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Casais de Genitores Procuram o Judiciário para Entregar Criança para Adoção

Parental Couples Seek Judiciary to Consent Their Children’s Adoption

Parejas de Padres Buscan el Poder Judicial para Entregar Niños en Adopción

Resumo

A entrega de crianças para adoção por suas genitoras se tornou objeto de constantes normatizações, a exemplo da lei que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente, visando garantir à mulher o direito de não exercer a maternidade e à criança a possibilidade de ter seu direito à convivência familiar e comunitária preservado. Em 2009, a Segunda Vara da Infância e Juventude do Recife iniciou o atendimento a mulheres que manifestam o interesse em entregar sua criança para adoção, através do Programa Mãe Legal. Durante esses anos, verificou-se que, por vezes, é o casal de genitores que comparece para manifestar a intenção de entregar a criança para adoção. O objetivo geral desta pesquisa foi compreender as motivações dos genitores ao decidirem pela entrega ou desistência da colocação de uma criança para adoção, no âmbito do Programa Mãe Legal. Pretende-se analisar o processo pelo qual os genitores vivenciam a parentalidade e compreender o contexto vivido pelo casal que influenciou na sua decisão. A pesquisa foi de natureza qualitativa e teve como instrumental a análise de documentos do processo judicial. Cinco casos foram selecionados para o estudo, e os dados foram analisados por meio da análise de conteúdo temática. Os resultados apontaram que, além das questões subjetivas, as motivações têm suas raízes em fatores externos como o contexto em que o casal está vivendo; a violência e o desgaste da conjugalidade; a interrupção dos sonhos planejados; a falta de planejamento da gravidez; o desemprego e as dificuldades financeiras.

Palavras-chave:
Poder Judiciário; Adoção; Pais; Poder Familiar

Abstract

Mothers’ consent to their children’s adoption has become the subject of constant regulations, such as the law that changed the Children and Adolescents’ Statute, aiming to guarantee to women the right to not exercise motherhood and to children the possibility of having their right to family and community life preserved. In 2009, the Second Childhood and Youth Court of Recife started assisting women who express an interest in consenting their child for adoption, by the Legal Mother Program. During these years, it was found that sometimes the couple of parents comes to express their intention to consent the adoption of a child. The general objective of this research was to understand the motivations of parents when deciding either on consenting or renouncing the placement of a child for adoption, within the scope of the Legal Mother Program. Analyzing the process by which parents experience parenting and to understanding the context experienced by the couple wich influenced their decision was the intention. The research had a qualitative nature and as instrument the analysis of judicial process documents. Five cases were selected for the study, and the data was analyzed by using thematic content analysis. The main results showed that, in addition to subjective issues, motivations have their roots in external factors such as the context in which the couple is living; the violence and the erosion of conjugality; the interruption of planned dreams; the lack of pregnancy planning; unemployment and financial difficulties.

Keywords:
Judiciary; Adoption; Parents; Parenting

Resumen

La entrega de niños/as para la adopción por sus genitoras se ha transformado en objeto de continuas normativas, como la ley que cambió el “Estatuto da Criança e do Adolescente”, con el objetivo de garantizar a la mujer el derecho de no ejercer la maternidad y al niño/a la posibilidad de tener su derecho a la convivencia familiar y comunitaria preservada. En el 2009, la “Segunda Vara da Infância e Juventude do Recife” ha iniciado la atención a las mujeres que desean dejar sus niños/as para adopción, a través del “Programa Mãe Legal”. A lo largo de estos años se ha observado que, algunas veces, es la pareja de padres la que se presenta para manifestar el deseo de entregar el niño/a en adopción. El objetivo general de esta investigación fue comprender las motivaciones que llevan a los padres a decidir por la entrega o por la desistencia del acto de dejar el niño/a en adopción, en el marco del “Programa Mãe Legal”. Se pretende analizar el proceso por el cual los padres vivencian la paternidad y comprender el contexto vivido por la pareja que ha influenciado la decisión. La investigación fue de naturaleza cualitativa y tuvo como herramienta el análisis de documentos del proceso judicial. Fueron seleccionados cinco casos para el estudio y los datos fueron analizados mediante la aplicación del método de análisis de contenidos temáticos. Los resultados señalaron que además de las cuestiones subjetivas, las motivaciones tienes sus raíces en factores externos, como el contexto en que vive la pareja, la violencia y el desgaste de la conyugalidad, la interrupción de los sueños, la falta de planificación del embarazo, el desempleo y la dificultad económica.

Palabras clave:
Poder Judicial; Adopción; Padres; Responsabilidad Parental

Introdução

Este artigo trata de um recorte de pesquisa sobre casais de genitores que procuraram a justiça para manifestarem o desejo de entregar sua criança para adoção no âmbito de um Juizado da Infância.

A Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. (1990, 13 de julho). Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. https://bit.ly/3eBj48f
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, aprovou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Este dispositivo adotou o princípio da proteção integral, considerando crianças e adolescentes pessoas em condição de desenvolvimento, a quem se deve assegurar prioridade absoluta na formulação de políticas públicas, sem distinção de raça e classe social ou qualquer forma de discriminação. O ECA também alerta para a prioridade no atendimento às necessidades sociais da família, de modo que ela se fortaleça ou adquira condições de exercer o cuidado de seus filhos de forma digna.

Em alteração ao ECA, através da Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. (2009, 3 de agosto). Dispõe sobre adoção; altera as Leis nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. https://bit.ly/3VtlLt7
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, o ordenamento jurídico brasileiro adotou uma política de garantir às mulheres gestantes ou parturientes o direito de realizar a entrega responsável de crianças para adoção, através da Justiça da Infância e da Juventude. Na observância de primar pela garantia do direito atribuído à mulher, a Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016Lei nº 13.257, de 8 de março de 2016. (2016, 8 de março). Dispõe sobre as políticas públicas para a primeira infância e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, a Lei nº 11.770, de 9 de setembro de 2008, e a Lei nº 12.662, de 5 de junho de 2012. https://bit.ly/3MFzXLx
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, acrescentou ao ECA o termo “sem constrangimento”. Sendo assim, o direito da entrega fica especificado no artigo 13, §1º da referida lei: “As gestantes ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento [ênfase adicionada], à Justiça da Infância e da Juventude”.

A legislação traz em seu bojo a valorização da convivência familiar e comunitária, além de priorizar a manutenção dos laços com a família extensa ou ampliada na possibilidade de adoção, de modo que a adoção é vista como medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou do adolescente na família natural ou extensa.

Conforme o ECA, a família natural é a comunidade formada pelos pais ou qualquer um deles e seus descendentes. A família extensa ou ampliada é formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade.

Ressaltamos que, após o ECA, a adoção passou a ser sempre plena, irrevogável e efetivada com a assistência do poder público. Esta lei atribuiu ao adotado a condição de filho com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o da família natural, salvo os impedimentos matrimoniais.

Com a alteração trazida pela Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. (2009, 3 de agosto). Dispõe sobre adoção; altera as Leis nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. https://bit.ly/3VtlLt7
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, alguns serviços começaram a ser implantados para o atendimento a mulheres que procuram o judiciário para entregar sua criança à adoção. Em Recife, no mês de outubro de 2009, foi iniciado o Programa Mãe Legal, que funciona no Núcleo de Curadoria Especial e Proteção à Família da Segunda Vara da Infância e Juventude da Capital. O referido programa objetiva atender e acompanhar mulheres que estejam gestantes ou no pós-parto e manifestam a intenção de entregar sua criança para adoção.

Cabe ressaltar que, para assegurar o direito da convivência familiar, sem conflitos éticos ou de confronto de interesses, a criança entregue para adoção por meio do Programa Mãe Legal é disponibilizada para colocação em família adotiva após transcorrer prazo legal para o arrependimento em sentença de extinção do poder familiar. Transcorrido o prazo, a criança é inserida no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA), do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que, em 2019, substituiu o antigo Cadastro Nacional de Adoção (CNA). Assim, a criança é inserida em família adotiva de pretendentes à adoção que fazem parte do mesmo sistema.

A Lei nº 13.509Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. (2017, 22 de novembro). Dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). https://bit.ly/2NfNER8
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, de 13 de novembro de 2017, trouxe novas alterações ao ECA. Encontramos em seu texto uma inovação que se reporta diretamente a um dos objetos de estudo desta pesquisa: o genitor, que não foi lembrado nas leis citadas anteriormente pelo legislador, quando se reportou no texto apenas à mulher, no que se refere à garantia do direito de entregar a criança para adoção.

Desta forma, a corresponsabilidade do genitor é delineada no art. 19-A, §5º da Lei nº 13.509Lei nº 13.509, de 22 de novembro de 2017. (2017, 22 de novembro). Dispõe sobre adoção e altera a Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943, e a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). https://bit.ly/2NfNER8
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, de 13 de novembro de 2017: “Após o nascimento da criança, a vontade da mãe ou de ambos os genitores, se houver pai registral ou pai indicado, deve ser manifestada na audiência”. Assim, nesta nova atualização do ECA fica resguardada a igualdade no exercício do poder familar entre pai e mãe, preconizada na legislação.

O entendimento de que o genitor é parte interessada nesse processo aponta para reflexões que podemos considerar relevantes. Por um lado, além da igualdade de diretos e deveres perante a criança, por parte de ambos os pais, destaca-se o direito da criança de permanecer em sua família de origem ou extensa, caso o genitor não concorde com a entrega para adoção. E, por outro lado, podemos pensar que isso vem responder ao movimento social que os homens vêm trilhando nos últimos tempos de não serem apenas coadjuvantes no processo de cuidado e filiação de suas crianças, partilhando com as mulheres responsabilidades e experiências antes ditas pertencentes apenas ao universo feminino.

Pesquisas identificam como os homens estão enfrentando as novas demandas de ser pai que requerem mais envolvimento afetivo com seus filhos (Beltrame & Bottoli, 2010Beltrame, G. R., & Bottoli, C. (2010). Retratos do envolvimento paterno na atualidade. Barbarói, 32, 205-226.; Toneli, 2006Toneli, M. J. F. (2006). Paternidade em contextos urbanos: Entre o dever e o prazer. In L. S. Minella & S. B. Funck (Orgs.), Saberes e fazeres de gênero: Entre o local e o global (pp. 257-270). Editora da UFSC.). Se antigamente o exercício da paternidade implicava uma menor participação nos cuidados e criação dos filhos, hoje a parentalidade e a conjugalidade são exercícios separados, inclusive juridicamente, pois o envolvimento do pai na vida dos filhos pode ser exigido mesmo quando houver separação/divórcio.

Neste sentido, nas últimas décadas, algumas pesquisas sobre masculinidade e paternidade têm enfatizado como a diversidade das experiências tem marcado estas construções. Toneli (2006Toneli, M. J. F. (2006). Paternidade em contextos urbanos: Entre o dever e o prazer. In L. S. Minella & S. B. Funck (Orgs.), Saberes e fazeres de gênero: Entre o local e o global (pp. 257-270). Editora da UFSC.) chama de novas formas de paternidade as mudanças nas vivências do “ser pai” chamando atenção para uma maior participação dos homens no cotidiano da família e no cuidado com os filhos.

Beltrame e Bottoli (2010Beltrame, G. R., & Bottoli, C. (2010). Retratos do envolvimento paterno na atualidade. Barbarói, 32, 205-226.) ressaltam que, nas últimas décadas, o papel do pai vem sofrendo transformações. Antes, ele era visto apenas como provedor financeiro da família. Atualmente, devido à introdução da mulher no mercado de trabalho, aos avanços tecnológicos na área de inseminação artificial e ao uso de métodos contraceptivos, o homem foi colocado em uma posição de escolha: ser pai ou não. Consequentemente, essa posição o levou a assumir novos papéis no âmbito familiar.

Os dados estatísticos do Programa Mãe Legal de 2016 e 2017 apresentaram um crescimento de casos de mulheres procurando o programa acompanhadas do companheiro, nos quais ambos declaravam a intenção de entregar para adoção a criança que, na maioria das vezes, ainda estava sendo gestada. Tal fenômeno chamou a atenção por serem casais jovens, que viviam maritalmente ou tinham uma relação de namoro estável.

Nas pesquisas relacionadas à entrega de crianças para adoção por suas genitoras, Gonzalez e Albornoz (1990Gonzalez, M. C., & Albornoz, M. C. (1990). Niños entregados en adopción: Factores desencadenantes. Revista Chilena de Pediatria, 61(1), 25-28.), no Chile; Bonnet (1991Bonnet, C. (1991). O abandono ao nascer, uma outra perspectiva (M. A. P. Mota, Trad.). Adoção Páginas Brasileiras.), na França; Freston e Freston (1994Freston, Y. M., & Freston, P. (1994). A mãe biológica em casos de adoção: Um perfil da pobreza e do abandono. In F. Freire (Org.), Abandono e adoção (Vol. 2, pp. 81-94). Terra dos Homens.), em São Paulo; Weber (1998), no Paraná; Mello (2002Mello, I. (2002). Um estudo acerca da mulher que doa um filho [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade Católica de Pernambuco.), na Paraíba; Chrispi (2007Chrispi, L. L. S. (2007). Por trás da janela: Alguns determinantes sociais do abandono de recém-nascidos [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório institucional PUC-SP. https://bit.ly/3VLr1se
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), em São Paulo; e Menezes e Dias (2011Menezes, K. L., & Dias, C. M. S. B. (2011). Mães doadoras: Motivos e sentimentos subjacentes à doação. Revista Mal Estar e Subjetividade, 11(3), 933-960.), em Recife, destacaram que um dos principais motivos para a entrega de crianças pela mãe foi a falta de apoio do pai da criança e da família. Menezes e Dias (2011)Menezes, K. L., & Dias, C. M. S. B. (2011). Mães doadoras: Motivos e sentimentos subjacentes à doação. Revista Mal Estar e Subjetividade, 11(3), 933-960. apontaram ainda para a importância de novas pesquisas que incluíssem o genitor da criança entregue, assim como os familiares envolvidos nesse ato, para uma melhor compreensão do contexto e da dinâmica das relações que permeiam os personagens dessa trama.

Os estudos realizados por Ariès (1981Ariès, P. (1981). História social da criança e da família. Zahar.) mostraram que a ênfase na noção de família centrada no eixo pais-crianças é relativamente recente. Segundo este autor, a percepção da infância, com a importância dada ao papel dos pais, surgiu apenas nos dois ou três últimos séculos. Suas pesquisas apontaram para a existência, na sociedade europeia antiga, de práticas muito diversas, que denotavam a ausência dos sentimentos de família e de infância tal como existem hoje.

A entrega dos bebês era uma prática comum, e pesquisas sobre esse período constataram que, de quatro crianças enviadas para o cuidado de terceiros, apenas uma sobrevivia. A mortalidade era elevada e, consequentemente, preocupante (Camarotti, 1998Camarotti, M. (1998). Problematização das bases do amor materno. Revista Psicanalítica, 6(6), 99-110.; Santos, 1998Santos, S. L. (1998). Adoção: Da maternidade à maternagem: Uma crítica ao mito do amor materno. Revista de Serviço Social & Sociedade, 57(19), 83-109.). Entretanto, estes mesmos estudos observaram que, com o surgimento de uma nova ideologia política e econômica, o Estado passou a se interessar pela sobrevivência das crianças, porque, se não o fizesse, perderia pessoas que futuramente poderiam servi-lo.

Assim foi que, no final do século XVII e início do XVIII, surgiram normas que passaram a estabelecer as regras de tratamento a ser dispensado às crianças e que deveriam ser reproduzidas pela mãe e pelo pai na relação com sua prole. À mãe cabiam os cuidados materiais, com as roupas e os alimentos, e a responsabilidade pela formação dos filhos. Ao pai competia a transmissão de valores morais, religiosos e a manutenção econômica da família. Os pais que não dessem conta de tais compromissos se expunham a sanções, pois estariam descumprindo normas sociais e pondo em risco a vida do(a) filho(a).

Segundo os estudos de Badinter (1980Badinter, E. (1980). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Nova Fronteira.), no final do século XVIII a infância ganhou realce com as diversas publicações dirigidas aos pais, em particular às mães, exortando-os a cultivar novos sentimentos em relação aos filhos. Estava assim esboçada a família moderna, alicerçada no surgimento da infância e nas obrigações do casal parental. Esses novos conceitos modificaram a organização familiar, em particular as obrigações das mulheres, em função dos cuidados prestados à criança.

De acordo com Moura e Araújo (2004Moura, S. M. S. R., & Araújo, M. F. (2004). A maternidade na história e a história dos cuidados maternos. Psicologia: Ciência e Profissão , 24(1), 44-55. https://doi.org/10.1590/S1414-98932004000100006
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), a partir do século XVIII, com as mudanças decorrentes do modo de ver as crianças, surgiram também o distanciamento e a diminuição da autoridade paterna. Com a exaltação do amor materno, a mulher foi incentivada a assumir os cuidados com os filhos, e ao pai coube cada vez mais o distanciamento e a vida social.

Conforme Lyra et al. (2015Lyra, J., Leão, L. S., Lima, D. C., Targino, P., Crisóstomo, A., & Santos, B. (2015). Homens e cuidado: Uma outra família? In A. R. Acosta & M. A. F. Vitale (Eds), Família, redes, laços e políticas públicas (pp. 91-106). Cortez.), o prolongamento do tempo de vida da criança modificou o funcionamento da estrutura familiar, fortalecendo a figura feminina na função do cuidado infantil e colocando o homem no lugar de esquecimento, especialmente diante da relação com o filho, o que colaborou para o declínio do domínio paterno. Os movimentos feministas que eclodiram durante a década de 1960 trouxeram novas conjunturas para as definições dos papéis femininos e masculinos delineados na sociedade, levando o exercício da paternidade a sofrer muitas transformações.

Badinter (1993Badinter, E. (1993). XY: Sobre a identidade masculina. Nova Fronteira.) ressalta que vêm acontecendo mudanças nos paradigmas da identidade masculina e da paternidade. Funções até então desempenhadas exclusivamente pelas mães hoje parecem estar sendo revistas. Os sentidos atribuídos ao homem no exercício da paternidade foram se ressignificando ao longo dos tempos, de modo que a presença paterna passou a ser considerada importante desde os primórdios da vida do bebê. E o pai, outrora colocado fora da relação mãe-bebê, foi levado a desvencilhar-se do papel limitado de provedor e a adotar comportamentos de maior envolvimento com os filhos, tornando-se peça importante no desempenho dos cuidados parentais, na formação psíquica e na socialização da criança.

A partir de 1980, a parentalidade passou a ser mais estudada, e termo tem sido usado com frequência nos estudos dos vínculos de parentesco e dos processos psicológicos que surgem e se desenvolvem na construção de se tornar mãe e pai de uma criança. Moro (2005Moro, M. R. (2005). Os ingredientes da parentalidade. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 8(2), 258-273. https://doi.org/10.1590/1415-47142005002005
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) destacou que a parentalidade acontece dentro de uma teia complexa:

Não nascemos pais, tornamo-nos pais… A parentalidade se fabrica com ingredientes complexos. Alguns deles são coletivos, pertencem à sociedade como um todo, mudam com o tempo, são históricos, jurídicos, sociais e culturais. Outros são mais íntimos, privados, conscientes ou inconscientes, pertencem a cada um dos dois pais enquanto pessoas, enquanto futuros pais, pertencem ao casal, à própria história familiar do pai e da mãe (Moro, 2005Moro, M. R. (2005). Os ingredientes da parentalidade. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 8(2), 258-273. https://doi.org/10.1590/1415-47142005002005
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, p. 259).

Conforme Stern (1997Stern, D. (1997). A constelação da maternidade. Artes Médicas.), as representações parentais sobre o bebê se iniciam muito antes de seu nascimento, assim, não podemos restringir a parentalidade à gestação e ao nascimento de um filho. Mudanças ocorrem não só em função dessas projeções e representações, mas das alterações que a presença real do bebê provoca nas interações entre ele, seus pais e familiares. Assim, para que um bebê sobreviva física e psiquicamente e se torne filho, é necessário inscrevê-lo em uma história familiar e transgeracional.

Para Sanches e Simão-Silva (2016Sanches, M. A., & Simão-Silva, D. P. (2016). Planejamento familiar: Do que estamos falando? Bioética, 24(1), 73-82. https://doi.org/10.1590/1983-80422016241108
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), do ponto de vista da bioética, compreende-se que o planejamento da gravidez, embora possa estar dissociado de outros elementos que compõem a temática do planejamento da parentalidade, precisa ser valorizado. Isso porque, se uma gravidez planejada pode não incorporar todos os elementos necessários para o acolhimento da criança, que dirá a gravidez não planejada, que apresenta maior potencial de risco para a vida da criança e da mãe.

Os autores ressaltaram também que a expressão “planejamento da parentalidade” pode trazer uma agenda aberta, própria de uma sociedade pluralista, mas com algumas ênfases necessárias aos nossos dias: filhos que nasçam desejados e pais preparados. Isso requer lidar com os conflitos inerentes a este duplo enfoque: o melhor interesse da mãe e da criança.

Nesta pesquisa partimos do entendimento de que as leis que regem uma sociedade são fruto de um processo dinâmico, em permamente construção, pautado nas ideologias, na moral, nos costumes e nos conflitos partilhados e vivenciados pelas pessoas que compõem a sociedade. Desta forma, ressaltamos que a legislação referente aos direitos das crianças e dos adolescentes foi construída à medida que mudanças sociais e políticas, a maioria delas pressionada por movimentos coletivos, ocorreram no corpo social.

De acordo com Osório (2011Osório, L. C. (2011). Novos rumos da família na contemporaneidade. In L. C. Osório & M. E. P. Valle (Orgs.), Manual de terapia familiar (Vol. 2, pp. 17-26). Artes Médicas.), é possível que em nenhum outro período da história da humanidade tenham ocorrido mudanças tão significativas nas relações familiares. Em menos de um século, os direitos das mulheres se transformaram, as crianças passaram a ser valorizadas e os homens puderam assumir novos lugares que até então competiam somente às mulheres.

Observamos que as alterações legais são bastante significativas, pois dentro de uma compreensão sistêmica das mudanças ocorridas no conceito de família, nos papéis parentais, nas questões de gênero e na desvinculação de laços sanguíneos para vínculos afetivos, o legislador vem apresentando normas que possibilitam aos operadores do direito compreender a parentalidade para além do viés da biologia, de questões sociais e culturais. Assim, o exercício de se tornar pai e mãe, quando alicerçado pela via do afeto, favorece que homens e mulheres se coloquem disponíveis para filiar uma criança e, em contrapartida, possibilita a tantos outros homens e mulheres abrirem mão desse exercício.

Percurso Metodológico

A pesquisa foi fomentada pelos questionamentos proporcionados pelas alterações legais na temática da responsabilidade parental de homens e mulheres. O objetivo geral foi compreender as motivações dos genitores ao decidirem pela entrega ou desistência da colocação de uma criança para adoção, no âmbito do judiciário, através do Programa Mãe Legal. Especificamente, buscou-se analisar o processo pelo qual os genitores vivenciam a parentalidade e compreender a influência do contexto vivido pelo casal na decisão.

O estudo adotou o viés da perspectiva metodológica qualitativa que, conforme o entendimento de Minayo (2014Minayo, M. C. S.(2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec.), trata-se de uma modalidade de pesquisa que responde a questões muito específicas. Para a autora, a investigação qualitativa trabalha com valores, crenças, representações, hábitos, atitudes e opiniões. Busca aprofundar a complexidade dos fenômenos, fatos e processos particulares e específicos de grupos mais ou menos delimitados em extensão, mas capazes de serem abrangidos intensamente. Não se atém a dados numéricos e sim à compreensão de fatos e conhecimentos que são parte das relações humanas inerentes à realidade social.

Inicialmente, solicitou-se ao juiz responsável pela Segunda Vara da Infância e da Juventude do Recife autorização para acessar os processos do Programa Mãe Legal e usar as dependências da Vara para realizar a pesquisa nos documentos. Ainda foi proposto ao juiz responsável um termo de compromisso, no qual a primeira pesquisadora declarava que, por ser servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, desenvolvendo suas atividades na Segunda Vara da Infância e da Juventude da capital, já lhe era atribuído o zelo pelo segredo de justiça dos processos e que, ao entrar em contato com os participantes, seria observado, através do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, que o sigilo sobre suas identificaçãoes seria resguardado.

A pesquisa se dividiu em duas etapas: a) seleção e leitura dos processos com autoria de genitores que procuraram o Programa Mãe Legal, entre 2009 e 2017, para entregar suas crianças para adoção; e b) levantamento documental e registro das informações coletadas. Na primeira etapa foram encontrados 18 processos e, após a leitura, obedecendo ao critério de inclusão dos participantes, selecionaram-se os casos em que a primeira pesquisadora não havia atuado diretamente nas entrevistas e pareceres. Também foram descartados os casos em que os genitores não residiam na Região Metropolitana do Recife, pois a intenção inicial era realizar entrevistas com os casais. Após esta seleção, chegou-se a um total de seis casos.

Durante o período estabelecido para contato por telefone com os casais selecionados, conseguimos contato com apenas três, pois os números de telefones dos demais não existiam mais. Entretanto, as pesquisadoras perceberam que os casais contatados não demonstravam disponibilidade para participar das entrevistas, pois não respondiam às mensagens encaminhadas através de aplicativos e não atendiam às ligações telefônicas. Uma das genitoras verbalizou que era um assunto muito difícil para falar.

Diante das negativas dos casais e com a certeza de que foram tomadas as precauções necessárias para garantir e respeitar os direitos e a liberdade dos sujeitos consultados, decidimos proceder com a pesquisa, realizando uma análise documental em cinco processos dos seis casos anteriormente selecionados.

Construímos, então, uma tabela para registro das informações coletadas: dados pessoais, sociodemográficos, motivos elencados para entrega e situação final da criança, ou seja, se foi entregue para adoção ou se o casal desistiu da entrega.

Os dados que compõem os processos são: registros pessoais e sociodemográficos; relatórios e pareceres de psicólogos e assistentes sociais do juizado, que contêm a história de vida; as motivações para a entrega; os sentimentos em relação à criança e seu histórico familiar; relatórios dos profissionais das maternidades, das equipes de saúde da atenção básica, da assistência social, da casa de acolhimento onde a criança se encontra e do Conselho Tutelar. Em alguns casos, ainda se encontram relatos de visitas domiciliares e institucionais e de atendimentos aos familiares realizados tanto pela equipe técnica do juizado como pelos demais profissionais elencados. Todas estas informações juntam-se ao termo de audiência e à sentença judicial, que define a situação final da criança.

Os dados foram analisados de acordo com a análise de conteúdo temática, que, segundo Minayo (2014Minayo, M. C. S.(2014). O desafio do conhecimento: Pesquisa qualitativa em saúde. Hucitec.), consiste “em descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja presença ou frequência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico visado” (p. 209).

Resultados e Discussões

A falta de estudos sobre a participação direta do genitor na entrega de crianças para adoção acarreta uma carência de dados que permitam formular e comparar os resultados encontrados nesta pesquisa. Desta forma, recorremos às que foram realizadas sobre a entrega de crianças por suas genitoras e buscamos traçar um paralelo, através do recurso da analogia, para trazer à luz as respostas para os objetivos traçados, bem como fomentar o interesse por novos estudos.

Foram levantados cinco eixos temáticos para melhor interlocução entre os dados encontrados, as pesquisas anteriores sobre a temática e o referencial teórico do estudo. Entretanto, apresentamos neste artigo os resultados e discussões em relação à análise de três eixos: reação ao descobrir a gravidez; motivos elencados para entrega da criança; e sentimentos expressados em relação à criança.

Elaboramos a descrição sociodemográfica de cada um dos cinco casais selecionados para estudo. Ressaltamos que os nomes atribuídos são fictícios, na observância de preservar o sigilo de suas identidades, além de ser uma forma encontrada para apresentar as peculiaridades de cada situação. Em seguida, apresentaremos as categorias escolhidas.

O casal A chegou ao Programa Mãe Legal através do encaminhamento de uma maternidade parceira, após a mulher ter declarado sua intenção de entregar a criança que deu à luz para adoção. O homem foi contatado pelos técnicos do programa, com as informações e autorização da mulher. Além da criança que estava sendo entregue para adoção, o casal tem mais três filhas, de 10, 8 e 2 anos. O nome escolhido para o casal A tem o propósito de caracterizar a questão da violência doméstica, identificada nos dados colhidos no processo, fazendo alusão à protagonista da Lei Maria da Penha e ao seu companheiro, Marcos Antônio. Ao final do processo, a criança foi entregue para adoção.

Tabela 1
Dados sociodemográficos dos sujeitos da pesquisa (casal A). Recife, 2016.
Tabela 2
Dados sociodemográficos dos sujeitos da pesquisa (casal B). Recife, 2017.

O casal B chegou ao Programa Mãe Legal por demanda espontânea, após pesquisa na internet. O homem entrou em contato por telefone e fez um agendamento para atendimento. Ambos foram para a entrevista. Eles referiram que a mulher estava grávida de cinco meses e manifestaram a intenção de entregar a criança para adoção. Afirmaram que cada um residia com seus pais e se declararam evangélicos praticantes. Por romperem o script esperado para pessoas que pautam seus comportamentos na doutrina da religião que professavam, resolvemos batizá-los de Frida e Diego. No período de acompanhamento pela equipe do Mãe Legal, durante a gestação, o casal desistiu da entrega da criança para adoção.

Tabela 3
Dados sociodemográficos dos sujeitos da pesquisa (casal C). Recife, 2017.

O casal C chegou ao Mãe Legal por demanda espontânea, após pesquisa na internet. Inicialmente, a mulher compareceu sozinha e declarou que estava com nove meses de gestação, manifestando a intenção de entregar a criança para adoção. Contou que residia com o marido, um filho de um ano e dois meses e sua mãe, mas que essa era sua terceira gestação, pois teve um aborto espontâneo na primeira gravidez. O casal recebeu o nome de Simone de Beauvoir e Sartre por ter causado uma “revolução” diante dos profissionais da maternidade e do judiciário, pois, mesmo convictos da entrega da criança para adoção, decidiram que ela deveria permanecer junto com eles no quarto do hospital, oferecendo todos os cuidados necessários para o bem-estar do recém-nascido, inclusive a amamentação. Ao final do processo, a criança foi entregue para adoção.

Tabela 4
Dados sociodemográficos dos sujeitos da pesquisa (casal D). Recife, 2017.

O casal D chegou ao Mãe Legal por encaminhamento de uma Organização Não Governamental (ONG). Após procura na internet de informações sobre aborto, o casal entrou em contato com a ONG, que apresentou a proposta do Mãe Legal e, com a anuência dos dois, fez o encaminhamento para o programa. Referiram que a mulher estava grávida de oito meses e decidiram entregar a criança para adoção. Eles não revelaram a gravidez para nenhum familiar por medo da reação dos parentes. Devido à jovialidade e por acreditarem que a gestação causaria conflitos familiares, o casal recebeu o nome de Julieta e Romeu. No período de acompanhamento pela equipe do Mãe Legal, durante a gestação, o casal desistiu da entrega da criança para adoção.

Tabela 5
Dados sociodemográficos dos sujeitos da pesquisa (casal E). Recife, 2017.

O casal E chegou ao Mãe Legal por demanda espontânea, após pesquisa na internet. Inicialmente, a mulher compareceu sozinha e disse que estava com oito meses de gestação, que apenas ela e o marido sabiam da gravidez e haviam decidido pela entrega para adoção. Contou que eles têm uma criança de 10 meses e também reside com eles um filho de quatro anos de seu marido, fruto de um relacionamento anterior. Ela, por sua vez, já foi casada anteriormente. A história encontrada nos relatórios remete ao pertencimento a um grupo, com vínculos afetivos fortalecidos, uma vez que vários familiares de ambos se implicaram na situação. Assim, resolvemos batizar o casal de Maria Bonita e Lampião. Após o nascimento da criança, o casal desistiu da entrega para adoção.

Reação ao Descobrir a Gravidez

Os dados obtidos apontam para o fato de nenhuma das gestações ter sido planejada, e a reação diante da confirmação da chegada de um bebê foi parecida para todos os casais, conforme mostram algumas falas a seguir: “Foi um desespero. Ficamos sem chão; é uma situação muito difícil” (Frida, 21 anos, e Diego, 27 anos). “Ficamos desesperados, não estávamos planejando outro filho agora” (Sartre, 29 anos). “Foi uma surpresa muito grande. Desespero total” (Maria Bonita, 20 anos, e Lampião, 20 anos).

Os dados sociodemográficos desta pesquisa mostram que 80% dos casais são jovens adultos, com idade entre 18 e 29 anos, e 20% são considerados adultos, com idade entre 33 e 46 anos. No que se refere ao estado civil, 90% são solteiros do ponto de vista formal, e apenas uma das mulheres é civilmente casada, sem ter oficializado sua separação do outro companheiro; 60% dos casais declararam viver em união estável e 40% tinham um relacionamento de namoro. Nos fatores idade e existência de outros filhos, os dados mostram que dos quatro casais, classificados como jovens adultos, dois já são pais. Maria Bonita e Lampião têm um filho de 10 meses e Simone de Beauvoir e Sartre têm um filho de um ano e dois meses.

Autores como Matos e Magalhães (2014Matos, M. G., & Magalhães, A. S. (2014). Tornar-se pais: Sobre a expectativa de jovens adultos. Pensando Famílias, 18(1), 78-91.) ressaltaram que, na contemporaneidade, os jovens adultos vivenciam expectativas individuais direcionadas ao crescimento intelectual e à qualificação profissional para inserção no mercado de trabalho, adiando inclusive a saída da casa paterna e a experiência de se tornarem pais. Conforme esses autores, os jovens parecem almejar estabilidade em todos os aspectos da vida para, então, pensar em constituir família, e idealizam o momento perfeito para viverem a parentalidade. Sendo assim, a chegada de uma criança que não foi planejada pode ser encarada como um empecilho para a concretização dos sonhos planejados, expondo esses jovens adultos à vivência de sentimentos conflitantes sobre o melhor caminho a seguir. Desta forma, podemos compreender o desespero dito e repetido por esses casais ao descobrirem uma gravidez que não constava no script, bem como a decisão de procurarem o judiciário para resolverem o conflito, por meio da entrega da criança para adoção.

Os trabalhos de Stern (1992Stern, D. (1992). O mundo interpessoal do bebê. Artes Médicas., 1997Stern, D. (1997). A constelação da maternidade. Artes Médicas.) sobre a parentalidade referem que, à medida que o bebê é gestado, os genitores vivenciam sentimentos e pensamentos relacionados à possibilidade de terem condições, de serem bons pais e atenderem às necessidades do bebê, garantindo a sua sobrevivência e desenvolvimento adequado. Eles se questionam também se estão prontos para um envolvimento emocional com o bebê e se existe uma rede de apoio possível a que possam recorrer na busca de atingirem suas responsabilidades como pais.

Além destas questões, os estudos de Stern (1992Stern, D. (1992). O mundo interpessoal do bebê. Artes Médicas., 1997Stern, D. (1997). A constelação da maternidade. Artes Médicas.) reportam a vivência de dúvidas e medos, por parte dos genitores, em relação à reorganização da identidade, pois o nascimento de um bebê os empurra a subirem um degrau na árvore genealógica e ocuparem o lugar de seus próprios pais.

Ressaltamos que todos os participantes da pesquisa verbalizaram que não esperavam a gravidez e foram unânimes em decidir que não iriam ficar com a criança. Identificamos ainda que dois casais, cujo relacionamento era qualificado como namoro, trouxeram a questão do aborto, a favor ou contra, como uma das formas da resolução do conflito: “Não pensamos em abortar” (Frida e Diego). “Resolvemos que iríamos fazer um aborto” (Julieta e Romeu). Ainda encontramos como possibilidade de resolução, diante dos familiares e amigos, o silêncio sobre a gravidez, utilizado como o recurso da negação: “Ficamos sem saber o que fazer e decidimos não contar pra ninguém” (Julieta e Romeu). “Resolvemos não contar pra ninguém” (Maria Bonita e Lampião).

Refletimos que tanto a opção pelo aborto como a decisão de não revelar a gravidez demonstram uma tentativa de solucionar o conflito. Entretanto, a decisão de esconder a gravidez pode ser compreendida como um recurso frágil, já que os sinais de uma gestação iriam aparecer com o simples crescimento da barriga e com o próprio nascimento da criança. Refletimos que o recurso por ora utilizado possa servir como uma estratégia para deslocar para o futuro os conflitos vivenciados no presente.

Destacamos que o casal Maria da Penha e Marcos Antônio era o que tinha mais tempo de relacionamento e mais idade. A relação estava desgastada devido aos episódios de violência doméstica, e ambos rechaçaram veementemente a possibilidade de serem pais de mais uma criança em comum, como podemos observar nas frases destacadas: “Ele disse que não queria saber, pra eu me virar, que não era o pai. Que eu jogasse a criança no lixo. Fiquei muito triste, arrasada, não queria outro filho desse homem” (Maria da Penha, 35 anos). “Não quero saber. Ela faça o que quiser” (Marcos Antônio, 46 anos).

Braz (2005Braz, M. (2005). A construção da subjetividade masculina e seu impacto sobre a saúde do homem: Reflexão bioética sobre justiça distributiva. Ciência & Saúde Coletiva, 10(1), 97-104. https://doi.org/10.1590/S1413-81232005000100016
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) e Menezes e Lopes (2007Menezes, C. C., & Lopes, R. C. S. (2007). Relação conjugal na transição para a parentalidade: Gestação até dezoito meses do bebê. Psico-USF, 12(1), 83-93. https://doi.org/10.1590/S1413-82712007000100010
https://doi.org/10.1590/S1413-8271200700...
) afirmaram que ter uma relação conjugal satisfatória antes da gestação; ter percepções positivas em relação ao parceiro; ter vivenciado cuidados satisfatórios com as figuras parentais; ter satisfação sexual no relacionamento; e ter acesso a emprego e bens sociais e culturais são fatores de proteção à qualidade da relação conjugal e à transição para uma parentalidade saudável. Do contrário, diante de uma relação conjugal inexistente ou frágil, ou ainda do não desejo de um filho, podem surgir conotações negativas, acarretando sentimentos adversos na mulher que se encontra grávida, no homem que se vê surpreso com a notícia da gravidez e nos demais membros da família.

Ao considerarmos isso, podemos pensar que Maria da Penha não rejeitou a criança, apenas não quer ter mais um filho “daquele homem”. Além das questões envoltas na violência sofrida, podemos pensar que ela não se colocou disponível para a maternagem dessa criança mesmo antes de sua concepção: “Não quero ser mãe desta criança. Eu não quero. Já fui obrigada pelo Conselho Tutelar a ficar com a mais nova. Mas desta vez eu fui esperta, disse logo na maternidade, não fico de jeito nenhum” (Maria da Penha, 35 anos).

Tal decisão nos remete às formulações de Badinter (1980Badinter, E. (1980). Um amor conquistado: O mito do amor materno. Nova Fronteira., 2010), que defendeu que o amor materno não tem suas determinações fincadas no campo do biológico, mas depende de fatores e condições individuais, históricas e culturais. As falas e o comportamento expressos pelas genitoras desta pesquisa reforçam os questionamentos de que o amor materno não é instintivo e incondicional. As falas reportam ainda uma construção social do papel de mãe e pai e que a falta de planejamento para o nascimento de uma criança implica questões diversas que afligem não apenas as mulheres, mas também os homens.

Magalhães e Féres-Carneiro (2009Magalhães, A. S., & Féres-Carneiro, T. (2009). Atravessamentos do amor na conjugalidade e na parentalidade. https://bit.ly/3EOm7EF
https://bit.ly/3EOm7EF...
) afirmaram que a parentalidade e a conjugalidade estão imbricadas na sua origem e no destino. Desta forma, definiram a conjugalidade como o encontro de duas pessoas que desejam compartilhar uma história de vida. Tal trajetória é marcada por trocas, mudanças, adaptações de projetos e desejos que apontam para o amadurecimento psíquico dos indivíduos e, alicerçadas nas memórias das relações conjugais internalizadas, apoiam e fornecem a possibilidade do surgimento da parentalidade.

Percebemos nos dados coletados que a maioria dos casais que procuraram o Programa Mãe Legal implicam-se pelo viés da afetividade e dividem anseios, expectativas e planejamentos de vida. Desta forma, podemos aludir que são pertinentes seus questionamentos e atitudes diante da possibilidade de se tornarem pais de uma criança.

Motivos Elencados para a Entrega da Criança

Nesta categoria, identificamos que os motivos expressos para a entrega da criança para adoção perpassaram desde questões relacionadas à falta de planejamento familiar; gravidez indesejada; projetos individuais de vida; dificuldades financeiras; fragilidade da relação conjugal; violência doméstica; falta de suporte familiar; e até avaliações subjetivas como as condições materiais e emocionais de assumir a responsabilidade de cuidar de uma criança.

De acordo com os dados sociodemográficos, os casais analisados podem ser qualificados com um grau elevado de escolarização, estando homens e mulheres, conforme sua faixa etária, entre o ensino médio completo, curso superior e pós-graduação. Apenas o casal Maria da Penha e Marcos Antônio poderia ser classificado com baixa escolaridade, pois eles não concluíram o ensino fundamental II.

Estes dados são de grande relevância quando pensamos na questão financeira como motivo para a entrega de uma criança para adoção. Acreditamos que um grau elevado de escolaridade, atrelado a uma profissão, possivelmente descartaria a falta de recursos financeiros como motivo para a entrega.

Encontramos, ainda, nos dados sociodemográficos, uma dissonância entre mulheres e homens no que se refere à questão financeira e escolaridade, que demonstra uma vulnerabilidade feminina. Maria da Penha, por exemplo, declarou não desenvolver atividade laborativa além de cuidar da casa e das filhas, e Marco Antônio referiu ser comerciante. Frida é estudante de nível superior e não tem recursos financeiros, enquanto Diego trabalha como analista de sistemas e tem uma remuneração elevada. Simone de Beauvoir afirmou ser operadora de telemarketing e Sartre, operador de logística, mas ambos estão desempregados. O casal Julieta e Romeu é formado por estudantes que nunca trabalharam. Romeu se sustenta com uma pensão que recebe do pai e uma remuneração que recebe da bolsa de iniciação científica. Maria Bonita está fazendo curso superior e se encontra desempregada, enquanto Lampião é empregado de uma empresa privada onde desenvolve a função de analista de sistemas.

Os estudos de Yolanda M. Freston (citada por Pereira, 2000Pereira, C. L. (2000). Mãe que abandona o filho: Quem é esta mulher? Jornal da Unicamp. https://bit.ly/3yO42mx
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) apontaram que a maioria das mulheres que comunicaram a intenção de doar (termo utilizado pelo autor) o(a) filho(a) logo após o nascimento alegavam falta de condições econômicas para sustentá-lo(a). Os dados encontrados por Weber (2009Weber, M. L. (2009). Bendita sois vós entre as mulheres: Representações da mãe biológica acerca da entrega do filho em adoção [Trabalho de conclusão de curso não publicado]. Pontifícia Universidade Católica do Paraná.), em pesquisa feita com mulheres que pretendiam entregar o filho em adoção, em dois hospitais de Santa Catarina, também ressaltaram a questão financeira como motivo principal para a entega da criança por sua genitora. Corroborando essas pesquisas, Oliveira (2016Oliveira, L. C. S. D. (2016). A mãe que entrega um filho em adoção: Desvelando dores, preconceitos e possibilidades de ressignificações [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. Repositório institucional UFRN. https://bit.ly/3MD4fhQ
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) observou que as mulheres participantes de sua pesquisa declararam a dificuldade, simbolizada como a falta de recursos financeiros, para criar a criança como motivo para entrega.

Em relação aos homens, apenas Sartre se encontra desempregado. Os demais são detentores de recursos financeiros, seja de trabalhos formais, atividades autônomas ou, no caso de Romeu, de ajuda financeira de seu pai, além da sua bolsa de iniciação científica. Desse modo, os dados demonstram que a falta de recursos financeiros, somada ao contexto do não planejamento pelo casal de ter um filho no momento em que procuraram o Mãe Legal, foram motivos elencados para entrega da criança: “Estou desempregado. Não consigo manter a minha família, não temos condições nenhuma” (Sartre, 29 anos). “Não temos condições financeiras de ter outro filho” (Maria Bonita, 20 anos).

Giddens (1993Giddens, A. (1993). A transformação da intimidade: Sexualidade, amor e erotismo nas sociedades modernas. Editora Unesp.) refere que estamos vivendo numa época em que é recorrente a formação do casal baseada em sentimentos que expressam amor, desejo e paixão, e a união é consubstanciada na confiança estabelecida entre eles. Entretanto, as diferenças subjetivas também ocupam lugar primordial, marcando um jogo de negociação intensa no relacionamento conjugal. Dentro deste contexto, observamos que os projetos individuais e as questões subjetivas surgiram nas falas de homens e mulheres como o principal motivo para não poderem assumir a criança: “Não planejamos esta gravidez, temos nossos sonhos, quero terminar meus estudos. Não cabe uma criança agora” (Frida, 21 anos).

Não tenho disponibilidade para cuidar de uma criança agora. Tenho uma viagem que planejei, não é justo. É meu crescimento profissional. Tenho uma viagem pra fazer. Um curso no exterior, que eu me preparei durante muitos anos pra isso, não vou jogar tudo fora (Diego, 27 anos).

De acordo com Bauman (2004Bauman, Z. (2004). Amor líquido: Sobre a fragilidade dos laços humanos. Zahar.), na contemporaneidade, um filho é, acima de tudo, um objeto de consumo emocional, servindo às necessidades e aos impulsos do consumidor. Assim, adquire-se uma criança no momento em que se julga adequado, ou abdica-se desta possibilidade, já que ter filhos parece consistir em uma aquisição muito cara.

No que diz respeito ao aspecto financeiro relacionado ao fato de ter um filho, o autor faz uma comparação com uma hipoteca cujas prestações têm valor desconhecido e serão pagas por tempo indefinido, propondo que tamanho custo leva os jovens contemporâneos a repensarem a relevância de ter filhos diante de um risco financeiro tão elevado. Ter filhos pode significar a necessidade de diminuição das ambições pessoais, o distanciamento da carreira e a impossibilidade de adquirir determinados bens de consumo que outrora seriam possíveis. Sobretudo, ter filhos significa ter alguém que depende de você, comprometendo a autonomia e a independência dos pais, preceitos tão caros na nossa sociedade.

A violência doméstica, aliada à dissolução conjugal, também apareceu nesta pesquisa como motivo para entrega da criança para adoção, especificamente relacionada ao casal Maria da Penha e Marcos Antônio: “Esse homem é muito ruim. Vivo trancada, isso não é vida. Não quero mais ele. Ele fique pra lá e me deixe em paz” (Maria da Penha, 35 anos).

A fala de Maria da Penha evidencia que não ficar com o bebê era a opção que a genitora encontrou para não aceitar mais um vínculo com o genitor da criança, não construir mais uma dependência e poder se libertar de uma relação pautada pela humilhação e violência doméstica.

Em outro casal foi identificado que o medo de decepcionar os familiares surgiu como motivo para a intenção de entregar a criança que estava sendo gestada para adoção. Os recortes a seguir retratam o medo e a angústia do casal mais jovem, que ainda tem com seus pais um grau de dependência muito forte: “Meus avós vão ficar decepcionados comigo. O que vou dizer pra meu pai?” (Romeu, 20 anos). “Não posso contar pra minha mãe. Eu não posso de jeito nenhum” (Julieta, 18 anos).

Esses dados demonstram como a questão da entrega das crianças para adoção é complexa e multifatorial. No caso das pesquisas que focalizaram a entrega de crianças por suas genitoras (Bonnet, 1991Bonnet, C. (1991). O abandono ao nascer, uma outra perspectiva (M. A. P. Mota, Trad.). Adoção Páginas Brasileiras.; Chrispi, 2007Chrispi, L. L. S. (2007). Por trás da janela: Alguns determinantes sociais do abandono de recém-nascidos [Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]. Repositório institucional PUC-SP. https://bit.ly/3VLr1se
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; Freston & Freston, 1994Freston, Y. M., & Freston, P. (1994). A mãe biológica em casos de adoção: Um perfil da pobreza e do abandono. In F. Freire (Org.), Abandono e adoção (Vol. 2, pp. 81-94). Terra dos Homens.; Gonzalez & Albornoz, 1990Gonzalez, M. C., & Albornoz, M. C. (1990). Niños entregados en adopción: Factores desencadenantes. Revista Chilena de Pediatria, 61(1), 25-28.; Mello, 2002Mello, I. (2002). Um estudo acerca da mulher que doa um filho [Dissertação de mestrado não publicada]. Universidade Católica de Pernambuco.; Menezes & Dias, 2011Menezes, K. L., & Dias, C. M. S. B. (2011). Mães doadoras: Motivos e sentimentos subjacentes à doação. Revista Mal Estar e Subjetividade, 11(3), 933-960.; Weber, 1998), a falta de recursos financeiros, aliada a questões familiares e subjetivas, foram os fatores motivadores para a entrega. Entretanto, quando se trata de casais, os contratos de conjugalidade, exemplificados pelo planejamento familiar e pelo tipo de relação construída, fazem cada entrega ter seu recorte particular.

Sentimentos Expressados em Relação à Criança

Na entrevista que a equipe técnica do Mãe Legal faz com os participantes do programa existe um item denominado sentimentos em relação à criança. Em nosso levantamento, encontramos falas dos casais selecionados, no que tange aos seus sentimentos, que julgamos importantes para análise.

No casal Maria da Penha e Marcos Antônio podemos evidenciar a presença de um distanciamento afetivo em relação à criança: “Não tenho nenhum sentimento. Só lembro da existência dessa criança porque sinto dor na cirurgia” (Maria da Penha, 38 anos). “Não me importo, não quero saber” (Marcos Antônio, 46 anos).

Já o casal Frida e Diego demonstrou um envolvimento significativo, que perpassou a preocupação de um desenvolvimento gestacional saudável para a criança, apresentado por Diego, ao explícito envolvimento emocional que Frida vivencia: “Queremos o melhor pra esta criança. Estou pagando o pré-natal dela particular pra nascer com saúde e tudo correr bem” (Diego, 27 anos). “É difícil não se envolver. Está crescendo dentro de mim. Mexe. Mas, tento não pensar. Eu não posso cuidar dela agora” (Frida, 21 anos).

Menezes e Dias (2011Menezes, K. L., & Dias, C. M. S. B. (2011). Mães doadoras: Motivos e sentimentos subjacentes à doação. Revista Mal Estar e Subjetividade, 11(3), 933-960.) ressaltam que a decisão pela entrega de uma criança para adoção não é simples ou fácil, e, seja qual for a opção, haverá repercussões e possibilidades de dores visíveis ou não. Acrescentam, ainda, que na doação (termo utilizado pelas autoras) de uma criança para adoção pode ser verificada a preocupação acerca da sobrevivência do filho, seu bem-estar e preservação de sua vida. Esta preocupação apontada pelas autoras também foi encontrada por Martins, Faraj, Santos e Siqueira (2015Martins, B. M. C., Faraj, S. P., Santos, S. S., & Siqueira, A. C. (2015). Entregar o filho para adoção é abandoná-lo? Concepções de profissionais da saúde. Psicologia: Ciência e Profissão, 35(4), 1294-1309. https://doi.org/10.1590/1982-3703002352013
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), em pesquisa realizada com profissionais de saúde, evidenciando que, para tais profissionais, a entrega de uma criança por sua genitora é considerada um ato de cuidado e proteção.

O envolvimento emocional, evidenciado na fala de Frida, também foi identificado nos relatos de outros casais de genitores: “Não está sendo fácil pra mim e para meu marido. É muito preocupante, eu tô entregando uma filha minha… Tenho o mesmo sentimento que tenho pelo meu filho. É como se uma parte de mim estivesse morrendo” (Simone de Beauvoir, 25 anos); “É difícil não se apegar. Chuta. Mexe. Dá uma angústia. É um sofrimento muito grande” (Julieta, 18 anos); “É um sofrimento muito grande. Não temos outra palavra” (Lampião, 20 anos).

Olhando para esses recortes de falas e refletindo sobre as questões teóricas já referenciadas, em relação ao comportamento dos jovens adultos na contemporaneidade, especificamente o de programar sua vida de modo a encontrar o momento certo, ou ideal, para serem pais, percebemos que, enquanto a gravidez e uma criança fazem parte de uma possível escolha, pode ser mais fácil colocar-se distante afetivamente. Também pode ser mais fácil seguir adiante nos avanços e conquistas referentes aos aspectos intelectual e financeiro. Entretanto, quando a criança, mesmo sem ser planejada, sai do campo da fantasia e se torna concreta, torna-se difícil passar imune ao sofrimento, seja qual for a decisão tomada.

Considerações Finais

Iniciamos o percurso deste estudo com o objetivo de ampliar a discussão sobre a temática da entrega de crianças para adoção para além das questões relacionadas à díade mãe-filho. Para tanto, vislumbramos uma proposta que ampliava as lentes para o casal de genitores. Pontuamos que, por ser uma proposta inovadora, ela se constituiu em um grande desafio, considerando a dificuldade de encontrar pesquisas direcionadas ao tema. Isto, por sua vez, acarreta a necessidade de mais investigações.

Encontramos, no fenômeno da entrega de crianças pelo casal de genitores, fatores como as dificuldades dos contratos de conjugalidade e da construção da identidade parental, as mudanças nos papéis sociais de homens e mulheres, bem como as questões relacionadas às mudanças de paradigmas sociais em uma sociedade que estimula o individualismo e o reconhecimento de um status social. Este, por sua vez, está atrelado, cada vez mais, a valores associados ao trabalho, à carreira profissional e à realização pessoal.

Esses valores sociais são assimilados e partilhados por homens e mulheres que, diante de tantas possibilidades, respondem às pressões sociais com a plasticidade de escolher, dentre tantos caminhos - estudar, trabalhar, viajar, viver relações amorosas diversas ou casar -, o momento e as condições ideais para os contratos conjugais, a disponibilidade para terem filhos e se tornarem pais.

Destacamos, também, que, olhando para o nosso país, percebemos que existe um fosso enorme entre os ditames da contemporaneidade e as políticas públicas oferecidas. Desta forma, casais buscam responder a um ideal do que é necessário oferecer a uma criança para que esta se desenvolva com capacidades de responder às cobranças sociais e esbarram em questões econômicas, que dividem as pessoas entre aquelas que usufruem ou não de direitos e possibilidades. No cerne das políticas públicas, observamos ainda que se faz premente a quebra de tabus sobre questões relacionadas à sexualidade, de modo que mulheres e homens possam ter condições de efetivar um planejamento familiar que atenda a seus anseios.

Consideramos que as legislações vêm se aprimorando para atender ao que está posto socialmente. Entretanto, ainda há uma distância a ser percorrida para que o cidadão se aproprie de seus direitos de forma libertária. Entendemos que a psicologia, enquanto ciência, tem o desafio de fomentar discussões com outros campos do saber para cada vez mais desmistificar mitos e certezas a respeito do surgimento e das condições de estabelecimento das relações afetivas entre homens, mulheres e crianças.

Os resultados encontrados convidam para uma nova perspectiva no direcionamento de pesquisas sobre a temática. Mulheres e homens estão chegando ao judiciário e colocam em xeque suas condições de atuarem como pais de uma criança. Desta forma, os profissionais técnicos (psicólogos, assistentes sociais e pedagogos), bem como os operadores do Direito (juízes, promotores, defensores públicos e advogados) precisam não só cumprir a lei, mas apresentar um espaço de escuta e acolhimento para esses homens e mulheres. A tarefa se estende para os profissionais da saúde e assistência social, que precisam intervir com ações de políticas públicas para que cada vez mais crianças possam ser frutos de liberdade de escolhas.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2020
  • Aceito
    02 Mar 2021
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