à vida e ao bem-estar de outrem” (Kergoat, 2016Kergoat, D. (2016). O cuidado e a imbricação das relações sociais. InA. R. D. P. Abreu , H. Hirata , & M. R. Lombardi (Orgs.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: Perspectivas interseccionais (pp. 17-26). Boitempo., p. 17).

Nessa perspectiva, o trabalho de cuidado pode ser compreendido como uma terceirização do trabalho reprodutivo nos espaços domésticos, quando há uma responsabilização de outras mulheres pelas atividades, ou como responsabilização pelos mesmos trabalhos no espaço privado, como evidenciado nas histórias narradas. A feminização do cuidado denuncia que, apesar da inserção de mulheres em diferentes setores do mercado de trabalho, há uma forma de manutenção da tradicional divisão sexual do trabalho que delega às mulheres o trabalho de cuidado e, consequentemente, as múltiplas jornadas de trabalho.

Abramo e Valenzuela (2016Abramo, L., & Valenzuela, M. E. (2016). Tempo de trabalho remunerado e não remunerado na América Latina: Uma repartição desigual. In A. R. D. P. Abreu, H. Hirata, & M. R. Lombardi (Orgs.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: Perspectivas interseccionais (pp. 113-123). Boitempo.) ressaltam a relação entre uso do tempo e a dupla jornada de trabalho de mulheres e destacam que, em relação aos homens, elas são mais pobres de tempo, marcado ainda por questões de raça/etnia e classe. As autoras pontuam que mulheres negras e brancas possuem jornadas de trabalho semanais semelhantes, contudo, a delegação do trabalho de cuidado às mulheres negras é evidenciada pelo maior número de horas semanais destinadas ao trabalho reprodutivo e pelo menor número de horas semanais destinadas ao trabalho produtivo quando comparadas às mulheres brancas. Em domicílios mais pobres, também foi evidenciado maior tempo de trabalho doméstico, fato relacionado à privação de bens duráveis e eletrodomésticos (Abramo & Valenzuela, 2016Abramo, L., & Valenzuela, M. E. (2016). Tempo de trabalho remunerado e não remunerado na América Latina: Uma repartição desigual. In A. R. D. P. Abreu, H. Hirata, & M. R. Lombardi (Orgs.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: Perspectivas interseccionais (pp. 113-123). Boitempo.).

Bessin (2016Bessin, M. (2016). Política da presença: As questões temporais e sexuadas do cuidado. In A. R. D. P. Abreu, H. Hirata , & M. R. Lombardi (Orgs.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: Perspectivas interseccionais (pp. 235-245). Boitempo.) convida a pensar sobre a relação com o tempo além do cronos, o tempo lógico, ao afirmar que a temporalidade é vivida por mulheres e por homens de modos diferentes, ou seja, que a temporalidade é gendrada. O autor propõe, por meio do conceito de presença social, politizar o cuidado, tratando de uma presença que se dá, também, na ausência, que se sustenta no cuidado como uma característica essencialmente feminina e está na socialização das mulheres.

O tempo lógico, remetendo a um tempo masculino, ao renunciar o caráter do tempo vivido pelas mulheres, sugere que o conceito de dupla jornada proposto pelas teóricas da divisão sexual do trabalho deva ser suplementado pela noção de dupla presença da socióloga Laura Balbo (Bessin, 2016Bessin, M. (2016). Política da presença: As questões temporais e sexuadas do cuidado. In A. R. D. P. Abreu, H. Hirata , & M. R. Lombardi (Orgs.), Gênero e trabalho no Brasil e na França: Perspectivas interseccionais (pp. 235-245). Boitempo.), que fala da constituição das mulheres baseada na antecipação e na consideração do outro.

Em todas as trajetórias, essa dupla presença foi evidenciada, assim como a abdicação do trabalho na indústria em prol da maternidade. Nos casos de Nísia e Magda, o trabalho com a costura é colocado em suspensão para cuidarem das filhas; a primeira, da filha adolescente, que apresentava na época problemas comportamentais; a segunda, para cuidar da filha nas idades iniciais. Outra evidência da dupla presença se dá na reinserção de Nísia na indústria, quando o marido admitiu que sozinho não conseguiria prover a família, e, também, na história de Dafne, que pontuou que a facção foi criada a partir da noção de que, costurando em casa, conciliaria esse trabalho com o cuidado da filha de um ano por estar no espaço doméstico.

O sentido do trabalho é construído no cotidiano das trabalhadoras nos espaços da indústria e doméstico. Para Joana, enquanto uma carreira que se constrói, o trabalho no vestuário foi uma fonte de reconhecimento e possibilidade de superação e ascensão. Magda descreveu sua função na fábrica como estável, que se estende por anos sem expectativas de mudança, mesmo com a tentativa de investir no retorno aos estudos. Nísia se constituiu como trabalhadora enquanto se adaptava aos diferentes espaços da fábrica pelos quais transitou. À medida que perdeu o medo da máquina, aprendeu todas as funções na costura, ascendeu a setores de prestígio na produção e se apropriou do trabalho, ou seja, “encontrou-se” no trabalho. Do mesmo modo, Dafne tomou gosto pela costura quando esta se tornou trabalho, sobretudo ao assumir diferentes funções e cargos em um negócio próprio.

Da mesma forma que o sentido do trabalho, o adoecimento se dá e é significado no cotidiano das mulheres. Evidentemente, a produção fragmentada, o trabalho repetitivo e estereotipado e as longas jornadas fabris são marcadores para o desenvolvimento de patologias diagnosticáveis. Contudo, nas narrativas e em consonância com literaturas que propõem que o adoecimento pelo trabalho é atravessado pelo gênero, entende-se que o adoecimento e seu sentido, enquanto processo, estão intimamente ligados ao trânsito entre os espaços de trabalho produtivo e reprodutivo, público e privado, fabril e doméstico e de cuidado. Nesse sentido, a psicologia social do trabalho é mobilizada como uma perspectiva de análise qualitativa do adoecimento no/pelo trabalho.

A partir da concepção de saúde mental proposta por Diniz (2004Diniz, G. (2004). Mulher, trabalho e saúde mental. In G. Diniz, I. Vasques-Menezes, M. Tavares, M. E. A. Lima, & W. Codo (Orgs.), O trabalho enlouquece? Um encontro entre a clínica e o trabalho (pp. 105-138). Vozes.), entende-se que o processo de adoecimento das trabalhadoras é multifacetado, não limitado à manifestação de fenômenos internos e individuais, sobretudo pelas marcas de gênero. Em diversos momentos de sua trajetória de trabalho, Nísia relatou afastamentos das fábricas, acompanhados de muito sofrimento, inclusive uma sensação de morte quando abdicou do trabalho na fábrica para cuidar da filha adolescente. Nesse mesmo sentido, Joana sublinhou uma loucura no cotidiano de trabalho, mas enfatizou em diferentes momentos que ama o que faz. Magda, em sua jornada fabril que se estende há 17 anos, sente dores quando é realocada na produção, mas não nega o pedido da encarregada para não a decepcionar, pois ali é seu espaço de socialização, de modo que há também uma relação pela qual preza entre ela e sua superiora. Dafne, mesmo durante as crises mais intensas de labirintite, diagnóstico que recebeu depois de se tornar faccionista, sofre por não poder costurar.

Há um duplo aspecto desses sofrimentos: a sintomatologia de um quadro clínico diagnosticável ou identificado pela própria trabalhadora e um sofrimento atrelado à improdutividade causada pelo adoecer, ou seja, uma potencialização desse sofrimento pelo aspecto subjetivo do adoecimento, que diz como as trabalhadoras o sente. Além disso, o trabalho no vestuário recebe, por vezes, a significação antagônica de um local de adoecimento, mas antes como estratégia de autorreconhecimento e até mesmo de promoção da saúde mental, como constatado nas narrativas deste trabalho.

Nas narrativas, a medicalização emergiu como uma estratégia de produtividade, seja na analgesia da dor, como quando Joana sente dores de cabeça em dias com muitos problemas, ou na analgesia da existência, quando Magda pontua que passou a utilizar benzodiazepínicos por conta própria, pois não conseguia descansar a cabeça à noite, mesmo com o cansaço do trabalho. Para além da crítica ao acesso ao medicamento ou ao controle do sofrimento pelas vias de acesso das trabalhadoras, a medicalização pode ser pensada como um dispositivo de controle para o aumento ou a constância da produtividade a partir da prática da patologização do sofrimento ou das condições de vida dos sujeitos. “Nessa intervenção fisicalista e biologicista, emerge um sujeito também racionalizado e individualizado, capaz de se manter na cadeia produtiva (doméstica ou do trabalho assalariado) e potencializado enquanto sujeito produtor e produtivo” (Maluf, 2009Maluf, S. W. (2009). Sofrimento, ‘saúde mental’ e medicamentos: regimes de subjetivação e tecnologias de gênero. In C. S. Tornquist, M. C. S. Lago, C. C. Coelho, & T. K. Lisboa (Orgs.), Leituras de resistência: Corpo, violência e poder (pp. 145-163). Mulheres., p. 157).

Há uma reivindicação de diagnósticos que comprovem as dores e de fármacos que possam saná-las como suporte da existência dessas mulheres no deslocamento dos espaços de trabalho. De acordo com a proposição de Maluf (2009Maluf, S. W. (2009). Sofrimento, ‘saúde mental’ e medicamentos: regimes de subjetivação e tecnologias de gênero. In C. S. Tornquist, M. C. S. Lago, C. C. Coelho, & T. K. Lisboa (Orgs.), Leituras de resistência: Corpo, violência e poder (pp. 145-163). Mulheres.), dispositivos disciplinadores, como a medicalização, atuam com a participação e a adesão dos sujeitos. Nísia trabalhava com costura durante toda a semana, manuseava a máquina com os mesmos movimentos por, no mínimo, oito horas diárias. Sem máquina de lavar roupas, nos finais de semana, ela lavava e passava todas as roupas de sua família à mão, das toalhas de prato aos uniformes das filhas e do marido. O não reconhecimento do trabalho reprodutivo enquanto trabalho atua para sua anulação na elaboração do diagnóstico; por conseguinte, a medicalização pode se apresentar como estratégia viável para lidar com a precarização desses espaços.

É possível evidenciar, na trajetória de Dafne, que a medicalização é aprendida como estratégia nos espaços de trabalho: cada costureira, com sua gaveta de medicamentos, ensina a outra como tratar cada dor. A forma como o adoecimento é significado por quem adoece se dá nas relações, ou seja, “a enfermidade é construção intersubjetiva, isto é, formada a partir de processos comunicativos de definição e interpretação” (Polizelli & Leite, 2010Polizelli, K. M., & Leite, S. N. (2010). Quem sente é a gente, mas é preciso relevar: a lombalgia na vida das trabalhadoras do setor têxtil de Blumenau-Santa Catarina. Saúde e Sociedade, 19(2), 405-417. https://dx.doi.org/10.1590/S0104-12902010000200016
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, p. 411).

Nesse contexto, evidencia-se um reconhecimento e um apoio mútuo entre as trabalhadoras, evocados por um saber das dores vividas sob as mesmas condições de trabalho, antes mesmo do amparo pelas redes de atenção ao cuidado de trabalhadoras do Sistema Único de Saúde (SUS) ou de convênios privados pagos pelas empresas no caso das trabalhadoras formais, não evidenciado em nenhuma das narrativas das entrevistadas. No entanto, todas as trabalhadoras evidenciaram diagnósticos realizados por médicos ou autodenominados. Dafne, inclusive, criou seu diagnóstico de “bico de arara” possivelmente como uma maneira jocosa de relatar e lidar com a convivência com as dores.

Tendo em vista as estratégias individuais de enfrentamento da dor no e pela produtividade do trabalho, é fundamental observar a ausência, nas narrativas das entrevistadas, de menção às linhas de cuidado com que poderiam ou deveriam contar, para além da medicalização. Com base no que ressaltaram Gomez, Vasconcellos e Machado (2018Gomez, C. M., Vasconcellos, L. C. F., & Machado, J. M. H. (2018). Saúde do trabalhador: Aspectos históricos, avanços e desafios no Sistema Único de Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 23(6), 1963-1970. https://doi.org/10.1590/1413-81232018236.04922018
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), no âmbito da saúde coletiva, pode-se questionar o viés social do trabalho e o alcance de ações que envolvem a Saúde do Trabalhador (ST), institucionalizada pelo SUS no sentido da promoção, prevenção e vigilância em saúde, as quais requerem a participação do Estado por meio de políticas que garantam o direito constitucional à saúde. Pelo registrado no decorrer da pesquisa, observa-se certa responsabilização da trabalhadora e individualização do processo de adoecimento.

Nesse sentido, Zanello e Costa e Silva (2012Zanello, V., & Costa e Silva, R. M. (2012). Saúde mental, gênero e violência estrutural. Revista Bioética, 20(2), 267-279.) demonstram que o sofrimento é objetificado, por profissionais da saúde, ao ser compreendido como uma doença, aproximado à sintomatologia física do adoecer, àquilo da ordem do sensitivo. Então, a subjetividade do sofrimento é reduzida e, de certa forma, anulada pela disponibilização e adesão a um diagnóstico sindrômico individualizante, como prevê o modelo biomédico de saberes no campo psi.

Como pontuado, patologias relacionadas ao trabalho existem em larga escala e denotam a importância de estudos que se propõem a levantar índices desse adoecimento. A questão defendida no estudo e evidenciada pelas narrativas das trabalhadoras entrevistadas é que cabe à psicologia se ater ao como do adoecimento, àquilo que há de subjetivo no processo e, sobretudo, aos modos de subjetivação nesses espaços de trabalho de/para mulheres, empreitada possível de ser realizada por uma psicologia que incorpore os estudos de gênero.

Considerações finais

A partir das narrativas, ilustrou-se a divisão sexual do trabalho na indústria do vestuário em Criciúma, Santa Catarina. No âmbito do trabalho produtivo, as mulheres são maioria na constituição da força de trabalho nas indústrias do setor do vestuário, mas apenas algumas trabalhadoras conseguem ascender a cargos superiores ou de chefia, caracterizados como masculinos e ocupados por homens. No que diz respeito ao contexto do trabalho doméstico e de cuidado, ficou explícito que o que é da ordem do reprodutivo continua como responsabilidade das mulheres.

As narrativas foram ordenadas de modo aleatório, evidenciando as diferenças de cargos e as particularidades da vivência social do adoecimento na indústria do vestuário. No entanto, mostraram também aspectos comuns nos processos de adoecimento das trabalhadoras, marcados pela divisão sexual do trabalho como uma construção das desigualdades de gênero.

A pesquisa narrativa foi utilizada seguindo o rigor metodológico requerido pela escrita acadêmica, pois possibilita que poucas entrevistas evidenciem o que há de subjetividade - o que pode se perder ao apurar grandes amostras. Dessa forma, reitera-se a importância do investimento na perspectiva de pesquisa feminista e da análise de gênero para potencializar o debate sobre os processos de adoecimento de trabalhadoras no campo da psicologia social do trabalho. A maior das dificuldades da pesquisa foi, inclusive, encontrar trabalhadoras que desejassem participar do estudo. Compreende-se, desse modo, a complexidade que existe no ato de narrar a si.

O estudo não se limitou à análise de quadros patológicos relacionados ao trabalho, mas do adoecimento enquanto processo também ocasionado pelo(s) trabalho(s). Não apenas as dores pelo trabalho repetitivo no contexto do vestuário emergiram das narrativas. Também vieram à tona as dores no braço sentidas por Joana por ela segurar o filho, que dorme mamando, durante a noite toda; ou o fato de Nísia ter sido “possuída pela limpeza” durante muito tempo de sua vida; ou o fato de Magda ter aceitado a mudança na linha de produção para não deixar a encarregada insatisfeita; ou o fato de Dafne precisar trabalhar “48 horas por dia” para conseguir entregar o pedido às marcas.

Na perspectiva analítica da psicologia social do trabalho, entendeu-se o adoecimento enquanto um processo e o contexto de trabalho, como uma de suas variadas facetas. A postura feminista de pesquisa propôs expandir a concepção materialista de trabalho restrita à produção, considerando as funções feminizadas do âmbito doméstico como trabalho e, por sua vez, como determinantes do processo de adoecimento.

As mulheres entrevistadas, no contato inicial de apresentação e de convite para participar da pesquisa, reconheceram a ocorrência de adoecimento relacionado ao trabalho, mas, paradoxalmente, nas entrevistas, destacou-se o duplo aspecto do trabalho. Por um lado, a dor, para essas mulheres, que compreendem o trabalho de costura como um trabalho de/ para mulheres, tornou-se corriqueira nos moldes da produção capitalista e banalizada em seu reconhecimento, pois trabalhar é condição de sobrevivência, de independência. Por outro, o sentido do trabalho foi evidenciado enquanto projeto de emancipação e independência, além do aspecto financeiro e das relações conjugais, atribuindo o sentido de que o adoecimento é o preço que se paga pela escolha de trabalhar, uma vez que o trabalho no vestuário aparece como a única e/ou a melhor alternativa.

Por fim, considera-se que a pesquisa atualizou alguns estudos realizados em outros contextos na região, evidenciando a importância da interface com a psicologia social do trabalho e a abordagem feminista de pesquisa. Os resultados apontam, ainda, a possibilidade de novos estudos sobre a profissionalização e qualificação pelo processo de trabalho na indústria do vestuário e sobre os processos de subjetivação de trabalhadoras nessa área. O estudo pode contribuir para o reconhecimento desse setor para a região e, consequentemente, para pautar maior valorização e melhores condições de trabalho para essas mulheres, bem como atualizar o debate sobre a divisão sexual do trabalho na região.

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    Agradecimentos: Agradecemos à Universidade do Extremo Sul Catarinense (Unesc) e ao curso de Psicologia da Unesc.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    04 Fev 2019
  • Aceito
    28 Jul 2020
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