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A Loucura em Movimento: Representação Social e Loucura na Imprensa Escrita

Madness in Motion: Social Representation and Madness in the Written Press

Locura en Movimiento: La Representación Social y la Locura en la Prensa Escrita

Resumo

O objetivo deste trabalho é discutir as possíveis transformações das representações sociais sobre a loucura que circulam em um jornal impresso brasileiro, tomando como marco a Reforma Psiquiátrica Brasileira. Foram analisadas 1.385 matérias publicadas em formato eletrônico no período de janeiro de 1978 a dezembro de 2015, que tinham como tema central a loucura. As matérias foram analisadas por meio do software IRAMUTEQ, a partir de três corpora, cada um dos quais foi analisado separadamente e gerou um dendrograma de Classificação Hierárquica Descendente. A análise dos resultados nos permitiu verificar os movimentos de mudança e resistência das representações sociais ao longo do tempo. Os diversos nomes atribuídos à figura do louco sofreram mudanças no período analisado, de forma que algumas categorias foram mais suavizadas do que outras. Destaca-se a dinâmica social que levou a uma mudança e a forma como essa mudança foi incorporada, reorganizada e ressignificada sem provocar ruptura. Do ponto de vista metodológico, os dados dessa pesquisa nos chamam a atenção para as escolhas de descritores realizadas no percurso do trabalho e as consequências dessas escolhas nos resultados obtidos.

Palavras-chave:
Representação Social; Loucura; Reforma Psiquiátrica Brasileira; Imprensa; Nomeação

Abstract

Based on the Brazilian Psychiatric Reform, this work aims to discuss possible transformations in the social representations of madness in a Brazilian printed newspaper. To this end, 1.385 media articles addressing the theme of madness published in electronic format from January 1978 to December 2015 were separately analyzed using three corpora with the support of IRAMUTEQ software, generating three dendrograms of different hierarchical classification. The results allow us to verify the changes and resistance movements of the social representations over time. Throughout the analyzed period, the several names attributed to the figure of the madman have undergone changes, with some categories having been softened more than others. This work highlights the social dynamics driving a change and the means through which it is incorporated, reorganized, and reframed without causing a rupture. From a methodological point of view, this research data call attention to the choices of descriptors and their consequences on the obtained results.

Keywords:
Social Representation; Madness; Brazilian Psychiatric Reform; Press; Nomination

Resumen

El objetivo de este trabajo es discutir las posibles transformaciones en las representaciones sociales que circulan en un periódico impreso brasileño sobre la locura, tomando como marco la Reforma Psiquiátrica Brasileña. Se analizaron 1.385 materias publicadas electrónicamente en el período de enero de 1978 a diciembre de 2015, cuyo tema central fue la locura. Las materias fueron analizadas con el apoyo del software Iramuteq a partir de tres corpus, analizados separadamente, lo que generó tres dendrogramas de la Clasificación Jerárquica Descendente. El análisis de los resultados nos permitió verificar los movimientos de cambio y resistencia de las representaciones sociales a lo largo del tiempo. Los distintos nombres atribuidos a la figura del loco a lo largo de los años han sufrido cambios, habiéndose suavizado algunas categorías más que otras. Se señalan las dinámicas sociales que propiciaron el cambio y la forma en que ese cambio se está incorporando, reorganizando y reformulando sin provocar una ruptura. Desde un punto de vista metodológico, los datos de esta investigación llaman nuestra atención sobre las elecciones de descriptores realizadas en el curso del trabajo y las consecuencias de estas elecciones sobre los resultados obtenidos.

Palabras clave:
Representación Social; Locura; Reforma Psiquiátrica Brasileña; Prensa; Nominación

Introdução

O objetivo deste trabalho é discutir possíveis transformações das representações sociais sobre a loucura que circulam em um jornal impresso brasileiro, tomando como marco a Reforma Psiquiátrica Brasileira.

A loucura como objeto de representação social, nomeada, classificada e categorizada, é capaz de gerar comunicação no espaço público e orientar as condutas e práticas. As representações sociais, entretanto, não são estáticas, mas são movimentos em constante mutação. Algumas mudanças são ocasionadas pela insatisfação dos movimentos sociais e dos grupos minoritários ou subalternizados, que, por meio de resistência e inovação, visam subverter a representação vigente (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & Cia: repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes & M. J. Lopes (Eds.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes.). Nesse sentido, “há que se observar que todas estas categorias de sujeitos podem ser encarnadas em minorias ativas que tentam conquistar visibilidade e respeito. Disseminam ideias dissidentes na sociedade e poderão funcionar como um dos fatores de transformação das representações sociais” (Arruda, 2015Arruda, A. (2015). Modernidade & Cia: repertórios da mudança. In J. C. Jesuíno, F. R. P. Mendes & M. J. Lopes (Eds.), As representações sociais nas sociedades em mudança (pp. 103-128). Vozes., p. 115).

As representações sociais variam não só em função da forma com a qual diferentes grupos que ocupam distintos espaços na sociedade se posicionam diante de um mesmo objeto, mas também em função de como, ao longo do tempo, os grupos modificam suas representações acerca de um determinado objeto, que adquirem um sentido diferente daqueles até então vigentes. Indivíduos e sociedade, ainda que entidades distintas, mesclam-se em um mesmo corpo, em que contínuos dissensos e consensos participam tanto da construção e manutenção como da transformação das representações sociais. Vale aqui retomar o modelo ternário proposto por Moscovici (1984Moscovici, S. (1984). Psychologie sociale. PUF.), ego-alter-objeto, do qual os estudos da psicologia social deveriam derivar, de modo a interrogar acerca da natureza das relações que os sujeitos estabelecem entre si, mediadas pela percepção que têm da loucura e, a partir daí, examinar em que medida elas estariam desembocando em mudanças sociais, mais especificamente em mudanças nas representações sociais da loucura. Tal análise certamente projetará luz sobre a ordem social que tem se configurado em nossa sociedade desde a reforma psiquiátrica.

Com o movimento da luta antimanicomial e seu equivalente legal, a Lei Paulo Delgado de 2001, que regulamenta a reforma psiquiátrica no Brasil, surgem novas formas de se referir à loucura e até mesmo de a nomear. Expressões e conceitos a ela associados têm sido continuamente descartados e/ou inseridos. Assim, é preciso encontrar uma nova forma de se nomear um pensamento que tem esboçado ares de novidade.

Nomeações distintas expressam o esforço social de inserir um objeto em novos campos simbólicos. Como nos lembra Moscovici (2012Moscovici, S. (2012). A psicanálise, sua imagem e seu público. Vozes., 2013), a nomeação ou o processo de categorizar e dar nome aos objetos sociais não é uma operação neutra. A construção de uma representação pressupõe colocar em funcionamento todo um sistema operatório de classificação, categorização e nomeação, que se sustenta em uma prévia tomada de posição pelo sujeito. Os processos de classificação e categorização conferem hierarquicamente aos objetos valores positivos ou negativos. Não há, assim, neutralidade nesses processos, pois a avaliação e a consequente categorização de um dado objeto vêm eivadas de sentidos que os sujeitos negociam com seu alter e com sua própria história pessoal e social.

Vala e Castro (2013Vala, J., & Castro, P. (2013). Pensamento Social e Representações Sociais. In J. Vala & M. B. Monteiro (Coords.), Psicologia Social (9a ed., pp. 569-574). Fundação Calouste Gulbenkian.) consideram que as representações sociais de determinados objetos sociais como a loucura sofrem modificações sob influência de certas ideias, inovações científicas ou movimentos sociais. O autor salienta ainda que “não se pode falar da permanência de uma representação sem falar da mudança, e que, entre o novo e o velho, o pensamento social elabora um tecido contínuo de significado” (p. 584).

Retomemos aqui o termo louco para lembrar, com Moscovici (2012Moscovici, S. (2012). A psicanálise, sua imagem e seu público. Vozes., p. 121), que sua nomeação remetia, em um tempo ainda vizinho à reforma psiquiátrica,

. . . a presença de outro mundo, de uma coletividade diferente ou de uma dimensão diferente daquela da coletividade; revelava a fragilidade de valores que se pensavam imutáveis. Encarnava, diante da comunidade organizada dos homens normais, o agregado desordenado dos seres que não atingiram a dignidade humana. Os hospitais, os asilos garantiam a sociedade mostrando-lhes que estava segura.

A reforma psiquiátrica no Brasil tem seu embrião em movimentos contestatários que se iniciam no pós-Segunda Guerra Mundial, que procuravam romper com a tradição manicomial brasileira, ainda que de forma pontual, difusa e restrita a certos locais. Muitos desses movimentos buscaram sua inspiração na experiência de Trieste (Itália), liderada por Basaglia.

Em 1964, o Brasil teve interrompida sua trajetória democrática com um golpe de estado militar que durou mais de 20 anos. No final da década de 1970, o país vivia a efervescência das lutas pela redemocratização, contexto em que havia uma ânsia da população, expressa nos diferentes movimentos civis organizados de reconhecimento da cidadania e de respeito aos direitos civis usurpados durante a ditadura. Esses movimentos clamavam pelo rompimento de modos de pensar o sujeito na saúde, na educação e na assistência, entre outros âmbitos. Em oposição a uma postura paternalista e assistencialista do Estado, lutava-se pelo reconhecimento de um conjunto de direitos do cidadão e por uma Assembleia Constituinte que garantisse tais direitos. Enfim, lutava-se pelo reconhecimento do cidadão como sujeito de direitos.

O chamado Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) tenta convencer a sociedade que o louco é o objeto da opressão do estado brasileiro, à época em regime de exceção (Rotelli & Amarante, 1992Rotelli, F., & Amarante, P. (1992). Reformas psiquiátricas na Itália e no Brasil: aspectos históricos e metodológicos. In B. Bezerra Júnior & P. Amarante (Orgs.), Psiquiatria sem hospício: Contribuições ao estudo da reforma psiquiátrica (pp. 41-55). Relume-Dumará.). Com vistas a uma reforma psiquiátrica, conferências, documentos e portarias propõem a substituição do hospital psiquiátrico por uma rede de atenção integral à saúde mental, atacando de frente a cultura manicomial fortemente instalada (Ministério da Saúde, 2005Ministério da Saúde. (2005). Reforma Psiquiátrica e política de Saúde Mental no Brasil [Documento apresentado]. Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental: 15 anos depois de Caracas. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Relatorio15_anos_Caracas.pdf
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). Para tanto, era preciso ressignificar a loucura, o que pressupunha tratar o sujeito a partir da presença de um sofrimento psíquico e adotar estratégias de intervenção baseadas na inclusão do sujeito na sociedade, de modo a restituir sua dignidade. De modo geral, o termo sofrimento psíquico passou a ser usado para descrever um estado de mal-estar psicológico que afeta o funcionamento do sujeito.

Esse movimento visava a reinserção dos sujeitos com transtorno mental, por meio de sua retirada dos hospitais e da criação de uma nova rede de atenção à saúde mental.

Nascido do reclame da cidadania do louco, o movimento atual da reforma psiquiátrica brasileira desdobrou-se em um amplo e diversificado escopo de práticas e saberes. A importância analítica de se localizar a cidadania como valor fundante e organizador deste processo está em que a reforma é sobretudo um campo heterogêneo, que abarca a clínica, a política, o social, o cultural e as relações com o jurídico, e é obra de atores muito diferentes entre si (Tenório, 2002Tenório, F. (2002). A reforma psiquiátrica brasileira, da década de 1980 aos dias atuais: história e conceitos. História, Ciências, Saúde - Manguinhos, 9(1), 25-59. https://doi.org/10.1590/S0104-59702002000100003
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, p. 28).

O primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do Brasil, entretanto, só foi inaugurado em março de 1986, em São Paulo, e causou grande resistência da população e um forte debate que ocupou o espaço público e os meios de comunicação de massa. A reforma psiquiátrica, que busca resgatar a subjetividade, dignidade e cidadania do louco (sujeito do direito), constitui um marco importante no processo da inovação e mudança nas representações do louco no discurso da imprensa.

Para Onocko-Campos (2019Onocko-Campos, R. T. (2019). Saúde mental no Brasil: Avanços, retrocessos e desafios. Cadernos de Saúde Pública, 35(11). https://doi.org/10.1590/0102-311x00156119
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), ao refletir sobre a reforma psiquiátrica, é necessário compreender alguns acontecimentos históricos, como a redemocratização do país, a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição de 1988 e o surgimento de governos progressistas. Para essa autora, apesar da permanente crise econômica e das limitações orçamentárias, a proposta da Reforma Psiquiátrica favoreceu a criação de redes de assistência e serviços comunitários em todo o país. As mudanças políticas recentes, entretanto, parecem apontar para uma outra perspectiva de compreensão da saúde mental e de assistência, na medida em que retomam a ideia de hospital dia e de intervenções pautadas em uma visão apenas biomédica. Observa-se nessa dinâmica que o campo da saúde mental tem sido marcado pelas disputas entre uma concepção de saúde voltada para a promoção de saúde, em uma perspectiva da saúde pública, e a concepção estritamente biomédica, que focaliza o indivíduo. Como consequência, o âmbito da intervenção é também marcado por uma disputa entre uma concepção assistencialista e outra promotora dos direitos sociais. Essas diferentes concepções em permanente disputa seriam a expressão de disputas de concepções da sociedade?

Passados 30 anos de instalação dos CAPS, pode-se perguntar se houve mudanças significativas nas informações que circulam na imprensa sobre o louco e a loucura a partir da Reforma Psiquiátrica Estudar. Nesse sentido, as representações sociais que circulam na imprensa ao longo dos anos podem permitir compreender a dinâmica social que faz emergir formas de pensamento compartilhadas, tendo em vista que as representações sociais são historicamente e culturalmente localizadas, acompanhando as mudanças e permanências do pensamento social (Vala & Castro, 2013Vala, J., & Castro, P. (2013). Pensamento Social e Representações Sociais. In J. Vala & M. B. Monteiro (Coords.), Psicologia Social (9a ed., pp. 569-574). Fundação Calouste Gulbenkian.).

Método

Foram analisadas as matérias do jornal Folha de S.Paulo (jornal de maior tiragem e de circulação nacional), de janeiro de 1978 até dezembro de 2015, que tinham como tema central a loucura. Tomou-se o final dos anos 1970 como marco inicial desta análise na medida em que se considera que o ano de 1978 representou o início do movimento social pelos direitos dos pacientes psiquiátricos, embora as primeiras leis que indicavam a substituição progressiva dos leitos psiquiátricos por uma rede integrada de atenção à saúde mental só tenham sido aprovadas em 1992. O ano de 2015 foi definido como marco final em função da duração do projeto de pesquisa que gerou este artigo (2012-2015). Após esse período, grandes mudanças políticas no país tiveram impacto no modelo de atenção à saúde mental, mas não foram contempladas na pesquisa. As matérias foram selecionadas em seu formato eletrônico. Ressalta-se que o jornal Folha de S.Paulo tem um acervo digitalizado a partir de 1920.

Procedimentos

No desenvolvimento desta pesquisa, algumas questões metodológicas merecem uma análise mais detalhada. Inicialmente, foram definidos os descritores louco e loucura para a busca de matérias no jornal escolhido. Entretanto, em uma primeira busca, observou-se que havia um número excessivo de matérias ligadas a esses descritores. Em um primeiro levantamento, encontramos 15.000 páginas de matéria a partir desses dois descritores. No período de 2010 a 2015, foram contabilizadas 6.145 matérias com esses descritores, porém, elas não focalizavam as questões de saúde mental. As nomeações de louco e loucura eram utilizadas para adjetivar acontecimentos sociais ou comportamentos de pessoas, como “louco por sexo”, “após tal acontecimento foi uma loucura” e “a loucura da torcida”, o que nos levou a levantar a hipótese de que a loucura estava servindo como elemento de ancoragem para atribuir sentido aos acontecimentos ou comportamentos. A ideia de loucura ou de louco era, assim, associada a algo irracional, a um vício ou dependência do sujeito com relação a um dado objeto, algo sem controle ou inexplicável, mas não necessariamente ligada à ideia de saúde/doença mental ou sofrimento psíquico.

Diante disso, tomou-se a decisão de buscar na literatura algumas expressões que remetessem à ideia de saúde/doença mental para que se pudesse obter matérias cujo foco principal fosse esse tema. Decidiu-se, então, eliminar os descritores loucura e louco e estabelecer 30 descritores em uma combinação de expressões, com base na literatura científica, como pode ser observado na Figura 1. Todas as matérias que contivessem o descritor fizeram parte do corpus de análise.

Figura 1
Conjunto de descritores utilizados.

Foram acrescentadas, ainda, as matérias obtidas com os descritores apresentados na Figura 2, utilizados em pesquisa anterior (Coriolano & Santos, 2015Coriolano, A. M. M., & Santos, M. F. S. (2015). A loucura na imprensa [Relatório de pesquisa de Iniciação Científica]. Universidade Federal de Pernambuco; Fundação de Amparo à Ciência e Tecnologia do Estado de Pernambuco.) e definidos em função de sua frequência em matérias do mesmo jornal, que foram lidas aleatoriamente:

Figura 2
Descritores acrescentados.

Após essas definições, foram encontradas 1.385 matérias a partir desses descritores, que focalizavam as questões de saúde mental e, assim, formaram o corpus a ser analisado.

Os dados foram, então, formatados para análise por meio do software IRAMUTEQ. Esse software, criado por Ratinaud (2009Ratinaud, P. (2009). IRAMUTEQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires) [Software]. http://www.iramuteq.org/
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), permite a construção de classes inter-relacionadas de palavras que integram o “material bruto” da análise qualitativa realizada pelo pesquisador, a partir da análise das relações entre as palavras presentes no corpus de fala dos sujeitos ou de textos escritos (teste de χ2). Em seguida, foram realizadas duas análises: Classificação Hierárquica Descendente e Análise Fatorial de Correspondência (AFC). A CHD, de acordo com Kalampalikis e Moscovici (2005Kalampalikis, N., & Moscovici, S. (2005). Une approche pragmatique de l’analyse Alceste. Les Cahiers Internationaux de Psychologie Sociale , (66), 15-24. https://doi.org/10.3917/cips.066.0015
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), consiste na identificação de mundos léxicos, que são aglomerados de palavras consideravelmente ligadas entre si, o que favorece a construção dos sentidos possíveis. Por meio dessa análise, é viável a interpretação dos sentidos das palavras de acordo com Unidade de Contexto Elementar (UCE) e, por conseguinte, também se viabiliza a nomeação das classes. Já a AFC permite a constatação e interpretação de aglomerados de polos semânticos opostos, de modo que quanto mais afastados os elementos no plano fatorial, menos eles expressam os mesmos sentidos; e quanto mais aproximados, mais eles expressam sentidos idênticos (Nascimento & Menandro, 2006Nascimento, A. R. A. D., & Menandro, P. R. M. (2006). Análise lexical e análise de conteúdo: uma proposta de utilização conjugada. Estudos e pesquisas em Psicologia, 6(2), 72-88.). Outrossim, as palavras ainda são apresentadas no contexto da frase em que se insere, o que possibilita ao pesquisador recuperar o significado das palavras no corpus.

Aqui uma nova decisão foi necessária. Inicialmente submeteu-se todo o corpus à análise do IRAMUTEQ. O resultado obtido com a CHD não permitiu uma análise fina dos dados, o que impossibilitou a distinção de momentos sociais que estivessem relacionados à discussão, institucionalização e implantação da Reforma Psiquiátrica. Foram definidos, então, quatro períodos da Reforma Psiquiátrica marcados por certos eventos sociais ou políticos (Quadro 1). Desses quatro períodos, três estavam incluídos nos dados coletados e constituíram os corpora desta pesquisa. O período de 1970 a 1978, denominado aqui de Início do Movimento, não foi contemplado na análise apresentada.

Quadro 1
Marcadores da Reforma Psiquiátrica de 1970 a 2015.

Resultados e Discussão

Com base nos marcadores temporais aqui mencionados, foram constituídos três corpora que foram analisados separadamente. O primeiro reuniu as matérias do período de 1978 a 1988, o segundo reuniu as matérias de 1989 a 2000 e, por último, foi constituído um corpus com as matérias de 2001 a 2015. O período de 1970 a 1978 não foi analisado, por não ser contemplado pelo corpus total da pesquisa. Os resultados dessas análises serão apresentados a seguir.

Organização e consolidação da luta (1978 a 1988)

Do período de 1978 a 1988, foram encontradas 259 matérias. Foram classificados pelo IRAMUTEQ 88.80% dos segmentos de texto. As análises obtidas a partir da CHD proporcionaram a emergência de quatro classes divididas em dois eixos.

Juntas, as Classes 4 e 1 reúnem 58,5% das UCE presentes nas matérias. As palavras mais típicas da Classe 4 foram: internação, atendimento, hospital, saúde mental, ambulatório. Na Classe 1, as palavras típicas foram: doença, indivíduo, sintoma, causa, diagnóstico. Por sua vez, as Classes 2 e 3 representam os outros 41,5%. A Classe 3 apresenta as seguintes palavras mais típicas: obra, livro, Schreber, Freud, japonês. Já na Classe 2, as palavras mais típicas foram: ficar, filho, pai, mãe, saber.

Os resultados obtidos durante o período, aqui denominado de Organização e consolidação da luta, apontam para as polarizações e posições antagônicas dos movimentos sociais e dos experts em contraposição ao discurso da medicina social e das instituições públicas e/ou de cuidado. Percebe-se que o discurso médico-psiquiátrico é marcado pelos embates e contradições internas, na medida em que abrangem as vertentes tidas como as mais inovadoras em contraposição ao modelo psiquiátrico “tradicional” focado no domínio biomédico. Os exemplos a seguir de segmentos de textos das Classes 4 e 1 ilustram nosso argumento.

Figura 3
Classificação Hierárquica Descendente do conteúdo das matérias no período de 1978 a 1988.

Esses efeitos se exercem especialmente sobre o hipotálamo adrenomolecular e sobre os eixos hipofisários adrenocorticais. Com aumento da secreção da adrenalina da noradrenalina de corticosteroides e da tiroxina os estímulos provavelmente também influem sobre a saúde (texto 2; ano 1978; descritor problema psíquico)

INAMPS quer humanizar o tratamento psiquiátrico. Um tratamento mais humano com a participação da família, mais liberdade de ação através de internações sem as grades que aprisionam e reprimem. São algumas das propostas do Programa de Reorientação da Assistência Psiquiátrica Previdenciária elaborado recentemente pelo Conselho Constitutivo da Administração de Saúde Previdenciária (CONASP) (texto 78; ano 1983; descritor doença mental)

Por sua vez, o discurso dos ativistas sociais e de alguns experts se embasa na tese da loucura como uma condição, o que caracteriza a perda da autonomia e das possíveis consequências do ponto de vista público ou privado como reflexo da condição do adoecimento. Ressalta-se que esses fatos não justificam o tratamento desumano ou a perda da cidadania do louco. Enquanto atores sociais, eles denunciam as condições de tratamento sub-humanas sofridas pelos internados na condição de doente mental. Esses discursos procuram embasamentos na literatura científica, principalmente a filosófica e psicanalítica, a fim de fortalecer seus argumentos em defesa dos direitos humanos e da cidadania dos loucos. Seguem exemplos das Classes 2 e 3, com relevo da visão crítica de adoecer mental.

O gesto imposto de fora como a contenção medicamentosa é uma restrição que faz com que este paciente deixe de falar e de se questionar (texto 179; ano 1988; descritor doença psiquiátrica).

Onde se acumulam lixo e dejetos ali refocilam nas imundices e no auge da insanidade. Alguns bebem e comem excrementos acumulados dentro de uma vala pútrida que passa no meio do pátio onde escorre uma lama sórdida de restos de esgoto lixo. E direitos humanos (texto 107; ano 1978; descritor doença mental).

Além dos discursos da crítica social, o eixo aborda os relatos de casos e/ou queixas trazidos à tona pelos familiares, relativos aos comportamentos e sintomas suspeitos de adoecer mental. Embora não desconsidere a dimensão somática da doença mental, o eixo focaliza as questões estruturais da sociedade, principalmente iniquidades sociais, como os principais desafios das instituições e dos profissionais que trabalham com doenças mentais. Nota-se que mesmo que se faça referência aos casos individuais ou intrafamiliares, a ênfase no olhar macrossocial prevalece sobre o microssocial.

Em síntese, percebe-se que os confrontos no eixo 1 (Classes 1 e 4) devem-se às contradições e lutas internas da medicina psiquiátrica, marcadas pelo advento das novas práticas psiquiátricas e, por conseguinte, do questionamento das anteriores. Já no eixo 2 (Classes 2 e 3) verifica-se as críticas e oposições externas à Psiquiatria, provenientes dos ativistas sociais em prol da humanização da saúde mental. Eles trazem olhares de especialistas externos ao campo da medicina mental, com destaque para a Psicanálise.

Concretização da Reforma Psiquiátrica (1989 a 2000)

Do período de 1989 a 2000, foram encontradas 447 matérias. Foram classificados pelo IRAMUTEQ 95.01% dos segmentos de texto do corpus. A análise das matérias desse período permitiu a visualização de cinco classes que reuniam os discursos que circulavam no jornal no período de 1989 a 2000. O dendrograma da Figura 4 permite visualizar as cinco classes, que estão divididas em dois eixos de discursos.

Figura 4
Classificação Hierárquica Descendente do conteúdo das matérias no período de 1989 a 2000.

Os resultados aqui obtidos também apontam uma oposição entre discursos, entretanto, o discurso médico se aproxima do discurso político em contraposição ao discurso do campo jurídico. O dendrograma apresentado na Figura 4 mostra o primeiro eixo, formado pelas classes 3, 2, 4 e 1, que reúne os discursos médicos e político sobre a “loucura” e se opõe ao discurso policial, característico da classe 5 que compõe o segundo eixo.

O discurso médico se caracteriza por uma separação entre doença e saúde. De um lado (Classe 3), a loucura consta como doença com causas orgânicas, cuja expressão maior é a esquizofrenia. Nessa perspectiva, ela é um distúrbio do organismo ou do cérebro que necessita da intervenção médica por meio de drogas que atuem nos sintomas e diminuam o sofrimento. Por outro lado, o discurso da saúde mental (Classe 2) se associa às orientações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e aos estudos e pesquisas realizadas nas universidades exigindo que os serviços e hospitais ofereçam assistência. Os exemplos a seguir explicitam o argumento apresentado.

Distúrbios psiquiátricos mais comuns a psicose é doença mental, sua origem pode ser orgânica ou psíquica. O psicótico pode ser vítima de vários distúrbios esquizofrenia psicose maníaco depressiva e psicose histérica são os mais conhecidos (texto 51; ano 1990; descritor doença mental).

A OMS previa um índice de 18 por cento a 20 por cento de doentes mentais para a América latina. Já o ministério da saúde trabalha com uma estimativa de 13 por cento da população em nível nacional. A pesquisa confirmará ou não esse percentual após a conclusão nas seis capitais escolhidas para representar as diferentes regiões do país (texto 247; ano 1990; descritor sofrimento psíquico; descritor distúrbio psíquico; descritor doença mental; descritor problema mental).

O discurso político (Classes 4 e 1), por sua vez, tem como fundamento os conceitos da psicanálise, da filosofia e da literatura (Classe 4) que questionam o lugar da razão e o papel do inconsciente nas sociedades contemporâneas, e cita como expoentes dessas ideias Foucault, Nietzsche e Freud, entre outros autores. A Classe 1 traz a emergência de novos atores sociais na discussão da “loucura”: pessoas que jogam com frequência, dependentes de drogas, serial killers e homossexuais são aqui reunidos como pessoas com “problemas” ligados ao discurso da “loucura”. Segue o trecho exemplificativo dos segmentos de texto:

Essas explicações segundo ele foram tiradas o ensaio a cisão do ego como mecanismo de defesa escrito por Freud em 1938. Segundo o médico, Freud mostra que existe no ser humano uma região fronteiriça entre a lucidez e a loucura (texto 369; ano 1994; descritor insanidade mental).

Observa-se que, em oposição a esses discursos, o discurso jurídico associa certos crimes, sobretudo aqueles mais chocantes para a sociedade, a patologias mentais, conforme podemos constatar no trecho seguinte: “mesmo que a pessoa tenha problemas mentais se os peritos determinam que o crime cometido não tem relação com a doença a pessoa pode ser julgada e eventualmente condenada. Jack matou cinco prostitutas” (texto 172; ano 1990; descritor doença psiquiátrica).

No momento da concretização da Reforma Psiquiátrica, quando os primeiros CAPS e NAPS começam a ser implantados, novas categorias aparecem. A dependência do jogo, o bullying, os distúrbios alimentares, o pânico e a homossexualidade entram na pauta da discussão como sofrimentos psíquicos, problemas psíquicos, distúrbios psíquicos ou problemas mentais. O discurso médico se mantém, mas de uma forma que aproxima saúde e doença, e o âmbito da doença, além dos quadros clássicos de esquizofrenia e depressão, passa a abranger também a questão das drogas. Nesses casos, a pessoa sofre de distúrbios psiquiátricos ou psicológicos, transtornos psiquiátricos ou psicológicos. O crime aparece como uma categoria da “loucura” e são relatados e debatidos casos de assassinatos cuja causa é atribuída a problemas mentais, perturbações ou insanidade mental. Matar a família, por exemplo, só poderia ser explicado por um Distúrbio psiquiátrico, Distúrbio psicológico, Transtorno psíquico, Transtorno psiquiátrico ou Transtorno mental. Logo, a pessoa acometida com uma dessas questões é o outro ameaçador que precisa ser contido e isolado na prisão. É importante observar que a cada tipo de “loucura” corresponde um nome específico e que parece haver uma certa escala em que o sofrimento psíquico é mais “leve” que o transtorno ou distúrbio.

Institucionalização e consolidação das novas práticas (2001 a 2015)

No período de institucionalização e consolidação das novas práticas, observa-se, conforme o dendrograma da Figura 5, a oposição ainda existente entre o discurso da saúde e doença versus o discurso social que agora inclui também o policial.

Figura 5
Classificação Hierárquica Descendente do conteúdo das matérias no período 2001 a 2015.

A doença já não se limita às clássicas “doenças mentais”, cujo exemplo prototípico era a esquizofrenia. Em um movimento de integração do novo (possivelmente resultado da Reforma Psiquiátrica), o álcool, a ansiedade, o estresse, uso abusivo de outras drogas, são incluídos como doenças ou transtornos que precisam de tratamento. A saúde, no discurso mais ligado à psiquiatria, inclui a universidade, a pesquisa, a OMS, de forma que o atendimento clínico poderia ser feito em hospitais e serviços de atendimento à saúde mental. Os discursos de saúde e doença têm como descritores distúrbio psiquiátrico, distúrbio psíquico, transtorno psíquico e problema psíquico, conforme o exemplo a seguir:

E mesmo aí a grande maioria dos casos se concentra nos 13 e 14 anos pela simples razão de que 90 porcento dos suicídios estão associados a transtornos mentais como depressão e alcoolismo, que só costumam aparecer depois da puberdade (texto 400; ano 2011; descritores saúde psiquiátrica e transtorno mental)

Há tempos sabe-se que uma parcela significativa delas padece de transtornos mentais, inclusive dependência de drogas como álcool e crack consumindo-os em plena luz do dia, muitas vezes acompanhada de outras pessoas em lugares vulgarmente chamados de cracolândias (texto 402; ano 2011; descritores saúde psiquiátrica e transtorno mental)

O discurso do campo jurídico se mantém, mas agora se aproxima do discurso político e fortemente atrela o crime aos descritores de desordem psiquiátrica ou problema psiquiátrico. O discurso social, por sua vez, refere-se às condições sociais do sofrimento psíquico, que é associado à Psicanálise cuja base teórica para a reivindicação do respeito à diferença. As novas categorias de sofrimento se mantêm, enfatizando-se a dependência química, a homossexualidade, os transgêneros, os distúrbios alimentares, o pânico, os traumas de guerra, a pedofilia na Igreja Católica e a adoção. São referências ao outro próximo. Os descritores associados ao discurso social são sofrimento psíquico, desordem psíquica, problema psicológico e distúrbio mental. A seguir, apresenta-se os trechos exemplificativos do eixo:

Bento XVI foi obrigado a modificar essa opinião, mas continua pensando no abuso como um lapso espiritual mais que um problema psicológico social e criminal. O abuso dos padres pedófilos é em sua visão um grande pecado mais do que um grande crime (texto 379; ano 2010; descritor problema psicológico).

Um instante de loucura o que é o surto psicótico artifício cada vez mais alegado por autores de crimes bárbaros. Primeiro foi o cirurgião plástico que esquartejou a dona de casa em seu consultório (texto 1181; ano 2003; descritores transtorno mental e doença mental).

Que todo sujeito com problema independentemente de cor classe e diagnóstico tenha direito à liberdade ao respeito e à dignidade que façam dele um semelhante apenas diferente (texto 1203; ano 2008; descritor transtorno mental).

A aproximação dos discursos político e jurídico suscita o debate sobre os direitos humanos, antes pouco abordado nos discursos jurídicos sobre o doente mental. Aliados a isso, os casos escandalosos e de grandes repercussões mundiais como os da pedofilia na Igreja Católica mereceram destaque. Essa discussão é marcada pelos embates interdisciplinares, em que os saberes médico, psiquiátrico, de peritos criminais ou policiais e até religiosos se confrontam na busca das explicações e/ou motivações subjacentes aos grandes crimes, como as novas categorias sexuais ou de doenças mentais.

Conclusões

No primeiro período analisado, pode-se observar, de um lado, o discurso de controle e disciplinamento do louco, que visam conter a ameaça, a periculosidade social e o estranhamento a ele atribuídos e, por outro lado, o confronto de saberes e o embate entre as instituições médico-sanitárias e ativistas sociais. Os discursos analisados demonstram as tensões entre a ideia do louco como alguém incapaz de se autogovernar e necessitado, por isso, de observância e cuidados muitas vezes desumanos e os discursos que propagam a necessidade de se resgatar a dimensão humana do louco (sujeito de direitos), por meio de denúncias das instituições de cuidado e dos manicômios. No segundo período analisado, observa-se, de um lado, a loucura como objeto do campo jurídico (o criminoso a quem se atribui o diagnóstico de “insanidade mental”) e, de outro, o louco que se situa no campo da saúde. O discurso e os saberes sobre o louco formam uma espécie de aliança médico-jurídica que legitima o conhecimento produzido e a exclusão social do “louco”.

Os resultados desta pesquisa possibilitam reflexões sobre duas questões importantes da pesquisa em representações sociais: uma metodológica e uma teórica. Do ponto de vista metodológico, os dados desta pesquisa nos chamam a atenção para as diversas escolhas de descritores realizadas no percurso do trabalho e as consequências dessas escolhas nos resultados obtidos. Isso remete diretamente à discussão da nomeação. Do ponto de vista teórico, podemos refletir sobre o movimento de mudança das representações sociais ao longo do tempo a partir do impacto de uma política social, neste caso, a Reforma Psiquiátrica Brasileira.

A nomeação

A primeira escolha realizada foi quanto ao descritor “loucura”. Inicialmente, utilizamos os descritores “louco(s)”, “louca(s)”, “loucura(s)”. O volume de matérias e seus conteúdos nos mostraram rapidamente que esses descritores remetiam a um universo simbólico específico, ou seja, a ideia de loucura ou de louco contida nessas matérias era associada a algo irracional, ao “vício” ou à dependência do sujeito com relação a um dado objeto, algo sem controle ou inexplicável, mas não necessariamente ligada à ideia de saúde/doença mental ou sofrimento psíquico. As nomeações de louco e loucura eram utilizadas para adjetivar acontecimentos sociais ou comportamentos de pessoas, como “louco por sexo”, “após tal acontecimento foi uma loucura” e “a loucura da torcida”, o que nos levou a levantar a hipótese de que a loucura estava servindo como elemento de ancoragem para atribuir sentido aos acontecimentos ou comportamentos ali discutidos.

Assim, decidimos definir 30 descritores em uma combinação de expressões que pudessem melhor focalizar o conteúdo da pesquisa. Ao aumentar o número de descritores, diminuímos consideravelmente o número de matérias e circunscrevemos melhor o nosso corpus de pesquisa. Entretanto, essa diversidade de descritores remeteu a universos simbólicos distintos, o que foi possível analisar por meio da Análise Fatorial de Correspondência (AFC). Como afirma Moscovici,

Em nossa sociedade, nomear, colocar um nome em alguma coisa ou em alguém, possui um significado muito especial, quase solene. Ao nomear algo, nós o libertamos de um anonimato perturbador, para dotá-lo de uma genealogia e para incluí-lo em um complexo de palavras específicas, para localizá-lo, de fato, na matriz de identidade de nossa cultura (Moscovici, 2013Moscovici, S. (2013). Representações Sociais: Investigações em Psicologia Social. Vozes., p. 66).

A escolha dos descritores, assim como a escolha das palavras ou dos termos indutores em uma associação livre, pode ser crucial no trabalho, na medida em que descritores diferentes podem remeter o objeto a lugares específicos, pode inseri-lo em matrizes simbólicas diversas ou ainda remeter a objetos diferentes. Os resultados que obtivemos nesta pesquisa reforçam essa ideia.

A nomeação de pessoas ou objetos sociais cumpre papel importante nos estudos que envolvem representações sociais, pelo fato de o processo de nomear estar enraizado no ambiente sociocultural e histórico, nos significados e representações socialmente compartilhados (Kalampalikis, 2002Kalampalikis, N. (2002). Des noms et des représentations. Les Cahiers Internationaux de Psychologie Sociale, (53), 20-31.). Assim, “os nomes criam realidades simbólicas e subjacentes, fazendo nascer ou renascer as representações sociais” (Kalampalikis, 2002Kalampalikis, N. (2002). Des noms et des représentations. Les Cahiers Internationaux de Psychologie Sociale, (53), 20-31., p. 8).

Nesse sentido, a atribuição de um dado nome assume um papel importante na elaboração coletiva da realidade. Os nomes atribuídos às pessoas e aos objetos vêm carregados de múltiplos significados ocultos que mudam ao longo do tempo (Kalampalikis, 2002Kalampalikis, N. (2002). Des noms et des représentations. Les Cahiers Internationaux de Psychologie Sociale, (53), 20-31.). De acordo com esse autor, um nome pode situar as pessoas em uma dada posição social, conferindo-lhes uma identidade, e, por conseguinte, demarcar um espaço social a esses sujeitos. No caso concreto da loucura, objeto de nosso estudo, as diversas nomeações em seu entorno lhe conferem uma identidade negativada e, por conseguinte, relegada a uma forma de alteridade marcada por antagonismo e exclusão (Jodelet, 2005Jodelet, D. (2005). Formes et figures de l’altérité. In M. Sanchez-Mazas & L. Licata (Eds.), L’Autre : Regards Psychosociaux (pp. 23-47). Presses Universitaires de Grenoble.). Recorda-se que de acordo com essa autora, a alteridade é um produto de dois processos identitários: construtivo e destrutivo. Isso significa dizer que ao mesmo tempo em que a identidade se constitui na relação com o outro, esse outro pode ser fonte da “ruína” da identidade. Neste último caso, referimo-nos à alteridade em sua forma radical, que confere ao outro o lugar de exclusão, distanciamento e estranhamento. Esse tipo de alteridade exaspera as diferenças e enclausura o outro; a figura do louco, por exemplo, é enclausurada na eterna negatividade e não familiaridade.

Os diversos nomes atribuídos à figura do louco ao longo dos tempos sofreram mudanças, com algumas categorias mais suavizadas do que outras. Em nosso estudo, por exemplo, percebe-se que a categoria sofrimento (psíquico, psicológico, mental, psiquiátrico) possui uma conotação menos negativa do que as categorias doença mental, insanidade mental etc., o que se explica pelo fato de os nomes não possuírem a mesma força. Alguns remetem a uma descrição mais áspera, como as diversas figuras atreladas à loucura relacionadas à categoria do estranho, exótico, perigoso. Já outros nomes possuem significados multifacetados, carregados de memórias, de tradições históricas e ideias antagônicas (Kalampalikis, 2002Kalampalikis, N. (2002). Des noms et des représentations. Les Cahiers Internationaux de Psychologie Sociale, (53), 20-31.).

A ancoragem é comumente conceituada como uma forma de dar nome, sentido ou familiarizar um objeto ou um fenômeno social emergente à luz de sistemas de categorização e das redes de significação preexistentes. Contudo, a ancoragem pode funcionar no sentido oposto, isto é, como uma forma de fazer o objeto não familiar permanecer na condição da estranheza e da não familiaridade (Kalampalikis, 2009Kalampalikis, N. (2009). Le processus de l’ancrage : l’hypothèse d’une familiarisation à l’envers. Cahiers du GRePS, 1, 19-25.). De acordo com esse autor, a inclusão de uma novidade à luz das categorias preexistentes e/ou a familiarização do estranho, pode se dar por meio da manutenção do outro na condição do estranho. Nesse sentido, vimos nos estudos de Jodelet (2005Jodelet, D. (2005). Formes et figures de l’altérité. In M. Sanchez-Mazas & L. Licata (Eds.), L’Autre : Regards Psychosociaux (pp. 23-47). Presses Universitaires de Grenoble.) que a familiarização, por meio da permanente estranheza e de uma alteridade distante e ameaçadora da figura do louco, resiste a qualquer tentativa de ser levada a familiarizar o estranho. Assim, vimos que ela nem sempre se dá de uma maneira positiva, na medida em que pode se dar pela negatividade, como acontece no caso do louco, “familiarizado” como negativo da razão (Kalampalikis, 2009Kalampalikis, N. (2009). Le processus de l’ancrage : l’hypothèse d’une familiarisation à l’envers. Cahiers du GRePS, 1, 19-25.).

Em resumo, há dois modelos de ancoragem. De um lado, constata-se a ancoragem conciliável com o modelo do pensamento simbólico, que ocorre pela via da familiaridade do novo. Do outro lado, a ancoragem compatível com o pensamento estigmático, que familiariza o outro na condição de estranhamento. Neste último, o outro permanece na condição do estranho, do não-eu, enclausurado na diferença. O exemplo típico dessa forma de ancoragem é a figura do louco (Kalampalikis, 2009Kalampalikis, N. (2009). Le processus de l’ancrage : l’hypothèse d’une familiarisation à l’envers. Cahiers du GRePS, 1, 19-25.).

Mudança de representações

Ao utilizar o método longitudinal no estudo das representações sociais a partir de um jornal impresso, podemos identificar a evolução e a estabilidade das representações sociais da loucura no Brasil. Também pode-se analisar a dinâmica social que levou a uma mudança e a forma como essa mudança foi incorporada, reorganizada e ressignificada para que o conteúdo da loucura fosse modificado sem provocar ruptura. Mudar e permanecer igual.

Se na década de 1970 o país vivia uma ditadura militar e os movimentos sociais começavam a se organizar em busca da redemocratização do país e do reconhecimento dos direitos do cidadão, a imprensa faz circular o embate entre o discurso médico e o discurso dos ativistas sociais sobre a loucura. De um lado, o especialista médico apresenta a loucura como doença que necessita de medicação e tratamento em ambiente fechado, hospitalização e afastamento da sociedade. Do outro lado, os “ativistas sociais”, entre os quais estão especialistas não-médicos, como psicólogos, assistentes sociais e enfermeiros, usam o discurso da Psicanálise e chamam a atenção para as variáveis sociais e contextuais da loucura. Começava ali a luta política pelo direito do “doente mental”, pela desospitalização, pela democratização da saúde. Doença e patologia aparecem como nomeações que se contrapõem a distúrbios e transtornos.

Em um segundo momento, o Brasil vivia o período de redemocratização, com eleições diretas, a construção de uma nova Constituição e a atuação dos movimentos sociais organizados que demandavam o reconhecimento de direitos e o tratamento cidadão a todos os brasileiros. Aparecem aqui três grupos discursivos: o médico, o jurídico e o político. O discurso médico, que busca nas universidades a legitimação do seu conteúdo por meio das pesquisas, reafirma a loucura como doença, entretanto, novas formas de manifestações aparecem no discurso: a ansiedade, o estresse e o sofrimento. O discurso jurídico substitui, de certa forma, o discurso médico do período anterior (insanidade, perturbação e problema mental). Não é o louco doente, mas sim o louco ameaçador que mata por não ter controle de sua racionalidade e, portanto, precisa ser isolado da sociedade. É a alteridade radical da qual nos falava Jodelet. O terceiro conjunto de discursos refere-se ao novo que começa a ser integrado na sociedade. É o discurso político, com referências às análises de Foucault sobre a loucura, à psicanálise e à cidadania, que integram a discussão sobre o sujeito cidadão, com direito à integração social, e apontam a família como causa e solução para o problema. Algumas manifestações dessas “questões psíquicas” são citadas: a dependência do jogo, a homossexualidade, serial killer, seitas religiosas, síndrome de pânico e distúrbios alimentares. Assim, a discussão que era restrita à esquizofrenia como objetivação de todas as “doenças mentais” agora se amplia em categorias “mais leves”, não mais ligadas aos distúrbios mentais ou doenças mentais, mas sim a problemas psíquicos.

Por fim, o terceiro período, por nós denominado de Institucionalização e consolidação das novas práticas, reúne os discursos com ênfase sobre a saúde, o discurso social e o jurídico. Aqui, saúde e doença não se restringem mais às clássicas manifestações de esquizofrenia, mas passam a abranger também a depressão e o uso de álcool e outras drogas (com forte ênfase na maconha e crack). A universidade figura como parceira privilegiada da legitimação desse discurso por meio das pesquisas e casos clínicos. Já o discurso jurídico, antes isolado, manifesta-se próximo ao discurso social sobre “desordens psiquiátricas” e “problemas psiquiátricos”. No discurso social, chamam a atenção a ampliação das diversas manifestações destacadas pela mídia: distúrbios alimentares, serial killer, conflitos familiares, medo de avião, stress, tensões sociais bullying, adoção e homossexualidade. Essas são novas formas de manifestação agora atreladas à ideia de sofrimento psíquico, desordem psíquica, problema psicológico ou distúrbio mental.

A cada categoria de manifestação corresponde um nome, um descritor que o insere em uma matriz simbólica específica, de forma que em certos momentos, chegamos a questionar se tratava-se do mesmo objeto.

Finalmente, cabe destacar que as mudanças nas representações sociais da loucura e do louco ao longo dos anos demonstram as negociações de sentido e a emergência de novas formas de alteridade que revelam as disputas ético-políticas da sociedade. Diante dos retrocessos recentes no campo da saúde mental, é importante ainda salientar que algumas ideias que pareciam consolidadas são postas em questão, na medida em que se ligam a novas crenças e valores ou fazem ressurgir crenças e valores com novo formato. Portanto, estudar o pensamento social é sempre encarar o desafio de analisar um movimento contínuo de mudança e resistência que expressa a dinâmica social do qual ele emerge.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    11 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    27 Mar 2019
  • Aceito
    10 Ago 2020
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