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Participação Infantil no Cuidado em Saúde Mental: Um Grupo GAM no CAPSi

Child Participation in Mental Health Care: A GAM Group at a CAPSi

Participación Infantil en el Cuidado en Salud Mental: Un Grupo GAM en el Centro de Atención Psicosocial (CAPSi)

Resumo

Este artigo visa apresentar algumas contribuições de uma pesquisa-intervenção situada no campo saúde mental infanto-juvenil brasileira baseada na estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM). Apesar dos avanços obtidos na Reforma Psiquiátrica, a gestão da medicação é ainda um ponto nevrálgico em nosso país. As experiências vividas pelos usuários de psicotrópicos e seus familiares raramente são consideradas um saber legítimo em relação ao tratamento, e, quando esses usuários são crianças, a problemática se torna ainda mais complexa. Além dos engessamentos e barreiras impostas pela produção do diagnóstico de transtorno mental, lidamos com uma delimitação da concepção de infância na modernidade que, por um lado, produz relações de atenção e proteção consideradas necessárias para o desenvolvimento das crianças, e, por outro, acabaram gerando impossibilidades e limites à participação infantil em seus processos de cuidado. Esta pesquisa, portanto, objetivou exercitar a participação infantil no contexto da saúde mental infanto-juvenil brasileira por meio da proposição de um grupo GAM no Centro de Atenção Psicossocial de Vitória-ES. O grupo ocorreu semanalmente, durando cerca de uma hora e meia. Participaram, além dos pesquisadores, 21 familiares de crianças e profissionais do serviço. Para delimitação deste artigo, optou-se por narrar de forma mais aprofundada a experiência de uma das mães do grupo e seu filho, de modo a acessar os paradoxos e ambiguidades vividos em torno do uso do medicamento e os efeitos da abertura à experiência de participação infantil neste processo.

Palavras-chaves:
Saúde Mental; Infância; Participação; Sistemas de Medicação

Abstract

This article presents some contributions of an intervention research on the mental health of children and adolescents based on the Autonomous Medication Management (GAM) strategy. Medication management is a critical issue in the Brazilian country despite the advances spurred by the Psychiatric Reform. Rarely do treatments consider the experiences lived by psychotropic users and their relatives as legitimate knowledge, and such issue becomes even more complex when these users are children. Besides the difficulties and barriers imposed by the diagnosis of mental disorder, the conception of childhood has been delimitated in the modern era, which produces relations of attention and protection considered necessary for children development, but end up creating impossibilities and limits to child participation in their care processes. Considering that, through the proposition of an Autonomous Medication Management (GAM) group at the Child and Youth Psychosocial Care Center (CAPSi) in Vitória/ES, this research aims to stimulate children’s participation in the context of mental health for children and adolescents in Brazil. The group included researchers, twenty-one family members of the children, and professionals, and consisted of weekly meetings of about one hour and a half. This article thoroughly describes the experience of one mother from the group and her son, discussing the paradoxes and ambiguities regarding the medication use, as well as the effects of the openness to the experience of infant participation in this process.

Keywords:
Mental Health; Childhood; Participation; Medication Systems

Resumen

Este artículo pretende presentar las contribuciones de una investigación-acción en el ámbito de salud mental infantojuvenil brasileña desde la estrategia de la Gestión Autónoma de la Medicación (GAM). A pesar de los avances obtenidos con la Reforma Psiquiátrica brasileña, la gestión de la medicación todavía es muy importante en este país. Las experiencias vividas por los usuarios de psicotrópicos y sus familias raramente se consideran un saber legítimo en relación al tratamiento, y el tema se vuelve aún más complejo cuando los usuarios son niños. Además de las barreras impuestas por la producción del diagnóstico de trastorno mental, la concepción de infancia en la modernidad produce, por un lado, relaciones de atención y protección consideradas necesarias para el desarrollo de los niños y, por otro, genera imposibilidades y límites a la participación infantil en sus procesos de cuidado. En esta investigación se propone abordar la participación infantil en el contexto de la salud mental infantojuvenil brasileña, por medio de la proposición de un grupo GAM en el Centro de Atención Psicosocial de Vitória (Brasil). Las reuniones del grupo se llevaron a cabo semanalmente con aproximadamente una hora y media de duración. Participaron, además de los investigadores, 21 familiares de niños y profesionales del centro. Para delimitar este artículo, se optó por narrar de forma más profundizada la experiencia de una de las madres y su hijo para que se comprendan las paradojas y ambigüedades acerca del uso del medicamento y los efectos de la apertura a la experiencia de participación infantil en este proceso.

Palabras clave:
Salud Mental; Infancia; Participación; Sistemas de Medicación

Introdução

Este artigo apresenta contribuições de uma pesquisa-intervenção realizada no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-juvenil (CAPSi) de Vitória-ES, que visava exercitar a participação de crianças e familiares nos tratamentos em saúde mental a partir da proposição de um Grupo de Gestão Autônoma da Medicação (GAM). A GAM é uma estratégia do campo da saúde mental que problematiza a relação dos sujeitos com seus tratamentos e medicamentos, considerando seus efeitos sobre os múltiplos aspectos de suas vidas (Campos et al., 2014Campos, R. T. O., Passos, E., Palombini, A., Gonçalves, L. L. M., Santos, D., Stefanello, S., Melo, J., Silveira, M., Guerra, S., Sade, C., Guerini, L. (2014). Guia o moderador? Gestão Autônoma da Medição (GAM). DSC/FCM/UNICAMP; AFLORE; DP/UFF; DPP/UFRGS.).

A despeito dos avanços e conquistas da Reforma Psiquiátrica brasileira (Ministério da Saúde [MS], 2005Ministério da Saúde. (2005). Reforma psiquiátrica e política de saúde mental no Brasil.), a questão da medicação é ainda um ponto crítico apinhado de tensões e desafios em nosso país. Além da problemática em torno do excesso de prescrição de psicotrópicos, decorrente dos processos de medicalização e medicamentalização da vida1 1 De acordo com Caliman, Passos e Machado (2016), os processos de medicamentalização da vida se instituem quando a prescrição do medicamento é entendida como a melhor (e única) forma de cuidar, sobrepondo outras práticas, estratégias e tecnologias. Submetido à medicalização, o processo de medicamentalização ocorre quando a prescrição do medicamento passa a ser o foco das ações, a solução rápida que busca a normalização. , o acesso a esses medicamentos no Brasil também é um fator de dificuldade, posto que estes nem sempre são dispensados pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o que se soma à falta de investimento político e econômico em outras estratégias e tecnologias de cuidado.

Outro desafio imposto pela temática da medicação se refere a sua gestão, praticada nos serviços muitas vezes de maneira hierarquizada e centralizada nas decisões do médico prescritor (Campos et al., 2012Campos, R. T., Passos, E., Palombini, A., Leal, E. M., Serpa Junior, O. D., Emerich, B. F., Marques, C. C., Santos, D. V. D., Melo, J., Gonçalves, L. L. M., Surjus, L., Silveira, M., Arantes, R. L., Rodrigues, S., Otanari, M., & Carvalho, J. (2012). Guia da Gestão Autônoma da Medicação - GAM. DSC/FCM/UNICAMP, AFLORE; DP/UFF, DPP/UFRGS.). As experiências vividas pelos usuários que fazem uso de psicotrópicos e por seus familiares raramente são consideradas um saber legítimo em relação ao tratamento, o que os impede muitas vezes de participar de seus processos de cuidado (Marques, Palombini, Passos, & Campos, 2013Marques, C. C., Palombini, A., Passos, E. & Campos, R. T. O. (2013). Sobre mudar de lugar e produzir diferenças: A voz dos usuários de serviços públicos de saúde mental. Mnemosine, 9(1), 106-126.). Poucos são os espaços de conversa e negociação frente às decisões terapêuticas, o que gera distanciamento entre aqueles que detêm o saber e que podem decidir e aqueles que não participam por não terem suas experiências consideradas parte desse saber. Como consequência, a gestão da medicação vai se tornando cada vez mais um processo isolado e solitário: ou decide-se sozinho (automedicação do usuário ou familiar em casa), ou decide-se sozinho pelo outro (médico prescritor, sobrepondo a experiência do usuário).

Nesse contexto, a GAM é colocada em prática como uma estratégia de intervenção que visa fomentar a ampliação da autonomia, da participação e do exercício da cidadania dos sujeitos que são historicamente silenciados e excluídos das decisões de seus tratamentos (Passos et al., 2013Passos, E., Palombini, A. L., Onocko-Campos, R., Rodrigues, S. E., Melo, J., Maggi, P. M., Marques, C. C., Zanchet, L., Cervo, Emerich B. (2013). Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: O dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, (41), 24-38.). Para tanto, dois princípios direcionam trabalho: autonomia e cogestão - ambos alinhados às diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental, da Reforma Psiquiátrica Brasileira e da Política Nacional de Humanização do Sistema Único de Saúde (SUS) (Melo, Schaeppi, Soares, & Passos, 2015Melo, J. J., Schaeppi, P. B., Soares, G., & Passos, E. (2015). Acesso e compartilhamento da experiência na Gestão Autônoma da Medicação: O manejo cogestivo. Cadernos HumanizaSUS, 5, 233-447.; Renault, 2015Renault, L. (2015). A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: O caso da gestão autônoma da medicação [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].). A noção de autonomia, tantas vezes associada a características de independência e autossuficiência, é pensada como construção coletiva, sustentada por uma rede de apoio e criação de laços de codependência; já a cogestão refere-se à gestão que se faz em conjunto - com usuário, equipe de saúde, familiares, cuidadores e comunidade, incluindo as perspectivas heterogêneas dos diferentes sujeitos envolvidas no cuidado (Renault, 2015Renault, L. (2015). A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: O caso da gestão autônoma da medicação [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].). Participar do tratamento, então, não significa gerir sozinho: trata-se de ter a possibilidade de fazer escolhas acompanhadas e apoiadas por um coletivo. Para a estratégia GAM, “quanto mais conectados a uma rede de cuidados estiverem, mais possibilidades os usuários, seus familiares e/ou equipe de saúde terão para administrar (gerir) a medicação” (Campos, 2014Campos, R. T. O., Passos, E., Palombini, A., Gonçalves, L. L. M., Santos, D., Stefanello, S., Melo, J., Silveira, M., Guerra, S., Sade, C., Guerini, L. (2014). Guia o moderador? Gestão Autônoma da Medição (GAM). DSC/FCM/UNICAMP; AFLORE; DP/UFF; DPP/UFRGS., p. 11).

Se a participação de usuários (adultos) e familiares no cuidado em saúde mental já se mostra desafiadora, ao tratarmos da saúde mental infanto-juvenil, campo no qual essa pesquisa se insere, as particularidades do cuidado do cuidado de crianças e adolescentes tornam a questão ainda mais complexa. Além dos engessamentos e barreiras impostos pelos diagnósticos psiquiátricos, lidamos, nos serviços de saúde e na vida de modo geral, com uma delimitação da concepção de infância constituída na modernidade (Ariès, 1981Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (2ª ed.). LTC Editora.), que circunscreve a infância em período inicial da vida, em que somos supostamente incompletos e, por isso, dependentes. Essa concepção, determinada por certa tradição de pensamentos, discursos e práticas, tende a caracterizar a infância como início, princípio, ou ainda como uma pré-existência, criando contornos dentro dos quais as crianças devem se reconhecer, formando um corpo infantil do qual se diz e se fala sobre (Ariès, 1981Ariès, P. (1981). História social da criança e da família (2ª ed.). LTC Editora.; Ceccim, 2001Ceccim, R. B. (2001). Pediatria, puericultura, pedagogia. . .: Imagens da criança e o devir-criança. Boletim da Saúde, 15(1), 87-103.; Hillesheim, 2008Hillesheim, B. (2008). Entre a literatura e o infantil: Uma infância. Abrapso Sul.; Kohan, 2005Kohan, W. (2005). Infância: Entre a educação e a filosofia. Autêntica.).

Se, por um lado, a concepção moderna de infância produz relações de atenção e cuidado consideradas necessárias para o desenvolvimento e proteção das crianças, por outro, ela reforça uma visão da criança como sujeito incapaz, vulnerável e/ou deficitário, gerando, muitas vezes, práticas tutelares em relação às crianças e limites à participação infantil em seus processos de cuidado. A criança é tratada como um “ser sempre em desenvolvimento”, a quem sempre faltará alguma coisa, posto que ela ainda não é, será (Couto, 2004Couto, M. C. V. (2004). Por uma política pública de saúde mental para crianças e adolescentes. In T. Ferreira (Org,), A criança e a saúde mental: Enlaces entre a clínica e política. Autêntica/FHC-FUMEC.).

Por tanto, lidamos hoje com os desafios de uma infância constituída e marcada por uma dupla-ausência. A primeira ausência estaria na criança, pois, mesmo presente, a criança é assombrada pelo fantasma da incompletude, ausente de certas capacidades, pois se considera que a ela sempre falta alguma coisa. A segunda seria uma ausência da criança nos espaços políticos e de direitos. Devido à suposta falta de “habilidades e capacidades” quando comparadas aos adultos, as crianças são privadas de participar das decisões que lhes dizem respeito, visto que não é permitido a elas dizer, sentir, opinar sobre si e sobre o mundo.

Considerando as crianças usuárias de serviços de saúde mental, a questão da participação fica ainda mais intrincada, visto que seus pontos de vista quase nunca aparecem nem são considerados ao longo de seus tratamentos. Em relação aos medicamentos psiquiátricos, percebe-se que, em muitos casos, elas nem sequer tomam conhecimento de que estão fazendo uso, ou mesmo dos motivos em sua ingestão. Podemos questionar, então, se o saber dessas crianças estaria ainda mais silenciado nas decisões sobre o tratamento. Seriam elas duplamente objetificadas? Pela infantilização2 2 Guattari e Rolnik (2005) falam de uma tendência contemporânea de “infantilização da infância” na qual pensam pelas crianças, gerenciam suas vidas, decidem por elas, criando relações de dependência. Também é importante ressaltar que o processo de infantilização pode direcionar-se aos adultos. Assim, a infantilização também é visível nas relações com usuários de saúde mental, quando se decide pelo outro, baseado em uma experiência que o sobrepõe. , que captura o direito de falarem sobre si, e pela hierarquia do saber médico, que sobrepõe a experiência do usuário? Teriam elas uma infância duplamente infantilizada?

Como apontam Couto e Delgado (2015Couto, M. C. V., & Delgado, P. G. G. (2015). Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: Inclusão tardia, desafios atuais. Psicologia Clínica, 27(1), 17-40. https://doi.org/10.1590/0103-56652015000100002
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), as questões referentes à saúde mental infanto-juvenil só foram incluídas na agenda da saúde pública brasileira tardiamente, no processo Reforma Psiquiátrica. Até então, as ações e práticas relativas a esse cuidado, quando existentes, eram atribuídas aos setores de educação e assistência social, “com propostas mais reparadoras e disciplinares do que propriamente clínicas ou psicossociais” (p. 19). Diante disso, um dos desafios da atual Política de Saúde Mental para crianças e adolescentes é lidar com práticas de cuidado em saúde mental historicamente marcadas pela fragmentação, desarticulação e tutela. Suas diretrizes e propostas de ação visam “a construção de redes ampliadas e intersetoriais de atenção, de base comunitária, com ênfase na articulação entre serviços de diferentes níveis de complexidade” (p. 19), sendo os Centros de Atenção Psicossocial infanto-juvenil (CAPSi) o principal dispositivo e articulador dessa rede. Além disso, Couto e Delgado (2015Couto, M. C. V., & Delgado, P. G. G. (2015). Crianças e adolescentes na agenda política da saúde mental brasileira: Inclusão tardia, desafios atuais. Psicologia Clínica, 27(1), 17-40. https://doi.org/10.1590/0103-56652015000100002
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) reconhecem crianças e adolescentes como sujeitos psíquicos, “atravessados pelos enigmas da existência” (p. 21), com condições e pleno direito de se expressarem sobre seus sofrimentos.

Diante da complexidade das relações com a infância e loucura e dos efeitos produzidos por esses discursos e lugares cristalizados, esta pesquisa-intervenção se dedicou a um paradoxo problemático: como incluir e fazer valer o ponto de vista das crianças nas decisões do tratamento em saúde mental? Como aquelas que não são vistas como sendo racionais, responsáveis e tendo condições de responderem por si podem ter direito à autonomia? Como considerar a participação daquelas que estão duplamente ausentes dos espaços e decisões políticas? Nosso desafio era, portanto, exercitar o direito a participação infantil no contexto da Política de Saúde Mental brasileira para crianças e adolescentes por meio da proposição de um grupo GAM.

Participação infantil

Conforme salientado, a participação no tratamento não é uma questão específica das crianças, visto que não é garantida para o adulto. Para a estratégia GAM, a participação é um direito a ser cultivado, produzido, exercitado (Renault, 2015Renault, L. (2015). A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: O caso da gestão autônoma da medicação [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].) e, neste sentido, não é inerente a ninguém, portanto, é preciso fazer algumas considerações sobre o que estamos nomeando como participação infantil neste relato de pesquisa. Quais seriam as especificidades da experiência de participação infantil? Trata-se de decidir sozinho? Ouvir a opinião da criança e considerá-la nas tomadas de decisão é suficiente para garantir a participação? Quais desafios se colocam a seu exercício?

A pesquisadora Natália Fernandes, que tem um papel importante nos estudos da sociologia da infância, principalmente nos que envolvem a participação e visibilidade da criança como cidadã (Carvalho & Silva, 2016Carvalho, R. S. D., & Silva, A. P. S. (2016). A participação infantil em foco: Uma entrevista com Natália Fernandes. Psicologia em Estudo, 21(1), 187-194. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.29792Psicologia
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), fornece algumas pistas que nos ajudam a pensar sobre essa questão. Em uma entrevista realizada por Carvalho e Silva (2016Carvalho, R. S. D., & Silva, A. P. S. (2016). A participação infantil em foco: Uma entrevista com Natália Fernandes. Psicologia em Estudo, 21(1), 187-194. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.29792Psicologia
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), Fernandes ressalta que participação infantil é colocada como questão acadêmica e científica nos meados finais da década de 1980, a partir da Convenção de Direitos da Infância (CDC)3 3 A CDC é um documento oficializado como lei internacional que legitima uma diversidade de direitos às crianças, trazendo uma série de avanços na luta pelo direito de participação infantil. É possível acessar o documento pelo do link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990- 1994/d99710.htm . Esta reconhece a criança como sujeito com direito à participação, legitimando formalmente seu envolvimento nos assuntos que lhe dizem respeito. Com possíveis atravessamentos pelo movimento da convenção, Fernandes destaca o surgimento, nesse mesmo período, da Sociologia da Infância, campo de estudos que compreende a criança como sujeito de direitos, um ator social.

Para a pesquisadora, a participação pode ser definida como uma

ação dotada de sentido para o sujeito, e que tenha implicações; implicações em termo de transformação social. Não precisa mudar o mundo, nem o país, nem o bairro, podem ser mudanças pontuais no próprio sujeito, no próprio grupo, mas esse sujeito tem que sentir que aquela ação intencional que ele desencadeia é acolhida num determinado coletivo, e depois de ter sido acolhida, que tem impacto ou não (Carvalho & Silva, 2016Carvalho, R. S. D., & Silva, A. P. S. (2016). A participação infantil em foco: Uma entrevista com Natália Fernandes. Psicologia em Estudo, 21(1), 187-194. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.29792Psicologia
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, p. 188).

É nos processos de discussão, confronto e negociação que é possível construir com a criança o exercício da participação (Carvalho & Silva, 2016Carvalho, R. S. D., & Silva, A. P. S. (2016). A participação infantil em foco: Uma entrevista com Natália Fernandes. Psicologia em Estudo, 21(1), 187-194. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.29792Psicologia
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). Na entrevista, Fernandes destaca a importância da dimensão coletiva desse processo. A participação, longe de ser um exercício individual, só é possível se for acolhida, construída, cultivada em um espaço coletivo. É preciso que a opinião da criança seja considerada, discutida, colocada lado a lado com outras proposições (Carvalho & Silva, 2016Carvalho, R. S. D., & Silva, A. P. S. (2016). A participação infantil em foco: Uma entrevista com Natália Fernandes. Psicologia em Estudo, 21(1), 187-194. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.29792Psicologia
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). Participar, então, não é saber articular questões, tomar decisões sozinhos, nem recusar ou aceitar algo que está dado: trata-se da possibilidade de fabricar novas alternativas sustentadas por uma rede de apoio (Renault, 2015Renault, L. (2015). A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: O caso da gestão autônoma da medicação [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].).

A concepção esboçada por Fernandes coloca em questão perspectivas clássicas que entendem que o exercício da participação está relacionado ao alcance de certa racionalidade e autonomia, que, supostamente, as crianças não têm, quando partimos das teorias e pensamentos hegemônicos sobre a infância. Para essa tendência de pensamento, caberia aos adultos decidir pelas crianças, pois dessa forma estariam protegendo-as de sua própria inaptidão (Soares, 2005Soares, N. F. (2005). Os direitos das crianças nas encruzilhadas da proteção e da participação. Zero-a-Seis, 7(12). https://doi.org/10.5007/%25x
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). Fernandes também problematiza as concepções que afirmam que a criança pode participar porque capaz de fazer escolhas/decidir (ou até mesmo decidir sozinha). Se esse é um passo importante do processo participativo, não pode ser o único. É preciso fomentar a participação infantil sem sucumbir à lógica da escolha (Mol, 2008Mol, A. (2008). The logic of care: Health and the problem of patient choice. Routledge.), do decidir sozinho, da autonomia pensada com independência/autossuficiência e da responsabilização individual.

Ainda seguindo a definição de Fernandes, podemos afirmar que participar é necessariamente uma ação que afeta, que cria modulações nas relações e no próprio sujeito. É também nesta direção que a estratégia GAM nos ajuda a formular que participar é provocar variações, transformações e reposicionamentos subjetivos; dissolver pontos de vistas; transformar realidades. Mais do que um direito, a participação é uma condição da existência no mundo, de uma existência viva, de ser sujeito na construção de si e de seu mundo.

O grupo GAM no CAPSi

A partir das considerações aqui tecidas sobre a participação infantil, aliadas à estratégia GAM, podemos dizer que o objetivo da pesquisa foi construir um espaço de escuta e acolhimento das experiências das crianças, de forma que elas pudessem participar efetivamente nas negociações e decisões do tratamento. Nesse sentido, a metodologia adotada é a da pesquisa-intervenção participativa, posto que visa acolher as múltiplas experiências vividas e fazer valer os diferentes pontos de vista partilhados (Renault, 2015Renault, L. (2015). A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: O caso da gestão autônoma da medicação [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].).

A pesquisa também se orientou por conceitos e direções da metodologia cartográfica, compreendida como um posicionamento ético-político no campo da experiência, no qual sujeito e objeto de pesquisa emergem de sua relação, como processo (Passos & Kastrup, 2013Passos, E., Palombini, A. L., Onocko-Campos, R., Rodrigues, S. E., Melo, J., Maggi, P. M., Marques, C. C., Zanchet, L., Cervo, Emerich B. (2013). Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: O dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, (41), 24-38.). Na cartografia, o ato de pesquisar tem potencial de disparar novas problematizações, acionar processos de mudanças nos sujeitos, criar mundos e produzir realidade. Pesquisar e intervir são processos indissociáveis, pois estamos sempre intervindo na realidade para conhecê-la (Sade, Renault, Melo & Passos, 2013Sade, C., Renault, L. R. B., Melo, J. J. M., & Passos, E. (2013). O uso da entrevista na pesquisa-intervenção participativa em saúde mental: O dispositivo GAM como entrevista coletiva. Ciência e Saúde Coletiva, 18(10), 2813-2824. 2013. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001000006
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; Renault, 2015Renault, L. (2015). A análise em uma pesquisa-intervenção participativa: O caso da gestão autônoma da medicação [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].).

Após consolidada uma parceria entre a instituição de pesquisa e o CAPSi de Vitória-ES e aprovada proposta pelo Comitê de Ética (CAAE: 45744815.0.0000.5542), em dezembro de 2013 iniciou-se a construção de um Grupo de Intervenção (GI) GAM. Os GI são espaços de leitura e discussão coletiva do Guia GAM-BR4 4 O Guia GAM-BR, como foi traduzido para o Brasil, é uma cartilha organizada em passos, com questões relativas às experiências vividas dos usuários de saúde mental, aos direitos em relação ao tratamento, às informações técnicas sobre os fármacos, entre tantas outras, e que tem o objetivo de enfrentar o uso pouco crítico dos medicamentos psiquiátricos no país (Passos, Palombini, & Onocko-Campos, 2013). A versão brasileira do Guia encontra-se disponível no link: http://www.fcm.unicamp.br/fcm/laboratorio-saude-coletiva-e-saude-mental-interfaces. , nos quais os participantes podem ampliar a compreensão sobre os medicamentos (além de outras questões relacionadas a seu uso), compartilhar experiências na relação com a medicação e coletivizar decisões (Campos et al., 2012Campos, R. T. O., Palombini, A. L., Silva, A. E., Passos, E., Leal, E. M., Serpa Júnior, O. D., Marques, C. C., Gonçalves, L. L. M., Santos, D. V. D., Surjus, L. T. L. S., Arantes, R. L., Emerich, B. F., Otanari, T. M. C., Stefanello, S. (2012). Adaptação multicêntrica do guia para a gestão autônoma da medicação. Interface, 16(43), 967-980. https://doi.org/10.1590/S1414-32832012005000040
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).

Como, no momento inicial da pesquisa-intervenção, não havia registro de trabalhos envolvendo a GAM com o público infanto-juvenil, visto que a estratégia foi construída e experimentada com adultos, optou-se pelo formato de GI com familiares (GIF)5 5 No período de adaptação da estratégia para o Brasil, esses grupos foram realizados nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e se compuseram de duas formas: Grupos de intervenção com usuários (GIU) e Grupo de intervenção com familiares (GIF), ambos incluindo também profissionais do serviço e pesquisadores universitários. , considerando que, também para o familiar, são raros os espaços participativos e de partilha de sua experiência. Ademais, são eles que frequentemente fazem a gestão da medicação em casa, acompanham seus efeitos na vida dos usuários e em suas redes de pertencimento, auxiliam nas tarefas do dia a dia e os acompanham nos serviços de saúde. Tratando-se de usuários crianças, essa relação é ainda mais visível. A própria Política de Saúde Mental para crianças e adolescentes tem como diretriz a intersetorialidade, portanto, é imprescindível que o trabalho nos serviços com atendimento voltado para esse público envolva uma rede de cuidado que inclui minimamente (e, diríamos, principalmente) a família.

O GIF no CAPSi foi acompanhado pelos pesquisadores até o final de 20166 6 É importante ressaltar que após a saída dos pesquisadores 2016, o grupo GAM continuou sendo realizado no CAPSi com os profissionais e familiares e permaneceu acompanhado pela pesquisa, porém, a partir do dispositivo de supervisão grupal dos profissionais, realizado na Universidade. Este artigo, portanto, faz referência a um período específico do grupo e não o tempo integral de sua realização. . Nos três anos de trabalho de pesquisa o grupo GAM ocorreu semanalmente, durando cerca de uma hora e meia. Participaram do grupo, além dos pesquisadores, 21 familiares de crianças, duas psicólogas, um psiquiatra, uma assistente social, um musicoterapeuta, uma enfermeira, uma terapeuta ocupacional, uma pediatra, um educador físico e alguns estagiários do serviço7 7 Vale demarcar que esses participantes não estiveram todos presentes no grupo ao mesmo tempo; diversas entradas (e saídas) se deram ao longo do processo grupal. Além disso, muitos profissionais tiveram presenças pontuais no grupo. . Os familiares eram, em sua maioria, mães ou mulheres que ocupavam esse lugar no cuidado com as crianças - uma tia que detinha a guarda dos sobrinhos, uma mãe adotiva e avós que se responsabilizavam pelos netos, por diversos motivos. Pelas crianças, eram chamadas de mães. Essas mães eram moradoras da cidade de Vitória e muitas delas habitavam bairros periféricos, alguns marcados por condições de extrema violência, exposição ao tráfico de drogas e fragilidade de políticas públicas de moradia, saneamento básico, saúde e educação. Essas mulheres era, em sua maioria, negras, e exerciam funções como as de faxineira, manicure, cabeleireira, costureira e artesã. Muitas também eram vinculadas a alguma igreja ou prática religiosa. Algumas delas já frequentavam o CAPSi há bastante tempo, iniciando o acompanhamento quando os filhos eram bem pequenos.

A cada grupo, íamos nos aproximando dessas crianças, dessas mães, dessas famílias, de seus entornos, de suas tantas histórias. Histórias intensas, por vezes avassaladoras, e que solicitavam do grupo silêncio, escuta e acolhimento. Ao longo dos encontros, foi possível sustentar o processo de legitimação do lugar de saber de quem acompanha, cuida e educa; de quem sente na pele os desafios em se partilhar o cuidado. Era preciso fortalecer a experiência dos familiares, afinal, como cultivar o direito à participação infantil quando a participação/inclusão do familiar ainda não tem lugar? Contudo, o desafio inicial ainda persistia: como construir processos participativos com crianças a partir de um grupo com familiares? Como dar passagem à perspectiva da criança? Que efeitos a experiência infantil, quando acessada e incluída, produziria no grupo? A abertura para a experiência infantil nos permite desestabilizar as formas de silenciamento e assujeitamento da infância? Como? São questões que buscaremos desdobrar a partir da experiência grupal.

Para isso, distinguimos três vias ou três dimensões de acesso à experiência de participação infantil experimentadas no grupo GAM, com o intuito de analisar como as modulações, os movimentos e construção da participação foram comparecendo e se fazendo ao longo do trabalho. São vias ou dimensões da experiência vivida e em processo que se distinguem para fins metodológicos, mas não se separam no processo de constituição de outros modos de pensar-viver a infância nas crianças e adultos, na relação entre estes.

Para delimitação deste artigo, optou-se por narrar de forma mais aprofundada a experiência de uma das mães do grupo e seu filho: Carmen e Felipe8 8 Nomes fictícios. . Carmen foi uma das mães que se manteve no grupo desde seu início, ademais, sua experiência e de Felipe com o uso de um psicoestimulante específico, o metilfenidato9 9 O metilfenidato é um psicoestimulante comumente indicado para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), vendido no Brasil sob os nomes comerciais Ritalina ou Concerta. , permite acessar os paradoxos e ambiguidades vividas em torno do uso do medicamento e os efeitos da abertura à experiência de participação infantil neste processo.

Primeira via: o exercício da participação no conversar

A primeira via experimentada foi formulada a partir de uma estratégia de manejo grupal10 10 De acordo com Melo, Schaeppi, Soares e Passos (2015), o manejo é uma operação da estratégia GAM que permite “performatizar a gestão autônoma como prática de cuidado em saúde mental” (p. 237), um modo de fazê-la funcionar. Se os princípios que direcionam o trabalho da GAM são cogestão e autonomia, o manejo é o fio que conduz nessa direção, não como forma de “alcançar” esses princípios, mas para exercitá-los cotidianamente no grupo. Por isso, ele é também denominado manejo cogestivo. Apesar de localizar-se inicialmente na figura de um (ou mais) manejador, é fundamental que o exercício do manejo possa distribuir-se no grupo, entre os participantes. Nesse sentido, o manejo opera uma função também paradoxal: ao mesmo tempo que ele é localizado, ele é descentralizante (Melo et al., 2015) - faz circular afetos, experiências, falas. , que se mostrou interessante nas experiências dos GIF no Brasil. Como as perguntas do guia são direcionadas a usuários de medicamentos, os familiares e trabalhadores foram instigados a responder as questões pensando em como os usuários responderiam. Contudo, assim que lançamos esse desafio no grupo do CAPSi, logo nos primeiros encontros, alguns participantes argumentaram: “mas não é possível responder como ele [criança]”! De fato, não é possível (e nem desejável) que os participantes se identifiquem com as crianças, mas acreditamos que, quando o familiar ou o profissional responde “como se fosse” a criança, abre-se a possibilidade para que ele seja interferido por essa experiência, deslocando e ampliando seu ponto de vista, vivenciando um “não lugar”, que não é o da criança e nem dele mesmo, mas um terceiro híbrido, impessoal.

Além disso, a lacuna deixada pela impossibilidade de responder como a criança produziu uma curiosidade em alguns familiares, que passaram a fazer perguntas do guia a elas em casa. Esse nem sempre era um movimento fácil. Muitas crianças não queriam responder, associavam as perguntas do guia às tarefas da escola, porém, quando as conversas aconteciam, efeitos muito interessantes ocorriam, por ora surpreendentes, divertidos, mas também chocantes e desestabilizadores. A narrativa a seguir nos permite acompanhar alguns desses efeitos produzidos com a primeira via de acesso à experiência de participação infantil: como o exercício da conversa tornou-se uma via de participação e pôde deslocar e ampliar lugares pré-estabelecidos nas relações entre mãe, filho e medicação.

No segundo passo do guia, intitulado “observando a si mesmo”, é proposta a seguinte questão: “Você pode imaginar sua vida sem a medicação?”. Curiosas para saber o que as crianças responderiam, algumas mães indagaram aos filhos em casa e compartilharam as respostas no encontro seguinte do grupo. A partir de uma das respostas dadas por Felipe, a pesquisadora pergunta para Carmen como foi para ela ouvir o filho falar que consegue imaginar a vida dele sem medicamento.

Felipe foi diagnosticado com Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) quando tinha apenas 1 ano e meio de idade. Segundo a mãe, esse foi um processo muito difícil para ela, afinal, além do estigma trazido por um diagnóstico psiquiátrico, Felipe era muito novo para receber o tratamento medicamentoso com metilfenidato e, na ausência de alternativas de tratamento, a solução encontrada foi o uso de outros fármacos e calmantes, mas, segundo a mãe, estes faziam pouco efeito: “Logo ele falava que o efeito estava passando e começava a pular. E você tem que pular junto! E a gente pulava junto, até que ele desmaiava. Ele não dormia, ele desmaiava. . .”.

Talvez, Carmen seja uma das mães do grupo que mais tenha buscado o tratamento medicamentoso para o filho. Mulher negra, de fala forte e articulada, religiosa, que se constituiu quase fortaleza para brigar pelo filho e por seus direitos. A briga pelo medicamento foi mais uma de tantas outras com a escola, com a coordenação de educação especial, com outras instituições como a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) e o próprio CAPSi.

Aos 5 anos, Felipe iniciou o uso da Ritalina e, segundo Carmen, o remédio fazia efeito por exatamente 4 horas; passado esse tempo, o menino voltava a ser a criança que era, agitado, gritando muito: “O medicamento não resolve tudo”, ela diz. No entanto, é ao metilfenidato que Carmen credita a entrada do filho no processo de letramento, que agora, com 7 anos, lê e escreve. Isso não é pouco para a mãe nem para o filho, que, em muitos momentos, como nos informou Carmen, “pedia para tomar o remédio, porque estava muito nervoso”. Carmen também expressou diversas vezes seu incômodo diante de alguns efeitos da Ritalina em seu filho. Sob efeito do medicamento, ele fazia tudo o que ela pedia, mas de forma apática, desinteressada. Carmen dizia: “Mas meu filho não é assim”. Ainda nas palavras da mãe, o filho com a medicação “fica igual um vegetal, uma plantinha”. Carmen reconhece que, para a escola, esse efeito é desejado, pois “numa sala com 40 alunos, se consegue que um vire uma plantinha já é alguma coisa”.

Ao compartilhar no grupo sua experiência fazendo as perguntas do guia para Felipe em casa, Carmen diz que ouvir do filho que ele ficaria bem sem a medicação foi angustiante.

Primeiro era angustiante ouvir ele falar que precisava do remédio. Hoje é angustiante saber que ele não acha que o remédio seja tão bom assim. . . mas que eu percebo, e às vezes ele percebe ser necessário para ele. É dolorido porque você não tem outras direções. Com o remédio, ele já consegue ouvir um não, consegue se direcionar para outras coisas sem dar aquela crise emocional que ele tem. Nessa parte, para mim é bom. Por outro lado, não é ele como meu filho mesmo, sabe?. . . Aquela pessoa que é daquele jeito que é. . . não é aquela criança que, eu não sei explicar, age naturalmente. . . Pra mim, é difícil, mas eu ainda não vi outra solução.

Para Carmen, ouvir e considerar Felipe é angustiante, pois ele demonstra um ponto de vista que muda com o tempo, na medida em que que pedia o medicamento e agora vislumbra a possibilidade de sua retirada. Esse ponto de vista que é, portanto, modulado pelas experiências vividas, pelas relações estabelecidas com o medicamento e com as situações que o solicitam como estratégia de cuidado. No exercício da conversa, Felipe surge como alguém que pode dizer de si, dos efeitos do medicamento sobre si, e é desse lugar de saber que ele pode dizer que o remédio não é tão bom assim, embora perceba ser necessário. O conhecimento produzido por Felipe no encontro com Carmen e com a medicação é complexo - o medicamento é bom e ruim, destoando, portanto, das posições simplistas que tendem a posicionar o remédio no lugar de uma pílula milagrosa ou, contrariamente, como tecnologia de controle que é sempre nociva. Embora angustiante, o acesso à experiência de Felipe pela via da conversa ajudou a Carmem (e ao grupo GAM) perceber que o medicamento não é autossuficiente, que seus efeitos resultam da constelação de fatores nos quais ele está imbricado - constelação movente e mutante.

No encontro com Felipe, a partir da primeira dimensão de acesso à experiência de participação infantil, Carmen se põe a pensar, a colocar em análise os diversos efeitos do medicamento em suas vidas. Neste processo, ela também surge participante da produção de conhecimento singular sobre o medicamento, na medida em que a experiência com a medicação emerge da rede de relações nas quais ela está imbricada. Nessas relações, há a problemática constatação da ausência de outras direções de tratamento e cuidado. Se não for o medicamento, o quê mais? Com quem ou o quê contar?

Carmen adiciona ainda uma outra questão:

Eu. . . Eu consigo ver ele [sem a medicação] por alguns dias, alguns minutos, algumas horas. Não totalmente. Ele sem medicação, eu fico sem cabelo nenhum na cabeça. A questão não sou eu, não é ele... é onde ele está. . . Eu não vivo só eu e ele. Se fosse só eu e ele, eu te responderia tranquilamente que sim, dá para viver sem a medicação; porque eu tô junto com ele, eu tô ensinando. . . Ninguém vai falar para ele “você é muito chato, você é insuportável, você não presta”. . . Mas, como a gente vive em sociedade, eu não imagino ele sem o medicamento. Sem o medicamento ele vai sofrer muito mais do que tomando.

Para Carmen, este é o grande entrave. Diante de tantas impossibilidades, processos de exclusão, barreiras e sofrimento, a medicação é apontada como a solução, mesmo que ela também não dê conta sozinha, mesmo com seus efeitos colaterais indesejados, mesmo com a permanente dúvida das mães em dar ou não, mesmo que o filho imagine sua vida sem o medicamento - pois é considerada como a forma (única) das crianças permanecerem em espaços importantes, como a escola, de cultivarem relações, de viverem “na sociedade”. Essa é uma solução que corre o risco, no entanto, de eliminar as dúvidas quando deixa de ser coletivamente colocada em análise.

São nos momentos em que se tenta achar “a” solução, que verdades fixas sobre as crianças vão sendo construídas, suas histórias vão se fechando, simplificando e individualizando. Por vezes, pelo modo com que sua prescrição é gerada e na centralidade que ocupa nas estratégias de cuidado, a medicação torna-se um dos pontos da rede de instituições que compõem, enrijecem e cristalizam as infâncias. Apesar de garantir certa presença da criança em determinados espaços, também há risco de, com a medicação, se desinvestir ou invisibilizar outras tentativas de acolhimento e formas de cuidado - processo que demarcamos anteriormente como “medicamentalização da vida”.

A cada grupo, tomávamos como direção afirmar o direito de não se fechar a decisão sobre “dar ou não” o medicamento. Era preciso acompanhar seus efeitos. Buscávamos sustentar as incertezas, as possibilidades de voltar atrás, de repactuar, reconsiderar e reavaliar: como é a relação dos sujeitos com seus medicamentos? Que função a medicação ocupa em suas vidas? No que ela ajuda? Em quais momentos? No que não ajuda? O que ela permite? O que ela impede? Quais outras estratégias de cuidado são possíveis? Lidar com essas questões exige uma postura atenta aos movimentos das crianças, muita conversa e exercício participativo. Conversa com as crianças, com os profissionais, com o serviço, conversa no grupo: uma conversa que nunca se fecha completamente, pois, quando pensamos que está tudo bem, algo muda, um problema ressurge. As variações e instabilidades não apenas fazem parte, mas são condições do viver.

Retomando a concepção de Fernandes sobre a participação infantil: são nos processos de discussão, confronto e negociação que é possível construir com a criança uma dimensão ou via de participação. É preciso que a opinião da criança seja considerada, discutida, colocada lado a lado com outras proposições, para, a partir daí, se tomar uma decisão sobre os assuntos que lhe dizem respeito (Carvalho & Silva, 2016Carvalho, R. S. D., & Silva, A. P. S. (2016). A participação infantil em foco: Uma entrevista com Natália Fernandes. Psicologia em Estudo, 21(1), 187-194. https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i1.29792Psicologia
https://doi.org/10.4025/psicolestud.v21i...
). No grupo, essa dimensão da participação era experimentada por meio do exercício de conversar.

A primeira via de acesso ou dimensão da experiência de participação infantil consistiu, portanto, neste trabalho do manejo grupal que, mesmo diante dos desafios e tensões, solicitava, incentivava e instigava, no encontro entre mãe (ou profissional) e criança, a conversa, a partilha e o estranhamento, apostando que essa interferência mútua possibilitaria o co-surgimento de outra relação adulto-infante. Tratava-se, então, de fazer encontrar, de diminuir distâncias e produzir conversa e interferência mútuas.

Segunda via: o exercício da participação no incluir

Em dado momento, as crianças passaram a compor o grupo GAM e eram acolhidas pelos participantes. Algumas dessas crianças eram irmãos das atendidas no CAPSi, vinham trazidas pelas mães e, a princípio, permaneciam no grupo por “não terem onde ficar”11 11 Durante um certo período, outros pesquisadores do grupo de pesquisa (que não participavam presencialmente do GIF) experimentaram estar com essas crianças no espaço coletivo do CAPSi e com as outras crianças que circulavam por ali. Esses foram os primeiros movimentos do que viria a ser, um ano depois, a Oficina da Palavra, nosso segundo dispositivo de trabalho realizado no CAPSi, que também teve como direção o exercício de processos de autonomia e cogestão com crianças, articulados à estratégia GAM. Contudo, em acordo com o CAPSi, os encontros da Oficina da Palavra foram realizados em dias diferentes do GIF, contando com a participação de outras crianças do serviço, não necessariamente aquelas que eram filhos das participantes do GIF. . Por vezes também as “nossas crianças”, filhos/as das participantes do grupo, entravam na sala após saírem dos atendimentos ou oficinas dos quais participavam, e, ainda, outras crianças usuárias do serviço entravam na sala onde o grupo se reunia, algumas vezes de maneira rápida e caótica, mas, em outras, demoravam-se ali, participando da conversa em curso. Elas intervinham com risos, piadas, gritos, puxões de cabelo, pedidos de comida, beijos, abraços, passando a compor aquele espaço conosco. Este movimento não foi premeditado pelos pesquisadores, embora, desde o início, o grupo GAM tenha tomado a decisão de se manter como grupo aberto, que acolheria novos participantes. Não imaginávamos, no entanto, que os “novos participantes” pudessem ser também crianças. Aos poucos, elas foram se sentindo acolhidas para participarem das discussões e colocarem na roda seus pontos de vistas.

A nova configuração grupal (incluindo a presença das crianças) permitiu um deslocamento no próprio grupo, que foi se tornando cada vez mais híbrido, incorporando usuários e familiares (adultos e crianças). Apropriando-nos e transformando as nomenclaturas convencionadas pela estratégia GAM, podemos dizer que, ao longo do processo grupal, o grupo no CAPSi foi se tornando um Grupo de Intervenção com Familiares e Usuários (GIFU), criançando a cena. Essa composição pôde se constituir como uma segunda via de acesso à experiência infantil, talvez a mais concreta, pois se tratou de incluir no grupo a experiência vivida pelas crianças, encarnada e narrada por elas: suas histórias, opiniões, seus sentimentos sobre o diagnóstico e a medicação, sobre a escola, sobre o mundo: incluí-las como atores da gestão compartilhada do cuidado.

Olharemos agora para uma cena na qual é possível colher algumas reverberações da experiência de participação infantil quando esta é incluída no coletivo. Entramos na habitual sala de reuniões do CAPSi e vamos nos organizando nas cadeiras até que chegam Carmen e, para nossa surpresa, Felipe, seu filho. Nesses anos de convivência com Carmen no CAPSi, tivemos alguns encontros com Felipe e fomos reunindo algumas imagens e impressões que apareciam do menino: nas falas de Carmen, Felipe aparecia como criança agitada, curiosa, faladora, brincalhona e que, em alguns momentos, perdia o controle e ficava “muito nervosa”. Para a psicóloga do CAPSi, que participou de alguns grupos GAM, ele era uma criança interessante, que ela sempre teve muita vontade de acompanhar no serviço. Essa psicóloga falou diversas vezes no grupo dos olhos atentos e brilhantes de Felipe, que a encantavam, mas que foram perdendo o brilho a partir do momento que o menino começou a fazer uso do metilfenidato. Para a escola, segundo Carmen, Felipe é o “terror”, menino-furacão que “domina a escola inteira”, mas que também é muito amável e tem alguns professores como parceiros.

Muitos Felipes já surgiram contados nesse grupo: alegre-tímido, nervoso-tranquilo, agitado-quieto, falador-“plantinha”, intenso e até “sem sentimentos”. Nosso trabalho nunca buscou rejeitar uma dessas imagens ou privilegiar outra, contudo, em nossos encontros com o menino, uma delas parece ter se fixado aos nossos olhares: um Felipe muito tímido, cabisbaixo, envergonhado e pouco falante, o que nos deixava curiosos para saber onde estaria a criança sapeca e vibrante que fazia Carmen ter ataques de riso quando contava as peripécias do menino no grupo.

No encontro, entretanto, outra surpresa. Carmen chega à sala e anuncia que levou Felipe para a escola sem a medicação12 12 Sabíamos que Carmen já vinha experimentando com o filho a retirada da medicação nos finais de semana ou nos dias que ficava em casa com ele, mas este foi o primeiro dia que ele foi sem a medicação para o ambiente escolar. pela primeira vez desde que ele iniciou o tratamento com o metilfenidato, há cerca de 4 anos. Olhamos para Felipe e, nesse momento, não sabemos o quanto essa fala de Carmen nos influencia, mas estamos diante de um menino alegre, com um algo no olhar que nunca tínhamos percebido (seria aquele brilho nos olhos sobre o qual a psicóloga falava?). Felipe está rindo e parece mais a vontade do que de costume. Enquanto Carmen fala, Cleide (familiar) e Ariel (criança que frequenta o CAPSi, neto de Cleide) entram na sala. Ariel está com fones de ouvido. Felipe olha para Ariel e grita dizendo que o menino “gosta de uma briga”. Ariel, porém, continua caminhando atrás de sua mãe/avó até sentar-se calmamente na cadeira. Em seguida responde que “não faz mais isso”. O grupo todo sorri. Cleide encosta no neto parecendo apoiá-lo.

O grupo todo quer ouvir a experiência de Carmen. A pediatra do CAPSi parece curiosa e entusiasmada ao saber que Felipe está sem medicação. Carmen conta que, após tanto tempo de uso do metilfenidato, nos últimos dois anos ela vem percebendo que consegue fazer algumas negociações e pactos com o filho, que antes não eram possíveis. A decisão de experimentar ir para a escola sem a medicação foi uma sugestão dela, mas, como vimos, constantemente conversada e discutida com Felipe, que disse à mãe que iria ficar legal sem a medicação. Na escola, ninguém ficou sabendo da decisão da mãe e do filho. É uma escolha de Carmen não contar: “quero ver como ele vai reagir, até aonde ele vai”. Um voto de confiança para essa relação que foi sendo construída entre os dois.

Carmen comenta feliz que Felipe conseguiu ficar um bom tempo na sala de aula e ninguém, aparentemente, desconfiou que ele estava sem a medicação. Passado algum tempo, Carmen foi chamada na escola, pois Felipe estava fora de sala. A mãe pede para o menino contar para o grupo o que aconteceu, mas ele ri e fala que está com vergonha. Ela insiste: “você falou para mim que ia contar no grupo GAM”. Depois ela entrega que Felipe ficou nervoso com a professora. “O que deixou você nervoso, Felipe?”. O grupo quer saber. Aos poucos, o menino vai se soltando e começa a falar timidamente. Ele tinha deitado a cabeça na mesa e a professora brigou. “E o que você fez, Felipe?”, Pergunta Carmen mais uma vez, convocando-o a falar. “Saí da sala”, ele responde envergonhado e acrescenta que a coordenadora da escola não deixa ninguém sair.

Nesse momento, a pediatra se dirige a Felipe e pergunta para o menino o que ele faria nessa situação se estivesse no lugar da coordenadora. Felipe responde de imediato: “Eu abriria os portões da escola para que todos os alunos pudessem sair!”. O grupo se surpreende e ri diante da espontaneidade da resposta. A pediatra insiste na conversa um pouco mais: “É mesmo? Deixar todo mundo sair? Aí ia ficar sem escola?”. O menino não muda a resposta. Carmen comenta que ele gosta de ficar com os seguranças da escola no portão, são seus amigos. “Ah, então, não tem nada a ver com a coordenadora. . .”, diz a pediatra baixinho, como se falasse com ela mesma, tentando entender a fala de Felipe.

Com “abrir os portões da escola”, de certa forma, podemos inferir que o acesso à experiência infantil instaura movimentos de abertura: dos portões da escola, de histórias, pontos de vistas, abertura de redes de apoio, de formas de cuidado, de novas relações entre adultos e crianças e, por fim, a abertura de processos participativos. Esse processo não é sem estranhamentos, constrangimentos e impasses. De acordo com Skliar (2014Skliar, C. (2014). Desobedecer a linguagem: Educar. Autêntica Editora.), o encontro com a experiência infantil pode ter efeitos diversos, variando desde uma “aproximação amorosa” a “uma indiferença brutal”. Ainda segundo o autor, “a perplexidade pode ser reduzida a poucos segundos, ou durar a vida. A perturbação pode importunar, incomodar ou ofender. Ou começar a fazer parte de nós mesmos” (p. 178). É somente quando cultivamos uma certa disponibilidade para o acesso e acolhimento dessa estranheza, quando nos propomos a uma relação de partilha, quando permitimos que essa experiência participe, que outras relações com as crianças podem emergir.

Buscou-se, a partir da segunda via de acesso ou dimensão da participação infantil, acolher essa criança que vem, que chega e que nos desloca, que por vezes caotiza o grupo como um participante legítimo. Procurou-se acessar os pontos de vistas dessas crianças concretas e, junto a isso, o desejo de transmutar suas experiências vividas, também marcadas pelos saberes e práticas construídos sobre elas. Afinal, como, no acolhimento da experiência infantil, dar passagem para sua dissolução e refazimento?

Terceira via: o exercício da participação no transformar

Como vimos, acolher no grupo a experiência das crianças em sua alteridade já se mostrava um desafio, visto que ela produzia perturbações e modificações. Para que essas experiências fossem incluídas no coletivo do grupo GAM e contassem efetivamente como legítimas, era necessário construir um coletivo sensível a essa experiência, que abrigasse os deslocamentos, as reverberações e as interferências produzidas no encontro com a criança. Essa experiência nos levou a analisar neste trabalho uma terceira via, uma terceira dimensão da experiência de participação infantil, aquela que acessa o infantil em nós (adultos).

Para sustentarmos conceitualmente essa terceira via, tomaremos como base alguns autores que nos ajudam suspender algumas noções cristalizadas de infância para discutir uma outra ética e estética desse conceito. Hillesheim (2008Hillesheim, B. (2008). Entre a literatura e o infantil: Uma infância. Abrapso Sul.), partindo da ideia de infante proposta por Kohan, propõe a não associação da infância com as crianças diretamente, apresentando uma compreensão de experiência infantil como “margem”. A autora traça uma dimensão da experiência infantil que se estende para além da criança concreta: “Infante é aquele que pensa de novo e faz pensar de novo, cada primeira vez” (Kohan, 2003 apud Hillesheim, 2008Hillesheim, B. (2008). Entre a literatura e o infantil: Uma infância. Abrapso Sul., p. 113).

Ao desassociar a infância de uma etapa ou período inicial da vida, Kohan e Hillesheim ajudam a romper a dimensão temporal cronológica e linear que fundamenta grande parte dos saberes e relações com a criança. Nos trabalhos desses (e outros) autores, aproximamo-nos do pensamento do filósofo Henri Bergson, no qual, conforme a leitura de Kastrup (2000Kastrup, V. (2000). O devir-criança e a cognição contemporânea. Psicologia: Reflexão e Crítica, 13(3), 373-382. https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000300006
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), é possível encontrar uma concepção de tempo que “se apresenta como coexistência de todos os tempos” (p. 375), isto é, presente passado e futuro não são temporalidades que se sobrepõem, mas coexistem virtualmente.

Numa filosofia que considera a coexistência das tendências e dos tempos, o modo de conhecer da criança não é algo a ser ultrapassado nem indicativo de um déficit em relação as formas cognitivas terminais, mas um modo de conhecer que assegura a abertura da cognição e persiste como virtualidade. No contexto de uma evolução criadora . . . o “infantil” e o “adulto” coexistem no interior da cognição e a dimensão “infantil” vai se destacar como uma tendência sempre virtual, capaz de fazer divergir as formas e as estruturas constituídas (Kastrup, 2000Kastrup, V. (2000). O devir-criança e a cognição contemporânea. Psicologia: Reflexão e Crítica, 13(3), 373-382. https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000300006
https://doi.org/10.1590/S0102-7972200000...
, p. 375).

Instigados pelas proposições de Bergson (2011Bergson, H. (2011). Memória e vida (2ª ed.). Martins Fontes.), os filósofos Deleuze e Guattari criam o conceito de devir-criança:

“uma” criança molecular é produzida. . . “uma” criança coexiste conosco, numa zona de vizinhança ou num bloco de devir, numa linha de desterritorialização que nos arrasta a ambos - contrariamente à criança que fomos, da qual nos lembramos ou que fantasmamos, a criança molar da qual o adulto é o futuro (1997 apud Kastrup, 2000Kastrup, V. (2000). O devir-criança e a cognição contemporânea. Psicologia: Reflexão e Crítica, 13(3), 373-382. https://doi.org/10.1590/S0102-79722000000300006
https://doi.org/10.1590/S0102-7972200000...
, p. 376).

Estamos admitindo, portanto, que a experiência infantil tem uma dimensão virtual da realidade, que se faz perceptível em suas qualidades de disrupção, criação, invenção e abertura para o novo. Também estamos considerando que partículas da experiência infantil podem se atualizar no adulto, nos momentos de divergência, abertura e criação. Se a realidade está sempre em movimento, em devir, é possível que um devir-criança atravesse o adulto enquanto força, virtualidade. Não se trata de voltar a ser criança ou passar de uma forma (adulta) a outra (criança), nem mesmo de revisitar lembranças infantis. É possível falar de uma memória, mas uma memória que se atualiza no presente e o modifica: já não é mais a criança que foi, nem o adulto que se é, mas um devir-criança, uma força disruptiva em movimento.

Passos e Kastrup (2013Passos, E., Palombini, A. L., Onocko-Campos, R., Rodrigues, S. E., Melo, J., Maggi, P. M., Marques, C. C., Zanchet, L., Cervo, Emerich B. (2013). Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: O dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, (41), 24-38.), ajudam a fortalecer essas questões ao trabalharem com duas dimensões da experiência que podem ser acessadas no processo de pesquisa, são elas: a experiência de vida e a experiência pré-refletida. A primeira inclui os processos motivacionais, as emoções e as reflexões sobre as vivências do sujeito. A segunda dimensão é a da experiência aquém da reflexão consciente e que tem o sentido ontológico de plano de coemergência de si e do mundo. São duas dimensões não excludentes, pois as experiências de vida são inseparáveis da experiência como plano de coemergência de si e de mundo (Passos & Kastrup, 2013Passos, E., Palombini, A. L., Onocko-Campos, R., Rodrigues, S. E., Melo, J., Maggi, P. M., Marques, C. C., Zanchet, L., Cervo, Emerich B. (2013). Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: O dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, (41), 24-38., p. 400).

Logo, se afirmamos que sujeitos e mundos estão em constante coemergência, interdependência, em um plano relacional, há uma dimensão da experiência que diz da vivência individual/pessoal dos sujeitos, mas há também uma segunda, que emerge na relação com o outro, com o mundo, caracterizando-se mais como uma dimensão impessoal. Os autores complementam ainda que o acesso à dimensão impessoal se dá “quando dissolvemos os pontos de vista daquele que pesquisa e daquele que é pesquisado” (Passos & Kastrup, 2013Passos, E., Palombini, A. L., Onocko-Campos, R., Rodrigues, S. E., Melo, J., Maggi, P. M., Marques, C. C., Zanchet, L., Cervo, Emerich B. (2013). Autonomia e cogestão na prática em saúde mental: O dispositivo da gestão autônoma da medicação (GAM). Aletheia, (41), 24-38., p. 401); afirmação que poderíamos desdobrar também, pensando na problemática desse trabalho, em quando dissolvemos os pontos de vista de adultos e crianças. A dimensão pré-refletida da experiência nos fornece pistas para pensar que a experiência que por ora nomeamos de “infantil” não é uma experiência inerente à criança, é múltipla, forjada nas relações e interdependência destas com sujeitos, grupos, espaços, objetos e territórios.

Portanto, a terceira dimensão, ou via de acesso à experiência de participação infantil, consistiu no trabalho de acessar a dimensão pré-refletida da experiência infante no grupo. Experiência que tem a força de transformar, recriar e acolher os movimentos de um devir-criança. Tentar incluir a experiência infante é uma aposta na experimentação, criação e invenção de si, movimento necessário quando percebermos que tudo ao redor caminha pelo viés da reprodução, dos modelos prontos e das formas instituídas. Exercitar um devir-criança é também disparar modos de afeição perceptiva, “quando os ouvidos estão abertos, quando o olhar está aberto, quando a pele está aberta, quando o mundo chega incontinente a um corpo que o recebe sem escrúpulos, sem armadilhas, sem jurisprudência” (Skliar, 2014Skliar, C. (2014). Desobedecer a linguagem: Educar. Autêntica Editora., p. 168).

Segundo Ceccim e Palombini (2009Ceccim, R. B., & Palombini, A. L. (2009). Imagens da infância, devir-criança e uma formulação à educação do cuidado. Psicologia e Sociedade, 21(3), 301-312.), é possível identificar o devir-criança nos acessos de alegria, na curiosidade risonha, no bom humor quando se detecta uma nova suavidade dos encontros. Em diversos momentos no grupo, foi possível experimentar o brincar e o variar. Um riso surgia, mesmo nas situações difíceis. Quando esse riso é indagado, alguns participantes relatam que é necessário falar dessa forma, rindo, para suportar certas coisas. Nestas circunstâncias, o riso parecia gerar uma leveza no grupo, uma disposição brincante que ajudava a habitar situações paradoxais sem sucumbir rapidamente ao desejo de simplificá-las ou polarizá-las.

Eis que Carmen comenta, rindo: “até que seria bom não ter que pensar mais no medicamento, seria bom se houvesse um ponto final”. A fala de Carmen traz um paradoxo encarnado, que está estampado em um riso que não entendíamos explicitamente, que aparecia no meio de falas tão sofridas e intensas e que nos desconcertava. Esse era o riso de alguém que já tentou colocar pontos finais, que sabe deste duplo aspecto: se, por um lado, o ponto final traz tranquilidade, ele também gera sofrimento quando queremos mantê-lo a todo custo, a rebote do caráter movente da experiência. Se a direção da pesquisa era considerar a complexidade da experiência do medicamento e sustentar processos de participação - na experiência da conversa, da abertura à experiência do outro - os “pontos finais”, que poderíamos considerar como pontos de vistas cristalizados, se equivocam.

O esforço de acessar a terceira dimensão, ou via da participação infantil, é uma forma de afirmar que a experiência infantil encarna uma potência de intensificar o acesso à experiência pré-reflexiva, a dissolução de pontos de vistas cristalizados e a criação de novas formas subjetivas abertas à diferença. Acessar essa dimensão do devir-criança como experiência de participação infantil parece condição para que as experiências disruptivas das crianças nos afetem, mas mais do que isso, que comecem “a fazer parte de nós mesmos” (Skliar, 2014Skliar, C. (2014). Desobedecer a linguagem: Educar. Autêntica Editora., p. 178).

Considerações finais

Ao acessar e incluir a experiência de participação infantil no grupo em suas três vias ou dimensões, esta pesquisa pôde ampliar o próprio conceito de participação infantil e acolher as modulações e rearranjos que surgiram em seu percurso. Se a proposta inicial era exercitar a participação das crianças usuárias em seus processos de cuidado a partir do exercício da participação dos familiares, ao longo da pesquisa, a intervenção no manejo grupal possibilitou incluir a criança não só com sua presença real, mas também como um discurso de equivocação e surpresa e ainda incluir a criança como uma virtualidade que também aparecia suspensa nos adultos. Nesse sentido, a intervenção não tem como alvo único e central a criança, ainda que estejamos atentos a ela, mas incide no plano de relações do qual a criança participa.

Também é importante considerarmos que, ao destacarmos três vias de acesso, ou três dimensões da participação infantil, não se buscou isolá-las exatamente, porque, ainda que façamos uma distinção entre tais dimensões, estas não se fazem de modo separado no cotidiano do trabalho. Talvez todas elas configurem uma só em sua radicalidade, distribuindo-se em diferentes movimentos. Quando o encontro e conversas entre adulto e criança, entre crianças e grupo GAM tornam-se de fato possíveis, é ali também que um devir-criança se insinua, surpreendendo a ambos, possibilitando transformar uma relação. Podemos concluir, portanto, que construir outras relações com as crianças demanda que familiares e profissionais recoloquem e desloquem as relações que estabelecem consigo e com o mundo, revisitando pontos finais cristalizados e enrijecidos.

Ao propor grupos com sujeitos heterogêneos, a estratégia GAM visa, justamente, intervir na trama de relações que envolvem o cuidado em saúde mental, considerando que há sempre ressonâncias entre as experiências. Logo, podemos afirmar que o que cuidamos em um grupo GAM são sempre relações. A composição do GIFU, em especial, evidencia ainda mais esse plano relacional na medida em que se propõe a fazer caber e transitar por experiências distintas (minimamente as de usuários e familiares crianças e adultos) na imanência do próprio grupo.

Retomando a experiência de Carmen e Felipe, quando a experiência infante de Felipe é acolhida, quando se interroga se ele consegue imaginar sua vida sem a medicação, pontos finais se equivocam (primeira via). Quando Felipe participa e narra sua experiência no grupo, pontos finais se equivocam (segunda via). Quando a mãe compartilha essa experiência no grupo e é interferida pelas experiências das outras participantes, rindo de seu próprio desejo de “pôr um ponto final”, pontos finais se equivocam (terceira via). O efeito é uma ampliação inclusivista, na qual podem emergir novas relações com a infância e com o medicamento.

No grupo, íamos mergulhando nas histórias partilhadas, sustentando as equivocações, cultivando processos de abertura para que relações endurecidas com a infância e os pontos de vistas cristalizados pudessem sofrer transformações. No lugar de pontos finais, buscávamos tornar possível a construção de afirmações provisórias e situadas a cada momento.

Ao fomentar a experiência de participação infantil em suas três dimensões, esta pesquisa-intervenção também possibilitou tencionar o lugar de incapaz, de objeto de saber e propiciar que a criança comparecesse como um sujeito mais potente, mais ativo e que participa de seu próprio cuidado. Foi possível construir, coletivamente, outras relações com as crianças usuárias de saúde mental, criando um lugar mais interessante com elas, para além do diagnóstico.

Por fim, a partir das cenas trabalhadas e das considerações tecidas sobre a participação, concluímos que a experiência que o GIFU visou acessar, cultivar, acompanhar é, per si, a experiência de participação como ação ativa na constituição de si e do mundo - compreendendo que as relações em torno do tratamento medicamentoso e das estratégias de cuidado são parte importante desse mundo. Essa experiência de participação como ação que é/precisa ser cultivada cotidianamente e coletivamente, pois consiste, antes de tudo, em criar condições de possibilidade para que possamos ampliar nossa capacidade de atuar na constituição das relações que nos formam.

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  • 1
    De acordo com Caliman, Passos e Machado (2016Caliman, L. V., Passos, E., & Machado, A. M. (2016). A medicação nas práticas de saúde pública: Estratégias para a construção de um plano comum. In V. Kastrup, & A. M. Machado (Orgs.), Movimentos micropolíticos em saúde, formação e reabilitação. Editora CRV.), os processos de medicamentalização da vida se instituem quando a prescrição do medicamento é entendida como a melhor (e única) forma de cuidar, sobrepondo outras práticas, estratégias e tecnologias. Submetido à medicalização, o processo de medicamentalização ocorre quando a prescrição do medicamento passa a ser o foco das ações, a solução rápida que busca a normalização.
  • 2
    Guattari e Rolnik (2005Guattari, F., & Rolnik, S. (2005). Micropolítica: Cartografias do desejo (7ª ed.). Vozes.) falam de uma tendência contemporânea de “infantilização da infância” na qual pensam pelas crianças, gerenciam suas vidas, decidem por elas, criando relações de dependência. Também é importante ressaltar que o processo de infantilização pode direcionar-se aos adultos. Assim, a infantilização também é visível nas relações com usuários de saúde mental, quando se decide pelo outro, baseado em uma experiência que o sobrepõe.
  • 3
    A CDC é um documento oficializado como lei internacional que legitima uma diversidade de direitos às crianças, trazendo uma série de avanços na luta pelo direito de participação infantil. É possível acessar o documento pelo do link: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990- 1994/d99710.htm
  • 4
    O Guia GAM-BR, como foi traduzido para o Brasil, é uma cartilha organizada em passos, com questões relativas às experiências vividas dos usuários de saúde mental, aos direitos em relação ao tratamento, às informações técnicas sobre os fármacos, entre tantas outras, e que tem o objetivo de enfrentar o uso pouco crítico dos medicamentos psiquiátricos no país (Passos, Palombini, & Onocko-Campos, 2013Passos, E., Palombini, A. L., & Onocko-Campos, R. (2013). Estratégia cogestiva na pesquisa e na clínica em saúde mental. Estudos Contemporâneos da Subjetividade, 3(2), 4-17.). A versão brasileira do Guia encontra-se disponível no link: http://www.fcm.unicamp.br/fcm/laboratorio-saude-coletiva-e-saude-mental-interfaces.
  • 5
    No período de adaptação da estratégia para o Brasil, esses grupos foram realizados nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e se compuseram de duas formas: Grupos de intervenção com usuários (GIU) e Grupo de intervenção com familiares (GIF), ambos incluindo também profissionais do serviço e pesquisadores universitários.
  • 6
    É importante ressaltar que após a saída dos pesquisadores 2016, o grupo GAM continuou sendo realizado no CAPSi com os profissionais e familiares e permaneceu acompanhado pela pesquisa, porém, a partir do dispositivo de supervisão grupal dos profissionais, realizado na Universidade. Este artigo, portanto, faz referência a um período específico do grupo e não o tempo integral de sua realização.
  • 7
    Vale demarcar que esses participantes não estiveram todos presentes no grupo ao mesmo tempo; diversas entradas (e saídas) se deram ao longo do processo grupal. Além disso, muitos profissionais tiveram presenças pontuais no grupo.
  • 8
    Nomes fictícios.
  • 9
    O metilfenidato é um psicoestimulante comumente indicado para o tratamento do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), vendido no Brasil sob os nomes comerciais Ritalina ou Concerta.
  • 10
    De acordo com Melo, Schaeppi, Soares e Passos (2015Melo, J. J., Schaeppi, P. B., Soares, G., & Passos, E. (2015). Acesso e compartilhamento da experiência na Gestão Autônoma da Medicação: O manejo cogestivo. Cadernos HumanizaSUS, 5, 233-447.), o manejo é uma operação da estratégia GAM que permite “performatizar a gestão autônoma como prática de cuidado em saúde mental” (p. 237), um modo de fazê-la funcionar. Se os princípios que direcionam o trabalho da GAM são cogestão e autonomia, o manejo é o fio que conduz nessa direção, não como forma de “alcançar” esses princípios, mas para exercitá-los cotidianamente no grupo. Por isso, ele é também denominado manejo cogestivo. Apesar de localizar-se inicialmente na figura de um (ou mais) manejador, é fundamental que o exercício do manejo possa distribuir-se no grupo, entre os participantes. Nesse sentido, o manejo opera uma função também paradoxal: ao mesmo tempo que ele é localizado, ele é descentralizante (Melo et al., 2015Melo, J. J., Schaeppi, P. B., Soares, G., & Passos, E. (2015). Acesso e compartilhamento da experiência na Gestão Autônoma da Medicação: O manejo cogestivo. Cadernos HumanizaSUS, 5, 233-447.) - faz circular afetos, experiências, falas.
  • 11
    Durante um certo período, outros pesquisadores do grupo de pesquisa (que não participavam presencialmente do GIF) experimentaram estar com essas crianças no espaço coletivo do CAPSi e com as outras crianças que circulavam por ali. Esses foram os primeiros movimentos do que viria a ser, um ano depois, a Oficina da Palavra, nosso segundo dispositivo de trabalho realizado no CAPSi, que também teve como direção o exercício de processos de autonomia e cogestão com crianças, articulados à estratégia GAM. Contudo, em acordo com o CAPSi, os encontros da Oficina da Palavra foram realizados em dias diferentes do GIF, contando com a participação de outras crianças do serviço, não necessariamente aquelas que eram filhos das participantes do GIF.
  • 12
    Sabíamos que Carmen já vinha experimentando com o filho a retirada da medicação nos finais de semana ou nos dias que ficava em casa com ele, mas este foi o primeiro dia que ele foi sem a medicação para o ambiente escolar.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Out 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    13 Maio 2019
  • Aceito
    21 Ago 2020
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