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Psicologia da Diferença, Relações Raciais e Formação da(o) Psicóloga(o)

Psychology of the Difference, Race Relations and Psychologist’s Training

Psicología de la Diferencia, Relaciones Raciales y Formación del/la Psicólogo/a

Resumo

Neste estudo, apresentamos um relato de pesquisa acerca de uma psicologia da diferença nas relações raciais, a fim de cartografar processos de subjetivação das relações raciais na formação da(o) psicóloga(o) e sua interface com a atuação profissional. Como métodos de pesquisa, utilizamos a cartografia, a participação observante, um círculo de cultura e duas rodas de conversa para produzir narrativas, relato e escrita de si em diário cartográfico. Para discussão e análise, realizamos um exercício ético-estético-poético e político, operando com ferramentas-conceitos da esquizoanálise e da epistemologia da decolonização. Como política dessa invenção, considera-se que: a) o pesquisador devém analisador/testemunha do lugar de fala das mulheres negras que compõem a cartografia a partir de sua representatividade; b) a presença de um número reduzido de negras(os) nos cursos da área da saúde é efeito da colonização da academia; c) a implicação ético-política da(o) psicóloga(o) emerge como dispositivo de enfrentamento ao racismo institucional; e que d) um movimento estudantil menor, ao devir comum minoritário, rompe com o instituído e instaura, de modo criativo, discussões que suscitam o debate em torno da psicologia nas relações raciais e de situações-problema que emergem do dispositivo interseccionalidade.

Palavras-chave:
Cartografia; Racismo; Formação do Psicólogo; Lugar de Fala e Representatividade; Saúde das Minorias Étnicas

Abstract

This study presents a research report about a psychology of the difference in race relations, aiming to map the subjectivation processes of race relations in the psychologist’s training and their interface with the professional performance. We used cartography, observant participation, a culture circle, and two conversation circles for narrative production, self-reporting and writing in a cartographic diary as a research method. For the discussion and analysis, we conducted an ethical-aesthetic-poetic and political exercise, operating tools-concepts of schizoanalysis and the epistemology of decolonization. As a policy of this invention: a) the researcher becomes an analyzer/witness of the place of speech of black women who make up cartography from their representativeness; b) the presence of a small number of black women in health courses is an effect of the academy colonization; c) the ethical-political implication of the psychologist emerges as a device to confront institutional racism; and d) a smaller student movement becoming the common minority breaks with the instituted, creatively instituting discussions that open the debate about psychology in race relations and problem situations that emerge from the intersectionality device.

Keywords:
Cartography; Racism; Psychologist’s Training; Place of Speech and Representativeness; Health of Ethnic Minorities

Resumen

En este estudio, presentamos un informe de investigación sobre la psicología de la diferencia en las relaciones raciales, con el objetivo de mapear los procesos de subjetivación de las relaciones raciales en la formación del/la psicólogo/a y su interfaz con la práctica profesional. Como método de investigación, utilizamos la cartografía, la participación observadora, el círculo cultural y círculos de conversación para producir narrativa, relatos y escritura de sí en un diario cartográfico. Para la discusión y análisis, realizamos un ejercicio ético-estético-poético y político, operando herramientas y conceptos del esquizoanálisis y la epistemología de la decolonización. Como política de esta invención se considera que: a) el investigador se convierte en un analizador/testigo del lugar de habla de las mujeres negras que componen la cartografía desde su representatividad; b) la presencia de un pequeño número de negras/os en cursos de salud es resultado de la colonización de la academia; c) la implicación ético-política del/la psicólogo/a surge como un dispositivo para enfrentar el racismo institucional; y que d) un movimiento estudiantil más pequeño con el devenir común de la minoría rompe con lo establecido, instituyendo creativamente discusiones sobre la psicología en las relaciones raciales y las situaciones problemáticas que surgen del dispositivo de interseccionalidad.

Palabras clave:
Cartografía; Racismo; Formación de Psicólogos; Lugar de Habla y Representatividad; Salud de las Minorías Étnicas

Epistemologia da decolonização e psicologia da diferença nas relações raciais

O capitalismo global e a globalização da informação em redes sociais (Bauman, 2007Bauman, Z. (2007). Tempos líquidos (C. A. Medeiros, Trad.). Zahar.; Guattari, 2002 Guattari, F. (2002). As três ecologias (M. C. F. Bitencourt, Trad.; 13a ed.). Papirus.) têm produzido múltiplos efeitos na vida cotidiana, como o de ampliar a coexistência de modos de sujeição e resistência à lógica de produção de subjetividade colonial-capitalística (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. n-1 edições.). Nas palavras de Mbembe (2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições.), “estamos vivendo uma mudança de época … e assistindo ao crescimento de uma grande segregação social, uma espécie de apartheid gigante” (p. 6), marcado “pela emergência de um Estado global securitário que busca normalizar um estado de exceção em escala mundial, onde ficam suspensas as noções de direito e liberdade, que eram inseparáveis do projeto de modernidade” (Mbembe, 2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições., p. 7).

No Brasil, movimentos de resistência a essa lógica, ainda que espaçadamente, têm emergido como manifestações momentâneas em diferentes cenários, dos quais um dos mais marcantes foi organizado por mulheres em defesa de nossos modos de existência e contra o fascismo que nos ameaçava e continua nos ameaçando. Referimo-nos ao movimento #EleNão, cujos atos políticos se deram em 114 cidades dos 26 estados e Distrito Federal, em 29 de setembro de 2018, inspirado pela vida e morte de Marielle Franco, mulher negra, militante e integrante da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, que foi executada a tiros pela milícia em 14 de março de 2018 (Rocha, 2018Rocha, L. M. (2018). Apresentação. In M. Franco, UPP: A redução da favela a três letras: Uma análise da política de segurança do estado do Rio de Janeiro (pp. 11-15). n-1 edições.). Outras manifestações emergiram, em 2019, durante o carnaval e as Paradas LGBTQIA+ em São Paulo e em outras cidades, contra “um governo que … não se respeita. E que vai preparando o maior desrespeito aos direitos da população brasileira de que jamais se teve notícia …: a desorganização geral da sociedade civil pelo Estado” (Castro, 2019Castro, E. V. (2019). Brasil, o país do futuro do pretérito. n-1 edições., p. 6-7).

Essas manifestações, em geral, têm a arte como dispositivo. Nelas, a alegria emerge como força, pois elas atualizam “potências do desejo político das massas que apenas o contato real dos corpos é capaz de despertar, potências que, uma vez liberadas, dificilmente retornam à demência sem deixar marcas no cotidiano” (Castro, 2019Castro, E. V. (2019). Brasil, o país do futuro do pretérito. n-1 edições., p. 12). Mbembe (2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições.) as concebe como políticas da visceralidade, “microinsurreições [que] ganham forma visceral como resposta à brutalização do sistema”, este que produz “ausência: invisibilidade, silêncio, esquecimento” (Mbembe, 2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições., p. 17). Trata-se de movimentos de “resistências [que] se organizam a partir da ocupação dos espaços, numa busca da visibilidade justo onde o poder quer nos relegar e nos afastar” (Mbembe, 2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições., p. 17). Essas microinsurreições têm a ver com processos de subjetivação críticos, criativos e cuidantes, que expressam ruptura com assujeitamentos e constituem processos de devir sujeito; de politização do corpo e performance; de ocupação do tempo subjetivo e do espaço político, ocupação também denominada de assembleia por Judith Butler (2017Butler, J. (2017). A vida psíquica do poder: Teorias da sujeição (R. Bettoni, Trad.; 1a ed.). Autêntica., 2018Butler, J. (2018). Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia (F. S. Miguens, Trad.; 1a ed.). Civilização Brasileira.).

Não só na África do Sul, país referido por Mbembe (2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições.), também no Brasil e em outros países, as resistências criativas, na contemporaneidade, “passam pela reabilitação da voz, pela expressão artística e simbólica, desafiando a tentativa do poder de relegar ao silêncio as vozes que não quer ouvir” (Mbembe, 2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições., p. 17). Não obstante, no Brasil, a produção dessas novas subjetividades sensíveis ao devir minoritário estará sempre em falta com um devir indígena (Castro, 2016Castro, E. V. (2016). Os involuntários da pátria. n-1 edições.).

Nesse contexto, pensamos o agenciamento coletivo do desejo de resistência como produção social a partir de uma psicologia da diferença, voltada para o enfrentamento ao racismo e para a descolonização do inconsciente (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. n-1 edições.), haja vista que forja conceitos-ferramentas para que possamos negar a história contada pelo colonizador que nos anunciou e enunciar a história pela qual nos diferimos, afirmando a diferença a partir de quem somos nós, e não de quem nos anuncia (Deleuze, 2006Deleuze, G. (2006). Cinco proposições sobre a psicanálise. In G. Deleuze, A ilha deserta: e outros textos (C. V. Silva, Trad., pp. 345-352). Iluminuras., 2008Deleuze, G. (2008). Conversações (P. P. Pelbart, Trad.). Editora 34.; Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade (Vol. 9). Forense Universitária.).

Na atual conjuntura política, racismo e fascismo reforçam seus alinhamentos com o capitalismo contemporâneo que “modula [a produção de subjetividade] capilarizando-se como uma linha dura nem sempre visível, partidária, instituída. Em sua versão capilar, [esses alinhamentos podem] nos fazer desejar aquilo que nos domina e explora” (Passos & Mizoguchi, 2019Passos, E., & Mizoguchi, D. H. (2019). Antifascismo tropical. n-1 edições., p. 9).

Na perspectiva do processo histórico e político da institucionalidade e do poder do racismo estrutural, “o Estado moderno é ou Estado racista ou … Estado racial” (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. Pólen., p. 87). Para Foucault (2010a)Foucault, M., (2010a). Aula de 17 de março de 1976. In M. Foucault, Em defesa da sociedade (M. E. Galvão, Trad., 2a ed., pp. 201-222). WMF Martins Fontes., “o racismo está ligado ao funcionamento de um Estado que é obrigado a utilizar a raça, a eliminação das raças e a purificação da raça para exercer seu poder soberano” (Foucault, 2010aFoucault, M., (2010a). Aula de 17 de março de 1976. In M. Foucault, Em defesa da sociedade (M. E. Galvão, Trad., 2a ed., pp. 201-222). WMF Martins Fontes., p. 217). Não obstante, na contemporaneidade, trata-se de uma versão do racismo de Estado que vem se configurando entre um Estado racista e um Estado racial, uma espécie de necrobiopoder (Bento, 2018Bento, B. (2018). Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, (53), 1-16. https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
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) que se sobrepõe à biopolítica (isto é, o poder sobre a vida, sobre os corpos, sobre os desejos, uma espécie de normatização do viver) “ou de um fascismo mais difícil de localizar e, portanto, de enfrentar, já que produtor de modos de vida tristes - de vidas diminuídas em sua potência de existir” (Passos & Mizoguchi, 2019Passos, E., & Mizoguchi, D. H. (2019). Antifascismo tropical. n-1 edições., p. 9).

Diante disso, nossa problematização da Psicologia nas relações raciais não prescinde de uma concepção teórico-metodológica que aponta para a invenção de ferramentas-conceitos, aqui, denominada esquizoanálise (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrênia (A. Guerra Neto, A. L. Oliveira, L. C. Leão & S. Rolnik, Trads.; Vol. 3). Editora 34.). Em outras palavras, não abrimos mão de uma análise das linhas duras (molares) do racismo institucional que captam e cooptam o desejo, nem do mapeamento das linhas leves (maleáveis e moleculares) que transversalizam o corpo e apontam para a reinvenção da vida e do desejo de outro mundo possível (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrênia (A. Guerra Neto, A. L. Oliveira, L. C. Leão & S. Rolnik, Trads.; Vol. 3). Editora 34.; Guattari & Rolnik, 2010Guattari, F., & Rolnik, S. (2010). Micropolítica: Cartografias do desejo (10a ed.). Vozes.; Rolnik, 2006Rolnik, S. (2006). Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Estação Liberdade.; M. Santos, 2000Santos, M. (2000). Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Record.). Desse modo, uma análise dos processos de subjetivação nas relações raciais, cuja expressão se dá em enunciados e enunciações, corresponde a uma tradução da coexistência das linhas normativas da vida e das linhas tortas e leves por meio das quais nos reinventamos e escrevemos nossa própria história.

Nessa perspectiva, apresentamos esta cartografia dos processos de subjetivação nas relações raciais por meio de narrativas, escrita e relato de si (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética (R. Bettoni, Trad.). Autêntica.; Foucault, 2010bFoucault, M. (2010b). Aula de 6 de janeiro de 1982. In M. Foucault, A Hermenêutica do sujeito (3a ed., pp. 3-24). WMF Martins Fontes.; Rago, 2013Rago, L. M. (2013). A aventura de contar-se: Feminismos, escrita de si e invenções da subjetividade. Editora da Unicamp.), que enunciam vozes de autoras negras que compõem este estudo, ora como pesquisadoras, ora como participantes. Nós autores - assim como os participantes da pesquisa, negros e brancos - não temos a pretensão de representá-las. Falamos, no máximo, do lugar de testemunhas de seu lugar de fala e representatividade. Para evitar confusão entre lugar de fala e representatividade, Djamila Ribeiro (2019Ribeiro, D. (2019). Lugar de fala. Sueli Carneiro; Pólen.) concebe esse conceito como o lugar de uma composição comum a grupos sociais minoritários que produzem discursos contra hegemônicos e interrompem com o regime de autorização e normalização discursivas, refutando, assim, “a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social” (Ribeiro, 2019Ribeiro, D. (2019). Lugar de fala. Sueli Carneiro; Pólen., p. 64). Por exemplo, no âmbito dos feminismos plurais, o lugar de fala converge com o lugar de representatividade social que as mulheres negras ocupam e com o modo de articular a interseccionalidade raça, gênero, classe e sexualidade, quando estes marcadores emergem como dispositivos para colocar em análise a estrutura social (Ribeiro, 2019Ribeiro, D. (2019). Lugar de fala. Sueli Carneiro; Pólen.).

Microinsurreições e lugar de fala têm a ver com cidadania menor, pois os primeiros são modos de enfrentamento ao racismo e às injustiças sociais, a partir de devires minoritários (Guattari, 1985Guattari, F. (1985). Revolução Molecular: Pulsações políticas do desejo (S. Rolnik , Trad.; 3a ed.). Brasiliense.) e do desejo agenciado coletivamente por minorias em uma clínica-política do comum. Para Deleuze e Guattari (2014Deleuze, G., & Guattari, F. (2014). Kafka: Por uma literatura menor (C. V. Silva, Trad.). Autêntica.), esse devir minoritário é expressão de um movimento de devir outro sem se identificar com o lugar desse outro, reconhecendo-se na alteridade-solidariedade e na diferença. Portanto, criamos o conceito de cidadania menor a partir da concepção de devir minoritário (Deleuze & Guattari, 2014Deleuze, G., & Guattari, F. (2014). Kafka: Por uma literatura menor (C. V. Silva, Trad.). Autêntica.) e das concepções de Milton Santos (2000Santos, M. (2000). Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Record.) e Paulo Freire (2004Freire, P. (2004). Pedagogia da tolerância. Editora Unesp.). Para M. Santos (2000)Santos, M. (2000). Por uma outra globalização: Do pensamento único à consciência universal. Record., não existe cidadão universal, mas existe uma cidadania que se faz a partir de um espaço enquanto território existencial. Para Freire (2004)Freire, P. (2004). Pedagogia da tolerância. Editora Unesp., não basta ter nascido em um lugar para ser cidadã ou cidadão de um país amparado por sua Constituição, pois a cidadania se inventa, se faz ou não se faz; logo, torna-se cidadã(o) reinventando-se ou não se experimenta a cidadania.

Partimos desse desenho teórico-metodológico para que possamos afirmar, ao fim e ao cabo, que todo racismo é institucional, haja vista que os processos de subjetivação são agenciados a partir dos efeitos que as instituições e seus regimes de verdade produzem na subjetividade e dos consequentes feitos individuais e coletivos de cada um(a).

Quando se trata de racismo de ódio como o do atual governo brasileiro, eleito para governar o país entre 2019 e 2022, pode-se dizer que o racismo é a ação do governo ou da “pessoa que se afirma … construindo o Outro não como seu semelhante, mas como um objeto ameaçador do qual seria necessário se proteger, se desfazer ou ao qual caberia simplesmente destruir …” (Mbembe, 2018aMbembe, A. (2018a). O Fardo da Raça. Entrevistas com Achille Mbembe a A. Fargeau & C. Portevin. n-1 edições., p. 12). Além dessa expressão extremista de negligência, falta de respeito e desumanização que caracterizam o racismo estrutural nos âmbitos da necrobiopolítica, do fascismo e dos microfascismos, existem outras dimensões do racismo. “Segundo [o modelo proposto por] Jones (2002) …, o racismo institucional (RI) … desloca-se da dimensão individual e instaura a dimensão estrutural, correspondendo a formas organizativas, políticas, práticas e normas que resultam em tratamentos e resultados desiguais” (Werneck, 2016Werneck, J. (2016). Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, 25(3), 535-549. https://doi.org/10.1590/s0104-129020162610
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, p. 541).

Nesse contexto, como nos alerta a psicóloga e psicanalista Maria Lúcia da Silva (2017Silva, M. L. (2017). Racismo no Brasil: Questões para psicanalistas brasileiros. In N. M. Kon, M. L. Silva & C. C. Abud (Orgs.), O racismo e o negro no Brasil (pp. 71-89). Perspectiva.), do Movimento de Mulheres Negras, não podemos deixar de considerar a violência psicológica do racismo, na “medida em que sua lógica é reduzir, invisibilizar, criminalizar, subalternizar, inferiorizar pessoas, grupos e povos, reduzindo-os a uma condição sub-humana” (M. L. Silva, 2017Silva, M. L. (2017). Racismo no Brasil: Questões para psicanalistas brasileiros. In N. M. Kon, M. L. Silva & C. C. Abud (Orgs.), O racismo e o negro no Brasil (pp. 71-89). Perspectiva., p. 82). A autora destaca dois aspectos que a clínica psicanalista não deve negligenciar e, no nosso ponto de vista, também não deveriam ser negligenciados pelos cursos de formação de psicólogas(os) e nenhum outro curso, tampouco pelos campos de atuação da profissão. Esses dois aspectos são: a) o fato de que a ideologia da raça e as representações sociais do racismo estão na base do sistema colonial-capitalístico desde o século XVI, que constituiu o racismo estrutural e a governamentalidade na sociedade brasileira, cujas políticas públicas, em geral, beneficiam, “material e simbolicamente, os grupos nomeados como brancos” (M. L. Silva, 2017Silva, M. L. (2017). Racismo no Brasil: Questões para psicanalistas brasileiros. In N. M. Kon, M. L. Silva & C. C. Abud (Orgs.), O racismo e o negro no Brasil (pp. 71-89). Perspectiva., p. 80) e negligenciam à população negra “acesso, permanência e mobilidade nas instituições” (M. L. Silva, 2017Silva, M. L. (2017). Racismo no Brasil: Questões para psicanalistas brasileiros. In N. M. Kon, M. L. Silva & C. C. Abud (Orgs.), O racismo e o negro no Brasil (pp. 71-89). Perspectiva., p. 81); e b) a força dos discurso hegemônicos e da humilhação racial produzem processos de subjetivação e sujeição, deixando marcas psíquicas “de impedimentos e de manutenção de um lugar social de subordinação e inferiorização no estabelecimento das relações sociais e pessoais, funcionado como indicadores de sofrimento psíquico” (M. L. Silva, 2017Silva, M. L. (2017). Racismo no Brasil: Questões para psicanalistas brasileiros. In N. M. Kon, M. L. Silva & C. C. Abud (Orgs.), O racismo e o negro no Brasil (pp. 71-89). Perspectiva., p. 87). Assim, convergimos com o pensamento de Lucas Motta Veiga (2019Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31(n. esp.), 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
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): “o sofrimento psíquico não é da ordem da intimidade, ele é político” (Veiga, 2019Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31(n. esp.), 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
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, p. 244). Por isso, o autor propõe uma psicologia preta, objetivando descolonizar o inconsciente a partir de uma escuta do mundo, de modo que “conseguir ouvir o paciente implica conseguir ouvir o sintoma que o adoece, ouvir o sintoma para ouvir o mundo que o produz” (Veiga, 2019Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31(n. esp.), 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
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, p. 244).

Nesse sentido, ressaltamos o conceito foucaultiano de dispositivo (Agamben, 2009Agamben, G. (2009). O que é o contemporâneo? e outros ensaios (V. N. Honesko, Trad.). Argos.), concebido como um conjunto de diferentes instituições e diversos meios que são articulados para agenciar processos de subjetivação, e afirmamos: infiltrado nas instituições, o racismo como dispositivo articulado a outros dispositivos opera por meio de visões e estigmas, jogos de saber e poder em tratamentos, atendimentos e assistência desiguais (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Racismo estrutural. Pólen.; Ortegal, 2018Ortegal, L. (2018). Relações raciais no Brasil: colonialidade, dependência e diáspora. Serviço Social & Sociedade, (133), 413-431. https://doi.org/10.1590/0101-6628.151
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; Werneck, 2016Werneck, J. (2016). Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, 25(3), 535-549. https://doi.org/10.1590/s0104-129020162610
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).

Para o enfrentamento ao racismo institucional, pensamos que se faz necessária a invenção de uma psicologia menor, psicologia da diferença nas relações raciais. Diante do quadro de produção de subjetividade colonial-capitalística, defendemos, então, essa psicologia da diferença, a partir de uma epistemologia da decolonização que dialoga com lugar de fala e representatividade (Ribeiro, 2019Ribeiro, D. (2019). Lugar de fala. Sueli Carneiro; Pólen.) das minorias e aposta na descolonização do inconsciente (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. n-1 edições.; Veiga, 2019Veiga, L. M. (2019). Descolonizando a psicologia: notas para uma Psicologia Preta. Fractal: Revista de Psicologia, 31(n. esp.), 244-248. https://doi.org/10.22409/1984-0292/v31i_esp/29000
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) e do conhecimento (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento. In G. Kilomba, Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (J. Oliveira, Trad., pp. 47-69). Cobogó.). Essa epistemologia inclui “o pessoal e o subjetivo como parte do discurso acadêmico, pois todas/todos nós falamos de um tempo e um lugar específicos, de uma história e uma realidade específicas” (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento. In G. Kilomba, Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (J. Oliveira, Trad., pp. 47-69). Cobogó., p. 58). Trata-se de “um exercício ético-estético-poético” e político de construção de conhecimento que propõe “pensar-se, conhecer-se e desconhecer-se à ‘margem’ do olhar imperial europeu” (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento. In G. Kilomba, Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (J. Oliveira, Trad., pp. 47-69). Cobogó., p. 4), transformando “o conteúdo do saber e das formas de produção do saber, reativando a memória e resistindo contra o esquecimento, etc.” (Mbembe, 2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições., p. 17).

De certa forma, essa dimensão da Psicologia tem ganhado corpo, desde a década de 1990, com a problematização do branqueamento das raças e dos estudos culturais sobre identidade étnico-racial (A. O. Santos, Schucman, & Martins, 2012Santos, A. O., Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2012). Breve histórico do pensamento psicológico brasileiro sobre relações étnico-raciais. Psicologia: Ciência e Profissão , 32(n. esp.), 166-175. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500012
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). Não obstante, sua genealogia é anterior à Psicologia como ciência e profissão, pois está relacionada à vida cotidiana e à luta que se iniciou por meio da resistência à escravidão e dos movimentos de insurgências aos regimes colonialistas e escravistas.

Neste século XXI, somos convocadas(os) a pensar desde uma perspectiva ético-estético-poética e política, também a partir dos transfeminismos, feminismos negro e indígena, feminismo plural; das questões que envolvem políticas de demarcação de territórios existenciais indígenas e quilombolas; das políticas afirmativas, como o Estatuto da Igualdade Racial e as cotas raciais para ingresso nas Instituições de Ensino Superior (IES); da interiorização do curso de psicologia e de outros cursos da área da saúde. Estamos sendo instigados a pensar, inclusive, em como defender, sustentar ou recuperar essas conquistas.

No Brasil, a velocidade com que as relações de poder se estabeleceram, se desestabilizaram e se restabeleceram como caos - resultado das barreiras contra governos voltados para o fortalecimento das instituições democráticas e dos direitos civis, de janeiro de 2003 a março de 2016 - fez e ainda faz com que alguns agentes e representantes dos poderes executivo, legislativo e judiciário operem agenciados pelas instituições da violência (Basaglia, 2010Basaglia, F. (2010). Escritos selecionados em saúde mental e reforma psiquiátrica. Garamond.). Agem, assim, contra as políticas de promoção da equidade em saúde (Ministério da Saúde [MS], 2013Ministério da Saúde. (2013). Políticas de Promoção da Equidade em Saúde.), negando o lugar de fala e representatividade das minorias em todos os setores e campos de atuação da(o) psicóloga(o), em que deveriam ser assegurados nossos direitos de existir e políticas de assistência social. A complexidade desse agenciamento atravessa a Psicologia e as relações raciais, haja vista que a formação e a prática da(o) psicóloga(o) produzem subjetividades. Nesse campo de análise e intervenção, os processos de subjetivação expressam - por meio de gestos, enunciados e enunciações, linguagem verbal e não verbal, ora linhas de resistências singulares, ora linhas duras, molares - ódio às minorias e repúdio às diferenças de gênero, de raça, de orientação sexual e de religiosidade que podem ser sintetizados no dispositivo racismo.

Desde o início de 2019, não sem resistências, o poder executivo - com o apoio da grande mídia e do poder legislativo e com a conivência do poder judiciário e da sociedade subserviente - tem atuado cada vez mais por meio do racismo de Estado, destruindo instituições democráticas e destituindo comissões, conselhos nacionais e sistemas de direitos e seguridade social. Tal conjuntura política converge com uma necrobiopolítica (Bento, 2018Bento, B. (2018). Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, (53), 1-16. https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
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), ou seja, não se trata apenas de uma biopolítica (Foucault, 2010cFoucault, M., (2010c). História da sexualidade: A vontade de saber (M. T. C. Albuquerque & J. A. G. Albuquerque, Trads.; Vol. 1). Edições Graal.) efetuada por meio dos decretos e políticas do atual governo (2019-2022) que implementam uma política de controle da vida para fazer viver e deixar morrer homens e mulheres, a maioria negra, em situação de rua, de cárcere e de fome e miséria. Mas também se ocupa de executar uma política de controle da morte - necropolítica (Mbembe, 2018bMbembe, A. (2018b). Necropolítica: Biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte (R. Santini, Trad.; 2a ed.). n-1 edições.) - para fazer matar e deixar matar negros(as) e indígenas nas periferias, no campo, na floresta, nas águas, além de fazer prender, fazer matar e deixar matar “a maioria” que compõe devires minoritários em todos os espaços nos quais se encontram modos de existência que resistem, ainda que à margem da produção de subjetividade colonial-capitalística, que, em geral, também fazemos questão de resistir.

Com as políticas de interiorização de cursos da área da saúde e de acesso ao ensino superior implementadas entre 2003 e 2015, as IES ganharam novas caras e cores que retratam a multiplicidade de grupos étnicos e raças existentes. Não obstante, um campo de disputa mais acirrada se instalou, devido ao incômodo que isso gerou e gera nos representantes e herdeiros do homem branco, europeu e heterossexual, imagem projetada pela crueldade do colonizador incompetente e ingênuo/arrogante (Deleuze & Guattari, 2012Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrênia (A. Guerra Neto, A. L. Oliveira, L. C. Leão & S. Rolnik, Trads.; Vol. 3). Editora 34.) que tinha a missão de extinguir todos cuja alteridade não se deixasse identificar com a imagem do Cristo, pintado de branco, católico, apostólico e romano, ou com a imagem da Nossa Senhora Aparecida, virgem e santa pintada da cor da mulher negra africana, escravizada, explorada e abusada. Tais processos de semiotização, somados às interdições do corpo negro e do corpo indígena efetuadas pelos espaços instituídos de referência para o branco e o idêntico a si mesmo (como a Igreja, a Escola, o Trabalho e a Universidade), constituem uma genealogia do racismo estrutural que marca a produção de subjetividade colonial-capitalística (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. n-1 edições.).

Em um estudo sobre o estado da arte acerca do impacto do racismo na saúde mental, Damasceno e Zanello (2018Damasceno, M. G., & Zanello, V. M. L. (2018). Saúde mental e racismo contra negros: Produção bibliográfica brasileira dos últimos quinze anos. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(3), 450-464. https://doi.org/10.1590/1982-37030003262017
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) constatam que ainda há pouca contribuição da Psicologia sobre como o racismo afeta a população negra na Rede de Atenção Psicossocial. Werneck (2016Werneck, J. (2016). Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, 25(3), 535-549. https://doi.org/10.1590/s0104-129020162610
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) faz uma problematização das insuficiências “da saúde da população negra e da saúde da mulher negra como campos temáticos” (Werneck, 2016Werneck, J. (2016). Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, 25(3), 535-549. https://doi.org/10.1590/s0104-129020162610
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, p. 536) nos projetos pedagógicos dos cursos da área da saúde e na academia, bem como da ausência ou “baixo grau de penetração nas instituições de pesquisa dos debates sobre o racismo, seus impactos na saúde e suas formas de enfrentamento” (Werneck, 2016Werneck, J. (2016). Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde e Sociedade, 25(3), 535-549. https://doi.org/10.1590/s0104-129020162610
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, p. 536).

O curso de Psicologia e outros cursos da área da saúde às vezes corroboram uma formação voltada à produção de subjetividade colonial-capitalística, pois o conteúdo programático das relações étnico-raciais é epistemologicamente reduzido a um tema transversal. Tal produção não está relacionada só à ideologia dos grupos sociais hegemônicos, mas também ao racismo como dispositivo que alimenta a produção do desejo no campo social ao se articular a outros dispositivos de “abrangência ampla, complexa, sistêmica, violenta” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)., p. 10), como os que emergem da análise dos processos de subjetivação. Tais dispositivos culturais, etológicos, ontológicos, midiáticos, tecnológicos, políticos, econômicos, religiosos, familiares, éticos, estéticos… (Guattari & Rolnik, 2010Guattari, F., & Rolnik, S. (2010). Micropolítica: Cartografias do desejo (10a ed.). Vozes.) atravessam e transversalizam territórios e existências, “enfim, da vida subjetiva, vincular, social e institucional das pessoas” (CFP, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)., p. 10).

Diante do exposto, nos perguntamos: Como profissionais da saúde pensam o lugar das relações raciais na formação e o enfrentamento ao racismo no campo de atuação? Como psicólogas(os) estão implicadas(os) e envolvidas(os) no enfrentamento ao racismo institucional? Na trilha desses questionamentos, objetivamos cartografar processos de subjetivação das relações raciais na formação da(o) psicóloga(o) e sua interface com a atuação profissional. Para compor essa cartografia, mapeamos processos de subjetivação nas relações raciais, testemunhamos e produzimos lugar de fala, conhecemos experiências e caracterizamos a implicação ético-política de profissionais da saúde. Pensamos que este relato de pesquisa pode contribuir com o debate da Psicologia em torno das questões étnicas e das relações raciais, não só com a problematização dos projetos ético-políticos da Psicologia (Yamamoto, 2012Yamamoto, O. H. (2012). 50 anos de profissão: Responsabilidade social ou projeto ético-político? Psicologia: Ciência e Profissão , 32(n. esp.), 6-17. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500002
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), mas também com a sugestão de reforma dos projetos político-pedagógicos de outros cursos, além de fornecer subsídios para a formação e atuação de psicólogas(os) e de outros profissionais da área da saúde nos contextos contemporâneos de enfrentamento ao racismo.

Cartografia das relações raciais

Conforme foi apresentado, este estudo versa sobre psicologia da diferença e processos de subjetivação em relações raciais. Trata-se de um relato de pesquisa feito desde a graduação dos autores, sendo um recorte de uma pesquisa mais ampla, cujo projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) e está vinculado a nosso núcleo de estudos e a nosso programa de pós-graduação em psicologia.

A problematização do racismo institucional emerge como dispositivo em enunciados e enunciações e marca as narrativas das(os) profissionais da saúde que compõem este estudo; são narrativas de experiências em torno das relações raciais na interface formação e atuação profissional. A pesquisa foi realizada, em 2018, com a participação de 10 profissionais da saúde egressas(os) de uma IES pública e 2 futuros profissionais que cursavam Medicina na mesma instituição, perfazendo um total de 12 participantes. A composição desse campo de pesquisa está relacionada à cartografia como modo de fazer pesquisa-intervenção e como modo de produzir conhecimento por meio do desenvolvimento de práticas clínico-políticas, mapeamento de fluxos do desejo no campo social e acompanhamento dos processos de subjetivação em curso (Aguiar, 2010Aguiar, L. M. (2010, 2-6 de setembro). As potencialidades do pensamento geográfico: a cartografia de Deleuze e Guattari como método de pesquisa processual [Trabalho apresentado]. XXXIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Caxias do Sul. https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4047519/mod_resource/content/0/Deleuze%20e%20o%20me%CC%81todo%202.pdf
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.p...
; Barros & Passos, 2010Barros, R. D. B., & Passos, E. (2010). A Cartografia como método de pesquisa-intervenção. In E. Passos, V. K. & L. da Escóssia (Orgs.), Pistas do método de cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (2a ed., pp. 17-31). Sulina.; Rolnik, 2006Rolnik, S. (2006). Cartografia sentimental: Transformações contemporâneas do desejo. Estação Liberdade.).

A composição do campo de intervenção para análise dos processos de subjetivação deu-se por meio da participação observante e do uso das estratégias metodológicas: um círculo de cultura e duas rodas de conversa para produção de narrativas. No círculo de cultura, usamos uma poesia como objeto relacional da arte e dispositivo para acessar o plano da psicologia nas relações raciais. O tema gerador do círculo de cultura, racismo institucional, foi extraído da participação observante na IES, pelos pesquisadores docentes em cursos da área da saúde e pelas pesquisadoras egressas do curso de Psicologia. As narrativas produzidas no círculo de cultura foram registradas em diários cartográficos do(a) pesquisador(a) e as narrativas produzidas nas rodas de conversa foram registradas pelos(as) participantes da pesquisa em diários cartográficos de sua autoria.

(Des)encontros com os resultados do racismo institucional

A revisão sistemática de literatura realizada por P. B. G. Silva (2018Silva, P. B. G. (2018). Educação das relações étnico-raciais nas instituições escolares. Educar em Revista, 34(69), 123-150. https://doi.org/10.1590/0104-4060.58097
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) mostra como o trabalho com educação das relações étnico-raciais em instituições educacionais escolares produziu avanço em torno do reconhecimento de manifestações e consequências do racismo (P. B. G. Silva, 2018Silva, P. B. G. (2018). Educação das relações étnico-raciais nas instituições escolares. Educar em Revista, 34(69), 123-150. https://doi.org/10.1590/0104-4060.58097
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
). Na contramão dos resultados dessa pesquisa, em 2016, o conteúdo programático sobre relações étnico-raciais e história e cultura afro-brasileira perdeu lugar nos parâmetros curriculares nacionais, dada a publicação da Medida Provisória (MP) nº 746/2016, assinada pelo governo Michel Temer. Essa MP revogou a Lei nº 10.639/2003, que assegurava a obrigatoriedade da inclusão desse conteúdo nas grades curriculares (Bittencourt, 2016Bittencourt, C. M. (nov. 2016). A MP 746/2016 e o impacto no ensino da história e cultura afro-brasileira. Jus.com.br. https:// jus.com.br/artigos/54207/a-mp-746-2016-e-o-impacto-no-ensino-da-historia-e-cultura-afrobrasileira
https:// jus.com.br/artigos/54207/a-mp-7...
).

Na IES de onde são egressas(os) as(os) profissionais da saúde participantes da pesquisa, depois da publicação da MP nº 746/2016, não houve alteração em nenhum projeto pedagógico dos cursos. Contudo, no período de vigência da Lei nº 10.639/2003, o debate sobre relações raciais e ensino voltado à educação étnico-racial e à saúde integral da população negra e da população indígena (MS, 2010Ministério da Saúde. (2010). Política Nacional de Saúde Integral da População Negra: Uma política para o SUS.) permaneceu distante da formação profissional, situação ainda amplamente constatada. Dos quatro cursos da área da saúde existentes na IES, apenas o curso de Medicina oferece uma disciplina optativa denominada Gênero, Diversidade e Relações Étnico-Raciais. Nos outros cursos, quando aparece, a questão é um tema transversal, ministrado segundo o critério de cada professor(a) ou de educandas(os).

A IES têm quatro cursos da área da saúde: Psicologia, Fisioterapia, Biomedicina e Medicina. Dos 12 participantes da pesquisa: 8 são psicólogas(os), 2 são biomédicas(os) e 2 estão cursando Medicina; ao todo, são 8 mulheres e 4 homens, dos quais 2 se autodeclararam brancos; dentre os homens, há 1 homem branco gay e 3 homens negros (1 heterossexual e 2 gays); dentre as mulheres, há 1 (uma) mulher branca e 7 mulheres negras, sendo uma lésbica, militante e defensora de uma psicologia preta. Todas(os) são cisgênero. Para todas(os) criamos pseudônimos inspirados em nomes de mulheres negras e homens negros: Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, Cosme Bento, José Lourenço, Esperança Garcia, Zefirina, Zabé da Loca, Benedita da Silva, Clementina de Jesus, Dandara, Ruth de Souza e Matilde (homenagem à mulher negra mãe de Chico da Matilde).

No primeiro encontro, iniciamos com apresentação das(os) participantes e a leitura do poema Negro Forro, de Adão Ventura (2001Ventura, A. (2001). Negro forro. In I. Moriconi (Org.), Os cem melhores poemas brasileiros do século (pp. 275). Objetiva.): “Minha carta de alforria / Não me deu fazendas, / Nem dinheiro no banco, / Nem bigodes retorcidos. / Minha carta de alforria / Costurou meus passos / Aos corredores da noite / De minha pele”. Durante o círculo de cultura, o racismo institucional emergiu como situação-problema e tema gerador. Inicialmente, isso resultou em quatro subtemas que foram debatidos, principalmente, nas duas rodas de conversa realizadas posteriormente. Esses subtemas serão apresentados na discussão; são eles: a) formação profissional; b) atuação profissional; c) racismo na saúde; e d) modos de enfrentamento ao racismo.

Os processos de subjetivação que se configuraram na leitura de mundo provocada pela leitura do poema estavam mais relacionados à dificuldade inicial de interpretação dos versos do que aos modos de pensar e teorizar das(os) participantes da pesquisa. Zabé inicia dizendo que:

O poema fala sobre o processo de abolição da escravidão mostrando que o negro foi “liberto”, porém, não possuía forma de se sustentar, não conseguia emprego visto que os fazendeiros preferiam contratar os imigrantes Italianos do que contratar os negros. A segunda parte se refere à prostituição, que era uma forma de sobrevivência para os negros (Zabé).

Zumbi complementa:

Sim, o poema diz respeito a essa libertação dos escravos, visto que foram libertos mas não foram garantidos seus direitos, [os negros] continuaram sofrendo sem emprego e sofrendo discriminação. Pelo que vejo isso dura até hoje, só que de forma menos explícita (Zumbi).

Nesse sentido, conclui Zabé: “Os livros trazem a princesa Izabel como se ela tivesse sido a salvadora dos negros, mas ela não tinha escolhas, de certa forma ela foi pressionada a fazer isso”.

Não obstante, Conselheiro argumenta:

Não, o poema mostra a negação de direitos à população negra. Isso me fez lembrar das cotas onde muitas pessoas desmerecem o mérito do negro quando entra na universidade por meio das cotas, me faz pensar o quanto é necessário políticas públicas para essa população, mas também para o grupo LGBTQIA+, e o quanto falta desses assuntos serem trabalhados e discutidos nas disciplinas do campus (Conselheiro).

Nos enunciados que expressam as impressões acerca do poema e nos processos de subjetivação, como veremos, coexistem modos de subjetivação marcados pela lógica colonial-capitalística (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. n-1 edições.) e modos de subjetivação marcados pelo agenciamento coletivo do desejo de ruptura, que mostra a invenção de práticas instituintes em defesa de políticas que assegurem direitos à população negra.

Durante o círculo de cultura, nossas intervenções não podiam prescindir de uma análise que mostrasse como, em função dos regimes de verdade, ainda se atribui a outrem a conquista da liberdade; neste caso, atribui-se ao poder da soberana - princesa Isabel - a abolição da escravidão. Essa expressão do agenciamento colonial-capitalístico de modos de sujeição e servidão, ainda hoje, dificulta o reconhecimento do movimento de resistência das mulheres negras e dos homens negros que produziram linhas de fuga e resistência em quilombos e por meio de insurgências na história, tais como as que marcaram a Bahia, na primeira metade do século XIX, quando, de acordo com as historiadoras Schwarcz e Starling (2015Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2015). Brasil: Uma biografia. Companhia das Letras.), “quilombos e práticas do candomblé se misturaram” (Schwarcz & Starling, 2015Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2015). Brasil: Uma biografia. Companhia das Letras., p. 254) e “a religião havia se transformado em linguagem política para os escravos” (Schwarcz & Starling, 2015Schwarcz, L. M., & Starling, H. M. (2015). Brasil: Uma biografia. Companhia das Letras., p. 255).

Tema gerador: relações raciais na interface formação e atuação profissional

Na discussão dos subtemas gerados para análise dos processos de subjetivação cartografados nas rodas de conversa, por questão de espaço e recorte da pesquisa, priorizamos narrativas das(os) psicólogas(os) relacionadas ao racismo institucional. Partimos do lugar de fala e representatividade dessas(es) profissionais da saúde, egressas(os) da IES, de onde ecoam vozes que são a própria tradução das relações raciais na interface entre formação e atuação profissional. A problematização em torno da questão Psicologia nas relações raciais aparece como subtema gerador de discussão do racismo institucional. Sem dúvida, essa problemática emerge das vozes das(os) profissionais da saúde, haja vista que a maioria, ou seja, 80% das(os) egressas(os) participantes da pesquisa, é constituída por psicólogas(os).

O CFP (2017)Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os). descreve o racismo institucional como pertencente “ao nível político-programático das instituições, a ações amplas, voltadas à coletividade, cujo impacto no sujeito é posterior à ação maior, como consequência desta” (CFP, 2017Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os)., p. 48). Os resultados encontrados na pesquisa corroboram essa assertiva. Para Moraes (2013Moraes, F. (2013). No país do racismo institucional: Dez anos de ações do GT Racismo no MPPE. Procuradoria Geral de Justiça de Pernambuco.), o racismo institucional é mais facilmente identificado no âmbito da segurança e da educação, enquanto seu reconhecimento na saúde mostra-se mais difícil, haja vista que no imaginário social - composto, inclusive por quem não usa o serviço - há uma representação de que o Sistema Único de Saúde (SUS) não serve e não é bom para a população. A(o) usuária(o) ou profissional que pensa conforme essas representações desconhece o racismo como determinante social da saúde (Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial [Seppir], 2011Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. (2011). Racismo como determinante social da saúde.) e ignora quando agentes sociais, nos estabelecimentos e cenários de práticas, atuam com discriminação e preconceito diante de determinados grupos étnicos, afetando o acolhimento, o cuidado e o tratamento na assistência em saúde. Munanga (2015Munanga, K. (2015). Por que o racismo e suas práticas e qual é a responsabilidade social que se espera dos profissionais que lidam com as questões da sociedade? Revista Brasileira de Psicologia, 2(n. esp.), 7-15.) afirma que “o racismo brasileiro é um racismo difuso, sutil, evasivo, camuflado, silenciado em suas expressões e manifestações” (Munanga, 2015Munanga, K. (2015). Por que o racismo e suas práticas e qual é a responsabilidade social que se espera dos profissionais que lidam com as questões da sociedade? Revista Brasileira de Psicologia, 2(n. esp.), 7-15., p. 13-14). Assim, “no plano individual, as ideologias discriminatórias, tais como o racismo e o sexismo, geram estratégias psicológicas de defesa construídas culturalmente, tais como a somatização, a negação, a racionalização e a invisibilidade para o seu enfrentamento” (Seppir, 2011, p. 11). Como consequência, tem-se que:

Saber-se negra [como afirma a psiquiatra negra Neusa Santos Souza, desde 1983] “é viver a experiência de ter sido massacrada em sua identidade, confundida em suas perspectivas, submetida a exigências, compelida a expectativas alienadas. Mas é sobretudo, a experiência de comprometer-se a resgatar sua história e recriar-se em suas potencialidades” (Tavares & Kuratani, 2019Tavares, J. S. C., & Kuratani, S. M. A. (2019). Manejo clínico das repercussões do racismo entre mulheres que se “tornaram negras”. Psicologia: Ciência e Profissão , 39. https://doi.org/10.1590/1982-3703003184764
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, p. 4).

Sobre esse sentido de tornar-se negra, escreve Matilde:

Na universidade consegui me libertar mais dessas questões, lembro como se fosse hoje um vídeo que a professora mostrou para turma, … nele, a poeta Mel Duarte recita o poema “Não desiste negra, não desiste!”1 1 https://www.youtube.com/watch?v=FfDvjbsCFmM … Poesia que me sensibilizou, me deu ânimo e trouxe aquela vontade de continuar, … continuar aprendendo, me reconhecendo, me descobrindo, me percebendo. Hoje, visualizo que esse processo se deu de dentro para fora; sim, um processo que se iniciou em meu interior, em meu peito, em meu coração há um bom tempo e que ainda continuo nesse processo de me reconhecer enquanto mulher negra (Matilde).

Para Benedita, “… O racismo institucional é uma temática complexa …”. Ela acredita “que a instituição [IES] não possua esse tipo de abordagem na formação [de profissionais da saúde]”. Pelo contrário, “… muitas vezes, existe apenas profunda apatia,permitindoque [o racismo institucional] permaneça camuflado e invisível sob outras variantes até mesmo por parte da instituição de ensino” (Benedita).

Nas palavras de Zabé:

… [Há] toda uma estrutura que parece que está enraizada. É muito difícil essa luta diária, se aparece um negro como médico, por exemplo, ele tem que se esforçar o triplo, porque tem que mostrar a competência, porque as pessoas duvidamOs médicos cubanos estão como prova … (Zabé).

O pretexto da rejeição aos médicos cubanos foi ideológico; não obstante, trata-se de uma expressão do racismo estrutural que marca o inconsciente colonial-capitalístico, sustentado por um analfabetismo ético-estético-poético e político da existência que afeta a “consciência ingênua” de parte da população, (des)informada, e alimenta a perversidade da elite esquizofrênica deste país. Nas palavras de Mbembe (2018a)Mbembe, A. (2018a). O Fardo da Raça. Entrevistas com Achille Mbembe a A. Fargeau & C. Portevin. n-1 edições., toda reação etnocêntrica é esquizofrênica: levanta muros, grades e mordaças em relação ao outro do outro ou à alteridade e à diferença que é sempre do outro. “Como ressaltou Deleuze, ‘há sempre um negro, um judeu, um chinês, um grão-mongol, um ariano no delírio’” (Mbembe, 2018aMbembe, A. (2018a). O Fardo da Raça. Entrevistas com Achille Mbembe a A. Fargeau & C. Portevin. n-1 edições., p. 13). No caso do Brasil, despedaçado pela governabilidade político-paranoico-delirante que se iniciou em 2019, a consequência disso é que há sempre um indígena no medo de devir indígena.

O analfabetismo ético-estético-poético e político da existência, um sintoma da produção de subjetividade colonial-capitalística, configura-se como incompetência em uma zona de incapacidade ético-estético-poética e política de cuidar de si e do outro e de devir outro (minoritário) na convivência e coexistência. Trata-se de outro conceito que elaboramos a partir das concepções de consciência ingênua/ignorante (Freire, 2013Freire, P. (2013). Educação como prática da liberdade. Paz e Terra.), estética do oprimido (Boal, 2009Boal, A. (2009). A estética do oprimido. Garamond.) e estética da existência (Foucault, 2014Foucault, M. (2014). Genealogia da ética, subjetividade e sexualidade (Vol. 9). Forense Universitária.). O exemplo público mais evidente e atual de analfabetismo ético-estético-poético e político da existência é o do Presidente da República (o rei que está nu), que não reconhece sua incapacidade para governar-se nem sua incompetência para ser governo dos outros.

Subtema gerador: formação profissional

Quando o subtema gerador é formação profissional, a educação em saúde emerge como um dos dispositivos de agenciamento das relações raciais. Na análise dos processos de subjetivação que dão conta dessa assertiva, nota-se um paradoxo. A IES não faz a problematização do tema gerador raça como um dos dispositivos que emergem da questão da interseccionalidade na determinação social dos processos de saúde-doença, tampouco pensa as relações raciais como um dispositivo que nos faz ver e falar da determinação social da saúde. Então, por um lado, alguns docentes tomam os elementos desses dispositivos isoladamente como categorias estanques em resultados de pesquisas ou para justificar projetos de extensão; por outro lado, uma militância estudantil menor, vinculada a movimentos sociais minoritários e periféricos, pauta, nos contextos acadêmicos, o tema do racismo institucional a partir de seu lugar de fala e representatividade, relacionando-o à raça, ao gênero, à sexualidade e à classe.

Clementina reconhece que se falou de racismo “em alguns momentos ao longo da graduação [em psicologia], em específico na disciplina de Ética profissional”. Zefirina confirma que foram “… aulas expositivas sobre a temática …” e denuncia: “… durante a formação, os[as] profissionais da área da saúde não são orientados[as] a como agir/reagir diante do racismo”.

Em uma pesquisa realizada por Costa e M. C. R. Silva (2017Costa, E. B., & Silva, M. C. R. (2017). Reflexões sobre as relações étnico-raciais no ensino superior. In G. C. Silva, M. S. Lopes & R. M. P. Monteiro (Orgs.), Experiências em ensino, pesquisa e extensão na universidade: Caminhos e perspectivas (Vol. 2, pp. 107-121). Imprece.), em Fortaleza, os resultados indicam que a discussão sobre relações étnico-raciais no ensino superior, na maioria das vezes, fica concentrada e limitada em apenas um ou outro professor e, quando ultrapassa esses limites, deriva de um movimento dos próprios alunos interessados na temática. No ponto de vista de Clementina:

O papel da psicologia [nas relações raciais], levando em consideração um posicionamento ético-político, é o de estar sempre desconstruindo práticas que promovam a violência. Acredito que se algo afeta negativamente a vida do outro, é preciso mudar e o racismo é fruto de um contexto histórico e cultural que ainda hoje assola, embora, às vezes, seja de maneira velada; portanto, não negar a existência já é um modo de enfrentamento (Clementina).

Para Conselheiro: “A formação abriu olhares e discussões para o enfrentamento ao racismo de um modo periférico, mas que despertou indagações ao respeito de não existir disciplinas e discussões mais persistentes e sistemáticas no sentido de conhecimento jurídico para enfrentamento ao racismo”.

É a primeira vez que a instituição Justiça emerge como dispositivo na análise dos processos de subjetivação; sem dúvida, os conceitos-ferramentas da psicologia jurídica também podem ser acionados para o enfrentamento ao racismo. Os atravessamentos que marcam os processos de subjetivação, como mostram as próximas narrativas de experiências, nos remetem à interseccionalidade e às questões econômicas, sociais e de acesso à educação, ao trabalho e à renda, como dispositivos da determinação social da saúde e da ampliação ou diminuição das desigualdades raciais.

Esperança, ao avaliar o contexto da IES em que concluiu o curso, percebe “que poucos ainda são [negras]/negros; mostrando que apesar da existência de ações afirmativas, como por exemplo as cotas, a população negra ainda é minoria”. Ruth narra, em seu diário cartográfico:

Em 5 anos de curso, racismo nunca foi tema de aula, nunca se abordou por parte da instituição o racismo como atravessamento na produção de pobreza e adoecimento. Professores não se aproximam do tema de forma crítica, pelo contrário, alguns chegam a querer vim com conversa meritocrática, repugnante. Todas as movimentações e questionamentos vieram por parte dos estudantes nesse quesito (Ruth).

A meritocracia é um indicador de racismo e agencia processos de subjetivação de professores(as), agentes que operam linhas duras, molares. “Tal hierarquia introduz uma dinâmica na qual a negritude significa não somente ‘inferioridade’, mas também ‘estar fora do lugar’ enquanto a branquitude significa ‘estar no lugar’ e, portanto, superioridade” (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento. In G. Kilomba, Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (J. Oliveira, Trad., pp. 47-69). Cobogó., p. 56).

Nos processos de subjetivação dos agentes marcados pelo racismo acadêmico, “corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão ‘fora do lugar’ e, por essa razão, corpos que não podem pertencer” (Kilomba, 2019Kilomba, G. (2019). Quem pode falar? Falando do centro, descolonizando o conhecimento. In G. Kilomba, Memórias da plantação: Episódios de racismo cotidiano (J. Oliveira, Trad., pp. 47-69). Cobogó., p. 56) ao campo de produção de conhecimento.

Não obstante, na mesma IES denunciada por Ruth, ela anuncia a potência de ação do movimento estudantil menor que aciona outros dispositivos e produz processos de subjetivação singulares, expressando linhas da vida, maleáveis e moleculares, ao agir de forma crítica, criativa e cuidante diante de situações-problema relacionadas às relações raciais, ao racismo e à (in)justiça social. A problematização do discurso meritocrático mostra a resistência da minoria que compõe a representatividade da população negra e periférica dentre os muros da IES. Uma educanda negra, ao ocupar o lugar de fala em um movimento de devir minoritário, torna-se, pela representatividade, capaz de compor um coletivo que produz rupturas nas práticas político-pedagógicas que operam uma lógica colonial-capitalística. Esse agenciamento coletivo do desejo dessa minoria produz fissuras nos muros invisíveis que sustentam as instituições da violência quando, em suas intervenções para enfrentamento ao racismo institucional, levam em consideração outros dispositivos que são articulados na produção de subjetividades e modos de devir sujeito; são modos de resistência que se contrapõem aos modos de sujeição e servidão que impedem ou dificultam o acesso da população negra e de outros grupos minoritários ao ensino superior, aos serviços de saúde e à saúde como direito básico.

Subtema gerador: atuação profissional

Quanto à atuação profissional em múltiplos setores e diversos contextos, encontramos convergências com as referências técnicas produzidas pelo CFP (2017)Conselho Federal de Psicologia. (2017). Relações raciais: Referências técnicas para atuação de psicólogas(os). para atuação da(o) psicóloga(o). A transversalidade marca essa produção de subjetividades e os processos de subjetivação mostram implicações éticas com a profissão e compromisso ético-político com a vida, apontando para a produção de modos de romper com o racismo institucional e para modos de superar as iniquidades existentes dentro e fora dos estabelecimentos de saúde. Pensando nessa perspectiva, Esperança surpreende-se:

Nossa! Vejo na prática [da(o) psicóloga(o)] a possibilidade, a oportunidade de resistência, de me manifestar enquanto mulher negra, de lutar contra todos os tipos de desrespeito, de preconceitos e também de possibilitar a troca de informações de conscientização sobre o assunto, potencializar as ações de combate nesse sentido (Esperança).

A implicação ético-política da(o) psicóloga(o) também aponta para o sofrimento ético-político (Sawaia, 2008Sawaia, B. B. (2008). O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In B. B. Sawaia (Org.), As artimanhas da exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social (10a ed., pp. 97-118). Vozes.) como um dispositivo para pensar as relações raciais e para problematizar os efeitos do racismo institucional. O sofrimento ético-político interfere na produção da vida cotidiana e mostram como a dor e o adoecimento são efeitos das injustiças sociais (Sawaia, 2008) e como o racismo na saúde opera uma lógica excludente, por meio da qual um corpo social hegemônico deslegitima o corpo negro. Não obstante, o corpo negro é capaz de devir corpo negro na encruzilhada de caminhos e enfrentamento ao racismo. Ou seja, há sempre um corpo negro que existe e resiste movendo-se no mundo da diáspora com seus múltiplos devires, compondo cartografais nômades entre aporias, dizibilidades e (in)visualidades na construção de um processo de devir autora/autor entre o lúdico, o poético e o teórico (Ávila & Ferla, 2017Ávila, M. Y. B., & Ferla, A. A. (2017). O que pode o corpo? Corpografias de resistência. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 21(62), 731-748. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0898
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
; ÒkòTó, 2018ÒkòTó, D. Ì. M. (2018). O Corpo negro é um corpo encruzilhada: Não existe caminho fechado, mas caminho a se abrir com decisão e sacrifício. Blog do autor. https://dessalin-okoto.medium.com/o-corpo-negro-%C3%A9-um-corpo-encruzilhada-ca8082e34bee
https://dessalin-okoto.medium.com/o-corp...
).

Na gestão do trabalho e educação em saúde, encontra-se um dos maiores desafios para atuação da(o) psicóloga(o): lidar com sujeitas(os) inseridas(os) em situações de injustiças sociais, desigualdades socioeconômicas e, consequentemente, numa histórica falta de acesso à saúde, educação, assistência, moradia e transporte público de qualidade, realidades estas infelizmente ainda bastante prementes entre grande parte da população negra em decorrência de como a escravidão e o racismo operaram (e ainda operam) em nosso país, inclusive como determinante social da saúde. Nesse sentido, afirma Benedita:

A presença de poucos negros na saúde, como sabemos, é um reflexo do processo de elitização de alguns cursos que têm como combustível a injustiça social, parcela da população negra é de classe social baixa e apresenta problemas socioeconômicos sérios que contribuem para o contexto atual, mas as intervenções sociais são uma ferramenta importante que podem estar a amenizar essa realidade (Benedita).

Outras narrativas reforçam essa leitura de mundo. Mundo no qual a população negra enfrenta maiores dificuldades que a população branca no acesso à educação, além de receber salários mais baixos do que os salários do branco. Sem dúvida, a implicação ético-política passa pela implicação com a produção da vida, na qual a promoção da saúde (MS, 2006Ministério da Saúde. (2006). Política Nacional de Promoção da saúde.) está marcada por atravessamentos que também agenciam os processos de saúde-doença e sua determinação social, envolvendo questões econômicas de classe, segurança alimentar e questões do mundo do trabalho como emprego e renda, além dos dispositivos já mencionados: etnia, raça, gênero, sexualidade e classe.

Subtema gerador: racismo na saúde

Os processos de subjetivação das(os) profissionais da saúde giram em torno de uma ética do cuidado nas relações raciais e da problematização do racismo institucional como determinante social da saúde. Dos 12 participantes, nove delas(es), ou seja, 75%, afirmam não ter presenciado manifestações de racismo no campo de estágio; três, ou seja, 25%, disseram já ter presenciado em sua atuação profissional.

Esperança argumenta: “… é inegável as conquistas advindas da luta e combate ao racismo e a todos os tipos de preconceito, mas infelizmente ainda vivencio e presencio algumas cenas, nos vários campos onde ando …”. Ruth também afirma:

Não [vi] diretamente, como se imagina que seria o racismo clássico, com xingamentos e agressão física. Mas presenciei o racismo institucional, onde serviços que se dispõem a ser “de saúde pública e universal” negligenciam comunidades com maior população negra, com profissionais pouco sensíveis aos recortes étnicos e aos fatores históricos de vulnerabilização (Ruth).

Não podemos esquecer componentes dos processos de semiotização, ditos não verbais, tais como gestos, olhares, outras expressões do rosto e do corpo, o silêncio e o silenciamento, haja vista que muitas vezes são produtores de sofrimento. Maria Jesus Moura (2018Moura, M. J. (13 jul. 2018). “Para você não romper o silêncio e manter as relações saudáveis, você tem que negar a sua cor”. Entrevista com Maria de Jesus Moura. El País. https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/06/politica/1530885070_540009.html
https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07...
) denuncia esse silêncio como efeito não só da educação de pais e mães, muitas vezes negros, mas sobretudo de uma escravidão psíquica, ou seja, do racismo como uma “estratégia para destruir, criar pessoas controladas, sem autonomia, que não consigam ter um discernimento”. Com larga experiência em atendimento a mulheres negras, a psicóloga diz que a maioria chega ao consultório sem conseguir nomear o racismo nas relações sociais e, consequentemente, tem maiores dificuldades em reconhecer os processos psicossociais do racismo e seus efeitos na saúde mental. De acordo com a autora:

A cordialidade do racismo no Brasil produz efeitos devastadores para as relações raciais. Até onde se silencia sobre as diferenças raciais, as relações são mantidas sem conflito, mas se o pacto de silêncio é quebrado as relações são estremecidas, e aquilo que era lindo, exótico, charmoso, até mesmo sensual, torna-se promíscuo, feio, defeituoso, vulgar (Moura, 2009Moura, M. J. (2009). A produção de sentidos sobre violência racial no atendimento psicológico a mulheres que denunciam violência de gênero [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Pernambuco]. Attena Repositório Digital da UFPE. https://repositorio.ufpe.br/handle/123456789/8361
https://repositorio.ufpe.br/handle/12345...
, p. 46).

Portanto, faz-se necessário pensar essas questões na formação profissional para que também na atuação sejam consideradas várias questões que produzem sofrimento. Assim, espera-se que se saiba lidar com as diferenças, a fim de contribuir para a produção da saúde a partir dos grupos étnicos e do contexto no qual a população está inserida, respeitando a cultura, os conhecimentos, a religiosidade, os gêneros, as classe e as raças.

Sobre o racismo na saúde, Ruth argumenta que:

está para além de falta de informação, pois há muita informação sim, logo, é uma questão de violência mesmo. Quando uma criança negra tem 60% de chances a mais de morrer antes dos 5 anos por doenças ridículas que criamos remédios e tratamentos eficientes para combater há mais de um século atrás, não é questão de doença simples e pura, é questão de: qual o sistema, a ideologia violência que está matando, por negligência, essas crianças? (Ruth).

Esperança desabafa: “Me sinto envergonhada e muito triste, por isso ainda acontecer, ao passo de juntar força para que de alguma forma esse racismo diminua, para que estejamos cientes dos nossos direitos, para que não haja omissão diante de um ato tão lamentável”. Quando a vergonha (Sawaia, 2008Sawaia, B. B. (2008). O sofrimento ético-político como categoria de análise da dialética exclusão/inclusão. In B. B. Sawaia (Org.), As artimanhas da exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social (10a ed., pp. 97-118). Vozes.) como afecção do corpo é acionada, funciona como dispositivo de controle social para diminuir a potência de ação. Não obstante, Esperança busca e encontra força na vida e na consciência crítica dos direitos humanos, a fim de questionar o Estado pelas omissões ante as iniquidades.

O racismo articulado aos dispositivos classe, religião, gênero e orientação sexual, agencia os modos de subjetivação e produz subjetividades. As(os) profissionais da saúde reconhecem que o racismo é produtor de sofrimento e o quanto a instituição Saúde pode influenciar no processo de adoecimento, de descaso e negligência, que em alguns casos, como os citados por Ruth, podem levar ao óbito.

Subtema gerador: modos de enfrentamento ao racismo

Quanto aos modos de enfrentamento ao racismo institucional, a implicação ética da(o) psicóloga(o) emerge como dispositivo nos processos de subjetivação das(os) profissionais. A maioria se refere às microinsurgências produzidas pelo movimento estudantil menor no âmbito das relações raciais, durante a formação.

Zefirina, mulher branca, psicóloga e heterossexual, não confunde seu lugar de fala com o lugar de fala e representatividade da mulher negra. Ela reconhece que “o racismo institucional existe e é visível aos olhos de quem o queira ver” e afirma: “… não é uma temática bastante discutida na academia, mas acredito que há estratégias na psicologia que possam servir para o enfrentamento ao racismoatravés da defesa dos direitos humanos …”. Além dessa aposta na defesa dos direitos humanos no enfrentamento ao racismo, Benedita reconhece que “as intervenções sociais são uma ferramenta importante que podem estar a amenizar essa realidade”. No enfrentamento ao racismo, Lourenço aponta a necessidade de “uma militância para que se mude efetivamente” o quadro de exclusão, negligência e iniquidades.

Zabé, ao se referir aos modos de enfrentamento ao racismo institucional por negligência política da IES, declara: “os movimentos universitários existentes no campus [eram e são os que] traziam e trazem consciência de si”, provocando discussões que ultrapassam uma identidade segmentada e a própria população negra. Ela refere-se às minorias: “seja LGBTQIA+, feministas, negros, mulheres negras, grupos trans”. A maioria das (dos) profissionais da saúde cita uma das pesquisadoras deste estudo como exemplo de militância e trabalho de resistência dentro e fora dos muros da IES.

Relações raciais: cartografias finais

Neste estudo, apresentamos uma cartografia da Psicologia e relações raciais na interface formação e atuação profissional. Anunciamos as concepções de analfabetismo ético-estético-poético e político da existência e de cidadania menor e operamos ferramentas-conceitos de uma epistemologia da decolonização. Nesta perspectiva, iniciamos a sistematização da discussão e análise com uma teorização de nossa terceira autora, cujo lugar de fala e representatividade foram lembrados pela maioria das(os) participantes, durante o círculo de cultura e as rodas de conversa. Ela escreve:

Primeiramente, como mulher, negra, militante e psicóloga, já existo enquanto ofensa a uma sociedade racista e misógina. Minha prática profissional é reflexo do meu posicionamento político e ético no campo social. A Psicologia se propõe, em suas várias facetas, a cuidar de gente, e não há como fazer isso sem entender que existem recortes e leituras que precisam ser feitas. Minha implicação na luta contra o racismo vem do fato de ter que lidar com ele todos os dias. Mas isso não quer dizer que os psicólogos e psicológicas brancos não devam lutar também.

Por meio desta cartografia, caracterizamos o racismo institucional e outros dispositivos que compõem seu agenciamento: raça, gênero, sexualidade, etnia e classe. Mapeamos modos de singularização no enfrentamento ao racismo institucional, como movimentos feministas, feministas negras, movimento LGBTQIA+ e movimento negro. Os processos de subjetivação que contornam as intervenções nos fazem ver e falar da força desses pequenos agenciamentos coletivos do desejo existentes no processo de devir grupo-sujeito. Não obstante, não se configuram como microinsurreições no âmbito da formação e atuação profissional, mas compõem uma micropolítica do desejo do movimento estudantil minoritário, cujos processos de singularização expressam modos de romper com o instituído, instaurando discussões que suscitam o debate em torno da psicologia nas relações raciais e de outras situações-problema, que estão para além dos muros da IES, principalmente das instituições da violência. Trata-se de um devir comum minoritário que produz pequenas fissuras nesses muros, apontando para a composição de movimentos micropolíticos de enfrentamento ao racismo e de resistência à produção de subjetividades colonial-capitalística (Guattari & Rolnik, 2010Guattari, F., & Rolnik, S. (2010). Micropolítica: Cartografias do desejo (10a ed.). Vozes.; Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada. n-1 edições.).

No âmbito da análise da IES, a presença de uma psicóloga negra e militante, ora como discente (em passado recente), ora como pesquisadora, funciona como analisador das relações raciais na interface formação e atuação profissional. As(os) participantes desta pesquisa, ao compor esta cartografia, puderam devir grupo-sujeito e cada um(a) também pode devir autora/autor ao narrar experiências, por meio de relato e escrita de si. O grupo-sujeito revela como o pesquisador-analisador (mulheres negras que assinam este artigo como segunda e terceira autoras), por meio do exercício ético-estético-poético e político, pode contribuir com a produção de estratégias de enfrentamento ao racismo, mostrando como faz sentido ocupar lugar de fala e representatividade.

No projeto de sociedade no qual o Estado de exceção tem substituído o Estado democrático de direito, como assinalamos com as palavras de Mbembe (2019Mbembe, A. (2019). Poder brutal, resistência visceral (D. Kaus, Trad.). n-1 edições.) na introdução deste artigo, noções de que “somos todos iguais, com direitos e deveres iguais” ficam perdidas, bem como a evasiva “ordem e progresso” e o mantra “igualdade, liberdade e fraternidade” que alimentou o projeto de modernidade por muitos anos. A problematização do racismo institucional, nessa conjuntura política de exceções, nos faz pensar o quão necessário é um projeto ético, estético, poético e político de sociedade (Passos & Mizoguchi, 2019Passos, E., & Mizoguchi, D. H. (2019). Antifascismo tropical. n-1 edições.) e como a Psicologia, voltada a esse projeto, poderia contribuir para uma ética da alteridade-solidariedade no cuidado em saúde.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jan 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    14 Out 2019
  • Aceito
    03 Ago 2021
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