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Patologia do Desempenho: TDAH, Drogas Estimulantes e Formas de Sofrimento no Capitalismo

Performance Pathology: ADHD, Stimulant Drugs, and Forms of Suffering in the Capitalism

Patología de Desempeño: TDAH, Drogas Estimulantes y Formas de Sufrimiento en el Capitalismo

Resumo

O consumo de medicamentos estimulantes cresceu nos últimos anos, no Brasil e no mundo. Pessoas de diferentes idades, especialmente crianças e adolescentes, passaram a consumir estimulantes como a principal terapêutica utilizada para tratar o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Nesse contexto, estimulantes como as anfetaminas e o metilfenidato, mais conhecidos pelos nomes comerciais de Adderall e Ritalina, ganharam visibilidade social em razão da associação desses psicofármacos ao aperfeiçoamento de funções psíquicas como a atenção e o aumento na qualidade e no tempo de rendimento dos sujeitos nas mais variadas atividades. Com isso, aumentou também a procura desses estimulantes por pessoas que não estão em tratamento médico, mas que buscam aprimorar seu desempenho nas atividades que realizam. Diante desse cenário, o objetivo deste artigo foi demonstrar como o crescimento no consumo de estimulantes, seja por sujeitos em tratamento médico ou não, está relacionado aos processos de socialização hegemônicos nas sociedades capitalistas atualmente. Articulando o contexto apresentado com os conceitos da psicanálise lacaniana, foi possível concluir que o consumo massivo de estimulantes está relacionado aos processos de patologização e medicalização da existência, colocados em movimento por uma articulação entre o discurso médico-científico e o discurso do capitalista na contemporaneidade.

Palavras-chave:
Patologias do Desempenho; Estimulantes; Psicanálise Lacaniana; Medicalização

Abstract

The consumption of stimulating drugs has grown in recent years in Brazil and worldwide. People of all ages, especially children and adolescents, started to use stimulants as the main therapy used to treat attention deficit hyperactivity disorder (ADHD). In this context, stimulants such as amphetamines and methylphenidate, better known by the trade names Adderall and Ritalin, have gained social visibility due to the association of these psychoactive drugs with the improvement of psychic functions such as attention and the increase in quality and performance time of subjects in the most varied activities. As a result, the demand for these stimulants has also increased by people who are not undergoing medical treatment, but who seek to improve their performance in the activities they perform. Given this scenario, this article aimed to demonstrate how the growth in the consumption of stimulants, whether by subjects undergoing medical treatment or not, is related to the hegemonic socialization processes in capitalist societies today. Articulating the context presented with the concepts of Lacanian psychoanalysis, it was possible to conclude that the massive consumption of stimulants is related to the processes of pathologization and medicalization of existence, set in motion by an articulation between the medical-scientific discourse and the capitalist discourse in contemporary times.

Keywords:
Performance Pathologies; Stimulants; Lacanian Psychoanalysis; Medicalization

Resumen

El consumo de drogas estimulantes ha crecido en los últimos años, en Brasil y en otros países. Diversas personas, especialmente niños y adolescentes, comenzaron a usar estimulantes como la terapia principal utilizada para tratar el trastorno por déficit de atención con hiperactividad (TDAH). En este contexto, los estimulantes como las anfetaminas y el metilfenidato, mejor conocidos por los nombres comerciales Adderall y Ritalina, han ganado visibilidad social debido a la asociación de estas drogas psicoactivas a la mejora de las funciones psíquicas, como la atención y el aumento de la calidad y el tiempo de rendimiento de los pacientes en diversas actividades. Como resultado, la demanda de estos estimulantes también ha aumentado por las personas que no reciben tratamiento médico, pero que buscan mejorar su desempeño en las actividades que realizan. Dado este escenario, el objetivo de este artículo era demostrar cómo el crecimiento en el consumo de estimulantes, ya sea por sujetos que reciben tratamiento médico o no, está relacionado con los procesos de socialización hegemónica en la sociedad capitalista actual. De la articulación del contexto presentado con los conceptos del psicoanálisis lacaniano se concluye que el consumo masivo de estimulantes está relacionado con los procesos de patologización y medicalización de la existencia, puestos en marcha por una articulación entre el discurso médico-científico y el discurso capitalista en los tiempos contemporáneos.

Palabras clave:
Patologías de Desempeño; Estimulantes; Psicoanálisis Lacaniano; Medicalización

Introdução

No Brasil, o consumo de medicamentos estimulantes cresceu nos últimos anos (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2012Agência Nacional de Vigilância Sanitária. (2012). Prescrição e consumo de metilfenidato no Brasil: Identificando riscos para o monitoramento e controle sanitário. Boletim de Farmacoepidemiologia do SNGPC, 2(2). http://antigo.anvisa.gov.br/documents/33868/3418264/Boletim+de+Farmacoepidemiologia+n%C2%BA+2+de+2012/c2ab12d5-db45-4320-9b75-57e3d4868aa0
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). Pessoas das mais diversas idades, especialmente crianças e adolescentes, passaram a consumir estimulantes como a principal terapêutica utilizada para tratar o suposto transtorno do déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Nesse contexto, estimulantes, como o metilfenidato, mais conhecido pelos nomes comerciais de Concerta e Ritalina, ganharam visibilidade social em razão da associação desses fármacos ao aperfeiçoamento de funções psíquicas como a atenção e o aumento na qualidade e no tempo de rendimento dos sujeitos nas mais variadas atividades. Com isso, aumentou também o consumo desses estimulantes por pessoas que não estão em tratamento médico, mas que buscam aprimorar seu desempenho nas atividades que realizam.

Diante desse cenário, o objetivo do presente artigo é demonstrar como o crescimento no consumo de estimulantes, seja por sujeitos em tratamento médico ou não, está relacionado aos processos de socialização hegemônicos nas sociedades capitalistas atuais. A racionalidade neoliberal tem produzido formas de subjetivação nas quais o gerenciamento do capital humano por meio do desempenho adquire grande relevância. De acordo com Becker (1964Becker, G. S. (1964). Human capital a theoretical and empirical analysis, with special reference to education. Columbia University Press.), o capital humano é o conjunto de capacidades produtivas que um sujeito pode adquirir ao longo da vida, principalmente por meio da acumulação de conhecimentos ou habilidades gerais e específicas. Dentro dessa perspectiva, os níveis de produção de riquezas de uma sociedade dependem dos níveis de aperfeiçoamento e qualificação da população por meio da educação. Dessa forma, no centro das expectativas sociais de reconhecimento está a capacidade de cada sujeito em gerir seu capital humano por meio de seu desempenho, objetivando sempre mais além de suas possibilidades ou, poderíamos afirmar, a maximização insaciável de seu rendimento.

O que nos interessa salientar a partir desse quadro é como o discurso médico-científico se articula ao discurso do capitalista, favorecendo a reprodução dessas formas de subjetivação hegemônicas nas sociedades neoliberais. Um dos resultados disso é a produção de dois processos que acreditamos ser fundamentais para que possamos compreender o crescimento no consumo de medicamentos estimulantes: a patologização e a medicalização da existência.

Iniciaremos nosso artigo buscando explicitar o que compreendemos por processos de patologização e medicalização da vida. Na sequência, nosso objetivo é demonstrar como esses processos são efeitos da articulação entre a racionalidade diagnóstica de nossa época e o discurso do capitalista. Por fim, buscaremos mostrar como os medicamentos estimulantes vão se alojar no imaginário social como pílulas mágicas do desempenho, atendendo aos imperativos de desempenho presentes nas modalidades de socialização hegemônicas nas sociedades neoliberais.

Existência patologizada, vida diagnosticada

Não é nenhuma novidade que as estratégias de patologização da existência e medicalização da vida tenham ganhado terreno com o avanço das técnicas de exame e diagnóstico biomédico. Uma vez localizado o distúrbio, o ponto fora da norma, nada aparentemente mais eficaz do que um medicamento que pode reparar o dano causado pela doença. Ora, quanto mais o saber médico se desenvolve no sentido de tornar a experiência do adoecimento uma variável determinada e precisa, mais as reflexões sobre a cura são tratadas no âmbito de medidas paliativas, restauradoras, fortificantes e reconstituintes.

Para compreender que a normalização de uma forma de vida é traço essencial da racionalidade clínica de nossa época, basta estar atento ao fenômeno contemporâneo de massificação das formas de sofrimento (TDAH, síndrome do pânico e depressão, por exemplo) e sua gradual normalização no discurso da saúde, causada pelo efeito excessivo de determinação diagnóstica. Segundo Christian Dunker (2015Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. Boitempo.), podemos imaginar que uma forma única de sofrimento pode alcançar legitimidade e reconhecimento social à medida que é nomeada e tem o poder de mobilizar os dispositivos de cura, terapia e tratamento. Assim, há a conversão de um sofrimento indeterminado em uma entidade clínica (diagnóstico) capaz de mobilizar todo um circuito de cuidado com a saúde. Eis o que este autor chama de diagnóstica: o modo clínico de se reconhecer o tipo de racionalidade que determina os fins (política) de um tratamento.

Diagnóstica são, portanto, atos de reconhecimento que determinam a experiência social e individual da doença e da cura. Dunker (2015Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. Boitempo.) entende esses atos de reconhecimento não como simples atos de nomeação e classificação do sujeito em determinada contingência histórica, mas como racionalidade que ele nomeia de diagnóstica. “Seria preciso chamar de ‘diagnóstica’ essa expansão dos atos, raciocínios e estratégias de inserção política, clínica e social do diagnóstico, e sua consequente ‘força de lei’, capaz de gerar coações, interdições, tratamentos” (Dunker, 2015Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. Boitempo., p. 20). Uma vez compreendida a realidade da doença - seu agente patógeno, suas causas, o dano provocado e o remédio que cura - um circuito de cuidado é mobilizado para que a saúde possa ser um bem promovido pelo Estado ou mercadoria posta em circulação pelo capital. O conceito de diagnóstica, para Dunker, serve para caracterizar um estilo de racionalidade. A racionalidade diagnóstica contemporânea não é somente a atitude médica-jurídica que normaliza e mobiliza os dispositivos de subjetivação, já que “se antes o diagnóstico psicopatológico podia significar uma temível, às vezes irreversível, inclusão jurídico-hospitalar ou exclusão moral-educativa, agora ele parece ter se tornado um poderoso e disseminado meio de determinação e de reconhecimento” (Dunker, 2015Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. Boitempo., p. 33).

O modelo supostamente mais bem acabado desta racionalidade diagnóstica é o Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM), publicado pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) e que está atualmente em sua quinta versão. Resumidamente, podemos dizer que o princípio elementar que sustenta esse manual é transformar a psicopatologia e a clínica em uma diretriz classificatória e descritiva de sinais e sintomas, evitando ao máximo pronunciar-se sobre a etiologia dos transtornos mentais a não ser que essa etiologia tenha um marcador biológico claro e distinto. Para os promotores do DSM, a psicopatologia seria um campo disperso e indeterminado pela “confusão das línguas” que deixava no limbo a tão sonhada objetividade no campo das doenças mentais. Mas, segundo Mario Eduardo da Costa Pereira (2009Pereira, M. E. C. (2009). O DSM-IV e o objeto da psicopatologia ou psicopatologia para quê? Estados Gerais da Psicanálise. http://egp.dreamhosters.com/EGP/98-dsm-iv.shtml
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), há um equívoco nessa definição de psicopatologia, visto que ela é exatamente um campo em que as contradições, os impasses e as desavenças são constituintes de sua história. Ainda segundo o autor, o uso do termo transtorno (disorder) caracteriza bem a justificativa pragmática de evitar o terreno espinhoso das nosografias clássicas em psicopatologia. Em função disso, poderíamos dizer que o DSM é uma estratégia de negação da psicopatologia, e por que não, da própria história.

Contudo, não é difícil constatar que o DSM, apesar de todos os seus esforços supostamente totalizantes, não cumpre suas expectativas de eliminar os equívocos e indeterminações do campo da psicopatologia. Esse é o maior argumento das críticas dirigidas ao manual, cuja maior importância está no fato de produzirem um significativo questionamento sobre se o objetivo declarado do DSM de tornar o diagnóstico das doenças mentais mais confiável e seguro - acabando com as polêmicas em torno das diferenças teóricas na clínica - é ou não um empreendimento bem-sucedido no tocante à cura dos transtornos mentais. Atentemos que os critérios definidos pelo manual para a realização do diagnóstico são supostamente a maneira mais eficaz de explicar como as doenças mentais se expressam, podendo ser reconhecidas por clínicos do mundo inteiro independentemente de sua orientação teórica. Porém, essa parece ser a crítica mais dura que a força tarefa do DSM tem de se haver: a tão sonhada universalidade do manual é facilmente contestada quando consideramos, por exemplo, que pelo menos 1,3 bilhões de pessoas não estão incluídas nessa universalidade, já que a China adota um modelo próprio de classificação. Este breve exemplo nos serve aqui não para dizer que a tão sonhada universalização da classificação dos transtornos mentais objetivada pelo DSM dependa dos chineses, mas para demonstrar que aquilo que é chamado de transtorno mental pelo DSM é determinado mais por condições sociais, históricas e culturais do que biológicas.

Desse modo, podemos dizer que a ampliação das séries e classes diagnósticas do DSM só pode ser correlata do avanço do que chamamos de política de patologização da existência - qualquer comportamento alheio às normas de conduta deve ser tomado como desviante e passível de ser corrigido - e de medicalização da vida - qualquer traço de errância ou indeterminação deve ser remediado, isto é, convertido em uma experiência que possa ser determinada e tratada exclusivamente como problema médico, em termos de doença ou transtorno (Dalgalarrondo, 2019Dalgalarrondo, P. (2019). Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais (3a ed.). Artmed.). Portanto, de acordo com Viégas e Oliveira,

O conceito de medicalização pode ser aplicado às diversas esferas da vida e denota, de modo geral, reduzir problemas sociopolíticos a questões individuais, como uma operação de práticas da saúde em um contexto não terapêutico, mas político-social. Medicalizar, portanto, significa deslocar para o campo individual, biológico e da saúde questões que foram produzidas a partir dos aspectos políticos, sociais e culturais mais amplos. Nesse sentido, a questão não se reduz simplesmente ao uso de medicamentos, envolvendo, outrossim, a redução da complexidade da vida para aspectos específicos da saúde, tendo na patologização sua face mais sombria (Viégas & Oliveira, 2014Viégas, L. S., & Oliveira, A. R. F. de. (2014). TDAH: Conceitos vagos, existência duvidosa. Nuance: estudos sobre educação, 25(1), 39-58. http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v25i1.2736
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, p. 40).

Eis aqui desenhado, a partir da definição de Viégas e Oliveira (2014Viégas, L. S., & Oliveira, A. R. F. de. (2014). TDAH: Conceitos vagos, existência duvidosa. Nuance: estudos sobre educação, 25(1), 39-58. http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v25i1.2736
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), o cruel paradoxo do anormal se tornando a norma: quanto mais se avança no esforço de determinação científica de todas as formas possíveis de doença mental, para que não paire mais nenhum equívoco na delimitação do normal e do patológico, mais a razão diagnóstica encontrará o que quer achar em todas as formas de vida. É o déficit, o desvio, o desajuste, como realizações particulares e impróprias, que devem ser ajustadas à norma inequívoca; logo um modo de diagnosticar e tratar que justifica a substituição da cura enquanto experiência de transformação subjetiva pela noção de restabelecimento do ideal normativo de saúde.

Neste contexto de discussão é importante lembrar que toda estratégia de normalização necessita de um quadro de referências para se fundamentar. O filósofo Vladimir Safatle (2015Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos. Cosac Naify.) afirma que os transtornos e síndromes descritas nos manuais de diagnóstico, como o DSM, são determinados considerando a frequência, intensidade e proporção de um feixe de sintomas em comparação com um quadro determinado de expectativas. É da desregulação quanto a esses padrões que o discurso sobre a patologia versa, por isso não podemos dizer que a racionalidade posta em circulação pelo DSM e suas formas correlatas não trazem como efeito nenhuma consequência política significativa. Se nos valermos de autores como Michel Foucault (1973-1974/2006Foucault, M. (2006). O poder psiquiátrico. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1973-1974)), podemos propor que a principal consequência política do DSM em nossa sociedade é a estratégia de normalização com claros objetivos de controle e disciplina social.

Não devemos nos contentar com a noção de que o DSM é uma impostura clínica sem maiores consequências para o modo como pensamos e vivemos. Basta uma questão para demonstrar a implicação social, econômica e política da patologização da existência: o que sustenta a indústria do sofrimento senão a ideia super higiênica de que uma vida deve ser vivida neutralizando a errância e a contingência, alçando a felicidade à condição de valor supremo? O preço dessa mercadoria nós já sabemos bem: uma vigorosa ideologia que nada mais é do que a defesa de que uma vida saudável e sem sofrimentos é o horizonte político desejável e mais viável de todos.

É neste sentido que não podemos subestimar as consequências econômicas e sociais do DSM. Em uma entrevista para o site Vice, intitulada A indústria do sofrimento é uma poderosa força econômica (Veloso, 2015Veloso, A. M. (2015). “A indústria do sofrimento é uma poderosa força econômica” - Uma entrevista com o psicanalista Christian Ingo Lenz Dunker. Vice. https://www.vice.com/pt/article/pgexeb/a-industria-do-sofrimento-uma-poderosa-forca-economica-uma-entrevista-com-o-psicanalista-christian-ingo-lenz-dunker
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), Christian Dunker faz uma observação pertinente sobre o modo como a indústria do sofrimento, entendida como a produção do sofrimento e da cura, surge em decorrência de uma racionalidade à la DSM: uma vez que existe a necessidade de produzir sofrimento, é fundamental dizer para as pessoas que sofrer é um problema, para que seja produzida uma epidemia de depressão e aí o especialista diz “agora eu tenho a cura”.

Por isso, a despeito de sua absoluta impostura epistemológica e científica, a racionalidade imposta pelos DSM deve ser considerada como formação discursiva que traz consequências políticas significativas. Não é de se desconsiderar que 72% dos envolvidos na força tarefa DSM tenham declarado abertamente possuir vínculo formal e receber proventos da indústria farmacêutica. Por outro lado, não devemos esquecer, conforme argumentam Gilson Iannini e Antônio Teixeira (2014Iannini, G., & Teixeira, A. (2014). Reflexões sobre o DSM 100. Opção Lacaniana Online, 14(5), 1-9. http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_14/Reflexoes_sobre_o_DSM_100.pdf
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), que o DSM é um manual submetido exclusivamente à lógica do capital, que deve organizar a “associação entre a demanda e o produto ofertado - no caso, a doença mental e o recurso terapêutico. Sua função é dar roupagem científica à associação entre catálogos e pílulas” (Iannini & Teixeira, 2014Iannini, G., & Teixeira, A. (2014). Reflexões sobre o DSM 100. Opção Lacaniana Online, 14(5), 1-9. http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_14/Reflexoes_sobre_o_DSM_100.pdf
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, p. 5).

Com o DSM, temos um modelo de racionalidade que se sustenta pelo diagnóstico de que o sofrimento é o exame das “condições pelas quais processos de individualização fracassam diante da anomia, impedindo a socialização das pulsões ou petrificando identificações do sujeito” (Dunker, 2015Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. Boitempo., p. 230). É importante reter desse empreendimento o tipo de consequência que ele implica. Para a clínica, uma matriz de cura claramente delineada como um fim normativo e, para a política, um fim também pautado pelo ajuste normativo da indeterminação: “o excesso de experiências improdutivas de determinação deve ser tratado pela conversão das experiências improdutivas, como falso reconhecimento ou como violação de equidade e justiça, em experiências produtivas. Esse é o ajuste normativo a ser realizado” (Dunker, 2015Dunker, C. (2015). Mal-estar, sofrimento e sintoma. Boitempo., p. 230).

Ajuste normativo que se opera na clínica e no laço social, portanto, bloqueando a potencialidade que as experiências de indeterminação têm de produzir o novo: o sofrimento individual e a anomia social devem ser tratadas, segundo a razão normalizante, buscando converter a anormalidade e a exceção em regra, incluindo na norma e na lei quanto mais predicados forem necessários para assegurar a viabilidade ou inviabilidade das experiências singulares. É em função desse ajuste normativo que é possível a inteligibilidade do processo de determinação positiva das formas de vida. Essa é a vocação sociopolítica do DSM.

Nessa medida, Safatle está certo ao dizer que o debate que se seguiu ao lançamento do DSM-V não é de interesse só dos profissionais da saúde. “Pois, e se categorias como ‘saúde’, ‘doença’, ‘normal’ e ‘patológico’, principalmente quando aplicadas ao sofrimento psíquico, não forem meros conceitos de um discurso científico, mas definições carregadas de forte potência política?” (Safatle, 2013Safatle, V. (2013). O poder da psiquiatria. Revista Cult, 184, 22-23., p. 22). Não custa nada lembrar que a definição do normal e do patológico organiza o modo como as intervenções nas populações, nos corpos e nos afetos serão defendidas, planejadas e executadas. No interior de cada sociedade, em cada contingência sócio-histórica particular, esses modos de intervenção não se orientam pela experiência singular do paciente, mas por “padrões esperados de conduta social de forte conotação moral” (Safatle, 2013Safatle, V. (2013). O poder da psiquiatria. Revista Cult, 184, 22-23., p. 22) que definem o quadro possível das formas de vida.

Por exemplo, quando o DSM-4 descrevia o transtorno de personalidade narcísica, ele não temia descrever tal transtorno, apelando, entre outras coisas, para quadros morais do tipo: “Eles esperam ser adulados e ficam desconcertados ou furiosos quando isto não ocorre. Eles podem, por exemplo, pensar que não precisam esperar na fila, que suas prioridades são tão importantes que os outros lhes deveriam mostrar deferência e ficam irritados quando os outros deixam de auxiliar em ‘seu trabalho muito importante’”. O mínimo que se pode dizer é que tal quadro nada diz sobre o sofrimento psíquico, mas diz muito a respeito dos padrões disciplinares e morais que nossa sociedade tenta elevar à condição de normalidade médica (Safatle, 2013Safatle, V. (2013). O poder da psiquiatria. Revista Cult, 184, 22-23., p. 23).

Não podemos dizer que algo muda com o DSM-V. Pelo contrário, podemos dizer que nas sequenciais reedições do DSM temos um exemplo nítido da racionalidade que toma a crise não como o momento oportuno para a transformação, mas para a radicalização do regime normativo em vigor. Essa orientação, conforme nos apontou Safatle na passagem acima, é, por definição, uma orientação política. Ou como diria Pereira (2013Pereira, M. E. C. (2013). O DSM e a crise da psiquiatria. Revista Cult, 184, 38-45.): “uma classificação diagnóstica jamais é politicamente neutra, pois sempre veicula - necessária e implicitamente - uma visão de homem e sociedade” (p. 44). Assim, é perfeitamente verificável que à mesma proporção que a psiquiatria biológica avança na construção de seu modelo de explicação e determinação das doenças mentais - neuroquímica do sistema nervoso -, se torna previsível a necessidade de revisão do quadro descritivo, classificatório e epidemiológico do manual, já que as formas de adoecimento mental se transformam ao longo da história, o que produz, por consequência, uma demanda sempre renovada por reconhecimento dessas formas. Por isso, não é de se estranhar a revisão e inclusão incessante das formas patológicas de existência e a correção infinita dos critérios de diagnóstico.

Patologia do desempenho

Aqui, um exemplo contundente nos ajuda a compreender o problema. O consumo massivo do estimulante Ritalina®, nome comercial do princípio ativo cloridrato de metilfenidato, parece ter se tornado uma realidade entre os brasileiros. Em 2012, um boletim de Farmacoepidemiologia da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), o único publicado até o ano de 2020, já apontava para um crescimento de 117% na quantidade de caixas do medicamento vendidas entre os anos de 2009 e 2011 (Agência Nacional de Vigilância Sanitária, 2012Agência Nacional de Vigilância Sanitária. (2012). Prescrição e consumo de metilfenidato no Brasil: Identificando riscos para o monitoramento e controle sanitário. Boletim de Farmacoepidemiologia do SNGPC, 2(2). http://antigo.anvisa.gov.br/documents/33868/3418264/Boletim+de+Farmacoepidemiologia+n%C2%BA+2+de+2012/c2ab12d5-db45-4320-9b75-57e3d4868aa0
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). A principal justificativa encontrada pelas autoridades sanitárias para o aumento foi o número crescente de crianças e adolescentes diagnosticados com TDAH. Houve um aumento expressivo na quantidade de diagnósticos, o que permitiu à ANVISA estimar entre 0,9% e 26,8% a prevalência do TDAH entre crianças e adolescentes brasileiros.

Nos Estados Unidos, os números também são expressivos. Segundo Robert Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: Pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Fiocruz.), o número de crianças diagnosticadas com TDAH chegou a mais de dois milhões em 1995, e a estimativa é que atualmente existam mais de três milhões de crianças tomando algum estimulante para tratar o suposto DAH naquele país. Importante enfatizar aqui o predicativo “suposto” na frase anterior, pois não há consenso no meio científico a respeito da existência desta patologia neurológica, como apontam Viégas e Oliveira (2014Viégas, L. S., & Oliveira, A. R. F. de. (2014). TDAH: Conceitos vagos, existência duvidosa. Nuance: estudos sobre educação, 25(1), 39-58. http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v25i1.2736
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). Whitaker (2017Whitaker, R. (2017). Anatomia de uma epidemia: Pílulas mágicas, drogas psiquiátricas e o aumento assombroso da doença mental. Fiocruz.) não deixa de salientar que foi a partir da terceira edição do DSM, quando o transtorno foi identificado por “Transtorno do Déficit de Atenção” (TDA), que o número de diagnósticos começou a crescer e o metilfenidato passou a ser mais utilizado no tratamento de crianças. Isso demonstra a relação do processo de classificação diagnóstica com a medicalização da vida, pois

A análise crítica das questões concernentes à medicalização da vida e da educação, bem como os aspectos que se referem ao TDAH, aponta para o predomínio recente na busca de padronização de todo e qualquer comportamento humano, incluindo os processos de desenvolvimento e aprendizagem. Os diagnósticos de TDAH estão inseridos nessa visão, calcada na lógica médica biológica, neurobiológica. A partir desse prisma, qualquer fenômeno pode ser traduzido para algo potencialmente físico, orgânico (Viégas & Oliveira, 2014Viégas, L. S., & Oliveira, A. R. F. de. (2014). TDAH: Conceitos vagos, existência duvidosa. Nuance: estudos sobre educação, 25(1), 39-58. http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v25i1.2736
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, p. 54).

Os principais sintomas de TDAH, descritos no DSM-V, são “desatenção”, “hiperatividade” e “impulsividade” (American Psychiatric Association, 2013American Psychiatric Association. (2013). Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (5th ed., DSM-V). American Psychiatric Association.). O transtorno não possui marcadores biológicos específicos e o diagnóstico é feito exclusivamente por meio de entrevista clínica. Na ausência de marcadores biológicos, a causa do transtorno é atribuída a um suposto “desequilíbrio químico” no sistema dopaminérgico do cérebro, e os estimulantes são a forma de “curar” esse desequilíbrio, aumentando a concentração de dopamina e noradrenalina nas fendas sinápticas.

Segundo Brzozowsk, Brzozowsk, e Caponi (2010Brzozowski, F. S., Brzozowski, J. A., & Caponi, S. (2010). Classificações interativas: O caso do transtorno de déficit de atenção com hiperatividade infantil. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 14(35), 891-904. https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000027
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), o TDAH é um fenômeno recente. Antes do século XX, características como hiperatividade e impulsividade eram vistas como comportamentos normais. “Percebe-se então que, atualmente, os conhecimentos científicos e as práticas em saúde têm tornado o limiar entre saúde e doença, entre o normal e o patológico, muito tênue” (Brzowzowski et al., 2010Brzozowski, F. S., Brzozowski, J. A., & Caponi, S. (2010). Classificações interativas: O caso do transtorno de déficit de atenção com hiperatividade infantil. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 14(35), 891-904. https://doi.org/10.1590/S1414-32832010005000027
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, p. 9).

O que nos cabe perguntar a partir desse cenário é em função de qual quadro normativo o TDAH se tornou um déficit ou desvio, e o consequente consumo massivo do metilfenidato se tornou uma solução funcional. Pois, como vimos com Safatle (2015Safatle, V. (2015). O circuito dos afetos. Cosac Naify.), patologias são identificadas em relação a um quadro determinado de expectativas sociais. Dessa forma, trata-se da questão: qual horizonte de expectativas é reforçado por meio da expansão dos diagnósticos de TDAH e do consumo crescente de estimulantes, principalmente entre crianças e adolescentes?

Quando observamos na contemporaneidade uma alta procura por livros de autoajuda, cursos de autoconhecimento, orientação de coachs, técnicas de comunicação etc., vemos que a preocupação com o desempenho parece ser uma marca da vida em sociedades capitalistas. Uma preocupação que não se restringe ao ambiente de trabalho, mas que chega aos mais diversos âmbitos da vida. São sujeitos extremamente preocupados em render mais, em extrair o máximo de si, dando a impressão de que o laço social parece permeado por um discurso que privilegia o rendimento como via de acesso à felicidade.

A centralidade do desempenho e o processo de medicalização nas sociedades capitalistas são muito bem abordados no documentário Take your pills (Klayman, 2018Klayman, A. (Director). (2018). Take your pills. Motto Pictures.). Embora o documentário trate da faceta mais comum da estratégia de medicalização, a saber, o uso abusivo de drogas estimulantes para o tratamento das “patologias do desempenho”, é importante ressaltar que, conforme vimos a partir de Viégas e Oliveira (2014Viégas, L. S., & Oliveira, A. R. F. de. (2014). TDAH: Conceitos vagos, existência duvidosa. Nuance: estudos sobre educação, 25(1), 39-58. http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v25i1.2736
http://dx.doi.org/10.14572/nuances.v25i1...
), a medicalização não se resume à administração de fármacos. É o que também fica evidente na caracterização do processo de medicalização no manifesto do Fórum Sobre Medicalização da Educação e da Sociedade:

A medicalização se sustenta em princípios ao mesmo tempo universalizantes e individualizantes. Universalizantes, pois cria e legitima padrões estáticos, não raro calcados na biologização e essencialização da experiência humana. E individualizantes porque a aceitação desses padrões alimenta e fortalece a crença generalizada de que cabe a cada um esforçar-se para se ajustar, de forma que aqueles que não se adaptam são indesejáveis, desvalorizados, descartáveis. Seus destinos, então, os dividem entre aqueles que são tratáveis/educáveis/corrigíveis/controláveis, sobretudo por meio de políticas educacionais, jurídicas, penais, de saúde e assistência social, e os que simplesmente podem ser eliminados, por serem (vistos como) supérfluos ou mesmo abomináveis aos interesses do sistema vigente. Em uma organização social eminentemente coisificadora, a medicalização se sustenta em olhares e práticas que estigmatizam, silenciam, fetichizam, patologizam, criminalizam ou exterminam certos tipos de existência, assumindo controle não apenas sobre a vida, mas também sobre a morte, ambas convertidas em mercadoria (“Manifesto desmedicalizante”, 2020Manifesto desmedicalizante e interseccional: “existirmos, a que será que se destina?”. (2020). Movimento - Revista de Educação, 7(1), 194-204. https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.43018
https://doi.org/10.22409/mov.v7i15.43018...
, p. 195).

A partir da passagem acima, podemos dizer que medicalização é essencialmente uma estratégia clínica e política que transforma questões que não são médicas em problemas a serem curados e eliminados como as doenças. Assim, o considerável consumo de estimulantes na sociedade norte-americana revela como os modos de participação social dominantes naquele contexto estão atravessados pela ideia de que as pessoas são capitais humanos passíveis de gerenciamento. Dentro dessa forma de vida, medicamentos que prometam mais tempo de rendimento e engajamento em atividades se tornam fundamentais. Por meio de vários relatos de jovens que utilizam estimulantes nos Estados Unidos, o documentário mostra como ser diagnosticado com TDAH é algo buscado por muitos deles, pois o diagnóstico permite que se tenha acesso legal a uma substância que melhora o rendimento nos estudos e nas atividades laborais. Ou seja, o diagnostico possui a função de permitir que esses sujeitos tenham acesso a uma terapêutica medicamentosa que os adequarão melhor aos modelos de sociabilidade dominantes no contexto em que vivem.

Dentro desse panorama, o aumento no número de crianças e adolescentes diagnosticados com TDAH e o consumo de estimulantes a ele relacionado são processos fundamentais para que vejamos como a produção de patologias está relacionada com os modos de sociabilidade dominantes numa sociedade, pois acreditamos que a preocupação excessiva com o desempenho que atinge os sujeitos atualmente é mais um dos efeitos da nossa forma atual de capitalismo: o neoliberalismo.

O discurso do capitalista

Uma contribuição decisiva de Jacques Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)) para problematizarmos o contexto social contemporâneo foi a formulação dos quatro discursos no seminário O avesso da psicanálise. Lacan formulou o discurso do mestre, da histérica, do universitário e do analista como quatro modalidades de laço social, pois entendeu que as estruturas discursivas ordenam e regulam os vínculos sociais entre os sujeitos. Os discursos são, nas proposições lacanianas, modos de uso da linguagem que implicam em determinadas formas de sociabilidade. Dos quatro discursos formulados por Lacan, aquele que nos interessa destacar inicialmente é o discurso do mestre, pois é a partir dele que poderemos tecer considerações sobre o discurso do capitalista.

Os discursos foram formalizados por Lacan por meio de quadrantes, elementos e operadores lógicos. Os quadrantes são fixos e se referem ao agente do discurso (aquele que organiza a produção discursiva), ao outro (para quem o discurso se dirige), à produção (o que resta do discurso) e à verdade (que sustenta o discurso):

agente (organiza o discurso) → outro (destinatário do discurso)

verdade (sustenta o discurso) // produção (resto do discurso)

Já os elementos do discurso são móveis, sendo eles: S1 (significante mestre), S2 (o saber), a (objeto a) e $ (sujeito barrado). Os operadores lógicos são as setas que estruturam as relações entre os lugares do discurso. O discurso do mestre - articulação significante que determina a constituição do sujeito - se configura da seguinte forma:

S1 (significante mestre) → S2 (o saber)

$ (sujeito barrado) // a (objeto a)

O que temos na formalização acima é o significante mestre (S1) no lugar de agente do discurso, intervindo no campo do Outro, organizado por um saber (S2), e produzindo um sujeito dividido pela linguagem ($). A partir da produção desse sujeito determinado pela linguagem, há como efeito um resto (objeto a) no lugar da produção, um resto que diz de uma perda irreparável. As barras (//) sinalizam a impossibilidade de o sujeito acessar diretamente o objeto causa de desejo, ou, em outras palavras, a impossibilidade do estabelecimento de relações de necessidade ou de satisfação entre o sujeito e os objetos produzidos pela cultura. Poderíamos ainda formular da seguinte forma: o sujeito barrado ou dividido pela linguagem representa a impossibilidade de esgotar os seres de linguagem nas formas de subjetivação produzidas pelos discursos sociais, pois a entrada de um ser vivo na linguagem o constitui como sujeito de desejo. Para a psicanálise, o sujeito do desejo é sem qualidades, sem substâncias, caracterizando-se, sobretudo, pela possibilidade de vir a ser. Embora o desejo possa alienar-se em demandas produzidas dentro dos processos de socialização, haverá sempre uma irredutibilidade do desejo aos objetos eleitos.

Segundo Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)), o discurso do capitalista realiza uma inversão dos elementos do lado do agente e da verdade no discurso do mestre: o $ saindo do lugar da verdade e indo para o lugar do agente, e o S1 saindo do lugar do agente e indo para o lugar da verdade.

$ → S2

S1 a

A principal consequência que nos interessa destacar nessa inversão que o discurso do capitalista realiza no discurso do mestre é a “Verwerfung, a rejeição para fora de todos os campos do simbólico, com as consequências de que já falei - rejeição de quê? Da castração” (Lacan, 1971-1972/2011Lacan, J. (2011). Estou falando com as paredes. Zahar. (Trabalho original publicado em 1971-1972)., p. 88). A rejeição da castração no discurso do capitalista pode ser vista em dois pontos centrais: o sujeito já não aparece mais marcado pela divisão da linguagem e estabelece uma relação direta com o objeto causa de desejo (objeto a). O discurso do capitalista tenta suturar a divisão do sujeito elegendo demandas ou formas de vida que se colocam como imperativos ou promessas de satisfação do desejo. Esses dois pontos são fundamentais para que pensemos o quadro normativo no qual o TDAH se constitui uma patologia e o consumo de estimulantes uma solução funcional, pois, como veremos, ambos os pontos destacados podem ser vistos na forma de subjetivação dominante em nossa época.

Forma neoliberal da subjetividade: o empresário de si

Segundo Pierre Dardot e Christian Laval (2016Dardot, P., & Laval, C. (2016). A nova razão do mundo: Ensaio sobre a sociedade neoliberal. Boitempo.), “o neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo” (p. 17). A racionalidade neoliberal é o ethos atual do capitalismo e circula na tessitura social por meio de discursos e práticas que promovem uma generalização da concorrência como princípio universal da vida e da forma empresa como modelo de subjetivação.

A promoção da empresa como modelo privilegiado de subjetivação foi observada por Michel Foucault (1978-1979/2008Foucault, M. (2008). Nascimento da biopolítica. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1978-1979)), quando afirmou que nas sociedades capitalistas neoliberais “o homo economicus é um empresário, e um empresário de si mesmo” (p. 311). Diferentemente da concepção clássica de homo economicus como parceiro da troca, o homo economicus neoliberal é um empresário de si à medida que é seu próprio capital e seu próprio produtor. Poderíamos acrescentar, como Alain Ehrenberg (2010Ehrenberg, A. (2010). O culto da performance: Da aventura empreendedora à depressão nervosa. Ideias & Letras.), que se trata de um sujeito que se acredita “sem raízes e sem passado, que não se refere a nada, a não ser a si mesmo” (p. 25). Ou seja, um sujeito que acredita em sua plena autonomia e não se vê determinado por nenhum aspecto do contexto sócio-histórico em que vive. E mais: uma vez que se compreende como capital a ser gerido, não resta ao sujeito outra forma de vida que não passe pela busca de maximização incessante de seus rendimentos. “É um sujeito que toma água para matar a sede e cada copo de água aumenta a sede” (Alemán, 2016Alemán, J. (2016). Horizontes neoliberales en la subjetividad. Grama Ediciones., p. 126).

A busca por maximizar seu capital, presente na forma de subjetivação do empresário de si, pode então ser entendida como busca por satisfação, uma vez que o discurso do capitalista neoliberal fará com que o sujeito acredite que é possível ser feliz por meio da performance ou que o sujeito trabalha apenas para si mesmo: é um empreendedor de si que objetiva a satisfação por meio de seus rendimentos ou de seus desempenhos nos mais diversos âmbitos da vida, pondo-se, para isso, sempre além de suas possibilidades.

Mas para se sustentar numa carreira ilimitada, o sujeito recorre à outra promessa do discurso do capitalista que é a produção de satisfação por meio do consumo. Pois, como vimos acima, no discurso do capitalista, o sujeito aparece em relação direta com o objeto causa de desejo que aí se confunde com os objetos de consumo produzidos pelo saber técnico. Ou seja, o discurso do capitalista elege objetos que supostamente realizariam a satisfação irrestrita do desejo.

Nesse tocante, precisamos destacar o papel do discurso científico. Segundo Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)), no estabelecimento do discurso do capitalista a partir de uma torção no discurso do mestre, o discurso científico desempenha função decisiva ao ocupar o lugar do mestre por meio da deposição de seu poder, constituindo assim um saber emancipado de formas externas de controle. A ocupação desse lugar pelo saber científico não é sem consequências:

a introdução do mundo novo no horizonte, das puras verdades numéricas, do que é contável, não significará por si só uma coisa bem diferente da instalação de um saber absoluto? O próprio ideal de uma formalização onde tudo é conta . . ., não estará aqui o deslizamento, o quarto de giro? Este é o que faz com que se instaure, no lugar do senhor, uma articulação eminentemente nova do saber, completamente redutível formalmente, e que surja, no lugar do escravo, não uma coisa que iria se inserir de algum modo na ordem desse saber, mas que é antes seu produto (Lacan, 1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970), p. 76).

Em outras palavras, podemos dizer que Lacan chama a atenção para o fato de que a torção no discurso do mestre pelo discurso da ciência implica em um mestre moderno significativamente diferente do mestre das sociedades disciplinares: trata-se de um mestre que incita à satisfação direta de demandas individuais. Nesse ponto, a ciência tem um papel determinante ao produzir objetos técnicos e lançá-los ao mercado, prometendo a satisfação dessas demandas. Lacan (1969-1970/1992Lacan, J. (1992). O Seminário Livro 17: O avesso da psicanálise. Zahar. (Trabalho original publicado em 1969-1970)) chamou latusas “aos pequenos a que vão encontrar ao sair, no pavimento de todas as esquinas, atrás de todas as vitrines, na proliferação desses objetos feitos para causar o desejo de vocês, na medida em que agora a ciência governa” (p. 153). A afirmação lacaniana diz de uma modernidade na qual a captura da satisfação pelo saber técnico é decisiva na produção de uma nova economia libidinal: os objetos produzidos pela ciência são lançados no mercado ofertando satisfação aos sujeitos na tentativa de apagar a diferença entre o objeto de desejo (objeto a) - uma perda irreparável e constitutiva - e o objeto de consumo. Assim, os objetos de consumo se convertem em objetos de gozo para os sujeitos que, a partir do discurso do capitalista, acreditam poder satisfazer suas demandas, o que no fim das contas só gera insatisfação e os coloca numa busca incessante por mais satisfação, ou seja, é uma ação que se autorreproduz. É o que assevera a passagem abaixo:

a causa do desejo do qual uma economia faz seu princípio: o da produção extensiva, portanto insaciável da falta-de-gozar. Esta se acumula, por um lado, para aumentar os meios dessa produção como capital. Por outro lado, amplia o consumo, sem o qual essa produção seria inútil, justamente por sua inépcia para proporcionar um gozo com que possa tornar-se mais lenta (Lacan, 1970/2003Lacan, J. (2003). Radiofonia. In Outros escritos (pp. 400-448). Zahar. (Trabalho original publicado em 1970), p. 434).

O que se percebe na citação de Lacan é que o discurso do capitalista organiza a sociedade a partir do movimento circular do capital, determinando as ações dos sujeitos a partir de uma lógica contábil e levando o desejo a ser causado pela pura medida de intensificação, pelo puro empuxo ao ilimitado. É precisamente o que vemos no modo de subjetivação do empresário de si: a performance nunca é suficiente, o sujeito está sempre em dívida consigo. Por isso, é preciso sempre mais.

Estimulantes: as pílulas mágicas do desempenho

Não é difícil concluir que, perante as injunções ao gozo do discurso do capitalista, principalmente quando faz coincidir rendimento e consumo à produção de (in)satisfação, um medicamento que promete mais concentração, diminuição da sensação de fadiga e aumento do estado de ânimo surja como uma pílula mágica. É assim que os medicamentos estimulantes, como a Ritalina, parecem alojar-se no imaginário social. Por meio de seus efeitos de significação, principalmente a promessa de estar ativo e rendendo por mais tempo, é que podemos melhor vislumbrar as relações existentes entre o aumento no consumo de estimulantes e o contexto social vigente, no qual o discurso do capitalista se coloca como mestre moderno.

Mas o que mais nos interessa destacar é como o discurso médico-científico, materializado em manuais diagnósticos como o DSM, se articula ao discurso do capitalista neoliberal, produzindo categorias diagnósticas que estabelecem como desvios da norma as formas de vida que não se enquadram às exigências de conformação deste sistema. Nesse ponto, o crescimento no número de diagnósticos de TDAH e o consequente consumo massivo de medicamentos estimulantes nos parece um exemplo nítido dessa articulação na atualidade. Ao associar o comportamento de crianças e adolescentes a disfunções neuroquímicas, o discurso médico torna patológica a existência de milhares de crianças e adolescentes e põe em marcha um processo de medicalização dessas existências que representa um verdadeiro ajuste normativo aos ideais neoliberais de desempenho. Dessa forma, o diagnóstico de TDAH adquire o estatuto de um instrumento de socialização nas sociedades capitalistas. A partir do diagnóstico, subjetividades são produzidas, relações sociais são moldadas e as mais diversas situações são encaradas por meio de uma ótica que privilegia aspectos patológicos individuais. Basta observar, por exemplo, como o fenômeno do fracasso escolar é constantemente reduzido à explicação de sintomas de transtornos mentais em crianças e adolescentes, que são diariamente encaminhadas para avaliação psiquiátrica ou psicológica, o que termina por camuflar uma série de fatores que atravessam o contexto educacional e que contribuem para as dificuldades enfrentadas no processo de ensino-aprendizagem, como os métodos de ensino, modos de socialização, políticas públicas, entre outros.

Dentro desse cenário, podemos notar que a articulação do discurso médico-científico ao discurso do capitalista tem por efeito a coincidência de um ideal de saúde com as expectativas sociais de reconhecimento em voga no neoliberalismo. E os medicamentos, enquanto mercadorias lançadas no mercado, encarnam a possibilidade de se atingir esse ideal de saúde.

As pesquisas sobre neuroquímica impulsionam e são impulsionadas pela indústria farmacêutica, que visa à venda de seus produtos, sendo possível articular que a lógica de mercado interfere nas escolhas e nas práticas de saúde. Nesse sentido, os psicotrópicos ultrapassam o campo científico e a prática médica e se apresentam como bens de consumo, que trazem a promessa de bem-estar, felicidade e realização (Lacet & Rosa, 2017Lacet, C., & Rosa, M. D. (2017). Diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH) e sua história no discurso social: Desdobramentos subjetivos e éticos. Revista Psicologia, 26(02), 231-253. https://doi.org/10.23925/2594-3871.2017v26i2p.231-253
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, p. 244).

Os medicamentos encarnam não só a possibilidade de se atingir um ideal de saúde, mas também a promessa de que existe um objeto apropriado para o sujeito, e é justamente essa promessa do discurso do capitalista que põe em movimento a produção insaciável de uma (in)satisfação. Buscando o diagnóstico mais preciso, o medicamento mais certo, a dose mais apropriada para o silenciamento de seu mal-estar, o sujeito é reduzido a processos neuroquímicos e colocado numa lógica ilimitada de consumo. Portanto, quando o discurso médico-científico reduz a subjetividade a processos orgânicos na tentativa de explicar patologias por meio de categorias diagnósticas e aponta para os medicamentos como a solução terapêutica mais válida, ele se coaduna ao discurso do capitalista na produção de um consumo massivo de objetos. “O objeto consumo remédio, assim como qualquer outro objeto de consumo, na lógica capitalista opera criando necessidades que não existiam anteriormente” (Lacet & Rosa, 2017Lacet, C., & Rosa, M. D. (2017). Diagnóstico de Transtorno de Déficit de Atenção (TDAH) e sua história no discurso social: Desdobramentos subjetivos e éticos. Revista Psicologia, 26(02), 231-253. https://doi.org/10.23925/2594-3871.2017v26i2p.231-253
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, p. 244).

Nesta perspectiva, Brant e Carvalho (2012Brant, L. C., & Carvalho, T. R. F. (2012). Metilfenidato: Medicamento gadget da contemporaneidade. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 16(42), 623-636. https://doi.org/10.1590/S1414-32832012000300004
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) afirmam que o uso do estimulante metilfenidato com a finalidade de potencializar o desempenho dos sujeitos faz do medicamento um gadget na atualidade, isto é, um objeto fabricado pela ciência e pelo discurso do capitalista para ser lançado no mercado e rapidamente consumido.

De posse de um gadget, o sujeito se depara com um produto que proporciona um ganho real menor do que fora prometido no ato de sua aquisição. Diante de um prazer efêmero, instantâneo, que o deixa com a percepção de ter obtido apenas algo pela metade, o sujeito começa a buscar, numa sucessão interminável, outros meios na tentativa de encontrar o produto que lhe permita completar a parte faltante (Brant & Carvalho, 2012Brant, L. C., & Carvalho, T. R. F. (2012). Metilfenidato: Medicamento gadget da contemporaneidade. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 16(42), 623-636. https://doi.org/10.1590/S1414-32832012000300004
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, p. 630).

Mais do que um “ganho real menor”, poderíamos dizer que o uso abusivo e prolongado de metilfenidato causa um “prejuízo considerável” a médio e longo prazo. Todo esse malefício fica ainda mais claro quando atentamos para as formas libidinais do medicamento. Para Eric Laurent (2004Laurent, E. (2004). Como engolir a pílula? In J. A. Miller (Org.), Ornicar? De Jacques Lacan a Lewis Carrol (pp. 32-43). Zahar.), “todo medicamento é inseparável de uma ação subjetiva” (p. 35). É o que o leva a se interessar pelo medicamento não como objeto epistêmico mas como objeto libidinal, pois é por meio das formas libidinais do medicamento que podemos perceber como as pílulas podem se tornar um gadget em nossa civilização. Vale lembrar que não são somente as pílulas psiquiátricas que se tornam um gadget na sociedade atual, visto que há uma infinidade de objetos que podem cumprir esse papel, como as substâncias psicotrópicas ilegais, drogas legalizadas (como café e álcool) e os games, por exemplo.

Duas das formas libidinais do medicamento escritas por Laurent (2004Laurent, E. (2004). Como engolir a pílula? In J. A. Miller (Org.), Ornicar? De Jacques Lacan a Lewis Carrol (pp. 32-43). Zahar.) nos interessam destacar no consumo massivo de estimulantes. A primeira delas é o mais-de-libido ou o efeito libidinalizante do medicamento por meio de sua promessa de condensação de um mais de vida. Nos estimulantes isso fica claro por meio dos efeitos de significação que os permitem alojar-se no imaginário como pílulas da concentração, da eficácia, do mais de rendimento, do mais de satisfação etc.

Também é interessante observar que, além de não encontrar no medicamento a satisfação prometida, o sujeito ainda pode se deparar com uma série de efeitos colaterais, que vão de alterações na fisiologia do organismo à relação de dependência com a droga. É quando fica em evidência a segunda forma libidinal da pílula: o phármakon - palavra que designa no medicamento o remédio e o mal. Segundo Laurent (2004Laurent, E. (2004). Como engolir a pílula? In J. A. Miller (Org.), Ornicar? De Jacques Lacan a Lewis Carrol (pp. 32-43). Zahar.), “o sujeito procura a homeostase e o bem-estar do organismo e encontra o terrível hábito, o aumento das doses, a dependência” (p. 34). É certamente o que vemos no consumo massivo do metilfenidato, pois a injunção aos altos níveis de desempenho individual pelo discurso do capitalista neoliberal parece produzir uma sociedade de adictos.

Para Jorge Alemán (2016Alemán, J. (2016). Horizontes neoliberales en la subjetividad. Grama Ediciones.), a adicção é uma das formas de mal-estar na contemporaneidade: ela aparece como contrapartida clínica da experiência do empresário de si, que, submetido a um contexto de redução das proteções sociais pelas nações capitalistas, busca na performance individual não somente uma satisfação, mas também uma forma de sobrevivência. A adicção é seguramente uma tentativa de sustentar-se na carreira ilimitada e circular do empresário de si, na qual o tempo inteiro se estaria começando. “Conceber-se o todo o tempo como um empresário de si necessita desde logo consumir muitos livros de autoajuda, muitos livros de autoestima, muitos coachs...” (Alemán, 2016Alemán, J. (2016). Horizontes neoliberales en la subjetividad. Grama Ediciones., p. 34). E poderíamos acrescentar: consumir muitos medicamentos estimulantes.

Considerações finais

A partir dessas articulações, é possível concluir que o consumo de estimulantes, seja utilizado no tratamento de crianças e adolescentes diagnosticados com o suposto TDAH, ou utilizado com a finalidade de potencializar o rendimento de sujeitos que não estão em tratamento médico, mas estão lutando para (sobre)viver - mesmo sem condições dignas de alimentação, moradia, segurança, saúde, educação e trabalho -, pode ser articulado às formas de subjetivação produzidas pela racionalidade neoliberal. Como vimos, o neoliberalismo tem como norma geral de vida a maximização de desempenhos como modo privilegiado de fomentar a crença de que assim se alcança a (obtenção de) satisfação. Ou poderíamos afirmar: nas sociedades neoliberais, fomenta-se o discurso de que o caminho da felicidade passa necessariamente pelo aperfeiçoamento individual constante da performance em todos os domínios da vida.

Por conseguinte, toda forma de vida que escapa ou surge como indeterminada aos olhos da psiquiatria biologista contemporânea é rapidamente traduzida em supostos quadros patológicos, sendo o TDAH um exemplo claro disso. Por meio da articulação do discurso médico-científico, representado pela psiquiatria organicista e pelas neurociências, ao discurso do capitalista, temos então um processo que podemos situar como determinante no crescimento do consumo de estimulantes: a medicalização da vida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2020
  • Aceito
    09 Set 2021
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