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A (In)visibilidade do Outro: Reflexões sobre Refúgio e Migração

The (In)visibility of the Other: Reflections about Refuge and Migration

La (In)visibilidad del Otro: Reflexiones acerca de Refugio y Migración

Resumo

O artigo explora a problemática do refúgio e da migração a partir de coordenadas teóricas de caráter interdisciplinar, complementares no aprofundamento do tema. Destaca-se, neste ensaio teórico, a invisibilidade imposta ao sujeito da diáspora mediante a negativa de reconhecer as violentas e dramáticas condições de seu entorno (crise social, crise política, crise econômica etc.), seja ele migrante ou refugiado. Por meio das proposições do psicanalista Sándor Ferenczi sobre o conceito de desmentido e das considerações do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han sobre os mecanismos contemporâneos de proliferação do idêntico, desenvolve-se uma reflexão a respeito de diferentes práticas de indiferença ilustradas no silenciamento e invisibilização da subjetividade migrante. Essa linha argumentativa permite vislumbrar a premência de reconhecer práticas de desumanização ao se deixar à margem o direito de migrantes e refugiados à existência digna. Considera-se essencial para a ruptura com a invisibilidade imposta aos protagonistas das diásporas dar legitimidade a suas narrativas. Conclui-se, portanto, que esse movimento de ruptura por parte do migrante e do refugiado, devido à violência imposta, não decorre do assistencialismo ou da filantropia que lhes são dirigidos; por isso, é imperativo, no campo alteritário, ter reconhecido o legítimo direito a ser acolhido, com hospitalidade e humanidade, pela sociedade da qual faz parte.

Palavras-chave:
Migração; Refúgio; Desmentido; Indiferença; Diásporas

Abstract

The article explores the problem of refuge and migration based on theoretical coordinates of interdisciplinary character, complementary in the deepening of the theme. In this theoretical essay, the invisibility imposed on the diaspora subject stands out in the face of the refusal to recognize the violent and dramatic conditions of their surroundings (social crisis, political crisis, economic crisis, among others), whether of a migrant or a refugee. From the propositions of the psychoanalyst Sándor Ferenczi on the concept of denial and the considerations of the South Korean philosopher Byung-Chul Han on the contemporary mechanisms of proliferation of the identical, we develop a reflection about the different practices of indifference illustrated in the silencing and invisibility of migrant subjectivity. This line of argument allows us to glimpse the urgency of recognizing dehumanization practices of leaving the right of migrants and refugees to a dignified existence aside. To break with the invisibility imposed on the protagonists of the diasporas, giving legitimacy to the narratives about their stories is considered essential. In conclusion, therefore, this movement of rupture on the part of the migrant and the refugee, due to the imposed violence, does not result from the assistentialism or philanthropy directed at them; thus, in the alteritarian field, having the recognized legitimate right to be welcomed, with hospitality and humanity, by the society of which they are part is imperative.

Keywords:
Migration; Refuge; Denial; Indifference; Diasporas

Resumen

El artículo explora la problemática del refugio y de la migración a partir de coordenadas teóricas de carácter interdisciplinario, complementarias en la profundización del tema. En este ensayo teórico se destaca la invisibilidad impuesta al sujeto de la diáspora a través de la negativa a reconocer las condiciones violentas y dramáticas de su entorno (crisis social, crisis política, crisis económica, entre otras crisis), ya sea migrante o refugiado. A través de las proposiciones del psicoanalista Sándor Ferenczi sobre el concepto de desmentida y de las consideraciones del filósofo surcoreano Byung- Chul Han sobre los mecanismos contemporáneos de proliferación de lo idéntico, se desarrolla una reflexión a respecto de las diferentes prácticas de indiferencia ilustradas en el silenciamiento e invisibilidad de la subjetividad migrante. Esta línea de argumentación permite verificar la urgencia de reconocer las prácticas de deshumanización al dejar al margen el derecho de las personas migrantes y refugiadas a una existencia digna. Se considera fundamental, para romper con la invisibilidad impuesta a los protagonistas de las diásporas, dar legitimidad a las narrativas sobre sus historias. Se concluye, por lo tanto, que este movimiento de ruptura, por parte del migrante y del refugiado, por la violencia impuesta, no es resultado del asistencialismo o filantropía que se les dirige; por lo tanto, es imperativo, en el ámbito de la alteridad, que se reconozca su legítimo derecho a ser acogido, con hospitalidad y humanidad por la sociedad de la que forma parte.

Palabras clave:
Migración; Refugio; Desmentida; Indiferencia; Diásporas

O grau de civilização de uma sociedade pode medir-se precisamente em função da sua hospitalidade, ou melhor, em função da sua amabilidade (Han, 2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água., p. 28).

Introdução

Os deslocamentos humanos não respondem a um fenômeno novo; inclusive seus rumos, e até mesmo os movimentos imprevistos, são aqueles que, muitas vezes, ditaram e ditam a escrita da História. São experiências humanas nas quais exercem influência as distintas condições históricas, diversas demandas sociais e pessoais, bem como elementos referentes às dimensões econômicas e políticas. O dinamismo de tais condições faz que sejam necessários estudos a respeito do fenômeno.

Como refere Santinho (2016Santinho, C. (2016). Refugiados e requerentes de asilo em Portugal: Contornos políticos no campo da saúde. Alto-Comissariado para as Migrações.), a vontade humana de expandir seus horizontes motivou a busca por outras terras, fazendo que os deslocamentos humanos marquem importante presença na cultura. Por outro lado, a autora enfatiza o fato de que “se essa procura não é voluntária, mas sim condicionada por fatores exteriores à sua vontade, o percurso torna-se muitas vezes penoso e carregado de sofrimento” (p. 28). Entende-se, portanto, que os fatores propulsores do deslocamento têm papel fundamental no percorrido a ser empreendido pelo sujeito. Acredita-se, a partir do reconhecimento da complexidade de fatores envolvidos nas diásporas contemporâneas, na urgência em desvelá-los a fim de pôr em questão a cruel invisibilidade imposta aos protagonistas desses deslocamentos.

Na escrita deste artigo, assume-se, como ponto de partida, uma trajetória teórica e clínica na psicanálise. Da matriz caracterizada pela abertura e defesa de um saber sempre incompleto, marcante na construção teórica freudiana, buscou-se a proposição de uma argumentação que desse espaço à liberdade de pensar e de transitar por disciplinas outras. Tal percurso tem como meta o acesso à densidade do que se produz como conhecimento a partir de uma ciência humana ou social. Em meio a esse rico espectro de saberes, exercita-se um olhar aguçado e atento aos meandros da fragilidade e das potencialidades do humano. Nesse sentido, entende-se que, ao distanciar-se de uma concepção de sujeito independente das experiências amorosas do laço social e restrito à racionalidade, a psicanálise pode contribuir na resistência à “ideologia de todos contra todos e a nos permitir reencontrar a categoria de humanidade (Carreteiro, 2018Carreteiro, T. (2018). Trabalho e psicanálise. In D. M. Coelho & E. L. Cunha (Orgs.), Faces contemporâneas da razão (pp. 139-147). Cocern., p. 146).

No enlace entre os contextos sócio-históricos e as motivações dos indivíduos e grupos implicados no ato de se deslocar, identifica-se a força de uma multiplicidade de fatores. Nessa direção, o objetivo principal deste texto é identificar e refletir sobre as contemporâneas e singulares conflitivas experienciadas no campo alteritário perante os deslocamentos humanos que ocorrem mediante condições de refúgio ou de migrações. Trata-se, portanto, de reconhecer que, “na contemporaneidade, as diásporas surgem como expressão de importantes desigualdades sociais, econômicas e alvo dos mais distintos exercícios de poder” (Macedo & Kupermann, 2020Macedo, M. M. K., & Kupermann, D. (2020). Alteridade e indiferença no contemporâneo: A indizibilidade do outro nas situações de refúgio e migração. In J. Birman, I. Fortes, & M. Macedo (Orgs.), Psicanálise e política (pp. 97-108). Zagodoni., p. 97). Como decorrência desta constatação, abordar as temáticas da migração e do refúgio significa pautar o efeito da exclusão e da violência na vida do sujeito protagonista desta experiência fortemente marcada por intensidades e impasses. Para tal, serão analisadas as condições que contribuem para a instalação desses impasses e, também, serão exploradas teoricamente as consequências decorrentes do predomínio da indiferença e da violência em relação ao processo de invisibilização do sujeito estrangeiro. A opção metodológica corresponde a de um ensaio teórico, constituindo-se, conforme afirma Figueiredo (2012Figueiredo, A. C. (2012). A arte de ensaiar com uma perspectiva científica. Palimpsesto, 11(15).), em uma proposta argumentativa que entrecruza distintas áreas do conhecimento, sem a pretensão de concluir a discussão sobre a temática.

Ao enfatizar o tema da invisibilidade imposta no apagamento do sujeito da diáspora, parte-se da concepção terminológica de refúgio e migração, desvelando a dramaticidade destas experiências humanas, oferecendo subsídios à leitura crítica das condições políticas de gerenciamento das diásporas. Com a perspectiva de ampliação da leitura de um fenômeno que é altamente complexo, recorre-se à interdisciplinaridade como forma de abordá-lo, por meio de contribuições de autores de distintas áreas - psicanálise, antropologia, sociologia, filosofia e direito - sobre o tema dos deslocamentos. Estas contribuições subsidiam a análise que se pode realizar por meio das proposições do psicanalista Sándor Ferenczi sobre seu conceito de desmentido e das considerações do filósofo sul coreano Byung-Chul Han sobre os mecanismos contemporâneos de expulsão do outro. Essa linha argumentativa permite vislumbrar a premência de reconhecer as práticas de desumanização que podem estar naturalizadas ao se deixar à margem o direito de todo ser humano à existência digna.

Migrantes e Refugiados: Deslocamentos no Mapa da Complexidade

Certos eventos ao longo da História adquirem tal magnitude e extensão que, necessariamente, na tentativa de alcançar algum sentido em sua análise, recorre-se a associações com outros eventos também de impacto. A crise humanitária do mundo contemporâneo, que inclui as diásporas, se aproxima da problematização sobre a pandemia iniciada em 2020. Nessa perspectiva, no intuito de refletir sobre o que denomina “a mega crise” da covid-19, Morin (2020Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: Lições do coronavírus. Bertrand Brasil.) afirma que nela se pode constatar a combinação de diversas crises: políticas, econômicas, sociais, ecológicas, nacionais, planetárias. Assim, essa mega crise condensa outras, cujos componentes, interações e indeterminações são múltiplos e interligados. Nessa linha de raciocínio, o autor menciona o “sentido original da palavra complexus, ‘o que é tecido junto’” (p. 21). Um olhar atento aos deslocamentos contemporâneos no contexto do refúgio e da migração identifica em seu bojo a tessitura conjunta de fatores decorrentes de “muitas crises”, cujo elemento de interligação talvez possa ser situado no reconhecimento de inegáveis desigualdades sociais que se apresentam nos mais variados cenários mundiais. Dessa forma, o reconhecimento da complexidade do objeto de estudo em questão conduziu naturalmente à busca de subsídios advindos de disciplinas como a antropologia, a sociologia e a filosofia, pois não se pode prescindir de contribuições que permitam adensar a reflexão da extensão que adquire esta problemática. Essas disciplinas enfatizam, desde seus campos de investigação, aspectos que contribuem na identificação do somatório de elementos que produzem a dimensão devastadora do processo de invisibilização das diásporas contemporâneas.

Nessa direção, entende-se que o reconhecimento da tessitura complexa do fenômeno migratório em análise torna extremamente pertinente que se recorra a coordenadas teóricas de caráter interdisciplinar. Pretende-se, assim, apresentar e discorrer sobre aportes conceituais complementares que contribuam para a reflexão a respeito das diferentes “crises” que aludem às problemáticas alteritárias envolvidas nas diásporas contemporâneas.

Cabe situar que os deslocamentos contemporâneos são denominados migrações e, outras vezes, no âmbito descrito como refúgio. No Glossário sobre Migração da Organização Internacional para as Migrações (OIM, 2009Organização Internacional para as Migrações. (2009). Glossário sobre migração. https://bit.ly/2HEnHea
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), identifica-se, ao buscar as definições de migrante e refugiado, associações de sentido que acabam por aproximar a “livre decisão” e a “conveniência pessoal” ao movimento migratório, enfatizando a associação de “ameaça” e “perseguição” aos deslocamentos identificados como refúgio. Como consequência, entende-se, no plano internacional, mesmo reconhecida a ausência de uma definição universal, que o termo “migrante” engloba, “geralmente, todos os casos em que a decisão de migrar é livremente tomada pelo indivíduo em questão, por razões de ‘conveniência pessoal’ e sem a intervenção de factores externos que o forcem a tal” (OIM, 2009Organização Internacional para as Migrações. (2009). Glossário sobre migração. https://bit.ly/2HEnHea
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, p. 43). Nessa concepção de migrante, os deslocamentos seriam empreendidos pelo sujeito com o objetivo de buscar melhores condições materiais, sociais e de possibilidades para si e para sua família. A definição de refugiado, por sua vez, alude ao risco, ao perigo.

[O refugiado é a] pessoa que, receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade, filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a proteção daquele país (Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados, art. 1º - A, nº 2, de 1951, com as alterações introduzidas pelo Protocolo de 1967) (OIM, 2009Organização Internacional para as Migrações. (2009). Glossário sobre migração. https://bit.ly/2HEnHea
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, p. 62).

De qualquer forma, a tentativa de “diferenciar” as motivações entre estas duas modalidades de deslocamentos humanos não simplifica a questão, tampouco soluciona o dramático cenário dos movimentos contemporâneos, independentemente de ocorrerem via migração ou via busca de refúgio. Nesse sentido, Oliveira, Peixoto e Góis (2017Oliveira, C. R., Peixoto, J., & Góis, P. (2017). A nova crise dos refugiados na Europa: O modelo de repulsão-atração revisitado e os desafios para as políticas migratórias. Revista Brasileira de Estudos de População, 34(1), 73-98. https://dx.doi.org/10.20947/s0102-3098a0016
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), sociólogos portugueses com importantes trabalhos em instituições que tratam da questão das diásporas, consideram que “a linha divisória entre ‘migrantes’ e ‘refugiados’ deixou, na prática, de existir, sendo múltiplas as confluências e semelhanças entre ambos os conceitos e indiferenciadas muitas das causas e consequências destes fluxos” (p. 93). Assim, para os autores, a natureza híbrida de ambos é cada vez mais evidente. A linha divisória responderia a certa imposição de demarcação, ou construção de fronteira, entre duas situações que não necessariamente contempla o que nelas se faz prioridade. Cabe, portanto, questionar qual intenção marca presença nessa diferenciação, uma vez que em ambas a precariedade é visível. Logo, ao contrário de simplificar a questão, cabe o alerta de que, por vezes, as “categorizações” dessa complexa tessitura entre diversas crises estão mais a serviço de deixar à margem ou invisível o que ocorre com o sujeito protagonista de uma ou de outra condição.

Destarte, identifica-se na problemática da diferenciação e da categorização de termos de nomeação, seja como migrante ou como refugiado, a influência de outros fatores, tais como a regulação mais violenta da entrada ou o rechaço daquele que busca um novo país para viver. Ainda que se identifiquem as diferenças referidas para a criação das distintas categorias terminológicas, neste artigo, a intenção, como já referido, é propor uma reflexão sobre a invisibilidade imposta ao sujeito da diáspora mediante a negativa em perceber as singulares e dramáticas condições de seu entorno (crise social, política, econômica etc.), seja ele migrante ou refugiado. Como bem destaca Santinho (2016Santinho, C. (2016). Refugiados e requerentes de asilo em Portugal: Contornos políticos no campo da saúde. Alto-Comissariado para as Migrações.), a partir da leitura antropológica que empreende, além de difícil e indesejável, essa precisa categorização estabelece diferenças de nomenclaturas (imigrantes, imigrantes indocumentados, refugiado, requerente de asilo, requerente de asilo com estatuto de residente por razões humanitárias, deslocado interno, requerente de asilo com autorização de residência provisória, refugiado reinstalado) e “faz parte de um léxico político-jurídico que contribui, em última instância, para barrar cada vez mais o acesso à proteção num país de asilo” (p. 19). As pertinentes considerações da autora encontram respaldo na constatação de Sartoretto (2018Sartoretto, L. M. (2018). Direito dos refugiados - Do eurocentrismo às abordagens de terceiro mundo. Arquipélago.), que, a partir de doutrina jurídica, aponta, também, para o fato de que o estabelecimento dos direitos dos refugiados pelas agências internacionais ocorre associado à intenção de controlar o acesso de pessoas ao continente europeu. Para a autora, o estabelecimento dos direitos dos refugiados decorre, inicialmente, de “uma necessidade imposta ao continente europeu, já que o limbo no qual os imigrantes forçados se encontravam prejudicava a ordem desejada pelos Estados” (p. 73). A situação caótica gerada a partir da entrada desses migrantes não assistidos por seus Estados, segundo a autora, alimenta a expectativa de que “a própria criação de um sistema legal que contivesse uma definição limitada do conceito de refugiado daria aos Estados a possibilidade de negar a entrada, em seus territórios, de pessoas que não se enquadrassem nessa definição” (p. 75). Nesse cenário, é importante notar que à intenção explícita de dar mais proteção às pessoas em condição de migração forçada1 1 Tanto o migrante forçado quanto o refugiado são indivíduos que tiveram o vínculo de proteção com seu estado rompido. Em relação aos migrantes forçados, entende-se que a ruptura ocorreu pelo não fornecimento dos meios vitais de subsistência da população ou em decorrência de desastres naturais (“Migração forçada”, 2015). soma-se, no discurso da comunidade internacional, à limitação e à escolha de quem poderia ou não adentrar seus territórios. A legislação, nesse delineamento de ação, acaba por produzir práticas “legais” de segregação e marginalização daqueles que não atendem aos critérios de seleção para ingressar em territórios nos quais viriam a perturbar a ordem econômica reinante.

O importante assinalamento de Morin (2020Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: Lições do coronavírus. Bertrand Brasil.) a respeito da interligação de várias crises quando se trata de examinar um acontecimento impactante à humanidade conduz à reflexão sobre a necessidade de operar significativas mudanças e em diferentes contextos que possam resultar em superação dessas crises. Nesse sentido, ao abordar às necessárias e urgentes reformas da sociedade, Morin (2020Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: Lições do coronavírus. Bertrand Brasil.) refere-se à imperativa redução das desigualdades e à necessária política de solidariedade. Especialmente nesse segundo tópico o autor aborda as diásporas contemporâneas, ao referir que “em 2019 houve 270 milhões de migrantes no mundo, 82 milhões do quais se refugiaram na Europa, fugindo de conflitos (Afeganistão, Oriente Médio, Sudão), da fome e da miséria” (p. 70). Nessa direção, é inegável o impacto, na Europa, dos desdobramentos políticos, sociais e econômicos e outras radicalidades decorrentes da exposição de um considerável número de pessoas às mais adversas precariedades. Evidentes são, portanto, as diferenças entre os motivos que fomentaram os fluxos migratórios nos contextos do final do século XIX e do início do século XX, nos quais a direção era da Europa pós-guerra para as Américas, e as condições de precariedade e violência que se apresentam na complexidade das diásporas contemporâneas (Nunes & Oliveira, 2015Nunes, J. W., & Oliveira, S. D. (2015). Evidências da construção da figura do imigrante qualificado no Brasil: Uma leitura a partir da Lei nº 6.815/80. In A. M. N. Vasconcelos & T. Botega (Orgs.), Política migratória e o paradoxo da globalização (pp. 33-51). EDIPUCRS; CSEM.). Porém, a estimativa de que o mundo atualmente “produza” 24 refugiados a cada minuto, correspondendo ao maior número de refugiados existentes desde a Segunda Grande Guerra (ACNUR, 2022ACNUR: Deslocamento global atinge novo recorde e reforça tendência de crescimento da última década. (2022, 15 de junho). Agência da ONU para Refugiados. https://bit.ly/3Mrmg2u
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), impõe a reflexão a respeito do somatório de crises que sustenta a diáspora e a interrogação sobre as consequências na vida de milhares de pessoas, e encontra outro ponto de semelhança com a referência de Morin (2020Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: Lições do coronavírus. Bertrand Brasil.) sobre como a crise planetária do coronavírus intensificou “a crise da humanidade que não consegue se constituir como humanidade” (p. 42). Para o autor, a crise do humanismo é evidente devido aos retrocessos nacionalistas, recrudescimento do racismo e da xenofobia, assim como do “primado do interesse econômica sobre todos os outros” (p. 42). Todos esses aspectos citados encontram sua inegável expressão destrutiva na crise humanitária relativa às diásporas.

A construção de alternativas de enfrentamento e as proposições das mudanças necessárias, como a redução de desigualdades e a política de solidariedade referidas por Morin (2020Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: Lições do coronavírus. Bertrand Brasil.), se deparam com sólidos obstáculos. O endurecimento das leis e a rigidez do trânsito nas fronteiras fortalecem a distância entre os que tentam ingressar e aqueles que já se encontram nos territórios, alimentando, como refere Morin (2020Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: Lições do coronavírus. Bertrand Brasil.), a persistência dos sentimentos de superioridade, racistas e xenófobos e acabando por impelir “os poderes públicos a tomar medidas cruéis de repressão e expulsão”. Também esses efeitos são identificados por Pussetti (2009Pussetti, C. (2009). Corpos em trânsito e sofrimento psíquico. In C. Pussetti, J. F. Ferreira, E. Lechner, & C. Santinho (Orgs.), Migrantes e saúde mental: A construção da competência cultural (pp. 29-40). Observatório da Imigração.), antropóloga italiana, ao referir o transnacionalismo incompleto ou impossível que marca a experiência de imigrantes por ela entrevistados em Portugal, ao considerar que “para esta situação concorre o endurecimento actual das políticas migratórias, que não favorecem em nada a integração, mas antes pelo contrário contribuem para alimentar estereótipos promotores de um clima hostil e de recusa em relação aos estrangeiros” (p. 31).

Assim, as cenas cotidianas das precárias e desumanas condições de seus deslocamentos - que resultam, incontáveis vezes, na perda de muitas vidas humanas -, somadas à crueldade das políticas antimigratórias, ilustram, conforme assinala Birman (2018Birman, J. (2018). Catástrofe, risco e trauma. In D. M. Coelho & E. L. Cunha (Orgs.), Faces contemporâneas da razão (pp. 111-130). Cocern.), que esses sujeitos são jogados na “condição existencial limite”, decorrente da violência social que os deixa, literalmente, à deriva no desamparo e na “redução à condição insustentável de seres descartáveis” (p. 126).

A invisibilidade imposta ao estrangeiro é um elemento que se destaca na reflexão sobre os impasses alteritários perante a migração e o refúgio. Para Indursky (2012Indursky, A. C. (2012). Pensando as tramas e enlaces da clínica com refugiados. In B. S. Conte, & S. Henzel (Orgs.), Exclusão e inscrição psíquica: Da escuta psicanalítica no social (pp. 49-65). Evangraf.), a forma como o refugiado passou a ocupar uma posição distinta nas políticas internacionais revela que, se o sujeito era antes acolhido em razão de políticas humanitárias, com o tempo, transformou-se no alvo de políticas geradoras de invisibilidade social. Também para Pussetti (2009Pussetti, C. (2009). Corpos em trânsito e sofrimento psíquico. In C. Pussetti, J. F. Ferreira, E. Lechner, & C. Santinho (Orgs.), Migrantes e saúde mental: A construção da competência cultural (pp. 29-40). Observatório da Imigração.), a “não-colocação social, torna-o um ser simultaneamente invisível e opaco, porque incomodamente presente, intimidativo enquanto símbolo das margens, do que a sociedade tenta excluir e pretende não ver” (p. 32). Na periferia, as precárias condições de moradia, de emprego e de assistência à saúde, tão presentes no cotidiano de migrantes e refugiados e amplamente divulgadas, não deixam dúvidas sobre a violência e o dano decorrentes dessas práticas (Granada, Carrano, Ramos, & Ramos, 2017Granada, D., Carreno, I., Ramos, N., & Ramos, M. C. P. (2017). Discutir saúde e imigração no contexto atual de intensa mobilidade humana. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 21(61), 285-296. https://dx.doi.org/10.1590/1807-57622016.0626
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; Oliveira, 2017Oliveira, A. C. (2017). Uma questão de identidade! Migrações e pertencimento na dinâmica do mundo globalizado. Revista USP, (114), 91-108. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i114p91-108
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).

Na direção de aprofundar a análise das práticas de rechaço e exclusão que visam a invisibilidade do estrangeiro, cabe destacar as proposições de Giorgio Agamben (2004Agamben, G. (2004). Estado de exceção. Boitempo.), filósofo italiano, a respeito da definição da figura do Homo sacer como aquele que está destituído de todo e qualquer amparo, que pode ser morto sem que este acontecimento seja considerado um crime. Para Agamben (2004Agamben, G. (2004). Estado de exceção. Boitempo.), os dois conceitos gregos zoé e bíos permitem constatar duas dimensões distintas da vida. O primeiro, zoé, faz alusão à dimensão biológica, referindo-se à existência física própria a todos os seres humanos. Já o conceito bíos alude à existência em sua dimensão política, aos direitos e deveres do ser humano. Nesse contexto, o Homo sacer remete àquele que se situa na fratura entre zoé e bío, pois habita uma zona de indistinção criada a partir do momento em que ocorre tanto a biologização da política (por exemplo, o mero atendimento de condições básicas de alimentação e moradia no caso das diásporas) quanto a politização da vida (legislações que impedem seus deslocamentos e criminalizam seus movimentos). Lançado a este lugar de não vida e de não morte, o Homo sacer não é propriamente um vivente, mas um sobrevivente. Em seu livro O que Resta de Auschwitz, Agamben (2008Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz: O arquivo e a testemunha. Boitempo.) descreve o Homo sacer via figura do muçulmano. A descrição do muçulmano como “morto-vivo” o torna o verdadeiro testemunho do indizível do Holocausto; entretanto, pela dessubjetivação sofrida, carece de palavra para testemunhar. Assim, para Agamben (2008Agamben, G. (2008). O que resta de Auschwitz: O arquivo e a testemunha. Boitempo.), Auschwitz pôs em evidência o manifesto “que define o caráter mais específico da biopolítica do século XX: já não fazer morrer, nem fazer viver, mas fazer sobreviver” (p. 155). Nesse sentido, o autor propõe a existência de outros exemplos de Homo sacer, decorrentes do estabelecimento de uma estrutura estatal excludente e violenta, e situa dentre eles a figura do refugiado como figura inquietante e conceito-limite “do povo do nosso tempo” (Agamben, 2015Agamben, G. (2015). Meios sem fim: Notas sobre a política. Autêntica., p. 24), que ameaça a organização e a lógica do Estado que se ergue sobre os conceitos de soberania, nação e território. Para Agamben (2015Agamben, G. (2015). Meios sem fim: Notas sobre a política. Autêntica.), o refugiado é a figura central da política contemporânea, uma vez que nele se constata importante separação entre a figura do homem - categoria do humano - e a do cidadão de direitos - inserido e reconhecido como integrante do laço social.

Na mesma direção, Dal Forno (2019Dal Forno, C. (2019). Diáspora haitiana: A pesquisa psicanalítica do sujeito da migração [Tese de doutorado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.) constata notáveis dificuldades na acolhida ao estrangeiro, levando “muitos países a políticas de estrita vigilância de fronteiras” por considerar a figura do refugiado uma “ameaça de implodir toda uma série de balizadores que ordenam a lógica das nações no trato com suas nacionalidades em seus respectivos territórios” (p. 81). Nesse contexto, as dificuldades e as restrições à acolhida são majoradas pelo corrente e xenofóbico discurso de que o estrangeiro vem perturbar a ordem, roubar empregos, praticar atos de violência para com os “legítimos” filhos da pátria. Como constata Santinho (2016Santinho, C. (2016). Refugiados e requerentes de asilo em Portugal: Contornos políticos no campo da saúde. Alto-Comissariado para as Migrações.), são pessoas vistas como as que “estão a mais, eternamente desajustadas do contexto e que trazem consigo imensos problemas para resolver, como a ‘cultura’, a habitação, o emprego, a saúde, o idioma” (p. 33). Como consequência dessa hostilidade, denuncia a autora que “as prisões da Europa, assim como os hospitais psiquiátricos, enchem-se progressivamente de cidadãos estrangeiros” (p. 32).

Tal estado de coisas convoca os distintos campos do saber a se aplicarem em uma compreensão que, além de problematizar o quadro de exclusão de que padecem migrantes e refugiados, possa indicar direções para seu enfrentamento. Nessa direção, a psicanálise marca importante presença, ofertando como contribuição para a complexa análise do fenômeno a perspectiva teórica e clínica de que o sujeito tem sua existência e seus destinos inexoravelmente ligados a suas experiências do campo alteritário, como se passa a explorar em seguida.

O Humano e a Humanidade: O Inestimável Valor das Condições Alteritárias

A psicanálise enfatiza o fato de a constituição do sujeito psíquico se dar a partir do encontro com a alteridade primordial, via práticas de um cuidado inaugural. Destarte, para Herzog (1996Herzog, R. (1996). A noção de sujeito e a contribuição freudiana. In L. F. Couto (Org.), Pesquisa em psicanálise (pp. 15-31). SEGRAC.), além do descentramento da figura da razão como recurso explicativo da noção de sujeito, outro elemento central nos inovadores argumentos freudianos alude à introdução do tema da alteridade. Para a autora, a concepção freudiana de sujeito psíquico, ao enfatizar o tema alteritário, permite a constatação de que “o psíquico exige o outro em sua própria constituição” (p. 17). Trata-se, portanto, da necessidade de cuidados destinados não apenas à sobrevivência, mas também ao estabelecimento de condições fundamentais para o processo de constituição de um sujeito psíquico a partir daquilo que é ofertado pelo adulto ao tomar a criança como destinatária de seus investimentos amorosos. Nessa perspectiva, cabe destacar a afirmativa de Bleichmar (2005Bleichmar, S. (2005). Subjetividad en riesgo. Topia.) sobre o fato de o ser humano estar destinado a se humanizar por meio da cultura, situando como um ponto imprescindível de sua constituição a presença do semelhante para a sua própria organização como sujeito psíquico. Para a autora, “no outro se alimentam não somente nossas bocas, senão nossas mentes; dele recebemos junto com o leite o ódio e o amor, nossas preferências morais e nossos valores ideológicos. O outro está inscrito em nós e isso é inevitável” (p. 8). A partir das considerações a respeito das experiências psíquicas fundantes entre o eu e o outro, bem como da relevância das condições estruturantes do campo intersubjetivo, cabe refletir sobre os impasses gerados diante das experiências sociais e políticas que promovem a invisibilidade do outro, ou seja, do desprezo de sua condição subjetiva.

No intuito de ampliar a reflexão que vem sendo desenvolvida a partir da ênfase dada à perspectiva política e às suas ações por meio da implementação de leis e de práticas, propõe-se a análise de importantes aspectos subjetivos presentes nos impasses alteritários relativos às diásporas contemporâneas, foco deste artigo. A forçada invisibilidade social atribuída ao estrangeiro no contexto do refúgio e da migração é, portanto, decorrente da crueldade e do rechaço ao diferente, ou seja, precisa ser tomada como testemunho da indiferença em relação ao outro.

Nesse contexto, entende-se por indiferença o não reconhecimento da condição alteritária do outro (Moraes & Macedo, 2011Moraes, E. G., & Macedo, M. M. K. (2011). Vivência de indiferença - Do trauma ao ato-dor. Casa do Psicólogo.). No imperativo da desconsideração à diferença que a existência do outro representa, toda e qualquer “estrangeiridade” passa a ser alvo da indiferença, via práticas de rechaço e apagamento da existência do outro em sua condição alteritária. A hostilidade ao estranho adentra, assim, as mais diversas manifestações no campo intersubjetivo (explícitas ou implícitas), confirmando o violento efeito da indiferença no sujeito. Bleichmar (2008Bleichmar, S. (2008). Violencia social - violencia escolar: De la puesta de límites a la construcción de legalidades. Noveduc.), ao considerar a indiferença como uma forma de crueldade, recorre a uma passagem do livro de Primo Levi, intitulado Si Esto es Unhombre, na qual o autor, a partir da raiva que vê nos olhos de um guarda do campo de concentração, relata se sentir re-humanizado. A dramaticidade de tal ilustração dá conta da destrutividade dessubjetivante inerente à indiferença. Nessa lógica, afirma Bleichmar (2008Bleichmar, S. (2008). Violencia social - violencia escolar: De la puesta de límites a la construcción de legalidades. Noveduc.), “há uma relação muito direta entre a crueldade, a falta de resposta e a indiferença em relação ao outro” (p. 64). O silenciamento da condição de ser imposto ao “outro estrangeiro” produz uma situação na qual, ao ser considerado como intruso, “sabe que para ser tolerado não pode incomodar, contestar ou objectar. O seu espaço é o da invisibilidade social e moral” (Pussetti, 2009Pussetti, C. (2009). Corpos em trânsito e sofrimento psíquico. In C. Pussetti, J. F. Ferreira, E. Lechner, & C. Santinho (Orgs.), Migrantes e saúde mental: A construção da competência cultural (pp. 29-40). Observatório da Imigração., p. 32).

Essa modalidade de silenciamento incrementa sua vulnerabilidade precarizando ainda mais suas condições de resistir à invisibilidade. Predomina, portanto, a destituição de seu direito a estabelecer laços de pertença e de ter reconhecidas suas diferenças subjetivas, culturais, linguísticas, simbólicas e políticas. Fica, assim, imposta ao sujeito, a invisibilidade tirânica daquele que não o tolera em sua diferença, tampouco o reconhece como semelhante.

O sofrimento que decorre da indiferença não pode ser alcançado mediante uma leitura que desconsidere, como afirma Birman (2018Birman, J. (2018). Catástrofe, risco e trauma. In D. M. Coelho & E. L. Cunha (Orgs.), Faces contemporâneas da razão (pp. 111-130). Cocern., p. 112), o fato de que a precarização social exige a reflexão sobre modalidades pelas quais, no registro de laços sociais, se dá a “mediação efetiva entre os registros do espaço social e das formas de subjetivação” (p. 112). Nessa direção, as marcas dessubjetivantes, impostas na invisibilização de um sujeito vulnerável e precarizado, têm possíveis efeitos traumáticos sobre as individualidades. Tais marcas estão bem explicitadas pelo sociólogo Pierre Bourdieu (1993/2008Bourdieu, P. (2008). A miséria do mundo. Vozes. (Trabalho original publicado em 1993)) em sua obra A Miséria do Mundo, a qual contém entrevistas realizadas com pessoas em diversas situações de exclusão social. Dentre essas situações, está a exclusão pela migração visitada a partir das trajetórias individuais dentro de um todo coletivo, que situa esses sujeitos “nas bordas da morte social” (Birman, 2018Birman, J. (2018). Catástrofe, risco e trauma. In D. M. Coelho & E. L. Cunha (Orgs.), Faces contemporâneas da razão (pp. 111-130). Cocern., p. 126) e cuja dinâmica se aproxima à descrição de invisibilidade proposta neste artigo.

Tessituras da Invisibilização do Outro: O Desmentido e a Proliferação do Idêntico

O diálogo interdisciplinar permite ampliar o olhar a respeito da complexidade das relações humanas, bem como de seus contextos e determinantes. Nesse sentido, buscando-se sustentação teórica na psicanálise e na filosofia, empreende-se uma leitura das problemáticas que se apresentam no campo do refúgio e das migrações, a partir das proposições de Sándor Ferenczi (1931/1992aFerenczi, S. (1992a). Análises de crianças com adultos. In S. Ferenczi, Obras completas Sándor Ferenczi (Vol. 4, pp. 69-83). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931), 1933/1992bFerenczi, S. (1992b). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In S. Ferenczi, Obras completas Sándor Ferenczi (Vol. 4, pp. 97-106). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933)) e do filósofo sul coreano Byung-Chul Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.). Recorta-se da vasta obra de Ferenczi sua singular leitura do trauma e do desmentido e, da obra de Han, suas proposições a respeito do mecanismo contemporâneo de expulsão do outro que resulta na proliferação do idêntico, dinâmica que, segundo o autor, “constitui as alterações patológicas que afetam o corpo social” (p. 9).

São autores de diferentes disciplinas e épocas, mas cujas contribuições teóricas operam como recursos inestimáveis na ampliação da leitura contemporânea relativa aos fatores psíquicos e sociais implicados nas experiências de refúgio e migrações. Este percorrido teórico tem, portanto, o intuito de ampliar a reflexão e trazer à luz elementos que promovam reflexões sobre a (in)visibilidade destinada ao outro estrangeiro e suas demandas no campo intersubjetivo. Para tal, exploram-se proposições relativas a um funcionamento social e político que opera de modo a desmentir a diferença do sujeito, instaurando o trauma e denunciando, assim, o predomínio social da promoção do idêntico, na constante expulsão do outro como diferente.

Sándor Ferenczi, psicanalista húngaro contemporâneo a Sigmund Freud, aportou contribuições significativas para o campo de estudo do trauma, introduzindo dois elementos centrais: o trauma vinculado ao impacto relativo a algo efetivamente experienciado pelo sujeito, portanto, não apenas vinculado à noção de fantasia, e a proposição do conceito de desmentido como elemento que responde, efetivamente, pela instalação do caráter patogênico do trauma. A proposição do desmentido como agente do traumático é apresentada por Ferenczi (1933/1992bFerenczi, S. (1992b). Confusão de língua entre os adultos e a criança. In S. Ferenczi, Obras completas Sándor Ferenczi (Vol. 4, pp. 97-106). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933)) na descrição do que denomina confusão de línguas entre o adulto e a criança. Na assimetria desse encontro, entre a capacidade adulta de ser no universo da paixão e a condição infantil marcada pelo predomínio da ternura, se dá a confusão de línguas, a qual decorre de situações nas quais o endereçamento infantil de ternura encontra como efeito o impacto da linguagem da paixão imposta pelo adulto. No primeiro tempo do trauma, a criança experiencia a violência da passionalidade do adulto. Esse excesso experimentado constitui-se em um trauma patogênico quando, posteriormente, ao buscar acolhida em um adulto em quem confia para dar seu testemunho do excesso, encontra a recusa de atribuir veracidade, por parte deste adulto, àquilo que efetivamente viveu. Cabe destacar o importante aspecto relativo ao fato de que, para o autor, o trauma não se dá na experiência primária dessa vivência, mas sim em um segundo momento no qual não há validação por parte de outro em relação ao sofrimento de um sujeito (Ferenczi, 1931/1992aFerenczi, S. (1992a). Análises de crianças com adultos. In S. Ferenczi, Obras completas Sándor Ferenczi (Vol. 4, pp. 69-83). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931)).

É nessa perspectiva que Ferenczi introduz o conceito de desmentido para que se possa pensar o trauma patogênico, ressaltando que o verdadeiro caráter traumático de uma experiência se refere ao fato de o sujeito não ter reconhecida sua condição de ser e, assim, sofrer o descrédito de outro em relação à percepção do sofrimento que foi por ele vivenciado (Gondar, 2017Gondar, J. (2017). Ferenczi como pensador político. In E. Reis & J. Gondar, Com Ferenczi: Clínica, subjetivação, política. 7Letras.). Pode-se afirmar, portanto, que a vivência do trauma, nesta leitura psicanalítica, recupera o valor do vivido mesmo não se referindo ao evento em si, e também o impacto posterior, ou seja, o trauma efetivamente ocorre em um segundo momento, no qual o sujeito não encontra, no outro, respaldo e acolhida para a intensidade decorrente do que foi efetivamente experienciado, deparando-se, no tempo em que se dirige ao outro na expectativa de acolhida de seu testemunho, com a imposição do desmentido acerca do excesso por ele vivido.

As contribuições de Sándor Ferenczi, embasadas em uma leitura crítica da clínica psicanalítica de sua época e sustentadas na consideração aos fatores sociais e culturais, precisam ser, cada vez mais, aproximadas do campo social contemporâneo e do entendimento acerca do mal-estar provocado pelas transformações observadas no campo da cultura e da política (Gondar, 2017Gondar, J. (2017). Ferenczi como pensador político. In E. Reis & J. Gondar, Com Ferenczi: Clínica, subjetivação, política. 7Letras.). O aspecto a ser destacado, na aproximação da concepção ferencziana de trauma ao estudo sobre migração e refúgio, é o fato de que a atribuição de invisibilidade em relação ao outro e seu sofrimento, equivalente ao desmentido, confere o caráter traumático ao vivenciado pelo sujeito. Nas palavras de Ferenczi (1931/1992aFerenczi, S. (1992a). Análises de crianças com adultos. In S. Ferenczi, Obras completas Sándor Ferenczi (Vol. 4, pp. 69-83). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1931)), “o pior é realmente o desmentido, a afirmação de que não aconteceu nada, de que não houve sofrimento ... é isso, sobretudo, o que torna o traumatismo patogênico” (p. 79). Sobre essa questão, Kupermann (2017Kupermann, D. (2017). Estilos do cuidado: A psicanálise e o traumático. Zagodoni.) destaca o fato de que “é por meio das contribuições ferenczianas que a comunidade psicanalítica é convidada a relançar a função da alteridade nesse contexto, atribuindo um novo estatuto às situações de violência promovidas no campo social” (p. 48). A obra de Ferenczi permite acessar um modelo de pensamento que destaca o valor relacional e os afetos decorrentes, ressaltando os impactos psíquicos da experiência alteritária. Assim, para além de pensar o campo do traumático de maneira individual, os refugiados e migrantes evidenciam a ocorrência de um fenômeno coletivo, no qual as precárias condições sociais e políticas padecem de reconhecimento e acolhimento, devendo ser considerados os efeitos danosos no sujeito. O escopo desta abordagem teórica e prática não é apenas defender a necessidade inexorável de um olhar acurado à singularidade presente em cada situação de migração ou refúgio, mas também recuperar o dano coletivo provocado sob égide do desmentido, cuja extensão instaura um trauma social.

O conceito de trauma social pode ser pensado na dimensão avassaladora de uma experiência que ultrapassa as capacidades de atribuição de sentido ao vivido e cujo impacto provoca a disjunção nos laços sociais das comunidades atingidas pelas mais diversas manifestações da violência humana. Essa dinâmica é explicitada na descrição de Gondar (2017Gondar, J. (2017). Ferenczi como pensador político. In E. Reis & J. Gondar, Com Ferenczi: Clínica, subjetivação, política. 7Letras.) acerca do impacto do desmentido: “trata-se de um descrédito da percepção, do sofrimento e da própria condição de sujeito daquele que vivenciou o trauma. Desse modo, o que se desmente não é o evento, mas o sujeito” (p. 211). Na mesma direção, antropólogos vêm se dedicando à problemática descrita como sofrimento social a fim de abarcar os danos decorrentes de “idiomas de exclusão e políticas de assistencialismo” (Pussetti & Brazzabeni, 2011Pussetti, C., & Brazzabeni, M. (2011). Sofrimento social: Idiomas de exclusão e políticas de assistencialismo. Revista Etnográfica, 15(3), 467-478.). Nessa leitura, o sofrimento social decorre de efeitos nocivos das relações desiguais, ou seja, tem sua origem na própria estrutura social. O efeito nocivo que adquire o estatuto de desmentido diante da não validação afetiva da violência sofrida é ainda ampliado por condutas externas que procuram induzir no próprio sujeito afetos de culpa e vergonha por sua condição.

A invisibilidade imposta ao refugiado e ao migrante dá, portanto, especial testemunho da crueldade presente em relações desiguais. Nelas o atendimento efetivo às demandas de cuidado e a atenção à singular condição do outro são inexistentes, logo, também se faz ausente qualquer disposição genuína a acolhê-las e, assim, reconhecer sua legitimidade. Na aproximação do conceito de desmentido a esse contexto, a indiferença e seu poder dessubjetivante impõem ao sujeito o desmentido de sua condição de ser e da percepção da injustiça sofrida, dissimulando as reais condições do entorno na produção de seu padecimento. Santinho (2016Santinho, C. (2016). Refugiados e requerentes de asilo em Portugal: Contornos políticos no campo da saúde. Alto-Comissariado para as Migrações.) permite estabelecer associações com a proposição ferencziana dos danos subjetivos decorrentes do desmentido e o trauma social que instaura, ao nomear a condição de aprisionamento devido à “complexa tensão entre passado, presente e futuro intangível que continua a marcar as vidas dos refugiados ao longo da história da humanidade” (p. 33). No tensionamento entre os tempos (quem foi, quem é) ficam os sujeitos aprisionados pela invisibilidade que lhes é imposta, na impossibilidade de se historizarem, de se verem (re)conhecidos e acolhidos em suas legitimas demandas. Pela atribuição prévia de serem aqueles que estão a mais e desajustados no laço social, nada recebem além da cruel indiferença que busca desmentir sua condição de semelhante. Há uma importante distorção, ou confusão de línguas neste campo, quando passam a ser descritos como aqueles que estão a mais, que são clandestinos, delinquentes, usurpadores dos lugares e das funções dos verdadeiros cidadãos de um dado local, como denunciado por Agamben (2015Agamben, G. (2015). Meios sem fim: Notas sobre a política. Autêntica.), ao situar o refugiado como sujeito político do tempo atual. Quando vistos por lentes do preconceito e violência que a eles atribuem toda a responsabilidade pela situação em que se encontram, desvia-se o olhar e a atenção do questionamento dos verdadeiros motivos que impedem essas pessoas de viverem bem e felizes em seus lugares de origem. A hostil “recepção” ofertada pelos que estão, em relação aos que chegam, busca desmentir o descaso, a precariedade, a violência e os riscos que os levaram a empreender movimentos de saída de suas pátrias, bem como tenta encobrir o descaso mundial para com tantas vidas humanas. Aquilo que representam, como efeito dos imperativos da injustiça social, ou seja, do que está sempre a menos para eles, disfarça-se nas atribuições que os deixam marginalizados e tidos como representantes de perigo à ordem instituída. Para Birman (2018Birman, J. (2018). Catástrofe, risco e trauma. In D. M. Coelho & E. L. Cunha (Orgs.), Faces contemporâneas da razão (pp. 111-130). Cocern.), na busca de regulação do mal-estar via criminalização de populações (aqui tomadas na ilustração de refugiados e migrantes), é evidente que a lógica humanitária se transforma em lógica securitária, impondo a “criminalização dos indivíduos” (p. 127). Nessa direção, ao escrever o texto “Ferenczi como Pensador Político”, Gondar (2017Gondar, J. (2017). Ferenczi como pensador político. In E. Reis & J. Gondar, Com Ferenczi: Clínica, subjetivação, política. 7Letras.) explora a associação entre o desmentido no campo social, a produção do trauma social e a posição ética e política necessária no trato com sujeitos traumatizados. Para a autora,

aqui não se trata apenas de fornecer contribuições acadêmicas, já que esses conceitos são operatórios, configuram uma perspectiva de cuidado e apontam para modos de lidar com os sujeitos traumatizados - individuais ou coletivos. Eles estabelecem uma ética e uma postura e, como já foi antes mencionado, uma posição política. O quanto se responsabiliza ou acolhe um sujeito traumatizado - individual ou coletivo, o quanto se admite a sua queixa de uma injustiça sofrida, o quanto se reconhece a sua necessidade de reparação - tudo isso configura uma atitude que pode se estender ao campo da cultura, do direito, e mesmo da macropolítica (Gondar, 2017Gondar, J. (2017). Ferenczi como pensador político. In E. Reis & J. Gondar, Com Ferenczi: Clínica, subjetivação, política. 7Letras., p. 214).

No cerne dessas condições está em xeque a consideração ao outro e a sua dor e, no caso dos refugiados ou migrantes, ao outro estrangeiro, o que acaba, também, por confrontar o sujeito que exerce a indiferença com sua própria precariedade e estrangeiridade. Assim, a violência da “posição política”, que sustenta a prática da indiferença, não deixa dúvidas sobre a precariedade de recursos “humanos” do agente e o rechaço ao diferente.

A reflexão acurada sobre as práticas de rechaço ao outro se faz presente nas proposições de Byung-Chul Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.), professor de filosofia e estudos culturais na Universidade de Berlim que vem se dedicando a estudos sobre as formas atuais de violência. Em seu livro A Expulsão do Outro, Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.) discorre sobre a intensa positividade do idêntico como marca inegável da negatividade do outro. A falta de uma tensão dialética gera, atualmente, nas sociedades, segundo o autor, o predomínio da busca pelo idêntico a si mesmo. Na dinâmica de predomínio do idêntico, é o “poder violento do global, que nivela tudo reduzindo tudo ao idêntico e que edifica um inferno do idêntico, gera uma contraforça destrutiva” (Han, 2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água., p. 19). Expressões dessa contraforça destrutiva se dão, segundo o autor, no terrorismo e no nacionalismo, reações reflexas ao domínio do global que apontam para uma convulsão sistêmica. Nessa lógica, segundo Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.), “tanto a celebração nacionalista e romântica de fronteira como o terrorismo islâmico obedecem ao mesmo esquema de reação perante o global” (p. 21).

Ao discorrer a respeito dos riscos decorrentes do predomínio do idêntico, o autor explora o tema relativo aos imigrantes e refugiados. Para Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.), “dentro desta ordem global que é hoje hegemônica e que totaliza o idêntico, na realidade existem somente mais idênticos ou outros que são idênticos” (p. 23). Considera, ainda, que os imigrantes e refugiados são percebidos como uma carga, uma vez que a diferença que representam perturba a ordem dos idênticos e os confronta com os signos de pobreza, racismo, vulnerabilidade e abandono. Destarte, Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.) formula importante crítica ao predomínio no neoliberalismo de um espírito comercial “dotado somente de um entendimento calculador” (p. 26). Nessa condição, a ótica da exclusão suscita uma “ilha de bem-estar”, uma “construção baseada numa ótica exclusiva, está rodeada de vedações fronteiriças, de campos de refugiados e de cenários bélicos” (Han, 2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água., p. 25). Dessa forma, constata-se que “a atual crise dos refugiados revela precisamente que a União Europeia não é mais do que uma reunião econômica comercial que busca o proveito próprio” (Han, 2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água., p. 26).

Na dimensão da exclusão do outro, o amor se atrofia “como um objeto de consumo e de cálculo hedonista. O desejo do outro é suplantado pelo conforto do igual. Procura-se a agradável e, em última análise, confortável imanência do igual” (Han, 2014Han, B.-C. (2014). A agonia de Eros. Relógio D’Água., p. 27). Nesse predomínio da interioridade, a dimensão externa, tão cara à noção de alteridade, padece, pois o inferno dos iguais não permite a geração do outro.

Nessa ótica de exclusão, o estrangeiro, quando destituído radicalmente de sua condição de cidadão e não conforme, por sua “pobreza”, em relação à categoria de consumidor ou de empresário de si, padece de forma ainda mais evidente. As práticas de assistencialismo destinadas a esta população alinham-se às proposições de Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.) a respeito da proliferação do idêntico e do movimento de expulsão do outro e conduzem a outra temática também abordada pelo autor. Trata-se do importante dano à capacidade atual de escutar. Para Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.), a voz do outro é, atualmente, degradada de forma que se transforma em repetição da voz própria. Sobre a atividade peculiar que marca a capacidade de escutar, o autor afirma:

primeiro, tenho que dar as boas-vindas ao outro, isto é, tenho que afirmar o outro na sua alteridade. Depois, presto atenção ao que ele diz. Escutar é um prestar, um dar, um dom. É unicamente escutar o que ajuda a falar o outro. Não segue passivamente o seu discurso. Em certo sentido, a escuta antecede a fala. É unicamente escutar o que faz com que o outro fale. Escuto já antes de o outro falar, ou escuto para que o outro fale. A escuta convida o outro a falar, libertando-o para sua alteridade (Han, 2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água., p. 88).

A fratura nessa sequência de abertura à alteridade pode ser constatada em práticas que buscam “aliviar” o sofrimento de migrantes e refugiados, mas que, no entanto, desmentem sua condição de sujeitos e tampouco reconhecem a implicação de condições outras na geração de seus padecimentos. Assim, sem qualquer espaço destinado à fala do outro ou à indagação sobre o que lhe ocorre, ouve-se apenas o som de meros ecos produzidos pelos idênticos. Não é possível exercer a escuta do outro no desmentido à alteridade.

O trabalho desenvolvido por Pussetti (2009Pussetti, C. (2009). Corpos em trânsito e sofrimento psíquico. In C. Pussetti, J. F. Ferreira, E. Lechner, & C. Santinho (Orgs.), Migrantes e saúde mental: A construção da competência cultural (pp. 29-40). Observatório da Imigração.) junto com a população de migrantes em Portugal permite a ilustração da violência do “assistencialismo”, bem como do desmentido e da proliferação do idêntico, ao denunciar a assunção, por parte de profissionais de saúde, de um estereótipo do migrante como uma pessoa frágil do ponto de vista mental e com elevado risco de desenvolvimento de patologias psiquiátricas. A autora refere-se à identificação, por parte do psiquiatra catalão Joseba Achotegui, de uma nova categoria diagnóstica para definir o mal-estar presente na experiência da migração: a Síndrome de Ulisses. Para Pussetti (2009Pussetti, C. (2009). Corpos em trânsito e sofrimento psíquico. In C. Pussetti, J. F. Ferreira, E. Lechner, & C. Santinho (Orgs.), Migrantes e saúde mental: A construção da competência cultural (pp. 29-40). Observatório da Imigração.), a criação dessa nova categoria psiquiátrica atende aos anseios da promoção de uma leitura medicalizante do processo migratório, ao traduzir “os conflitos sociais em idiomas psicopatológicos, desviando a atenção do contexto político e econômico mais amplo para se concentrar no indivíduo como corpo despolitizado e naturalizado” (p. 37).

Na perniciosa proliferação do idêntico não há espaço, portanto, para escutar a palavra do sujeito, não é possível dar crédito à singularidade do vivido ou atribuir legitimidade a sua denúncia. Tampouco se pode vislumbrar no árduo deslocamento empreendido a não conformidade com a violência experenciada em seu país de origem. Diante da invisibilidade imposta àquele que perturba o inferno do idêntico resta uma leitura patologizante que busca, na monitoração farmacológica, suprir qualquer dissonância à repetição do eco dominante. Sem espaço de escuta e acolhimento ao singular que a alteridade aporta em si, instaurando uma dinâmica na qual a voz do outro e sua dor, sua denúncia e seu protesto ante o desfavorecimento social são desmentidos e relegados à mera confirmação de uma patologia previamente atribuída. Assim, o sofrimento do outro estrangeiro é forçosa e implacavelmente “encaixado” em uma roupagem de saber diagnóstico, previamente construída. A invisibilidade e o silenciamento impostos funcionam como implacável desmentido do poder e da violência que têm origem no próprio laço social. Assim, somando-se o desmentido e a proliferação do idêntico não há possibilidade de uma narrativa singular.

Torna-se evidente que alternativas de ruptura com tal ordem residem no árduo trabalho de mudança de paradigmas, o qual, como assinala Morin (2020Morin, E. (2020). É hora de mudarmos de via: Lições do coronavírus. Bertrand Brasil.), “é um processo longo, difícil, caótico, que esbarra em enormes resistências das estruturas estabelecidas e das mentalidades” (p. 22). O trabalho aponta para atividades de fomento a investimentos que contemplem condições para o estabelecimento de vínculos que deem visibilidade à exclusão, à marginalização e à violência cometidas. Para tal, é imperiosa a palavra do sujeito da experiência de deslocamento, o acolhimento ao exercício de seu direito de organizar e produzir uma narrativa sobre sua história, e o reconhecimento da legitimidade de sua dor diante da invisibilidade imposta. Dar condições de reconhecer que o direito a dar sentido a sua vida não decorre do assistencialismo ou filantropia que lhes são disponibilizados, mas sim do direito intransferível de ser acolhido na humanidade da qual faz parte.

Encontram-se nos escritos de Immanuel Kant, na vigência do século XVIII, referências ao tema da hospitalidade e à noção de um direito cosmopolita como condição positiva para a paz democrática. Kant (1795/2009Kant, I. (2009). À paz perpétua e outros opúsculos. Edições 70. (Trabalho original publicado em 1795)), em seu livro À Paz Perpétua e Outros Opúsculos, defende que todos têm igual direito ao solo da Terra, ou seja, ninguém teria mais direito do que ninguém a estar em um lugar da Terra. Ao tomar a ideia kantiana de hospitalidade não como noção utópica, mas como uma ideia vinculativa da razão, Han (2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água.) reafirma a compreensão do filósofo alemão no sentido da hospitalidade como um direito, e não como filantropia.

A partir desta relação estabelecida por Kant entre hospitalidade e direito, pode-se vislumbrar o valor de ir e vir, sustentado no valor democrático da liberdade e no reconhecimento do direito do outro, em sua diferença, a desfrutar das mesmas condições de existência. A hospitalidade não deve ser confundida com filantropia, por ser, ao contrário dessa, calcada no reconhecimento do legitimo direito do outro de ter respeitada e acolhida a diferença que lhe é inerente. Nessa acepção, a hospitalidade se associa a uma razão que não se dá nos domínios do poder, ao contrário, “graças à sua amabilidade, está em condições de reconhecer o outro na sua alteridade e de lhe dar as boas-vindas. Amabilidade significa liberdade” (Han, 2018Han, B.-C. (2018). A expulsão do outro - Sociedade, percepção e comunicação hoje. Relógio D’Água., p. 27).

Ser cosmopolita ou ser um cidadão do mundo é, portanto, encontrar nas experiências do campo alteritário boas-vindas sem sujeição. Pode-se considerar, a partir das reflexões de Kant, que migrantes, refugiados, enfim, todos os seres humanos, sem exceção, deveriam, como condição da “paz democrática”, ter direitos iguais de estar em qualquer lugar da Terra.

Considerações Finais

O desamparo inerente da cria humana ao nascer ilustra o caráter imprescindível da ação do outro para sua sobrevivência e constituição como sujeito psíquico. Será nos encontros entre o eu e o outro que cada sujeito constituirá seu patrimônio subjetivo e relacional. Assim, os argumentos teóricos apresentados, advindos da psicanálise, antropologia, direito, filosofia e sociologia, constituem-se como ferramentas de denúncia do potencial destrutivo da invisibilidade imposta à condição de ser do outro, tanto nas experiências entre o adulto e a criança como no espaço social e político. Na ampliação da leitura a respeito da invisibilidade imposta ao estrangeiro, como migrante e/ou refugiado, não se pode prescindir da inclusão de fatores relativos ao contexto histórico, social, político e econômico. Para tal, é essencial incluir as contribuições que advêm das distintas áreas de estudo sobre o humano. No olhar multidisciplinar à complexidade do fenômeno, pode-se dar consistência às chaves de aproximação e leitura que permitem a denúncia da ambiguidade e da ambivalência presentes no trato com o estrangeiro, mediante a dissimulação da violência presente em práticas de “assistência” que fomentam o desmentido de sua singularidade. Este parece ser o maior desafio no contexto de intervenção junto a essas pessoas: reconhecer o impacto violento e traumático do desmentido imposto desde o laço social, na forma da cruel indiferença exercida em relação à exclusão do reconhecimento de fatores que concorrem para a imposição de sua invisibilidade como sujeito.

As contribuições de Ferenczi sobre o desmentido como instaurador do trauma social patógeno e as proposições de Byung-Chul Han a respeito dos riscos decorrentes da exclusão do outro via proliferação do idêntico permitem tecer considerações sobre as políticas de intervenções junto a populações de refugiados e migrantes. Trata-se da urgência de uma prática que re-conheça, visibilidade e legitimidade ao sujeito nas suas condições de ser e sentir, únicas e singulares. Com certezas na oferta de espaços de escuta a partir da legitimação do valor de suas experiências, poderiam aportar valiosas contribuições ao planejamento de ações que têm na atenção e no cuidado com essa população seu objetivo maior. Nesse sentido, mostram-se indispensáveis tanto a ruptura com esse paradigma de saber prévio e totalizante sobre o outro, que prescinde da escuta de sua narrativa singular, como a assunção do desmentido que provoca, na marginalização imposta ao sujeito da diáspora, o escamoteamento de fatores produtores de precarização e vulnerabilidade social imprescindíveis para práticas de genuíno cuidado junto a estas pessoas. Nessa perspectiva, a somatória entre teoria e ética pode conduzir à construção de práticas que tenham em seu fundamento o distanciamento da mera replicação de um discurso no qual vulnerabilidade e precariedade se confundem com patologização e a medicalização ampla e indiscriminada apareça, erroneamente, como prática de cuidado ao outro. É nesse sentido que se torna pertinente constatar que, sempre que o saber biomédico contribui para a precarização destas pessoas, distancia-se de qualquer propósito terapêutico calcado no reconhecimento do sujeito e sua singularidade.

A invisibilidade do sujeito nas experiências de migrantes e refugiados reproduz sistemático e cruel descrédito ao vivido nas diásporas. Destarte, poderiam inaugurar, no campo alteritário, vicissitudes outras, caso lhes fosse ofertada, com amabilidade, justa hospitalidade.

Urge, na aproximação à problemática contemporânea da migração e do refúgio, portanto, enfatizar o necessário reconhecimento do valor das diferenças (não do idêntico ou dos mais idênticos), bem como o dano derivado do desmentido social, a fim de que, ao reconhecer o impacto dos cruéis imperativos sociais, econômicos e políticos na produção de patologias atribuídas ao estrangeiro, recuperem-se e empreendam-se ações que permitam ao sujeito da diáspora construir seu devir. Trata-se de um importante trabalho que supõe a identificação de elementos múltiplos de violência e crueldade para com o outro, evidenciando suas origens e ligações ao laço social a fim de que a complexidade presente nas diásporas não siga operando na promoção de diferentes e dissimuladas práticas geradoras de invisibilidade.

A alteridade, portanto, continua sendo o elemento essencial para que possa haver esperança quanto ao devir. Identifica-se aqui importante vertente de possível sequência ao trabalho de investigação e estudo da complexidade das diásporas contemporâneas. A intolerância e descrédito ao sofrimento produzido a partir de um sistema econômico de produção de bens de consumo que apaga os direitos do sujeito cidadão ao transformá-lo em consumidor do idêntico, tanto quanto um saber psiquiátrico universalizante, desconsidera diferenças subjetivas e culturais. A importância de estar alerta à convocatória contemporânea de exclusão do outro, de desmentir sua existência, por vezes dissimulada, por vezes explicita em sua crueldade, torna extremante atual e pertinente a interrogação de Primo Levi (1955/2015Levi, P. (2015). Assim foi Auschwitz: Testemunhos 1945-1986. Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1955)): “Somos todos filhos dessa Europa onde está Auschwitz: vivemos nesse século em que a ciência se rendeu e gerou o código racial e as câmaras de gás. Quem pode se dizer seguro de estar imune frente à infecção?” (p. 67).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    10 Jun 2020
  • Aceito
    01 Jun 2021
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