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Violência Obstétrica e Trauma no Parto: O Relato das Mães

Obstetric Violence and Birth Trauma: The Mothers’ Report

Violencia Obstétrica y Trauma en el Parto: Relatos de Madres

Resumo

O presente trabalho é parte de pesquisa mais ampla sobre experiências de pais e mães acerca do parto, a partir de um estudo de caso coletivo no qual foram analisados 30 relatos de parto, publicados em blogs pessoais sobre experiências de gestação, parto e parentalidade, dos quais 15 foram escritos por mulheres e 15, por homens. O objetivo deste estudo foi investigar a experiência denominada violência obstétrica no relato de mães. Assim, nele foram analisados os relatos de cinco mulheres, as únicas que fizeram referência a tal fenômeno. Os resultados apontaram para a falta de suporte do ambiente como um fator constitutivo da experiência de violência obstétrica, e para a escrita dos relatos como recurso de elaboração dessa experiência traumática. Concluímos que procedimentos médicos como a episiotomia, a anestesia e a cesariana, quando realizados de forma rotineira, sem compartilhamento de decisões e sem amparo psíquico, constituem formas de ritualização para manter inconsciente a representação sexual do parto. Tais formas de ritualização conduzem à iatrogenia no parto, causando prejuízos psíquicos à saúde materno-infantil.

Palavras-chave:
Parto; Violência Obstétrica; Trauma; Maternidade; Saúde Materno-infantil

Abstract

This paper is part of a broader research on parents’ experiences of childbirth conducted by means of a collective case study that analyzed 30 childbirth reports - 15 written by women and 15 by men - published in personal blogs about gestation, childbirth, and parenthood experiences. This study aimed to investigate the experience of the so-called “obstetric violence” based on the reports of five mothers - the only ones whose reports referred to this phenomenon. The results show that the lack of support is a constitutive factor of the experience of obstetric violence, and that mothers dwelled on writing reports as a means to elaborate this traumatic experience. When routinely performed and without shared decision-making or psychological support, medical procedures such as episiotomy, anesthesia, and cesarean section represent a form of ritualization to keep the sexual representation of childbirth unconscious. Such ritualization leads to iatrogenesis in childbirth, harming the mother-child mental health.

Keywords:
Childbirth; Obstetric Violence; Trauma; Motherhood; Mother-child Health

Resumen

El presente trabajo es parte de una investigación más amplia sobre las experiencias de padres y madres acerca del parto, tomando como punto de partida un estudio de caso colectivo, en el cual se analizaron 30 relatos de partos, publicados en blogs personales sobre experiencias de la gestación, el parto y la parentalidad, siendo 15 escritos por mujeres y 15 por hombres. El objetivo específico de este estudio fue investigar la experiencia de la llamada “violencia obstétrica” en el relato de madres. Para ello, se analizaron los relatos de cinco mujeres, las únicas que hicieron referencia a tal fenómeno. Los resultados apuntan a una falta de soporte del ambiente como un factor de la experiencia de violencia obstétrica y motivador para la escrita de los relatos. Se concluye que los procedimientos médicos como la episiotomía, la anestesia y la cesárea, cuando realizados de forma rutinera sin el intercambio de decisiones y el amparo psíquico, constituyen una forma de ritualización para mantener inconsciente la representación sexual del parto. Tal forma de ritualización implica la iatrogenia en el parto, causando daños psíquicos a la salud materno-infantil.

Palabras clave:
Parto; Violencia Obstétrica; Trauma; Maternidad; Salud Materno-infantil

Introdução

O parto, por sua natureza, não é um evento simples. Por envolver aspectos psicológicos, físicos, sociais, econômicos e culturais, é considerado um fenômeno complexo, com potencial para mobilizar sentimentos contraditórios como ansiedade, insegurança, medo, estresse, alegria, excitação e expectativa. Segundo Donelli e Lopes (2013Donelli, T. M. S., & Lopes, R. C. S. (2013). Descortinando a vivência emocional do parto através do Método Bick. Psico-USF, 18(2), 289-298. https://doi.org/10.1590/S1413-82712013000200012
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
), o parto é um evento potencialmente desorganizador, tanto para as parturientes, que se encontram em estado de vulnerabilidade psíquica, como para quem o assiste.

A gestação e o nascimento ocorrem em um corpo feminino marcado pelas experiências sexuais infantis, de forma que estão inscritas nesse corpo as fantasias que acompanharam tais experiências de prazer autoerótico. Segundo a teoria psicanalítica, todas essas representações do passado emergem durante a gravidez e o trabalho de parto como a última etapa de um percurso de amadurecimento psíquico marcado pelo sexual, que tem seu começo na mais tenra infância (Bydlowski, 2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.).

Ao mesmo tempo em que revive a dor de ter se separado de sua mãe, a mulher inconscientemente carrega a culpa por a ter invejado e rivalizado com ela no período edípico, e por ter agora concretizado a desejada gestação. A mulher grávida se depara com o sentimento de ter roubado o bebê do interior de sua própria mãe, o que pode provocar culpa ao longo da gestação (Winnicott, 1957/1975Winnicott, D. W. (1975). A criança e o sexo. In D. W. Winnicott, A criança e o seu mundo (pp. 166-182). Zahar. Trabalho original publicado em 1957).

Todos os nascimentos colocam em cena as representações de incesto e assassinato do filho, mas geralmente essas representações se mantêm reprimidas. Contudo, o temor inconsciente da vingança materna se traduz como medo de ter um filho morto ou medo de morrer no parto. Nesse sentido, o medo de parir, que muitas vezes resulta em demanda de anestesia ou em cesarianas, está relacionado aos interditos sexuais do período edípico que afluem para a consciência (Bydlowski, 2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.).

A dor do parto mascara o caráter sexual do evento, o que contribui para a organização de defesas contra as representações incestuosas. Ao mesmo tempo, nos momentos de dor no período expulsivo, a angústia provocada pelo afluxo à consciência de representações geralmente mantidas no inconsciente pode estar associada a imagens tão invasivas que são capazes de superar as defesas do ego. Algumas mulheres têm o impulso ou o desejo de fugir diante de tamanha angústia, e muitas maternidades têm como prática amarrar as parturientes ou exercer sobre elas algum tipo de contenção corporal (Bydlowski, 1997Bydlowski, M. (1997). La dette de vie : Itinéraire psychanalytique de la maternité. Presses Universitaires de France., 2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.).

Estão presentes no parto ansiedades de esvaziamento, perda, castração, punição pela sexualidade e exposição ao desconhecido (Soifer, 1980Soifer, R. (1980). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Artes Médicas.), além das angústias de aniquilamento e de separação (Granato & Aiello-Vaisberg, 2009Granato, T. M. M., & Aiello-Vaisberg, T. M. J. (2009). Maternidade e colapso: Consultas terapêuticas na gestação e pós-parto. Paideia, 19(44), 395-401. https://doi.org/10.1590/S0103-863X2009000300014
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
). Como resultado de tais vivências, a parturiente experimenta um estado de confusão e perda de identidade (Winnicott, 1958/2000bWinnicott, D. W. (2000b). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas (pp. 254-276). Imago. Trabalho original publicado em 1958), atravessado pelas equiparações sujeito-objeto e fezes-pênis-bebê (Soifer, 1980Soifer, R. (1980). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Artes Médicas.).

A anestesia e a cesariana tendem a atenuar essas manifestações emocionais violentas que o parto desperta, assegurando com maior facilidade as funções defensivas contra as representações sexuais do nascimento. Contudo, Bydlowski (2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.) ressalta que esses tipos de parto são marcados por uma irrealidade que produz sensação de ausência na parturiente e de ser estrangeiro no bebê. Winnicott (1988/1990)Winnicott, D. W. (1990). A experiência do nascimento. In D. W. Winnicott, Natureza humana (pp. 165-172). Imago. Trabalho original publicado em 1988 defende a ideia de que bebês nascidos por cesarianas, ou cujas mães receberam alta dose de anestesia no momento do parto, teriam perdido alguma coisa, por terem sido privados da experiência comum do nascimento. Segundo o autor, na experiência comum, o bebê é ativo: quando está pronto para nascer, sua experiência de “estar-vivo” promove impulsos em direção à mudança, o que não ocorre nos partos com intervenções externas.

A crise emocional suscitada pelo parto faz surgir na parturiente a memória de um casal que lhe é indiferente, pois evoca a representação edípica do lugar de terceiro excluído (Bydlowski, 2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.). Muitas vezes, o(a) médico(a) inconscientemente ocupa o lugar da mãe para a mulher que está parindo, uma vez que a parturiente se encontra identificada com o bebê. A mulher fica, então, muito sensível aos cuidados que recebe de quem se encarrega de cuidar dela e, em virtude das fantasias edípicas infantis, identifica o(a) cuidador(a) com uma figura materna ou muito hostil ou muito amistosa, sendo comum que se sinta perseguida pelo(a) enfermeiro(a) ou pelo(a) médico(a) que a assiste (Winnicott, 1957/1975Winnicott, D. W. (1975). A criança e o sexo. In D. W. Winnicott, A criança e o seu mundo (pp. 166-182). Zahar. Trabalho original publicado em 1957), ou que se submeta a eles(as) (Ávila, 1998Ávila, A. A. (1998). Afinal, quem vai parir? In A. A. Ávila, Socorro, Doutor! Atrás da barriga tem gente! (pp. 123-135). Atheneu.).

Nesse sentido, mesmo quando as condutas médicas diferem de sua intuição e desejo, é comum testemunharmos a anuência das gestantes às orientações profissionais, provavelmente como forma de expiar a culpa edípica. Dessa forma, é imprescindível que os profissionais de saúde acolham a vulnerabilidade da mãe e não tentem impor sua vontade a ela. Quando o profissional atua de maneira cuidadosa e demonstra compreensão e apoio, a mulher pode mais facilmente desfazer sua identificação com a criança que fez a mãe sofrer no nascimento ou que desejou sua morte no período edípico e se tornar uma mãe ativa, que já não teme mais a separação do filho, uma vez que se sente capaz de protegê-lo como está sendo protegida por aqueles que assistem o parto (Ávila, 1998Ávila, A. A. (1998). Afinal, quem vai parir? In A. A. Ávila, Socorro, Doutor! Atrás da barriga tem gente! (pp. 123-135). Atheneu.).

De acordo com Simpson e Catling (2016Simpson, M., & Catling, C. (2016). Understanding psychological traumatic birth experiences: A literature review. Women and Birth, 29(3), 203-207. https://doi.org/10.1016/j.wombi.2015.10.009
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), mulheres que já apresentam algum distúrbio emocional têm maior probabilidade de vivenciar o parto de forma traumática, o que aponta para a necessidade de um acompanhamento psicológico no pré-natal. Mulheres com histórias traumáticas são especialmente vulneráveis aos efeitos de baixo nível de suporte durante o parto, principalmente nos casos em que há muitas intervenções obstétricas.

Segundo Winnicott (1989/1994)Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In D. W. Winnicott, Explorações psicanalíticas (pp. 195-202). Artes Médicas. Trabalho original publicado em 1989, um evento se torna traumático quando as defesas organizadas não são eficazes, o que leva à emergência de um estado confusional e, posteriormente, a uma reorganização das defesas, fazendo o sujeito se valer de mecanismos mais primitivos do que os que lhe eram suficientemente bons antes do evento. Nesse sentido, o parto se torna ou não traumático para a mãe a depender de como é vivenciado por ela, e tal vivência está diretamente relacionada à forma como o ambiente se apresenta para ela.

Experiências traumáticas de parto, de acordo com o referencial winnicottiano, seriam marcadas por intrusões ambientais maiores do que o suportável pelo bebê, que seria convocado pelo ambiente a reagir diante dessas intrusões, afetando sua continuidade de ser (Winnicott, 1958/2000bWinnicott, D. W. (2000b). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas (pp. 254-276). Imago. Trabalho original publicado em 1958). Para a mãe, a experiência traumática estaria relacionada às mesmas intrusões ambientais, que demandariam reorganização de suas defesas, levando-a a se utilizar de defesas mais primitivas diante do ambiente demasiadamente intrusivo. Uma vez que o final da gestação e o parto promovem na mulher um estado muito peculiar de retraimento, no qual se encontra em profunda identificação com seu bebê, ao vivenciar experiências demasiadamente intrusivas, a parturiente está completamente vulnerável. Winnicott (1958/2000a)Winnicott, D. W. (2000a). A preocupação materna primária. In D. W. Winnicott (2000), Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas (pp. 399-405). Imago. Trabalho original publicado em 1958 denominou esse estado particular de retraimento materno como preocupação materna primária e ressaltou sua importância para o desenvolvimento humano inicial. Conforme apontam as pesquisas de Blainey e Slade (2015Blainey, S. H., & Slade, P. (2015). Exploring the process of writing about and sharing traumatic birth experiences online. British Journal of Health Psychology, 20(2), 243-260. https://doi.org/10.1111/bjhp.12093
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) e de Simpson e Catling (2016Simpson, M., & Catling, C. (2016). Understanding psychological traumatic birth experiences: A literature review. Women and Birth, 29(3), 203-207. https://doi.org/10.1016/j.wombi.2015.10.009
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), partos vivenciados como traumáticos pelas parturientes podem acarretar dificuldades no estabelecimento do vínculo mãe-bebê. Nesse sentido, podemos supor que mulheres que passaram por experiências traumáticas de parto, nas quais se sentiram violentadas pela equipe responsável por lhe prover suporte em um momento de vulnerabilidade, tenham mais dificuldade em continuar se entregando a esse estado de identificação profunda com o bebê.

A busca um sentido é um processo significativo para quem vivenciou alguma experiência traumática. Escrever sobre as emoções vivenciadas em eventos traumáticos contribui para uma reorganização psíquica, e compartilhar as histórias produz a sensação de, além de estar elaborando internamente a própria vivência, estar ajudando outras pessoas que possam ter passado ou vir a passar pela mesma experiência. Em pesquisa sobre a experiência de escrever relatos de partos traumáticos e compartilhá-los on-line, Blainey e Slade (2015Blainey, S. H., & Slade, P. (2015). Exploring the process of writing about and sharing traumatic birth experiences online. British Journal of Health Psychology, 20(2), 243-260. https://doi.org/10.1111/bjhp.12093
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) constataram que poder ajudar outras pessoas é uma forma de atribuir significado positivo à experiência traumática. O empoderamento que a escrita proporciona apareceu no relato das mulheres por eles entrevistadas, que enfatizaram a importância de terem voz sobre uma experiência na qual se sentiram silenciadas. Algumas mulheres relataram que escrever era um caminho mais viável para elas do que falar sobre suas experiências de parto, apontando desejo de elaboração por meio da escrita.

Por ser uma experiência subjetiva, o trauma no parto é difícil de ser definido por terceiros. Contudo, de 20% a 48% das mulheres têm reportado experiências traumáticas de parto no mundo todo, e os termos birth rape (Simpson & Catling, 2016Simpson, M., & Catling, C. (2016). Understanding psychological traumatic birth experiences: A literature review. Women and Birth, 29(3), 203-207. https://doi.org/10.1016/j.wombi.2015.10.009
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) e obstetric violence (Diaz-Tello, 2016Diaz-Tello, F. (2016). Invisible wounds: obstetric violence in the United States. Reproductive Health Matters, 24(47), 56-64. https://doi.org/10.1016/j.rhm.2016.04.004
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; Sadler et al., 2016Sadler, M., Santos, M. J. D. S., Ruiz-Berdún, D., Rojas, G. L., Skoko, E., Gillen, P., & Clausen, J. A. (2016). Moving beyond disrespect and abuse: addressing the structural dimensions of obstetric violence. Reproductive Health Matters , 24(47), 47-55. https://doi.org/10.1016/j.rhm.2016.04.002
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) têm sido utilizados em diversos países para designar tais experiências. Altas taxas de estresse pós-traumático têm sido notificadas, além de outras repercussões na saúde mental materna, na vinculação mãe-bebê e no desenvolvimento da criança (Simpson & Catling, 2016Simpson, M., & Catling, C. (2016). Understanding psychological traumatic birth experiences: A literature review. Women and Birth, 29(3), 203-207. https://doi.org/10.1016/j.wombi.2015.10.009
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). Além disso, experiências traumáticas de parto podem ter consequências na percepção materna sobre o filho, no vínculo conjugal, na amamentação ou no desejo por outros filhos (Blainey & Slade, 2015Blainey, S. H., & Slade, P. (2015). Exploring the process of writing about and sharing traumatic birth experiences online. British Journal of Health Psychology, 20(2), 243-260. https://doi.org/10.1111/bjhp.12093
https://doi.org/https://doi.org/10.1111/...
). Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) publicou a declaração Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde (OMS, 2014Organização Mundial da Saúde. (2014). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf
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), que atesta que mulheres do mundo todo têm sido vítimas de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto. Esses maus-tratos consistem em violência física; humilhação e abusos verbais; procedimentos médicos coercitivos ou não consentidos; violações da privacidade; recusa em administrar analgésicos; recusa de internação nas instituições de saúde, dentre outros.

De acordo com tal declaração, adolescentes, mulheres com HIV, mulheres solteiras, mulheres de baixo nível socioeconômico, mulheres de minorias étnicas ou imigrantes são mais propensas a vivenciarem situações de abuso, desrespeito e/ou maus-tratos. A OMS destaca que esses problemas ocorrem também ao longo da gestação, mas ressalta a importância da atenção ao parto e ao pós-parto por serem momentos em que as mulheres se encontram especialmente vulneráveis, aumentando a probabilidade de consequências adversas diretas para a mãe e a criança (OMS, 2014Organização Mundial da Saúde. (2014). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf
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).

Em pesquisa sobre violência obstétrica, Zanardo, Uribe, Nadal e Habigzang (2017Zanardo, G. L. P, Uribe, M. C., Nadal, A. H. R., & Habigzang, L. F. (2017). Violência obstétrica no Brasil: Uma revisão narrativa. Psicologia & Sociedade, 29, 1-11. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2017v29155043
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) constataram que não há consenso acerca do termo no Brasil. Segundo as autoras, os estudos apontam para tratamento hostil, desrespeito, negligência, violência sexual, violência física, realização de procedimentos que não sejam baseados em evidências científicas, dentre outros.

Nos últimos anos, muitas definições de violência obstétrica têm sido cunhadas. Na América Latina, a Venezuela foi o primeiro país a aprovar, em 2007, uma lei (Ley n. 38.668, 2007Ley n. 38.668. (2007, 23 de abril). Ley orgánica sobre el derecho de las mujeres a una vida libre de violência. Gaceta Oficial de la Asamblea Nacional de la República Bolivariana de Venezuela. https://bit.ly/2SEhoja
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) que abarca o tema, garantindo que seja penalizada qualquer conduta profissional considerada desumana e que leve à apropriação indevida do corpo e dos processos reprodutivos das mulheres, promovendo a perda de autonomia. O texto também aponta para o impacto dos processos de medicalização e patologização do parto na autonomia da mulher.

Na Argentina, não há legislação que cite especificamente o termo violência obstétrica. Contudo, a Lei 25.929 de 2004Ley 25.929. (2004, 17 de setembro). Establécese que las obras sociales regidas por leyes nacionales y las entidades de medicina prepaga deberán brindar obligatoriamente determinadas prestaciones relacionadas con el embarazo, el trabajo de parto, el parto y el postparto, incorporándose las mismas al Programa Médico Obligatorio. Derechos de los padres y de la persona recién nacida. Senado y Cámara de Diputados de la Nación Argentina reunidos en Congreso. Lei sancionada em 25 de agosto de 2004. https://bit.ly/3h7Us5q
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, que versa sobre o parto humanizado, também protege as mulheres da violência, uma vez que institui: o direito à informação sobre as intervenções médicas possíveis, para que a mulher possa optar quando existirem alternativas; o direito de ser tratada com respeito, considerando sua cultura e religião; o direito ao acompanhante; o direito ao parto natural, respeitando os tempos biológico e psicológico, evitando práticas invasivas e a indução do parto através de medicação, exceto quando extremamente necessário; dentre outros. A lei também assegura direitos ao recém-nascido - como o de ser tratado com respeito e o direito à internação conjunta com os pais - e ao pai - como o de ter acesso continuado ao filho, desde que a situação clínica o permita (Ley 25.929, 2004Ley 25.929. (2004, 17 de setembro). Establécese que las obras sociales regidas por leyes nacionales y las entidades de medicina prepaga deberán brindar obligatoriamente determinadas prestaciones relacionadas con el embarazo, el trabajo de parto, el parto y el postparto, incorporándose las mismas al Programa Médico Obligatorio. Derechos de los padres y de la persona recién nacida. Senado y Cámara de Diputados de la Nación Argentina reunidos en Congreso. Lei sancionada em 25 de agosto de 2004. https://bit.ly/3h7Us5q
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).

No Brasil, apesar de não existir legislação que criminalize a violência obstétrica, a prática infringe o Programa de Humanização no Pré-natal e Nascimento, que instituiu que “toda gestante tem direito a acesso a atendimento digno e de qualidade no decorrer da gestação, parto e puerpério” e que “toda gestante tem direito à assistência ao parto e ao puerpério e que esta seja realizada de forma humanizada e segura” (Portaria n. 569, 2000Portaria n. 569. (2000, 8 de junho). Diário Oficial da União . http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2000/prt0569_01_06_2000_rep.html
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis...
). Além disso, a violência obstétrica muitas vezes consiste no impedimento de um acompanhante durante o parto e o pós-parto imediato, o que infringe o direito garantido pela Lei n. 11.108 (2005)Lei n. 11.108. (2005, 8 de abril). Garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. https://bit.ly/2Uf8qt9
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. A violência obstétrica infringe, ainda, vários tratados internacionais que regulam os direitos humanos e os direitos das mulheres, como a Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher (Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 1994Comissão Interamericana de Direitos Humanos. (1994). Convenção Interamericana para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, “Convenção de Belém do Pará”. http://www.cidh.oas.org/basicos/portugues/m.Belem.do.Para.htm
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). De acordo com o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP), uma das formas mais recorrentes de violência obstétrica no Brasil é a realização de cesarianas sem indicação clínica. Nesses casos, são recorrentes as justificativas infundadas. O parto em posição de litotomia, com restrição de movimentos, e a estratégia de empurrar o bebê para acelerar o parto, dentre outros procedimentos, também são formas de violência obstétrica que contribuem para a realização de mais partos cirúrgicos no país (Coren-SP, 2014Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo. (2014). Direito à dignidade: Moralidade, preconceito e conveniências para profissionais e instituições de saúde levam o sofrimento para grávidas, parturientes e puérperas em todo o Brasil [Artigo de revista]. Enfermagem Revista, 26-29. https://portal.coren-sp.gov.br/sites/default/files/26_violencia_obstetrica.pdf
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). No Brasil, um quarto das mulheres relata ter passado por intervenções desnecessárias no parto, sofrido maus tratos e ter sido privada de uma assistência pautada por boas práticas, como a possibilidade de se movimentar e se alimentar durante o processo e de ter um acompanhante presente (Tesser, Knobel, Andrezzo, & Diniz, 2015Tesser, C. D., Knobel, R., Andrezzo, H. F. A., & Diniz, S. D. (2015). Violência obstétrica e prevenção quaternária: O que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 10(35), 1-12. https://doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013
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). A pesquisa “Nascer no Brasil”, realizada pelo Ministério da Saúde (MS), apresentou dados significativos sobre o excesso de intervenções realizadas nos partos brasileiros. O uso de ocitocina e a realização da amniotomia (ambas técnicas para acelerar o trabalho de parto) ocorreu em 40% das entrevistadas pela pesquisa; a posição de litotomia ocorreu em 92% dos partos; 56% das mulheres foram submetidas a episiotomia; 37% receberam a manobra de Kristeller. Somente 25,2% das mulheres que entraram em trabalho de parto puderam se alimentar e 44,3% puderam se movimentar durante o trabalho de parto. Apenas 5,6% das mulheres entrevistadas tiveram partos naturais, sem nenhuma intervenção (Leal et al., 2014Leal, M. C., Pereira, A. P. E., Domingues, R. M. S. M., Filha, M. M. T., Dias, M. A. B., Nakamura-Pereira, M., Bastos, M. H., & Gama, S. G. N. (2014). Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cadernos de Saúde Pública, 30, S17-S47. https://doi.org/10.1590/0102-311X00151513
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).

A violência emocional também é muito presente na assistência obstétrica brasileira. Em 2012, a Rede Parto do Princípio entregou um dossiê intitulado “Violência Obstétrica: ‘Parirás com dor’” à Comissão Parlamentar Mista da Violência Contra as Mulheres. Logo no início do documento, constam algumas frases relatadas por diversas mulheres que pariram em várias cidades do Brasil e expressam a violência emocional que sofreram por parte dos profissionais durante seus partos.

“Na hora que você estava fazendo, você não tava gritando desse jeito, né?”;

“Não chora não, porque ano que vem você tá aqui de novo.”;

“Se você continuar com essa frescura, eu não vou te atender.”;

“Na hora de fazer, você gostou, né?”;

“Cala a boca! Fica quieta, senão vou te furar todinha.” (Rede Parto do Princípio, 2012Rede Parto do Princípio. (2012). Violência Obstétrica: “Parirás com dor” [Dossiê]. https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC%20VCM%20367.pdf
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).

Em pesquisa sobre a percepção das parturientes acerca da violência obstétrica, Oliveira e Merces (2017Oliveira, M. C., & Merces, M. C. (2017). Percepções sobre violências obstétricas na ótica de puérperas. Revista de Enfermagem UFPE on-line , 11(6), 2483-2489.) constataram que as mulheres se calam diante da dor a fim de se protegerem da violência institucional, uma vez que há o pressuposto de que se a parturiente permanecer quieta, será mais bem assistida. Quase a totalidade dos partos ocorridos no país são em hospitais, geralmente assistidos por médicos obstetras. A maioria das mulheres brasileiras, mesmo diante de um cenário cultural que contribui para a disseminação do paradigma tecnocrático de parto, inicialmente não desejam realizar uma cesariana. O procedimento acaba ocorrendo, na maioria das vezes, devido a informações transmitidas pelos profissionais de saúde (Tesser et al., 2015Tesser, C. D., Knobel, R., Andrezzo, H. F. A., & Diniz, S. D. (2015). Violência obstétrica e prevenção quaternária: O que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 10(35), 1-12. https://doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013
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).

De acordo com Tesser et al. (2015Tesser, C. D., Knobel, R., Andrezzo, H. F. A., & Diniz, S. D. (2015). Violência obstétrica e prevenção quaternária: O que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 10(35), 1-12. https://doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013
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), apesar de a cobertura pré-natal ser elevada no Brasil (98,7%), apenas 40% das mulheres relatam ter sido orientadas sobre boas práticas para o trabalho de parto. O usual é que as instruções gravitem em torno dos sinais de risco no parto. Essa conduta profissional expressa identificação com valores tecnocráticos que focam nos processos de doença, e não na promoção de saúde. Os autores ressaltam que a formação médica tem grande impacto nessa questão, uma vez que o treinamento para a assistência ao parto tem priorizado intervenções cirúrgicas e deixado de lado o manejo clínico do parto.

Segundo Leal et al. (2014Leal, M. C., Pereira, A. P. E., Domingues, R. M. S. M., Filha, M. M. T., Dias, M. A. B., Nakamura-Pereira, M., Bastos, M. H., & Gama, S. G. N. (2014). Intervenções obstétricas durante o trabalho de parto e parto em mulheres brasileiras de risco habitual. Cadernos de Saúde Pública, 30, S17-S47. https://doi.org/10.1590/0102-311X00151513
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), um dos aspectos que chamam mais atenção nas práticas obstétricas brasileiras é a aceleração do tempo do trabalho de parto, com consequente desrespeito à autonomia das mulheres no processo de parturição. A pressa em provocar o nascimento das crianças justifica o alto índice de intervenções, inclusive a enorme taxa de cesarianas.

Com o intuito de contribuir para a mudança desse cenário intervencionista e propulsor de violência, Tesser et al. (2015Tesser, C. D., Knobel, R., Andrezzo, H. F. A., & Diniz, S. D. (2015). Violência obstétrica e prevenção quaternária: O que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 10(35), 1-12. https://doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013
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) atentam para a importância da instrumentalização dos médicos de família para que orientem as gestantes e suas famílias sobre os benefícios do parto natural e as boas práticas que o facilitam. Com informação sobre os processos de saúde e não só de doença, espera-se que haja um empoderamento dos usuários do sistema de saúde os leve a exigir uma assistência obstétrica segura e de qualidade. Nesse sentido, os autores ressaltam que, para enfrentar a violência obstétrica no país, é preciso que os profissionais se impliquem nesse processo e estejam dispostos a ressignificar sua compreensão biomédica acerca da gestação e da parturição.

Tesser et al. (2015Tesser, C. D., Knobel, R., Andrezzo, H. F. A., & Diniz, S. D. (2015). Violência obstétrica e prevenção quaternária: O que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 10(35), 1-12. https://doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013
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) atentam também para o plano de parto como um recurso para contornar a violência obstétrica no Brasil. Segundo os autores, esse ainda é um recurso subutilizado no país, mas de extrema importância pelo fato de convidar a mulher a refletir, junto com a equipe que a assiste, sobre seus direitos durante o parto e suas necessidades, valores e sentimentos acerca do processo de parturição. A elaboração do plano de parto possibilita maior apropriação do processo de parto pela mulher e contribui para o exercício de uma comunicação eficaz entre ela e os profissionais de saúde.

Entendendo o parto como um evento complexo que evoca representações psíquicas infantis, o presente estudo tem como objetivo investigar a experiência denominada violência obstétrica nos relatos de mães. Este trabalho faz parte de uma investigação mais ampla que pretendeu pesquisar as experiências subjetivas de homens e mulheres acerca do parto no Brasil.

Método

Foi realizada uma pesquisa qualitativa, por meio de estudo de caso coletivo (Stake, 2016Stake, R. E. (2016). A arte da investigação com estudos de caso. Fundação Calouste Gulbenkian.), com coleta de dados na internet em blogs pessoais. Foram selecionados 30 relatos de parto, dos quais 15 foram escritos por mulheres e 15 por homens. Os critérios de seleção consistiram em: estarem publicados em blogs pessoais, elaborados por pais e mães que desejaram compartilhar on-line suas experiências referentes à gestação, ao parto e à parentalidade. Outro critério estabelecido foi que não fossem meramente descritivos, mas transmitissem a percepção e os sentimentos singulares de cada sujeito no momento do parto. Foram selecionados relatos de parto natural, normal e cesárea, com o intuito de potencializar a aprendizagem sobre a experiência de parto. Contudo, foram excluídos partos gemelares e nascimentos de crianças com qualquer tipo de síndrome, para que as especificidades não alargassem demasiadamente as experiências analisadas. O objetivo dessa seleção foi assegurar a variedade sem, contudo, enfatizar as particularidades.

Foram selecionados somente relatos postados no período compreendido entre 2010 e 2017 e publicados em blogs que tivessem o intuito de compartilhar experiências, sendo excluídos blogs comerciais, por exemplo. Cabe ressaltar que, ao final da pesquisa, alguns deles já tinham saído do ar ou se transformado em blogs com fins comerciais. Todos os partos ocorreram no Brasil e os relatos são oriundos de diferentes localidades do país. Por conta da especificidade da fonte de pesquisa, não foi possível identificar local de residência, idade e classe social dos relatores. Porém, a maioria dos textos selecionados se referia a partos domiciliares ou em hospitais privados, realizados predominantemente em grandes capitais, o que indica a possibilidade de os pais e mães que os escreveram serem oriundos, preponderantemente, das camadas médias da população. Os nomes dos relatores foram mantidos conforme as publicações.

Após a seleção dos relatos, o material foi submetido à agregação categorial (Stake, 2016Stake, R. E. (2016). A arte da investigação com estudos de caso. Fundação Calouste Gulbenkian.), de forma que as oito categorias de análise definidas a posteriori foram: parto tecnocrático: os procedimentos antes dos sujeitos; a função da equipe na construção da experiência de parto; respeito à temporalidade do parto: mãe e bebê no foco; dor de nascimento e medo de morte; violência obstétrica; desinformação e apoio virtual; escolha ou autonomia?; e nascimento a três. Dentre elas, a categoria violência obstétrica, que emergiu exclusivamente dos relatos de cinco mães, foi selecionada para discussão no presente estudo. As demais categorias serão discutidas em outras publicações.

Resultados e discussão

Violência obstétrica

Violência obstétrica é um termo cada vez maisutilizado para designar experiências de parto desrespeitosas e/ou abusivas. Nos relatos analisados, a denúncia da violência obstétrica se fez presente nos discursos de cinco mães: Gisele (cesariana), Gabriela A. (cesariana), Rebeca (parto normal), Karoline (cesariana), e Ana D. (cesariana). Nos relatos paternos, não apareceram experiências de violência durante o parto. Observamos que nos relatos de três dessas mulheres que se sentiram violentadas - Gisele, Gabriela A. e Rebeca -, o acompanhante foi impedido de entrar na sala de parto, o que parece ter potencializado vivências de desamparo. No relato da Ana D., o acompanhante não foi mencionado e, no relato de Karoline, consta que o pai foi chamado para ver o filho depois que ele já tinha nascido, não tendo sido, portanto, uma referência para a parturiente ao longo do parto.

Passei as piores 9 horas da minha vida sozinha naquele hospital, internada sem ninguém ao meu lado… Entrei aos prantos no centro cirúrgico.

Perguntei pelo meu médico e não tive resposta. Eu não conhecia aqueles rostos que estavam me operando… Passei mal a cirurgia inteira. NÃO DEIXARAM meu marido entrar para a cirurgia. (Gisele)

Eu senti frio, medo, vergonha, me senti exposta e abandonada. Não fazia ideia de onde estava o meu marido, não sabia o que ia acontecer comigo e com a Paulinha, não sabia se veria a minha pequena, se sairia de lá com ela… tudo foi tão rápido, exatamente como eu temia, eu sozinha num hospital, longe do meu marido, com uma médica ríspida que não me passava segurança e só aumentava o meu medo (Gabriela A.).

Apesar de a presença de um acompanhante durante o parto ser garantida por lei desde 2005 (Lei n. 11.108, 2005Lei n. 11.108. (2005, 8 de abril). Garante às parturientes o direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único de Saúde - SUS. Diário Oficial da União. https://bit.ly/2Uf8qt9
https://bit.ly/2Uf8qt9...
), muitos hospitais ainda proíbem a entrada, o que contribui para o aumento do medo experimentado por mulheres durante o nascimento de seus filhos (Tesser et al., 2015Tesser, C. D., Knobel, R., Andrezzo, H. F. A., & Diniz, S. D. (2015). Violência obstétrica e prevenção quaternária: O que é e o que fazer. Revista Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, 10(35), 1-12. https://doi.org/10.5712/rbmfc10(35)1013
https://doi.org/https://doi.org/10.5712/...
). Trabalhos como os de Davis-Floyd (2001Davis-Floyd, R. (2001). The technocratic, humanistic, and holistic paradigms of childbirth. International Journal of Gynecology & Obstetrics, 75, S5-S23. https://doi.org/10.1016/S0020-7292(01)00510-0
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), Silva, Barros, Jorge, Melo e Ferreira Junior (2012Silva, R. M., Barros, N. F., Jorge, H. M. F., Melo, L. P. T., & Ferreira Junior, A. R. (2012). Evidências qualitativas sobre o acompanhamento por doulas no trabalho de parto e no parto. Ciência & Saúde Coletiva, 17(10), 2783-2794. https://doi.org/10.1590/S1413-81232012001000026
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) e Andrade, Felix, Souza, Gomes e Boery (2017Andrade, L. O., Felix, E. S. P., Souza, F. S., Gomes, L. O. S., & Boery R. N. S. O. (2017). Práticas dos profissionais de enfermagem diante do parto humanizado. Revista de Enfermagem UFPE on-line, 11(6), 2576-2585.) apontam a importância do acompanhamento de uma pessoa de confiança da parturiente para lhe proporcionar apoio e segurança, o que diminui o risco de complicações durante o parto. Os autores ressaltam que a presença do acompanhante contribui para que o parto seja vivenciado como uma experiência positiva e prazerosa e não se torne traumático. Nesse sentido, é fundamental que a equipe esteja sensibilizada a respeito do tema, garantindo informação e suporte emocional para ambos ao longo do parto.

Sem acompanhante, tendo somente os profissionais como apoio, muitas vezes as mulheres se submetem às recomendações médicas durante o parto. A submissão geralmente se dá por medo, associado à confiança creditada ao saber médico, alimentada pela insegurança em relação à fisiologia do parto que foi cultivada nas últimas décadas.

Inconscientemente, ao mesmo tempo em que há o impulso ou o desejo de fugir diante da angústia edípica revivida no parto, como explicitado por Bydlowski (2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.), é possível que muitas mulheres se submetam aos médicos na tentativa de expiar a culpa edípica, como postulou Ávila (1998Ávila, A. A. (1998). Afinal, quem vai parir? In A. A. Ávila, Socorro, Doutor! Atrás da barriga tem gente! (pp. 123-135). Atheneu.). Nos relatos das mulheres que se sentiram violentadas durante o parto, a submissão à equipe médica apareceu como um dos componentes promotores de sofrimento.

A partir daquele momento, senti como se eu já não estivesse mais lá. Senti um medo, um desespero tão grande, uma angústia, eu nunca me senti tão só quanto naquele dia. É como se eu tivesse entrado no automático, não questionava, não recusava, apenas fazia o que me falavam. Por dentro eu tinha vontade de chorar, gritar, pensei até em fugir de lá, queria pedir uma explicação, um parto natural, pedir pra falar com o meu marido, mas não me senti à vontade pra falar com ninguém da equipe (Gabriela A.).

Assim como as parturientes, os profissionais que assistem o parto também têm suas vivências edípicas atualizadas pelo nascimento, e há de se supor que tais profissionais também precisam encontrar defesas contra as representações sexuais no momento do parto. Contudo, por desconhecerem os aspectos emocionais inerentes ao nascimento e pela frequente ausência de profissionais capacitados para amparar emocionalmente a parturiente, muitas vezes ocorre de a equipe médica se proteger da angústia edípica evocada pelo parto devolvendo, de forma bruta e violenta, os conteúdos nela depositados.

Bydlowski (2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.) ressalta o aspecto fálico do parto, atentando para a potência da mulher que é capaz de gerar a vida e ter um bebê saindo de sua vagina, como um falo emergente. Para quem assiste, tal fato suscita representações edípicas de sua própria castração, o que pode gerar raiva diante da suposta plenitude da parturiente e desencadear reações violentas, invasivas, na tentativa de castrar a potência feminina. Rebeca, por exemplo, narra uma experiência de invasão por parte de um médico similar a um estupro.

. . . senti como se ele tentasse com força enfiar a mão dentro da minha vagina, eu reclamava muito e ouvia uns fora do tipo: “cala a boca, você quis parto normal agora aguenta” (Rebeca).

Eu fui ficando cada vez mais tensa com esse ambiente hostil, quando chegou a minha vez de ser examinada. Após algumas perguntas rápidas, a médica me deu um toque bruto e grosseiro, e anotou na folha que eu deveria subir pra internação (Karoline).

Outra forma de os profissionais de saúde se protegerem das angústias edípicas inerentes ao parto, sendo uma defesa contra as representações sexuais, é realizarem procedimentos técnicos como anestesia, episiotomia ou cesariana. Dessa forma, mascaram o caráter sexual do evento, sendo ativos durante o processo. A episiotomia, descrita por Bydlowski (2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.) como uma forma de castração da potência feminina no parto, apareceu no relato de algumas mães como uma vivência de violência obstétrica.

Sentia uma fome e uma sede absurda, estava tão fraca, a boca totalmente seca, me contorcendo de dor quando senti uma lâmina me rasgando. Imediatamente eu perguntei que porra era aquela, se ele tinha me cortado, porque eu senti uma dor absurda e parecia que era um mega talho da vagina até o ânus, essa era a sensação que eu tive na hora. Ele não respondeu absolutamente nada (Rebeca).

A episiotomia abrevia o momento de maior plenitude feminina, no qual o bebê emerge da vagina da mulher e, por conseguinte, abrevia também o acesso a essa representação de ser potente, não castrado. Logo, a episiotomia está mais a serviço de quem assiste o parto do que do bebê e da parturiente. O procedimento consiste, nesse sentido, em uma forma de castração feminina, que, como há de se imaginar, potencializa a ansiedade de castração já experimentada pela parturiente. Da mesma forma, a cesariana evita o contato com as representações sexuais do parto, desassociando nascimento e vagina e abreviando o processo (Bydlowski, 2000Bydlowski, M. (2000). Tu enfanteras dans la douleur. In M. Bydlowski, Je rêve un enfant : L’expérience intérieure de la maternité (pp. 103-123). Odile Jacob.).

Sofri horrores com uma dor insuportável na barriga devido à manobra de Kristeller durante a cesárea. A minha recuperação da segunda cesárea foi muito pior do que a primeira. Eu me sentia impotente e responsável por aquilo, mas não sabia o porquê (Gisele).

É estranho descrever o que eu senti. Acho que porque eu simplesmente não senti nada, nem física nem emocionalmente. Foi como se eu estivesse em outro lugar, bem longe dali. Levantaram aquele pano, amarraram os meus braços e tudo começou. Fiquei com medo que machucassem a Paulinha, nós estávamos sozinhas e eu nem podia ver o que ia acontecer (Gabriela A.).

Quando Gabriela A. diz que era “como se estivesse em outro lugar, longe dali”, indagamo-nos sobre a possibilidade de, diante de um ambiente hostil, essa parturiente ter precisado se valer de uma defesa primitiva, tal como a dissociação ou o isolamento, para proteger seu psiquismo. Como assinalou Soifer (1980Soifer, R. (1980). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Artes Médicas.), ansiedades e fantasias edípicas são revividas no parto, tais como a ansiedade de castração e a fantasia de punição pela sexualidade. Quando o ambiente reitera tais fantasias, parece ser necessário que a parturiente reorganize suas defesas, muitas vezes ativando defesas de natureza mais primitiva, o que dá origem a experiências traumáticas, como assinalou Winnicott (1989/1994)Winnicott, D. W. (1994). A experiência mãe-bebê de mutualidade. In D. W. Winnicott, Explorações psicanalíticas (pp. 195-202). Artes Médicas. Trabalho original publicado em 1989. Conforme os fragmentos abaixo, Gabriela A. e Karoline aparentam ter experimentado a reiteração da fantasia de punição pela sexualidade, além de terem sofrido efeitos de preconceitos por parte dos profissionais de saúde relacionados à idade, à condição socioeconômica ou à etnia.

A médica fazia comentários desagradáveis pra mim, falando do tamanho da minha barriga que era muito pequena, “isso não é barriga de 37 semanas, seu filho tá desnutrido, mas adolescente é assim mesmo, fica sem comer e nem pensa que pode matar o filho de fome” Me senti muito mal com aqueles comentários, mas não respondi nada… (Gabriela A.).

Quando ela (outra parturiente) finalmente saiu pra sala de pré-parto, a médica relatava à enfermeira, em tom de desdém: “Ai, essa aí com certeza estava drogada. Fedia. Vai sofrer lá em cima, tomara que esteja bem cheio.”. Ela desejava que ela sofresse mais num pré-parto lotado. Na minha frente, logo após, havia uma senhora angolana com o bebê já quase coroando numa cadeira, enquanto a enfermeira lentamente media a sua pressão como se nada estivesse acontecendo. As médicas, de dentro da sala, riam do modo como ela gemia com as dores do parto (Karoline).

A maior tendência de mulheres adolescentes, de etnias estigmatizadas e de nível socioeconômico baixo serem maltratadas, abusadas e/ou desrespeitadas durante o parto se fez presente nos relatos analisados, corroborando o que foi apontado pela OMS (2014)Organização Mundial da Saúde. (2014). Prevenção e eliminação de abusos, desrespeito e maus-tratos durante o parto em instituições de saúde. http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/134588/WHO_RHR_14.23_por.pdf
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Minha mãe tratou logo de me mandar limpar e lixar os pés e limpar possíveis “cascões” do pescoço: não interessava se eu estava com a bolsa rota, o importante era não estar com os pés sujos (prioridades, rs). Parece idiota - e na hora eu achei mesmo - mas a ‘prioridade’ dela tinha um fundo muito real: ela não queria que enfermeira nenhuma me achasse “favelada”, porque sabia que se isso acontecesse, eu seria maltratada (Karoline).

Além da fantasia de punição pela sexualidade, a fantasia de ter roubado o filho do ventre da própria mãe (Winnicott, 1957/1975Winnicott, D. W. (1975). A criança e o sexo. In D. W. Winnicott, A criança e o seu mundo (pp. 166-182). Zahar. Trabalho original publicado em 1957) e a consequente ansiedade de perda (Soifer, 1980Soifer, R. (1980). Psicologia da gravidez, parto e puerpério. Artes Médicas.) pela vingança materna são comumente reativadas pelo parto. No relato das mães, a separação de seus filhos imediatamente após o parto foi percebida como uma violência. É possível que essas mães tenham vivenciado tais separações como a concretização da vingança materna, no sentido de promoverem o sentimento de ter seu filho “roubado”, tal como, inconscientemente, teriam feito com as próprias mães.

Pedi pra vê-la de perto, a pediatra trouxe “pra dar um cheiro na mãe”, eu quis tocá-la, mas os meus braços estavam amarrados e ela foi levada. Tive medo que fizessem algo ruim com ela (Gabriela A.).

Apesar de chorar vigorosamente, o Gael nasceu com insuficiência pulmonar. Eu lembro que colocaram ele ao lado da minha cabeça durante poucos minutos, tiraram ele, e quando estavam preparando ele para a incubadora eu perguntei “não pode ficar nem mais 2 segundos? Eu quero ver ele de novo, foi tão rápido!”. Até hoje não sei se foi pela saúde do Gael ou foi mais um episódio de violência obstétrica; só sei que meu pedido foi negado e tive que ver meu filho pela última vez naquele dia saindo dentro de uma incubadora enquanto eu estava deitada (Karoline).

Assim como a OMS (1996)Organização Mundial da Saúde. (1996). Boas práticas de atenção ao parto e ao nascimento. https://saude.mppr.mp.br/arquivos/File/kit_atencao_perinatal/manuais/oms_boas_praticas_de_atencao_ao_parto_e_ao_nascimento.pdf
https://saude.mppr.mp.br/arquivos/File/k...
e o MS (2001)Ministério da Saúde. (2001). III Prêmio Galba de Araújo [Ficha de inscrição]. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/10006002554.pdf
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/folder/100...
, Andrade et al. (2017Andrade, L. O., Felix, E. S. P., Souza, F. S., Gomes, L. O. S., & Boery R. N. S. O. (2017). Práticas dos profissionais de enfermagem diante do parto humanizado. Revista de Enfermagem UFPE on-line, 11(6), 2576-2585.) ressaltam que, de acordo com o ideal de humanização do parto, os cuidados com o recém-nascido devem ser executados sempre de forma a estimular o vínculo afetivo entre mãe e filho, proporcionando o contato entre suas peles durante as primeiras horas de vida, bem como o aleitamento imediato. Gabriela A., Karoline e Ana D. relatam experiências opostas do que é preconizado pelo MS e pela OMS, nas quais os cuidados neonatais promoveram o incremento dos medos e das fantasias que geralmente já são experimentados inconscientemente pelas parturientes.

Fiquei esperando pelo meu filho e nada. À 01h00 da manhã me trouxeram meu bebê “sonado” para a primeira mamada no seio (já havia tomado fórmula, claro) e a enfermeira que veio me “auxiliar” com a pega correta perguntou:“você trouxe bico de silicone? Então põe, porque seu filho não vai pegar um mamilo desse jeito, seu seio não foi feito pra amamentar” (Tenho bicos planos) (Ana D.).

Apesar de ser uma experiência difícil de ser definida por terceiros, como já assinalaram Simpson e Catling (2016Simpson, M., & Catling, C. (2016). Understanding psychological traumatic birth experiences: A literature review. Women and Birth, 29(3), 203-207. https://doi.org/10.1016/j.wombi.2015.10.009
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), o termo violência obstétrica parece ter sido utilizado nos relatos analisados para nomear experiências traumáticas de parto, apontando para a presença de uma intrusão ambiental tão significativa que afetou a “continuidade de ser” (Winnicott, 1958/2000bWinnicott, D. W. (2000b). Memórias do nascimento, trauma do nascimento e ansiedade. In D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas (pp. 254-276). Imago. Trabalho original publicado em 1958) das parturientes, levando-as a reorganizarem suas defesas a fim de se protegerem. Em um momento de vulnerabilidade emocional, quando precisavam de constância e previsibilidade por parte do ambiente, se depararam com um ao redor que as desamparou e reiterou suas angústias e fantasias primitivas. Nesse sentido, entendemos que a violência obstétrica é propulsora de experiências traumáticas de parto que, como apontam Blainey e Slade (2015Blainey, S. H., & Slade, P. (2015). Exploring the process of writing about and sharing traumatic birth experiences online. British Journal of Health Psychology, 20(2), 243-260. https://doi.org/10.1111/bjhp.12093
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) e Simpson e Catling (2016)Simpson, M., & Catling, C. (2016). Understanding psychological traumatic birth experiences: A literature review. Women and Birth, 29(3), 203-207. https://doi.org/10.1016/j.wombi.2015.10.009
https://doi.org/https://doi.org/10.1016/...
, podem resultar em estresse pós-traumático, além de outras repercussões na saúde mental materna, no desenvolvimento da criança, na percepção materna sobre o filho, no vínculo conjugal, na amamentação ou no desejo por outros filhos. Nos relatos analisados, as experiências traumáticas de parto tiveram repercussões na vinculação mãe-bebê no pós-parto e no desejo por outros filhos.

Eu levei um tempo até me sentir próxima da minha filha novamente. Tive depressão pós--parto, sofri muito nos primeiros meses, sentia uma angústia enorme ao lembrar de tudo e só conseguia chorar, me culpar, ficava tentando me convencer de que tinha sido uma boa experiência, às vezes me forçava a parecer feliz e satisfeita na frente dos outros… (Gabriela A.).

Eu só sei que a única certeza que eu tinha naquele momento era de que não teria outro filho jamais. Não tinha condições psicológicas e físicas de encarar uma nova cesárea e muito menos toda violência psicológica e física pela qual eu e meu bebê havíamos sido submetidos… (Gisele).

Assim como no estudo de Blainey e Slade (2015Blainey, S. H., & Slade, P. (2015). Exploring the process of writing about and sharing traumatic birth experiences online. British Journal of Health Psychology, 20(2), 243-260. https://doi.org/10.1111/bjhp.12093
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) - no qual as mulheres entrevistadas apontaram os relatos on-line de parto como forma de elaboração da experiência traumática, principalmente pela possibilidade de conferir um sentido à experiência vivida, ajudando outras mulheres -, algumas das mães cujos textos foram aqui analisados deixaram claro que o fizeram com o intuito de disseminar informação sobre violência obstétrica para que outras mulheres, munidas de informação, pudessem ter experiências de parto diferentes das suas. A necessidade de maior visibilidade sobre o problema foi assinalada por algumas delas.

Quantas famílias sofrem ou já sofreram por causa de violência obstétrica? Até quando isso vai continuar? (Gabriela A.).

Tomara que um dia a academia dê essa atenção toda à violência obstétrica da mãe pobre (Karoline).

Uma em cada quatro mulheres sofre algum tipo de violência obstétrica antes, durante ou após o parto. Infelizmente isso já é até esperado, considerado normal por muitas delas, algumas já vão pra maternidade sabendo que “não podem chorar, gritar ou reclamar”, se não serão maltratadas. Muitas sofrem, poucas falam. Tem vergonha de se sentir mal pelo dia do parto, que deveria ser um dia de alegria, orgulho. Tem medo de falar algo contra os médicos e hospitais. Decidem seguir em frente, deixando passar o abuso (Gabriela A.)

. . . de uma coisa eu tenho certeza: o debate sobre violência obstétrica ainda tem muito o que crescer. Ele tem que chegar no Maria Amélia, no Carmela Dutra, na Leila Diniz. Ele tem que chegar na favela. As pessoas têm que entender que forçar cesárea é errado, mas forçar parto normal também. E principalmente: eu sou uma em um milhão de mães que tiveram sua escolha violada. Meu filho poderia não ter nascido. E isso é um absurdo. Olhem pras mães. Perguntem sobre a vida delas. Vocês vão encontrar tanta coisa numa história de parto, talvez, que dê até tema de monografia (Karoline).

A escrita dos relatos de parto, traduzindo em palavras experiências tão dolorosas, aponta para tentativas de elaboração do evento traumático por parte dessas mães. Algumas demoraram anos para conseguirem escrever seus relatos, o que explicita o caráter traumático da experiência e a dificuldade de sua simbolização.

Considerações finais

A violência obstétrica tem sido denunciada por mulheres em diversos países ao redor do mundo. O termo tem sido utilizado fundamentalmente para designar experiências em que as mulheres se sentiram invadidas, desrespeitadas e/ou alienadas do próprio corpo em um momento de vulnerabilidade. Nos relatos analisados, a experiência de ter se sentido violentada apareceu no relato de cinco mães, que narraram situações de desamparo, falas desrespeitosas por parte da equipe e práticas rotineiras extremamente invasivas e sem comunicação prévia com a parturiente, além do descumprimento da lei do acompanhante. Entendemos aqui que a denominada violência obstétrica se constitui como experiência traumática de parto por conta da confirmação de angústias e ansiedades primitivas pelo ambiente, como as ansiedades de esvaziamento, perda, castração, punição pela sexualidade e exposição ao desconhecido, além das angústias de aniquilamento e de separação.

Quando os profissionais, que supostamente estão presentes para amparar a parturiente, reiteram suas fantasias e angústias primitivas, a probabilidade de o parto se constituir em uma experiência traumática aumenta. Os procedimentos médicos - como a episiotomia, a anestesia e a própria cesariana - realizados de forma rotineira, sem compartilhamento de decisões e sem amparo psíquico, parecem servir como forma de ritualização pós-moderna com o intuito de manter inconsciente a representação sexual do parto. Contudo, tal forma de ritualização tem sido contraproducente e promotora de iatrogenia no parto, uma vez que não assegura psiquicamente a saúde materno-infantil. Em sentido oposto, reitera fantasias primitivas, promovendo experiências traumáticas de parto.

Concluímos ser de fundamental importância que os profissionais que assistem o parto sejam amparados emocionalmente e que tenham conhecimento sobre os processos emocionais que o nascimento suscita. Assim, poderão organizar-se internamente de modo a proteger seus psiquismos sem violentar as mulheres que estão parindo e que já se encontram em estado de grande vulnerabilidade.

Este estudo analisou a experiência de violência obstétrica a partir dos relatos de cinco mulheres, não sendo possível, portanto, generalizar os resultados obtidos a todas as mulheres que vivenciam esse tipo de experiência. Destacamos a necessidade do desenvolvimento de mais estudos que abordem a experiência emocional do parto, uma vez que esse tema ainda é pouco explorado na literatura. Pesquisas que busquem compreender os mecanismos psíquicos que o parto envolve são fundamentais para a construção de novas ações no campo da saúde emocional familiar.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    26 Fev 2019
  • Aceito
    22 Jul 2020
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