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Psicologia do Desenvolvimento: Panorama de Contribuições e Desafios para a Área no Contexto Brasileiro

Developmental Psychology: an Overview of the Contributions and Challenges for the Field in the Brazilian Context

Psicología del Desarrollo: Panorama de Contribuciones y Retos en el Contexto Brasileño

Foi com grande satisfação e senso de responsabilidade que aceitamos o convite da Comissão Editorial da Revista Psicologia: Ciência e Profissão para a editoração desta edição especial. Satisfação em percebermos que o campo do desenvolvimento humano é uma área ativa e que reconhece a revista como vetor importante de publicação nacional de suas produções. Já a responsabilidade vem de podermos compreender o panorama da produção na área, suas fortalezas e os desafios que ainda se apresentam para sua consolidação. Os artigos apresentados neste dossiê abordam diversos temas referentes a demandas sociais a serem interpeladas e ressignificadas pela psicologia do desenvolvimento na atualidade. São textos que apresentam estudos e análises sobre as configurações e dinâmicas familiares diante da experiência da parentalidade pela adoção e de pessoas com deficiência; as experiências com o adoecimento, o luto, a morte e as violências; e as relações de gênero nas conjugalidades da contemporaneidade.

Embora a psicologia do desenvolvimento seja constituída por diferentes perspectivas teórico-metodológicas sobre temas variados que compõem um campo classicamente reconhecido, ainda que heterogêneo, como é próprio da psicologia, ela tem como propósito o estudo dos processos psicológicos no curso da vida e suas relações com os contextos sociais, culturais e biológicos. Em sua história, a psicologia do desenvolvimento tem oferecido um conjunto de conhecimentos que fundamenta políticas e práticas pedagógicas, de saúde e assistenciais sobre os diferentes tempos da vida na maioria dos contextos nacionais.

Mesmo que muitas vezes os saberes produzidos pela área tenham sido usados para legitimar ações excludentes e limitantes, a área da psicologia do desenvolvimento busca contribuir acadêmica e politicamente com o debate da psicologia brasileira rumo a uma produção de conhecimento qualificada técnica e eticamente, comprometida com os direitos humanos e com as ciências. Assim, a área tem sido referência em práticas e intervenções, produzindo modelos e críticas importantes sobre formas de atuar com grupos etários em diferentes contextos e áreas, contribuindo para produção de referências teóricas e empíricas que qualificam essas atuações - tanto de psicólogos como de profissionais de outras formações com quem compartilhamos nossos saberes.

A psicologia do desenvolvimento no Brasil acaba por se constituir em um campo multifacetado, dada a complexidade dos processos de desenvolvimento, em que as perspectivas teórico-metodológicas se aliam à antropologia, sociologia, neurociências, filosofia, entre outras e ampliam os modos de interpretação e explicação dos fenômenos psi.

As demandas pela atuação da psicologia na área do desenvolvimento humano, por sua vez, também se ampliaram como campo de atuação à medida que suas temáticas são atravessadas por questões presentes nas mais diferentes políticas públicas que vinham sendo implementadas no país nas últimas décadas (como saúde, educação, assistência social, segurança e direitos humanos), e que articula conhecimentos fundamentais com potencial para contribuir em um cenário de complexas tentativas de diálogo. Cabe à psicologia brasileira, portanto, compreender as especificidades desses contextos, as possibilidades e limites das psicologias que, em sua diversidade, possam produzir caminhos colaborativos de construção de conhecimento e atuação profissional (Pizzinato, Guimarães, & Leite, 2019Pizzinato, A., Guimarães, D. S., & Leite, J. F. (2019). Psicologia, povos e comunidades tradicionais e diversidade etnocultural. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(n. spe), 38. https://doi.org/10.1590/1982-3703000032019
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).

O debate gerado nesse processo de constituição produz críticas sobre as dualidades presentes em muitas leituras sobre indivíduo e sociedade, natureza e cultura, por exemplo (Broughton, 1987; Burman, 2017Burman, E. (2017). Deconstructing developmental psychology. Routledge.). Essas críticas buscam modelos de superação das perspectivas dualistas e polarizadas, propondo leituras teórico-metodológicas que buscam ressignificar a psicologia do desenvolvimento a partir de posicionamentos mais dialógicos e horizontais para explicar os processos de mudança em leituras contextualmente situadas. Nesse projeto de aliança com modelos de ciência mais afeitos ao borramento de fronteiras das relações indivíduo e sociedade, natureza e cultura, já temos perspectivas consolidadas que se debruçam na investigação de elementos contextuais e culturais que, em seus primórdios, estavam mais apartados na psicologia do desenvolvimento (Valsiner, 2009Valsiner, J. (2009). Cultural psychology today: Innovations and oversights. Culture & Psychology, 15(1), 539.).

Dessa forma, as pesquisas aqui apresentadas realizam o desafio de desenhar as aproximações dessas perspectivas, atualizadas com demandas e temas do panorama nacional atual, transformados em objetos de pesquisa. Entre eles estão as novas configurações e vínculos familiares, modos de exercer as parentalidades, o reconhecimento de expressões de gênero e das sexualidades que rompem o heterossexismo, sexismos e a cisgeneridade, bem como temas sobre os processos de adoecimento, morte e luto. O interesse e desenhos de investigação construídos sobre esses temas levam a outras possibilidades de produção de conceitos, métodos e teorias.

Por exemplo, em alguns dos textos apresentados neste dossiê, o tema das sexualidades e dos gêneros é abordado em diferentes contextos a partir dos significados da adoção por casais homossexuais e de como a família dissidente da organização patriarcal e heterossexual constrói as parentalidades. Outros investigaram os discursos sobre a homossexualidade na mídia televisiva. Do mesmo modo, temos as pesquisas que buscam compreender as perspectivas de gênero em conjugalidades e relações amorosas e sobre a experiência da espera de mulheres em processos de adoção.

Em “Formações discursivas sobre homossexualidade e família homoparental em telenovelas brasileiras”, de Eduardo Name Risk e Manoel Antonio dos Santos, foram examinadas as formações discursivas sobre a homossexualidade e a família homoparental em telenovelas brasileiras. O texto tem o mérito de colocar em debate os efeitos da mídia televisiva sobre as representações da família e das sexualidades, não esquecendo de que a mídia também é um produto forjado para o consumo diante das tensões sociais.

Ainda sobre o tema, o artigo “Contrastando Opiniões acerca da Adoção de Crianças por Casais Heteros e Homossexuais”, de Leogildo Alves Freires, Gleidson Diego Lopes Loureto, Alessandro Teixera Rezende, Ana Karla da Silva Soares e Valdiney Veloso Gouveia, trata do modo como brasileiras e brasileiros significam a adoção por casais homossexuais, ressaltando na amostra estudada a dificuldade de reconhecimento dos entrelaçamentos entre homoparentalidade e o discurso negativo do ambiente desfavorável ao desenvolvimento da criança, o que reforça a ideia da parentalidade nucleada na heterossexualidade.

A adoção com forma de exercício da parentalidade é abordada em dois textos. Em “Adoção como Solução: o Cenário Atual no Brasil”, de Maria de Lourdes Nobre Souza, Leila Maria Torraca de Brito e Cláudia Aline Soares Monteiro, é debatida a “cultura da adoção” como solução do abandono e das vulnerabilizações de crianças e jovens a partir do registro de apresentações e divulgações nas mídias de profissionais de diferentes setores da sociedade. As autoras ressaltam que nesses discursos são negligenciadas as determinações sociais e econômicas que precarizam e desqualificam as famílias de origem. Em “Mulheres em Espera pela Adoção: Sentimentos Apresentados nas Diferentes Etapas desse Processo”, de Monique Souza Schwochow e Giana Bitencourt Frizzo, é narrada a experiência de mulheres em processo de espera da adoção, trazendo contribuições para pensarmos sobre as diferentes nuanças das configurações familiares e a ressignificação da temporalidade da maternidade.

Sobre as conjugalidades e questões de gênero, o trabalho “Perdão e Satisfação Conjugal: uma Revisão Sistemática”, de Ana Isabel Mendes Teixeira e Cidália Duarte, teve como objetivo sistematizar as produções sobre o tema, oferecendo dados relevantes para a intervenção em terapia de casais e redimensionando o conceito de satisfação conjugal. A experiência conjugal de mulheres na contemporaneidade foi abordada no artigo de Rafaelle Fernanda Costa Benevides e Georges Daniel Janja Bloc Boris intitulado “A Experiência Vivida de Mulheres na Conjugalidade Contemporânea: uma Análise com Iramuteq”. A partir de entrevistas com mulheres de classe média, em que se fez o uso do software Iramuteq, a pesquisa desvela as tensões entre a reprodução do sexismo e do machismo nos papéis de gênero e em seu rompimento. A maternidade também é um tema recorrente nas ressignificações na vida conjugal.

Tais temas provocam a psicologia do desenvolvimento e a direcionam a buscar novas referências teóricas e metodológicas diante de questões como os direitos à expressão de gênero de crianças e adolescentes, a ressignificação de modelos de parentalidade a partir dos debates sobre identificações cis e trans que produzem o confronto sobre feminilidades e masculinidades hegemônicas. Enquanto pesquisadores e pesquisadoras, devemos nos indagar a respeito dos tempos da vida distintos em que nos situamos, das posições que ocupamos e sobre como, na interlocução com a alteridade (Amorim, 2014Amorim, M. (2014). O pesquisador e o seu outro: Bakhtin nas ciências humanas. Musa.) e em sua localização nas intersecções de etnias, raça, gênero, sexualidades e classe social, ele se compõe.

Queremos dizer tanto do ponto de vista metodológico quanto do ético: o reconhecimento da autoidentificação de gênero, principalmente para crianças e jovens; os entrelaçamentos dos contextos de desenvolvimento com o reconhecimento de privilégios; por fim, a própria ideia de desenvolvimento (como progressão ou progresso? Como fluxo contínuo de idas e vindas? Como interrupções e saltos qualitativos?), a quem atendem e como relacioná-los a modelos mais amplos de relações com outros campos de análises da realidade social? (Burman, 2008Burman, E. (2008). Developments: Child, image and nation. Routledge.).

Os artigos mencionados acima não foram os únicos a abordarem o tema da família - um dos contextos chave de estudos em psicologia do desenvolvimento, já que ela é o primeiro contexto de desenvolvimento da criança ao nascer. Em função de nossa característica enquanto espécie que é dependente no início da vida, a presença de um cuidador, ou de cuidadores, é fundamental para a sobrevivência do recém-nascido. Em paralelo, é nesse contexto primário que ocorre o processo inicial de socialização.

Uma das questões importantes que se deve investigar é como as tarefas de desenvolvimento estão relacionadas aos processos de adaptação e reestruturação familiar frente a suas demandas contextuais (Minuchin, 1990Minuchin, S. (1990). Famílias: Funcionamento e tratamento. Artes Médicas.). Nesse sentido, torna-se relevante entender como é esse contexto familiar e quais são essas tarefas de desenvolvimento. Isso nos leva a outro conceito importante que é o ciclo de vida, uma vez que está atrelado aos processos de desenvolvimento da família ao longo do tempo.

Na presente edição, um conjunto de artigos apresenta resultados relevantes e que trazem reflexões críticas bastante pertinentes. Por exemplo, um dos estudos, “Práticas Educativas Parentais e Problemas Emocionais/Comportamentais em Adolescentes com Altas Habilidades/Superdotação Intelectivas”, escrito por Érica Isabel Dellatorre Andrade, Jade Wagner Bernardes, Carolina Macedo de Saraiva Lisboa e Angela Helena Marin, aborda práticas educativas parentais, altas habilidades e superdotação de filhos. Nesse caso, constatou-se que as mães se envolveram mais na educação e desenvolvimento socioemocional dos filhos e filhas.

As mães também aparecem como protagonistas em outro estudo desta edição: “Famílias Monoparentais: uma Revisão Sistemática da Literatura”, de Ana Paula Benatti, Ângela Roos Campeol, Mônica Sperb Machado e Caroline Rubin Rossato Pereira. O artigo examina de forma sistemática as implicações de se ter apenas um cuidador no contexto familiar, que, nesse caso, são as mães solteiras. É importante problematizar as desigualdades de gênero no contexto familiar. Embora o pai esteja cada vez mais presente na vida dos filhos e das filhas (Goetz & Vieira, 2015Goetz, E. R., & Vieira, M. L. (Orgs.). Novo pai: Percursos, desafios e possibilidades. Juruá.), a mãe ainda tem o papel de maior destaque. Isso pode gerar sobrecarga de responsabilidades, por exemplo, nas atividades domésticas. Portanto, são fundamentais estudos que analisem essa realidade e busquem propor alternativas para sua superação.

Além de analisar o contexto social e cultural do fenômeno psicológico, é importante entender como ele foi construído ao longo do ciclo de vida e que implicações a intergeracionalidade poderia ter nesse processo. Sobre esse tema, o artigo “Intergeracionalidade no Contexto das Práticas Educativas de Mães de Crianças Pré-escolares”, escrito por Daniele Dalla Porta, Shana Hastenpflug Wottrich e Aline Cardoso Siqueira, discute a repercussão da continuidade e descontinuidade entre o que aconteceu no passado (lembranças de vivências da infância) com o que acontece hoje em dia educação das crianças. Como era de se esperar, a utilização de métodos coercitivos e indutivos de educação de filhos e filhas se mostrou associada a situações de violência, e as vivências positivas, permeadas pelo afeto e diálogo. Nesse contexto, é necessário que se dê continuidade a estudos no sentido de produzir conhecimento e práticas de intervenção que possam fortalecer os fatores de proteção e romper com o ciclo de violências que muitas vezes se perpetua ao longo de gerações.

Outro tema que nos remete à reflexão sobre a família e o desenvolvimento é a deficiência. O termo passou por muitas alterações até atingir uma compreensão mais integral e inclusiva, como propõe seu modelo social (Gesser, Nuernberg, & Toneli, 2012Gesser, M., Nuernberg, A., & Toneli, M. F. (2012). A contribuição do modelo social da deficiência à psicologia social. Psicologia & Sociedade, 24(3), 557566. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-71822012000300009
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). O artigo “Funcionamento Familiar da Pessoa com Deficiência Física”, de Fabíola Hermes Chesani, Francielly Nalin, Carina Nunes Bossardi e Tatiana Mezadri, traz importantes contribuições ao analisar o funcionamento familiar de pessoas com deficiência. Assim como em outros contextos domésticos, as famílias que têm pessoas com deficiência também apresentam padrões equilibrados em alguns aspectos e desequilibrados em outros. Como destacado pelas autoras: “Intervenções neste campo precisam focar em formas de estimular a comunicação e aumentar os níveis de flexibilidade e coesão, aumentando assim, as taxas de funcionamento equilibrado”. Além disso, como houve diferença na percepção de homens e mulheres, é necessário refletir sobre os papéis de gênero na dinâmica familiar, conforme já mencionado, e propor alternativas eficientes que promovam um maior equilíbrio na igualdade de gênero no contexto familiar, uma vez que a responsabilidade e o cuidado de crianças exigem envolvimento. Isso gera custos, mas também tem suas gratificações.

Um aspecto fundamental que enriquece a discussão sobre a família é sua diversidade. Nesse sentido, é importante destacar outros contextos que vão além dos lares tradicionais. Sendo assim, o artigo “Estresse e Enfrentamento em Crianças e Adolescentes Abrigadas em Casas Lares”, de Luiz Henrique Fortunato Rodrigues e Helena Bazanelli Prebianchi, traz reflexões bastante pertinentes sobre o acolhimento institucional em casas lares. Por meio da pesquisa realizada, os autores indicam que o vínculo afetivo estabelecido entre as crianças e os adolescentes e os funcionários, se for positivo, pode ser um fator de proteção contra o estresse. Além disso, segundo eles: “As principais estratégias de enfrentamento utilizadas pelos participantes foram a busca por apoio e a oposição”. Ou seja, assim como acontece em outros contextos familiares, é importante identificar os fatores de risco e proteção, procurando, sempre que possível, criar estratégias de intervenção para minimizar os primeiros riscos e potencializar a proteção.

No artigo “Os Aspectos Psicológicos da Criança e do Adolescente na Adoção Tardia”, escrito por Juliana Fernanda de Barros, Priscila Weiler Ribeiro e Lorena de Freitas Souza, crianças e adolescentes também são protagonistas. As autoras abordam um tema relevante para o contexto do desenvolvimento: a adoção tardia e as dificuldades das crianças encontrarem um lar. Conforme a análise dos resultados, as autoras afirmam que é possível superar esse desafio por meio do afeto, de orientações e do acompanhamento efetivo. Dessa forma, elas argumentam, a adoção tardia pode ter um resultado positivo.

A partir desse estudo, um aspecto que chama a atenção é a compreensão que se tem sobre a parentalidade. Ou seja, embora sejamos uma espécie em que os cuidados dos adultos são necessários para a sobrevivência e a socialização das crianças, o investimento parental é algo que se aprende com a experiência. Enquanto profissionais, é importante identificar quais fatores facilitam e dificultam sua construção ao longo do ciclo de vida para que as intervenções sejam efetivas. O conhecimento baseado em evidências é fundamental nesse processo.

Além disso, programas de intervenção com famílias se tornam cada vez mais frequentes, embora com alguns vieses, como a participação majoritária das mães (Schmidt, Staudt, & Wagner, 2016Schmidt, B., Staudt, A. C. P., & Wagner, A. (2016). Intervenções para promoção de práticas parentais positivas: Uma revisão integrativa. Contextos Clínicos, 9(1), 218.). Outro dos artigos dessa edição que estudam um programa de intervenção realizado com pais e mães é “Orientação a Práticas Parentais: Descrição de um Programa de Intervenção Individual breve”, de Mateus Rebelo Benites, Giovanna Nunes Cauduro, Luciana Valiente Vaz, Érica Prates Krás Borges, Thais Selau e Denise Balem Yates. Os resultados indicam a existência de fatores que impactam de forma importante nas práticas parentais, como: vivência da infância dos pais ou dos cuidadores; sobrecarga da figura materna e a dificuldade para lidar com regras, rotinas e os limites das crianças. Nesse sentido, é necessário que se desenvolvam estratégias de intervenção capazes de contribuir para a promoção de práticas parentais saudáveis e adequadas em função da idade da criança.

Assim como outros, tal estudo partiu de questões e terminou com resultados que permitem lançar novas reflexões para futuras investigações científicas, por exemplo, a utilização de medidas do antes e depois da intervenção e se os efeitos da intervenção perduram ao longo do tempo. É o que podemos chamar de perspectiva baseada em evidências (Leonardi & Meyer, 2015Leonardi, J. L., & Meyer, S. B. (2015). Prática baseada em evidências em psicologia e a história da busca pelas provas empíricas da eficácia das psicoterapias. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(4), 11391156. https://doi.org/10.1590/1982-3703001552014
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; Melnik, Souza, & Carvalho, 2014Melnik, T., Souza, W. F., & Carvalho, M. R. (2014). A importância da prática da psicologia baseada em evidências: Aspectos conceituais, níveis de evidência, mitos e resistências. Revista Costarricense de Psicología, 33(2), 7992.). Outro aspecto importante nesse caso é a reflexão sobre estudos translacionais, ou seja, até que ponto é possível extrapolar princípios validados de forma empírica na pesquisa básica para a resolução de problemas humanos (Leonardi & Meyer, 2016Leonardi, J. L., & Meyer, S. B. (2016). Evidências de eficácia e o excesso de confiança translacional da análise do comportamento clínica. Temas em Psicologia, 24(4), 14651477. http://dx.doi.org/10.9788/TP2016.4-15Pt
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). Na verdade, a dialética entre teoria e prática é fundamental para o avanço do conhecimento.

Seguindo a produção de análises, fruto das demandas de contextos aplicados à área, o trabalho “Hospitalização em Oncologia Pediátrica e Desenvolvimento Infantil: Interfaces entre Aspectos Cognitivos e Afetivos”, de Luiza Garutti Alvarenga Fonseca, Sara Del Prete Pancieira e Karina Franco Zihlmann, buscou conhecer os aspectos cognitivos e afetivos envolvidos nos processos de significação do adoecimento de crianças hospitalizadas. A partir do referencial teórico piagetiano sobre as relações entre cognição e afetividade e aliado a uma metodologia triangular (análise de desenhos-histórias, provas piagetianas, entrevistas semiestruturadas), o estudo descreve como o grupo estudado compreende o processo de adoecer e a experiência de vivência hospitalar.

Temas já consolidados na área, como o âmbito do desenvolvimento cognitivo, também se fazem presentes nesse número por meio do artigo de Daniele Feiten da Silva e Cássia Ferrazza Alves: “Aceitação Familiar da Criança com Deficiência Intelectual: Revisão Sistemática da Literatura”. Nele, evidencia-se que, ainda que seja um tema bastante debatido na ciência psicológica, ainda há uma formação deficitária em termos de abordagens práticas e contextuais para as famílias com crianças com deficiência. Já o panorama apresentado por Marina Nogueira de Assis Fonseca e Denise de Souza Fleith no trabalho “Relação entre Inteligência, Criatividade, Personalidade e Superdotação no Contexto Escolar” demonstra que, apesar da falta de programas e políticas educacionais contingentes para jovens com altas habilidades, eles se destacam em criatividade e inteligência, com potenciais pouco explorados pelas escolas e universidades.

Como não poderia deixar de ser, a produção da área aqui apresentada também é influenciada pelas questões de âmbito epidemiológico e sociossanitário que flagelam nosso contexto desde bem antes da atual epidemia provocada pelo Covid-19, na qual, apesar do caráter global, o Brasil tem sido um dos maiores expoentes de descaso e má gestão sanitária e assistencial. Um exemplo do impacto desse tipo de conjuntura na infância brasileira é apresentado por Jany Helem de Almeida Santos e Aponira Maria de Farias, no artigo “A experiência de ser mãe de criança com microcefalia causada pelo Zika vírus: do ideal ao real”, que abordam o impacto da microcefalia nas expectativas de maternidade, na vinculação com o bebê que tem essa condição e com que tipo de apoio podem contar na maternagem dessa criança especialmente vulnerável.

Mas a premência da morte, ainda que mais provável na infância em contextos de desigualdade socioeconômica abissais, como o brasileiro, também é um fenômeno de graves repercussões evolutivas para as famílias e que tem a atenção na produção da área no Brasil, particularmente em casos em que há um impacto patológico ou de processamento do luto. É o que ilustram as produções de Cristine Gabrielle da Costa dos Reis, “O Luto de Pais: Considerações Sobre a Perda de um Filho Criança” e “Psicoterapia e Luto: a Vivência de Mães Enlutadas”, de Luis Henrique Fuck Michel e Joanneliese de Lucas Freitas, em que a psicologia do desenvolvimento é usada para organizar o entendimento dos pais sobre suas reflexões para processar o pesar, a culpa e a desesperança que uma ruptura de expectativa de ciclo vital como essa pode gerar.

O contexto cobra relevância para área da psicologia do desenvolvimento quando o fenômeno da violência se apresenta na dimensão que tem em nosso país. Em “Pais/Cuidadores com e sem Histórico de Abuso: Punições Corporais e Características Psicológicas”, de Roberta Noronha Azevedo e Marina Rezende Bazon, denuncia-se a permanência da associação entre castigo físico e prática educativa no cuidado das crianças de nosso país, em distintos níveis de gravidade e de maneira muito naturalizada. Em uma aproximação de orientação psicanalítica a outro fenômeno fortemente associado a ambiências violentas e negligentes e ao abuso de substâncias, Antonio Carias e Tânia Marques Granato apresentam “O Sofrimento Emocional de Filhos de Alcoolistas: uma Compreensão Psicanalítica Winnicottiana”, em que destacam os dilemas provenientes da relação conturbada de crianças com pais ou mães alcoolistas, destacando a violência doméstica, a desqualificação moral, a insegurança e as dificuldades financeiras associadas ao uso abusivo do álcool.

Ao recorrermos a essas produções e analisarmos esse complexo panorama de diversidade temática conceitual e aplicada, identifica-se que, mesmo sem um avanço significativo em termos de inovação teórica e metodológica compatível com a expressão da psicologia brasileira no cenário global, a produção associada à psicologia do desenvolvimento no Brasil está trilhando um importante caminho na ampliação de seu foco e escopo, com grande sensibilidade para as demandas sociais no país, e qualificando o debate na formação de profissionais deste e de outros campos do saber.

Os temas de pesquisa apresentados nesta edição especial sobre psicologia do desenvolvimento e a forma de investigá-los nos levam a refletir sobre a relação entre a teoria e a prática. Cada vez mais se faz necessário colocar em prática o amplo conhecimento reunido pela área. Por outro lado, a prática pode potencializar questões importantes de pesquisa e de transformação da realidade. O que se precisa cuidar nesse processo são as articulações teóricas que demandam sustentação por concepções epistemológicas e metodológicas coerentes. Além disso, também não podemos esquecer dos aspectos éticos e políticos a favor dos direitos humanos e contra toda forma de violência e opressão.

Como desafio, nos remetemos à reflexão de Valsiner (2012Valsiner, J. (2012). Fundamentos da psicologia cultural: Mundos da mente, mundos da vida. Artmed.), quando afirmou que uma das “lições de casa” que ainda devemos cumprir na psicologia é desenvolver novas estratégias para compreendermos as generalidades dentro das particularidades das histórias de vida das pessoas, que são sempre únicas. É o que ele chama de “generatividade semiótica dos seres humanos” (p. 472), sempre orientados para a construção de ferramentas culturais, bem de como significados e padrões de ação, para enfrentar suas vidas indeterminadas, seus desafios e seus futuros.

Os desafios no âmbito da metodologia, para o autor, deveriam rumar para a descoberta de diferentes maneiras de traduzir o princípio geral e universal da abertura da cultura para os contextos singulares da existência humana. Valsiner (2012Valsiner, J. (2012). Fundamentos da psicologia cultural: Mundos da mente, mundos da vida. Artmed., p. 472) defende, pois, a psicologia enquanto ciência idiográfica, que buscaria construir generalizações com base na evidência de casos sistêmicos individuais, aplicando esse conhecimento generalizado a casos individuais novos - e sempre únicos - em um constante processo de inovação, reflexão, criatividade e implicação.

Com essa reflexão final, gostaríamos de agradecer a colaboração de todos os autores e autoras pela escolha de nossa revista e por terem aceitado participar do trabalhoso processo de concepção e desenvolvimento da produção do conhecimento da psicologia acadêmica no contexto atual. A organização deste número especial serviu para que possamos conhecer a diversidade de mobilizações teóricas, acadêmicas e práticas de psicólogos e psicólogas de todo o Brasil, tentando construir uma psicologia do desenvolvimento humano mais diversa, abrangente e conectada aos mais diversos temas e segmentos de nossa sociedade. A psicologia brasileira tem uma árdua missão de comprometimento com a construção de práticas e saberes que atendam nossas demandas e, ao mesmo tempo, se comuniquem com as tendências e avanços da área no panorama internacional. Se tomarmos como exemplo este número, aventamos que o desafio tem sido aceito por muitas e muitos profissionais da área. Nossas felicitações e uma boa leitura a todas e todos.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Set 2021
  • Data do Fascículo
    2021
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