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Política e Clínica no Trabalho Possível com Escolas Públicas: Contribuições da Psicanálise

Politics and Clinic in Possible Work with Public Schools: Contributions of Psychoanalysis

Política y Clínica en el Posible Trabajo con Escuelas Públicas: Contribuciones del Psicoanálisis

Resumo

Este artigo é um relato da experiência de uma proposta de extensão da psicanálise a outros campos de saber, neste caso o da educação e o da saúde mental. Para tal, as intervenções apresentadas descrevem parte da trajetória de uma equipe de pesquisa inicialmente vinculada à Faculdade de Psicologia da Universidade de Vassouras. A partir de práticas de atendimento com suporte na teoria psicanalítica a crianças, adolescentes e respectivos familiares que não encontravam acolhimento em dispositivos públicos de saúde e assistência da região, e de observações e análises de campo que revelavam discursos medicalizantes nas escolas, em 2018, a pesquisa foi reorientada e passou a ser partilhada com a organização não governamental Chega Junto, criada tanto com o intuito de contribuir para a transformação de discursos e práticas engessantes em espaços burocratizados como de participar da formação continuada dos profissionais que se interessam pela contribuição da psicanálise ao trabalho no contexto de suas escolas e pela maneira como esta rede se constrói. A proposta se concretiza por meio do trabalho cotidiano teórico e prático do grupo de pesquisa, e envolve diferentes intervenções. Foram utilizados autores referentes a ambos os campos de saber mencionados como base para discussão teórica. Por meio dos resultados apresentados, constataram-se mudanças significativas nas atitudes dos alunos, equipe escolar e na própria dinâmica entre eles, o que expressa a possibilidade de transformações através da oferta de espaço de voz e escuta dos sujeitos em meio ao coletivo.

Palavras-chave:
Educação; Psicanálise; Saúde; Sujeito

Abstract

This article is an account of the experience of a proposal to extend psychoanalysis to other fields of knowledge, in this case education and mental health. To this end, the interventions presented describe part of the trajectory of a research team that was initially linked to the Faculty of Psychology at the University of Vassouras. From practices of care supported by psychoanalytic theory to children, adolescents, and their family members who were not welcomed in public health and assistance devices in the region, and from field observations and analyzes that revealed medicalizing discourses in schools, in 2018, the research was reoriented and was from that point on shared with the non-governmental organization Chega Junto, created both with the aim of contributing to the transformation of plastering discourses and practices in bureaucratic spaces and of participating in the continuing education of professionals who are interested in the contribution of psychoanalysis to the work in the context of their schools and how this network is built. The proposal is realized with the theoretical and practical daily work of the research group, and involves different interventions. Authors referring to both fields of knowledge mentioned were used as a basis for theoretical discussion. With the results presented, the attitudes of the students, the school team, and the dynamics among them changed significantly, which expresses the possibility of changes from the provision of space for voice and listening to the subjects in the collective.

Keywords:
Education; Psychoanalysis; Health; Subject

Resumen

Este artículo es un relato de la experiencia de una propuesta para extender el Psicoanálisis a otros campos del conocimiento, en este caso la educación y la salud mental. Para ello, las intervenciones presentadas describen parte de la trayectoria de un equipo de investigación inicialmente vinculado a la Facultad de Psicología de la Universidad de Vassouras. Desde prácticas de cuidado sustentadas en la teoría psicoanalítica hasta niños, adolescentes y familiares que no fueron acogidos en los dispositivos asistenciales y de salud pública de la región, y desde observaciones de campo y análisis que revelaron discursos medicalizantes en las escuelas, la investigación se reenfocó en 2018, y empezó a ser compartida con la organización no gubernamental Chega Junto, creada tanto con el objetivo de contribuir a la transformación de los discursos y prácticas de enlucido en espacios burocráticos, como de participar en la formación continua de profesionales interesados en el aporte del psicoanálisis al trabajo en el contexto de sus escuelas y cómo se construye esta red. La propuesta se realiza a través del trabajo diario teórico y práctico del grupo de investigación, e involucra diferentes intervenciones. Se utilizaron como base para la discusión teórica los autores referidos a los dos campos de conocimiento mencionados. A través de los resultados presentados, se produjeron cambios significativos en las actitudes de los estudiantes, el equipo escolar y en la dinámica entre ellos, lo que expresa la posibilidad de cambios a través de la provisión de espacio para la voz y la escucha de los sujetos en el colectivo.

Palabras clave:
Educación; Psicoanálisis; Salud; Sujeto

Introdução

Resultado de um dos diversos projetos que vêm sendo desenvolvidos desde 2009, a proposta inicial se constitui em uma parceria entre a Universidade de Vassouras e a Secretaria Municipal de Educação do município de Vassouras. Trata-se do projeto de pesquisa “Medicalização do Ensino-Aprendizagem: Construindo Alternativas”, que, posteriormente, passou a se chamar “Psicanálise e Educação: Aposta no Sujeito”, em virtude de algumas mudanças ideológicas e de intervenção.

A equipe, constituída por psicólogos e uma psicanalista, trabalha com a possibilidade de fazer valer, por meio do trabalho cotidiano de supervisão de estágio e grupo de pesquisa, cada adolescente ou criança em sua singularidade de sujeito em uma escola originalmente identificada como um repositório de alunos-problema.

A equipe atua nos planos clínico e institucional, o que envolve diferentes intervenções: atendimentos individuais tanto no espaço escolar como no da organização não governamental (ONG) Chega Junto; oficinas de trabalho psicopedagógico; rodas de conversas com docentes, discentes e as famílias, como também intervenções pontuais nas escolas, seja em sala de aula, nos corredores ou nos espaços comuns.

A partir dessa prática e das trocas efetuadas com outros profissionais em congressos regionais, nacionais e internacionais, nos quais são relatadas tais experiências e o que se produz a partir delas, a equipe desenvolve reflexões, que irão embasar outras intervenções.

Contexto

O preceito do sistema que sustenta o discurso escolar é que o indivíduo é o único responsável pelo lugar que ocupa na cena social, inclusive economicamente, e a escola seria o meio que lhe proveria as bases para uma provável ascensão. Sabe-se, contudo, que nem sempre o contexto social favorece as escolhas do sujeito ou garante a sua sustentação - por vezes, há circunstâncias tão adversas que dificultam qualquer avanço.

Este tipo de análise, que culpabiliza com aval científico os que não obtêm êxito em suas tentativas de enquadramento a regras ou normas legitimadas pelos grupos sociais dominantes e lhes impõe medidas segregacionistas, não é fenômeno recente no Brasil. Desde as décadas finais do Império e, principalmente, a partir da instauração do regime político republicano, o ideário liberal de igualdade e liberdade entrava em choque com as demandas oligárquicas ainda prevalentes em nossa sociedade, e o resultado foi a criação de uma realidade ilusória, como bem sinaliza Patto (2000Patto, M. H. S. (2000). A produção do fracasso escolar: Histórias de submissão e rebeldia (2a ed.). Casa do Psicólogo.) ao referir-se ao período da Primeira República como um tempo “de vigência de uma República oligárquica . . . em que a comédia ideológica, iniciada no Império, continuava” (p. 81).

Para que este regime de aparências tivesse sua manutenção assegurada, garantindo a permanência da estrutura social e política brasileira vigente até então, as teorias produzidas pela biologia, medicina, antropologia, sociologia e psicologia sobre as diferentes formações do cérebro e do consequente tipo desenvolvimento do homem servem como modelos explicativos ideais. Ideais de caráter racista, que serviram como fertilizantes do ideário de higienização e branqueamento social presente em terras brasileiras durante as primeiras décadas do século XX e que tiveram significativo espaço na esfera educacional para explicar a impossibilidade de escolarização de alunos advindos das camadas pobres.

Os matizes médico, biológico e psicológico são os únicos vieses para justificar suas dificuldades de aprendizagem ou adaptação à educação escolar. O fracasso na empreitada educativa tinha como causas deficiências hereditárias, deformidades da gravidez ou defeitos adquiridos; ou seja, anormalidades - que os faziam inaptos cognitiva, emocional e socialmente - comprovadas pelos testes aplicados nas sessões diagnósticas. Desta forma, em nada as escolas poderiam contribuir; ou melhor: a escola não lhes era um espaço adequado e, portanto, deveriam ceder seus lugares aos normais que aguardavam vaga no precário sistema escolar nacional.

Embora nas décadas seguintes houvesse mudanças - ou acréscimos - nas explicações acerca do fracasso escolar (comprometimento emocional causado pela desestrutura familiar e carência cultural do meio social), o modelo psicologizante permanece presente. Assim, como Patto (2000Patto, M. H. S. (2000). A produção do fracasso escolar: Histórias de submissão e rebeldia (2a ed.). Casa do Psicólogo.) nos mostra, “hoje sabemos que desse expressivo movimento das décadas de vinte e trinta restou a prática de submeter a diagnósticos médico-psicológicos as crianças que não respondem às exigências das escolas” (p. 69).

Atualmente ainda podemos constatar o modelo psicologizante incorporado não apenas nas práticas clínicas dos psicólogos, mas também nos discursos que circulam nos ambientes escolares. Em várias unidades públicas do ensino fundamental em que realizamos intervenção, o “conceito” aluno-laudo - referência a crianças encaminhadas para dispositivos da área saúde - é usado com frequência (em conversas informais, sala de professores e conselhos de classe).

Nesse cenário, aquele que não se encaixa em padrões predefinidos, estabelecidos a partir de ideais, é relegado a segundo plano (quando não perturba a ordem preestabelecida) ou é direcionado a especialistas (quando suas subjetividades incomodam o ambiente). Dessa forma, esse sujeito é rapidamente incluído na malfadada série dos fracassados na escola, os quais, mais recentemente, vêm sendo identificados pelo discurso dominante como loosers (perdedores).

Particularmente nas escolas, observam-se duas formas de nomear o sujeito: ou por sua condição social ou por um diagnóstico apressado, que o patologiza. Ambas as condutas acarretam consequências bastante sérias, especialmente quando os sujeitos são diagnosticados como doentes por não atenderem às expectativas dos grupos em que estão inseridos, sendo estes, muitas vezes, os responsáveis por esse insucesso. Historicamente e, ainda hoje, em muitos contextos, espera-se que o psicólogo resolva esses problemas, identificados como “a criança que não aprende” ou que apresenta comportamentos agressivos (Machado, 2016Machado, L. A. (2016). Psicologia no ensino médio e psicologia escolar: História, diferenças e perspectivas. Psicologia Escolar e Educacional, 20(1), 101-108. https://doi.org/10.1590/2175-353920150201933
https://doi.org/10.1590/2175-35392015020...
; Penteado & Guzo, 2010Penteado, T. C. Z., & Guzzo, R. S. L. (2010). Educação e psicologia: A construção de um projeto político-pedagógico emancipador. Psicologia & Sociedade, 22(3), 569-577. https://doi.org/10.1590/S0102-71822010000300017
https://doi.org/10.1590/S0102-7182201000...
) - herança das propostas higienistas e de caráter moral - visando à prevenção a maiores distúrbios (Gomes, 2012Gomes, A. M. M. (2012). O psicólogo na rede pública de educação: Possibilidade e desafios de uma atuação na perspectiva clínica [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca digital de teses e dissertações USP. https://bit.ly/3Fga3MT
https://bit.ly/3Fga3MT...
).

Quais seriam estes distúrbios? Crianças que ficam inquietas e irritadas porque no contraturno de escolas de horário integral devem ficar em sala recebendo reforço de conteúdo ou aquelas que reclamam alto ou xingam após a sucessão de gritos da professora, como presenciamos em unidades escolares da região? As que se utilizam da conversa com colegas ou circulação em sala para fugir da frustração trazida pelos exercícios que não conseguem resolver pois não dominam o assunto ensinado à turma e a professora não atendeu seus pedidos de ajuda? Estes questionamentos não fazem parte da práxis de muitos psicólogos que se propõem a atender clinicamente crianças a eles encaminhadas com queixas escolares ou daqueles que exercem o papel de psicólogo escolar no sistema público de ensino. Restringem o foco de análise no aluno: investigam na anamnese seu desenvolvimento biológico (amamentação, início da marcha e da fala, doenças, sono…) e a estrutura familiar para posteriormente aplicar testes padrões (Wisk, Bender, HTP) e emitir um laudo. Em nenhum momento há o cuidado em averiguar o contexto do qual a queixa tem origem. Desse modo, é possível constatar que

A adesão dos psicólogos ao modelo psicologizante ou medicalizante do atendimento à queixa escolar é um fato. Ela é reflexo de uma visão de mundo que explica a realidade a partir de estruturas psíquicas e nega a influência e/ou determinações das relações institucionais e sociais sobre o psiquismo, encobrindo as arbitrariedades, os estereótipos e preconceitos de que as crianças das classes populares são vítimas no processo educacional e social (Souza, 2004Souza, M. P. R. (2004). A queixa escolar e o predomínio de uma visão de mundo. In A. M. Machado & M. P. R. Souza (Orgs.), Psicologia escolar: Em busca de novos rumos (4a ed., pp. 19-37). Casa do Psicólogo., p. 35).

No Brasil, os alunos da rede pública, em sua maioria, pertencem a classes sociais menos favorecidas, o que, aliado ao fato de as escolas das periferias e aquelas mais distantes dos grandes centros receberem menos investimentos, contribui para o sentimento de fracasso de seus alunos em relação a sua vida escolar, que se torna um peso, quando deveria ser de aprendizagem e de ampliação de possibilidades. Em consequência, crianças e, principalmente, adolescentes, optam por abandonar a escola.

Nos últimos anos, o percentual de evasão escolar experimentou um aumento tão significativo que se tornou tema de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2017. Atualmente, em nosso país, ter idade entre 15 e 17 anos é estar fora da escola ou em defasagem escolar idade-ano, o que representa a situação de quase metade do universo de jovens dessa faixa etária (Dutra, Estrázulas, Lacerda, Garcia, & Conceição, 2014Dutra, I. M., Estrázulas, M. B. P., Lacerda, R. P., Garcia, R. N., & Conceição, S. R. (Orgs.). (2014). Trajetórias criativas: Jovens de 15 a 17 anos no ensino fundamental. Uma proposta metodológica que promove autoria, criação, protagonismo e autonomia. Ministério da Educação.).

Como o desinteresse pela escola é o motivo mais alegado entre os adolescentes mais velhos, em 2014, o governo federal, por meio do Ministério da Educação, objetivando “organizar ações educativas abertas, adaptáveis, contemporâneas, tendo em vista a superação de entraves que impedem a regularidade da sequência escolar de jovens de 15 a 17 anos” (Dutra et al., 2014Dutra, I. M., Estrázulas, M. B. P., Lacerda, R. P., Garcia, R. N., & Conceição, S. R. (Orgs.). (2014). Trajetórias criativas: Jovens de 15 a 17 anos no ensino fundamental. Uma proposta metodológica que promove autoria, criação, protagonismo e autonomia. Ministério da Educação., p. 2), promoveu a elaboração de uma abordagem teórico-metodológica, consubstanciada em sete cadernos, denominada “Trajetórias Criativas: Jovens de 15 a 17 Anos do Ensino Fundamental” (Dutra et al., 2014).

A expectativa do Ministério da Educação era que os professores dos jovens estudantes retidos no ensino fundamental se sentissem instigados pela referida proposta e decidissem testá-la e avaliá-la como prática aberta a ser compartilhada na escola e na rede escolar. Entretanto, embora as sugestões de atividades constantes nos cadernos tenham caráter ilustrativo - ou inspirador -, podendo ser livremente utilizadas, a proposta impôs sobrecarga aos professores, o que, para não fugir à regra, comprometeu seriamente o funcionamento escolar - e o percentual de evasão escolar continuou aumentando. Faltou, talvez, pensar em “trajetórias criativas” para auxiliar os professores…

No contexto das escolas, faz parte da prática medicalizante culpabilizar a equipe escolar pelo não cumprimento das metas de inclusão das políticas oficiais de ensino. As secretarias de educação cobram de seus profissionais tarefas para as quais eles não foram preparados, não lhes fornecendo suporte teórico e materiais para realizá-las. Da mesma forma, projetos são depositados nas unidades escolares sem que a equipe disponha de tempo para discuti-los e ajustá-los à sua realidade, dificultando o trabalho dos professores e comprometendo a aprendizagem dos alunos.

Tal cenário nos remete ao discurso da psiquiatria biológica, que se articula, por sua vez, ao da tecnociência. Como resultado, ambos apagam o sujeito (Pinheiro & Carneiro, 2013Pinheiro, R., & Carneiro, H. F. (2013). A fascinação pelo resto: O hiper mal-estar na tecnociência. Tempo Psicanalítico, 45(2), 419-438.), mantendo-o como objeto desses discursos e de práticas conformes ao discurso capitalista (Teixeira, 2007Teixeira, M. A. (2007). A violência no discurso capitalista: Uma leitura psicanalítica. aSephallus, 3(5), 62-9.). Fundado no binômio verdade científica-eficiência, tal discurso exerce enorme poder de sedução sobre os médicos em formação, uma vez que alardeia responder aos anseios de sucesso de uma sociedade de consumidores que procura eliminar, a qualquer preço e no menor tempo possível, o sofrimento psíquico como marca do sujeito. Sob essa ótica, torna-se difícil a interlocução com a psicanálise, que sustenta sua presença justamente por meio da escuta desse sofrimento, a partir da suposição de que há um sujeito nele implicado (Alberti, 2002Alberti, S. (2002). Psicanálise e universidade e a instauração de discursividades. In D. Rinaldi & M. A. C. Jorge (Orgs.), Saber, verdade e gozo. Leituras de O Seminário, livro 17, de Jacques Lacan (pp. 43-52). Rios Ambiciosos.).

E qual seria a alternativa? Ora, já no final do século XIX, começou a tomar forma uma nova valorização da criança nos meios pedagógicos, o que levou Jonathas Serrano a escrever, em 1932, em meio ao movimento da Escola Nova, que, muito antes desta, visava-se a uma educação em que

já não mais o pequeno homem vai temeroso, preocupado com o humor do mestre naquele dia, mas onde a escola é para a criança, onde o professor tem um curso obrigatório de formação no qual aprende com particular ênfase inúmeros métodos para uma didática mais apropriada a cada situação, a cada classe e, porque não dizer, a cada aluno em particular. Para isso é imprescindível certo conhecimento de psicologia infantil (Serrano, 1932, como citado em Alberti, 1984Alberti, S. (1984). Direito do menor: A contribuição dos saberes psicológicos. In F. A. Miranda Rosa (Org.), Direito e mudança social (pp. 65-84). Achiamé., p. 76).

Acrescentaríamos também como imprescindível o conhecimento da psicologia com adolescentes, cujas especificidades devem ser levadas em conta pelos profissionais que se propõem a trabalhar com essa faixa etária. Entretanto, há de se cuidar para que isso seja feito na contramão de uma psicologia normatizante, que não poucas vezes pode se orientar no lastro da medicalização do aluno, patologizando-o. Ao contrário, trata-se de fazer clínica na escola de um modo que rompa com aquela que, pela via normatizante, julgou possível “resgatar o aluno do fracasso escolar e que, evidentemente, provocou enorme quantidade de críticas em função do fato de que a clínica, por si, não deve visar uma homogeneização dos indivíduos” (Geoffroy & Alberti, 2015Geoffroy, R. M. G., & Alberti, S. (2015). Contribuições de Jean Oury para verificar uma possível emergência do sujeito na escola. Estilos da Clínica, 20(2), 246-64., p. 248).

Os alunos, professores, técnicos e administradores são convocados a trabalharem juntos, e isso traz, necessariamente, conflitos e divergências, pois cada um tem sua história, seus desejos, suas dificuldades, seus sintomas e, como já ensinava Freud no início do século XX, há de se valorizá-los, porque a particularidade dos sintomas é também aquela dos sujeitos. Partimos disso enquanto pesquisadores, não apenas como psicólogos, mas também nos instrumentalizando com a psicanálise e com a colaboração e a troca com os professores, por exemplo, em relação ao nosso conhecimento sobre crianças e adolescentes.

Auxiliar na construção de uma rede de assistência a partir dos casos encaminhados; promover conversas que possibilitem aos profissionais tomarem a palavra e se implicarem na construção de soluções para os impasses identificados por eles; proceder a atendimentos psicopedagógicos a alunos e atendimentos com base na teoria psicanalítica a alunos e educadores são os objetivos de inserção quando nos referimos a uma clínica ou oferta de escuta dos sujeitos na escola, pois “a psicanálise não pode interessar à educação salvo no próprio campo da psicanálise, isto é, pela psicanálise do educador e da criança” (Millot, 1987Millot, C. (1987). Freud antipedagogo. Zahar., p. 157). Mas quem são estes sujeitos? E por que precisamos dar voz a eles?

O sujeito se constrói a partir do Outro em um tempo não cronológico - e, sim, lógico - de constituição. A necessidade de soluções rápidas para toda situação que comprometa a produção definida pelo modelo capitalista das sociedades atuais faz que se preconizem “verdades” cujos efeitos engessam vidas e segregam pessoas, e são diversas as formas de violência material e simbólica. Esse sistema se apoia no individualismo como condição reconhecível pelo modo de vida capitalista, no qual o sujeito é o único responsável pelo seu desempenho, seja de sucesso ou fracasso.

Buscam-se, assim, especialistas externos à escola que possam responder, tecnicamente, a uma demanda de “cura de um comportamento inadequado”, aprisionando o sujeito ao próprio sintoma e a uma categoria social. Nesse cenário, os sujeitos tendem a não se responsabilizar pelos próprios sintomas nem a se apropriar de suas questões, e, por isso, são despotencializados em suas ações. Pensando o âmbito escolar como um tropel, essa prática não leva em conta a grande quantidade de sujeitos diferentes, um em cada nível de ensino, nem o prolongado tempo de estudo (Patto, 2000Patto, M. H. S. (2000). A produção do fracasso escolar: Histórias de submissão e rebeldia (2a ed.). Casa do Psicólogo.; Santos & Gonçalves, 2016Santos, J. V., & Gonçalves, C. M. (2016). Psicologia educacional: Importância do psicólogo na escola. Psicologia.pt. https://bit.ly/2qYXVYS
https://bit.ly/2qYXVYS...
).

Utilizamos o conceito de coletivo de Jean Oury para situar o trabalho que realizamos, objetivando “fazer emergir espaços de dizer, por oposição ao dito estabelecido” (Geoffroy & Alberti, 2015Geoffroy, R. M. G., & Alberti, S. (2015). Contribuições de Jean Oury para verificar uma possível emergência do sujeito na escola. Estilos da Clínica, 20(2), 246-64., p. 257), ou seja, “trata-se de constituir um meio onde haja a maior diversidade possível, onde haja uma tablatura de unidades distintivas, o que permite criar lugares muito diferentes uns dos outros” (Oury, 2009, p. 159).

É apenas quando tal meio pode ser construído que se abre um espaço para a intervenção psicanalítica, “daí a dificuldade de fazer valer a própria transferência analítica nessas organizações” (Geoffroy & Alberti, 2015Geoffroy, R. M. G., & Alberti, S. (2015). Contribuições de Jean Oury para verificar uma possível emergência do sujeito na escola. Estilos da Clínica, 20(2), 246-64., p. 257).

A possibilidade de lançar mão da proposta de Oury, que não apenas verifica, mas constrói um coletivo que garanta a maior diversidade possível, visa ao singular subjetivo na coletividade em que emerge, com sua história e suas próprias questões, mas sem cair na prática individualista.

A escuta do sujeito nos permite apostar nessa condição de potência de trabalho, potência do próprio sujeito e de suas interfaces com o social. Ela se impõe na contramão do que se observa frequentemente ao se atuar “em organizações hospitalares, administrativas ou pedagógicas [que favorecem] o posicionamento a serviço dos bens, posicionamento que exige ceder sobre seu desejo” (Geoffroy & Alberti, 2015Geoffroy, R. M. G., & Alberti, S. (2015). Contribuições de Jean Oury para verificar uma possível emergência do sujeito na escola. Estilos da Clínica, 20(2), 246-64., p. 257).

Os posicionamentos que os sujeitos assumem diante do meio ou sistema/instituição que frequentam são definidos de acordo com os laços sociais que se tecem e, numa perspectiva psicanalítica, abordá-los envolve introduzir a teoria dos discursos.

Os discursos são, na interpretação de Lacan, os modos de relacionamento apontados por Freud como fontes do sofrimento do homem - educar, governar e psicoanalisar -, aos quais Lacan acrescentou “fazer desejar” (Coelho, 2006Coelho, C. M. S. (2006). Psicanálise e laço social: Uma leitura do Seminário 17. Mental, 4(6), 107-21., p. 107). Com isso, pode-se afirmar que, a partir da observação de como se tecem os laços entre os sujeitos, é possível identificar, também, quando o discurso se estabelece e onde é possível intervir.

Se por um lado nos deparamos com as possibilidades de ação e construção de novos modos de implicação dos sujeitos em suas realidades, falar sobre discursos também envolve abordar algumas impossibilidades, principalmente quando é posto em questão o entrave existente entre o desejo do sujeito e as “exigências” ou “concessões” experienciados por ele desde o momento de sua inserção no social.

A esse respeito, Freud (1912/2013)Freud, S. (2013). Sobre la más generalizada degradación de la vida amorosa (Contribuciones a la psicología del amor, II) (1912). In S. Freud, Obras completas (Vol. 11, pp. 169-84). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1912) sustentava ser impossível a conciliação entre a civilização e as pulsões sexuais, uma vez que a educação reprimiria os impulsos do sujeito, o que representa perda parcial de sua satisfação. Assim, a submissão às exigências da civilização acontece pela dificuldade de satisfazer a pulsão; o fato de ser impossível a reconciliação entre as pulsões sexuais e as pulsões do eu faz o homem se colocar a serviço dos bens, abrindo mão - na maioria das vezes sem nem mesmo se dar conta - de seus desejos mais verdadeiros, o que, em consequência, o faz pagar com sintomas, normalmente identificados como psicológicos. Por outro lado, o fato de os sintomas surgirem testemunha a presença de sujeitos, e é com eles que se pode trabalhar no contexto da escola.

Quando e Como Começou?

A ONG Chega Junto é fruto de um trabalho que se desenvolve há mais de uma década e pode ser considerada resultado de intensa trajetória e transformação do projeto inicialmente elaborado. Sua transformação lastreou-se na psicanálise, a partir do momento em que passou a contar com a atuação de uma psicanalista. Entretanto, isso só foi possível porque, originalmente, o projeto partia de uma premissa da qual a ética da psicanálise não abre mão: o incômodo com o fato de a sociedade atual ser pautada em conceitos medicalizantes, que alienam o sujeito de seu próprio potencial transformador. À época, estudantes universitários de psicologia e alguns profissionais da área perceberam a necessidade de pensar alternativas para mudar tal realidade e dar voz às pessoas que, em sua maioria, experienciavam consequências nefastas do sistema alienante em que se encontravam as escolas pesquisadas.

Na primeira fase de desenvolvimento da pesquisa, quando ainda se contava apenas com um psicólogo, o projeto representava bem o que o seu nome de origem transmitia: práticas interventivas em escolas, com caráter psicopedagógico, e uma vertente voltada para a não medicalização do processo de aprender e dos sujeitos. Os primeiros atendimentos clínicos nas escolas, como também as rodas de conversas com professores, profissionais de apoio e alunos, podem ser vistos hoje como uma espécie de preparação para a criação da ONG Chega Junto, fundada na atual terceira fase. Naquela primeira fase, embora ocorressem intervenções clínico-institucionais em algumas escolas, a atuação era limitada e, não raro, cerceada por questões e espaços burocratizados.

Nos primeiros oito anos, supervisionamos estudantes de psicologia na Universidade de Vassouras, sustentados na teoria psicanalítica. Os estudantes da graduação atendiam os alunos encaminhados pelas escolas públicas da região. A atividade auxiliava na formação daqueles universitários que se interessavam pela psicanálise com um viés para a clínica com adolescentes.

As questões que os estudantes levavam ao conhecimento das supervisões e que o Serviço Escola de Psicologia (SEP) da Universidade de Vassouras nos apresentava eram consideradas iniciantes, tais como: a) existe especificidade na clínica com adolescentes? b) Existe especificidade na supervisão clínica dos estagiários que atendem a adolescentes? c) É necessário conceituar do que se trata quando falamos de adolescência para fazer um bom trabalho clínico com essa clientela? d) Por que é tão comum atender adolescentes como se fossem crianças ou adultos? e) Por que é tão frequente a oferta de estágios de atendimentos de crianças e adolescentes juntos? f) Por que é tão difícil acolher o adolescente como sujeito atravessado pelas especificidades que lhe são importantes?

Outras questões também surgiam, embora de natureza diversa, como: “Atenderei os adolescentes na sala de ludoterapia ou na sala de adultos? Proponho jogos ou não? Atendo a família do adolescente? Atendo os responsáveis para pegar a autorização de atendimento e para o que mais? Como faço o manejo clínico da família do adolescente?”.

A insegurança do estudante de psicologia que se inicia na clínica se manifesta de diversas maneiras. Por exemplo: “o adolescente falou de uma festa do último final de semana, mas não falou nada da questão que se apresenta na queixa inicial da triagem; acho que eu não soube atendê-lo”. As questões que ainda se fazem presentes nas supervisões demonstram as dificuldades inerentes aos primeiros passos dos estudantes na clínica com os adolescentes, relacionadas ao processo subjetivo pelo qual passa esse sujeito. Quando não se reconhece a complexidade das questões do sujeito adolescente, usualmente se rechaça o problema: “se eu não sei fazer, então é melhor afirmar que não é importante fazê-lo”. E a exclusão, tanto da família, devido às dificuldades em atendê-lo, quanto do próprio adolescente, por muitas vezes não se enquadrar em um modelo de atendimento padrão, acontece constantemente.

À medida que os atendimentos se realizavam, essas questões começavam a ser respondidas, e o sucesso obtido referente a alguns casos trouxe ao SEP, às escolas, aos alunos e a suas famílias confiança no trabalho que se iniciara. O supervisor, à medida que era atravessado pela experiência analítica, assumia sua função tanto como sujeito dividido e membro da equipe do projeto quanto como êxtimo - conceito psicanalítico que define a singular função do psicanalista, no íntimo, no âmago, mas totalmente externo (Lacan, 1968-1969/2008Lacan, J. (2008). O Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Zahar. (Trabalho original publicado em 1968-1969), p. 249) - à moral social civilizatória (Piza & Alberti, 2014Piza, L., & Alberti, S. (2014). A criança como sujeito e como objeto entre duas formas de investigação do abuso sexual. Psicologia Clínica, 26(2), 63-85., p. 74). É como êxtimo que ele encarna a possibilidade de causar o desejo de uma intervenção singular no laço social dominado pelo discurso que identificamos como medicalizante. Foi desse lugar que o supervisor apostou na transmissão de uma posição outra, calcada na noção do ato necessário para que cada membro do projeto se autorizasse na “tarefa psicanalisante” (Lacan, 1967-1968Lacan, J. (1967-1968). O Seminário, livro 15: O ato psicanalítico., p. 140).

O relato a seguir esclarece um pouco essas questões acerca do início da experiência, quando já surge o interesse em dar voz em meio a discursos totalizantes ou diante de posturas engessadas. Uma estagiária levou ao conhecimento da supervisão o caso de uma adolescente de 14 anos encaminhada pela escola por sair da sala de aula inúmeras vezes, demostrando, com isso, alto nível de ansiedade. A aluna permanecia em sala por mais tempo apenas com a presença da psicóloga escolar ou da diretora. A mãe da menina se mostrava muito preocupada com aquele comportamento, alegando que “entendia a filha, pois ela (a mãe) tinha síndrome do pânico e sabia como era isso”. A estagiária fez algumas entrevistas com a mãe e deu continuidade aos atendimentos individuais com a adolescente, que discorria sobre suas dificuldades com bastante clareza. Entretanto, como mãe e filha eram muito ligadas, a estagiária precisava promover algum espaço de separação das duas. Devido às frequentes invasões da mãe à sala de atendimento, sob a alegação de que tinha algo importante a dizer sobre a filha, a estagiária entendeu que precisava manejar clinicamente aquela relação mãe-filha, embora a tarefa não lhe parecesse fácil. A estagiária relatava, por exemplo, que “a mãe não permitia a melhora da filha”; “que a mãe estragava tudo”. Entretanto, como tratar a filha sem a mãe? Como tratar a filha com a mãe? Como achar uma forma possível de manejar esse caso? Sob supervisão, a estagiária conseguiu separar o que era da mãe, o que era da adolescente e o que era dela (estagiária), ajudando mãe e filha em um mútuo processo de distanciamento possível. A adolescente foi se sentindo mais à vontade e, ao longo de três meses de atendimento, já conseguia permanecer em sala de aula, voltando a se relacionar com os amigos e a seguir a vida menos atrelada à mãe.

Um Novo Projeto: “Psicanálise e Educação: Aposta no Sujeito”

A inclusão da supervisão com uma psicanalista ressituou a questão: já não há apenas um esforço psicopedagógico voltado para a não medicalização como há também ações que dão lugar e voz a todos os sujeitos envolvidos no funcionamento escolar. O leque de questões para as quais os alunos buscam soluções varia desde a forma para resolver problemas lógicos, incluídos em diversas disciplinas, até aquelas relativas a sua identidade sexual e sua sustentação.

A ampliação das questões tratadas demandou alteração no título da pesquisa na qual ora se fundamenta o trabalho com crianças e adolescentes a partir da psicanálise, que sofreu modificação para “Psicanálise e Educação: Aposta no Sujeito”, introduzindo, para além de ações antes direcionadas exclusivamente ao processo de aprender, uma tentativa de abordagem clínica do ambiente escolar. Não se trata de atendimento clínico, mas de uma abordagem que leva em conta um olhar clínico em todo o campo que o ambiente escolar impõe: alunos, professores, colegiados, familiares, como também os contextos social, econômico, político e geográfico em que a escola está inserida.

Nesse movimento, conceitos referentes à psicanálise e à educação entraram em contato, trazendo à tona questionamentos e demandas mais distantes da burocracia característica a espaços públicos submetidos aos sistemas político e socioeconômico em que vivemos. Entretanto, com a ampliação de um projeto baseado na oferta de acolhimento, visando permitir aos sujeitos a reinvenção, os rumos da ONG Chega Junto cresceram e, com eles, suas responsabilidades.

Etapas da Pesquisa

A pesquisa original teve início em 2009, a partir da grande demanda para atendimento a crianças e adolescentes com problemas de escolarização no município de Vassouras. No primeiro momento, nosso objetivo era entender as causas desses encaminhamentos e em que bases eles se realizavam. Constatamos, assim, tanto a falta de conhecimento sobre os processos de desenvolvimento infantil como de apoio psicológico aos professores e diretores que trabalhavam com os alunos sobre os quais havia queixas de algum tipo de dificuldade de aprendizagem ou resistência ao ritmo e às normas escolares.

Aquela primeira investigação apontou falhas na formação dos educadores e consequente angústia por parte de vários professores, diretores e orientadores pedagógicos. Por não saberem identificar adequadamente o tipo de problema com o qual se defrontavam, acabavam por encaminhar grande número de crianças e adolescentes a médicos, em sua maioria neurologistas, que os diagnosticavam, emitiam laudos e os medicavam. Em consequência da medicação, os alunos aquietavam, mas continuavam com os mesmos problemas de aprendizagem demonstrados anteriormente.

Diante desses resultados, em 2011, iniciamos uma nova etapa da pesquisa: trabalhar em conjunto com as escolas para construir ações de potencialização das equipes na busca de soluções para os problemas relatados. Firmou-se, assim, uma parceria entre o SEP e a Secretaria de Educação do município de Mendes, por meio da qual estudantes de psicologia atenderiam nas escolas que demandavam intervenção e também no SEP, sob a supervisão semanal de dois professores da referida universidade. Entusiasmados com o alcance do projeto e seus efeitos, alguns ex-estudantes que dele participaram durante a graduação manifestaram interesse em continuar participando. Atualmente, há oito graduados em psicologia atuando no projeto e três graduandos.

Houve maior demanda de cinco escolas públicas, nas quais se atuou da seguinte maneira: a) rodas de conversas com os professores; b) participação nos conselhos de classe; e c) intervenções em sala de aula, com os alunos apontados pelos professores como tendo dificuldade de aprendizagem. A partir da análise dos casos de alunos atendidos que puderam ser acompanhados no SEP, verificou-se que os problemas relatados diziam mais respeito a dificuldades de relacionamento com familiares e a questões sociais - e, mais frequentemente, socioeconômicas - que transcendiam o âmbito individual.

O sucesso dessa intervenção levou, já em 2013, à expansão da atuação ao município de Mendes e a uma escola estadual no município de Vassouras. Essas novas intervenções incluíam “participar de reciclagens de diretoras, supervisoras, orientadoras e professoras, em grupos variados, com questões relativas à concepção histórico-cultural sobre aprendizagem, limites, abuso sexual e trabalhar com a equipe pedagógica na construção de projetos político-pedagógicos” (Peixoto & Silva, 2016Peixoto, C., & Silva, J. (2016). Escutas e conversações sobre fracasso escolar. In Conselho Regional de Psicologia do Rio de Janeiro (Org.), Conversações em psicologia e educação (pp. 125-36)., p. 128).

O trabalho no município de Mendes realizou-se de 2014 a 2017, com alunos de 4 a 11 anos, enquanto no colégio estadual, no centro de Vassouras, é realizado, desde 2014, com alunos de 14 a 18 anos. Nas duas instituições, o objetivo principal foi promover espaços de circulação da palavra. Para tanto, estivemos presentes nas rotinas das escolas (sala de aula, refeitório, recreio e reuniões de equipe); utilizando como dispositivos de intervenção tanto o atendimento clínico nesses diferentes espaços - e também na sala específica para atendimento e na praça da cidade - quanto as rodas de conversa com alunos, professores, pessoal administrativo e responsáveis/familiares. Periodicamente, promovemos reuniões devolutivas (com toda a equipe ou direção/coordenação), em que avaliamos o processo de intervenção e discutimos novas demandas. Com os espaços de circulação da palavra, os sujeitos que compõem a comunidade escolar podem abandonar a constante posição de queixosos e assumir, aos poucos, suas responsabilidades diante daquilo de que se queixam, conforme nos informa Lacan (1966/1998)Lacan, J. (1998). Variantes do tratamento-padrão. In J. Lacan, Escritos (pp. 325-364). Zahar. (Trabalho original publicado em 1966), ao descrever as reviravoltas dialéticas promovidas por Freud (1905/2011)Freud, S. (2011). Tres ensayos de teoría sexual. In S. Freud, Obras completas (Vol. 7, pp. 109-22). Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1905) no clássico acompanhamento do caso “Dora”. Assim como para Dora, foi-nos possível perceber fatores que interditam objetivos e práticas e respectivas implicações subjetivas e, com isso, sintomas se dialetizaram no momento em que, circulando a palavra mais livremente, cada um pôde se ressituar como desejante.

A metodologia utilizada parte de uma concepção da clínica a partir da psicanálise, mas não a reduz a psicanálise pura; ou seja, trata-se da extensão da psicanálise para uma articulação com saberes e práticas que não são genuínas de seu campo, pois “a psicanálise nunca deixou de se dirigir para o social . . ., o que Lacan (2003Lacan, J. (2003). Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da escola. In J. Lacan, Outros escritos (pp. 248-64). Zahar.) inscreveria numa das seções de sua Escola, como Psicanálise em Extensão” (Alberti, Teixeira, Beteille, Rodrigues, & Martinez, 2017Alberti, S., Teixeira, L. C., Beteille, I. M., Rodrigues, S. M., & Martinez, C. R. B. S. (2017). O acompanhamento terapêutico e a psicanálise: Pequeno histórico e caso clínico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 128-41. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017v20n1p128.9
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017...
, p. 130). Esta orienta a prática psicanalítica na instituição, “balizada por princípios teóricos, metodológicos, éticos e políticos” (Alberti et al., 2017Alberti, S., Teixeira, L. C., Beteille, I. M., Rodrigues, S. M., & Martinez, C. R. B. S. (2017). O acompanhamento terapêutico e a psicanálise: Pequeno histórico e caso clínico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 128-41. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017v20n1p128.9
http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017...
, p. 130), contribuindo com, pelo menos, três formas:

  1. a escuta psicanalítica de cada sujeito envolvido na instituição, reconhecendo-o e fazendo valer sua singularidade de sujeito;

  2. como um analisador externo à instituição, com a “função de provocar efeitos de elaboração a respeito do que é discutido institucionalmente” (Alberti et al., 2017Alberti, S., Teixeira, L. C., Beteille, I. M., Rodrigues, S. M., & Martinez, C. R. B. S. (2017). O acompanhamento terapêutico e a psicanálise: Pequeno histórico e caso clínico. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 20(1), 128-41. http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017v20n1p128.9
    http://dx.doi.org/10.1590/1415-4714.2017...
    , p. 130);

  3. como parte integrante da equipe e, portanto, sujeito também a se questionar, como sujeito de pesquisa, sobre os efeitos que experiencia, o que também instiga seu desejo de “vir a saber disso . . . o que não exclui a importância fundamental [de se referir à teoria, ao] corpo conceitual da psicanálise” (Figueiredo & Vieira, 1997Figueiredo, A. C., & Vieira, M. A. (1997). Sobre a supervisão: do saber sobre a psicanálise ao saber psicanalítico. Cadernos Ipub, 9, 25-30., p. 29).

A partir do suporte teórico da psicanálise, há uma interseção fundamentalmente em jogo na clínica psicanalítica: sustentar a posição do sujeito como aquele que fala. Essa clínica tem como principal meio fazer o sujeito falar, o que, justamente, ocorre em nossas rodas de conversa nas escolas.

É importante destacar que, embora a intervenção tenha um suporte teórico da psicanálise em extensão, cabe a nós pesquisadores também termos como metodologia utilizada alguns autores e teorias referentes aos espaços de atuação (o ambiente escolar principalmente), aos campos teóricos que os perpassam (a educação) e aos sujeitos envolvidos no processo.

Ainda sobre as intervenções, vale acrescentar que todos os procedimentos e experiências realizados ao longo da trajetória e desenvolvimento da pesquisa apresentada foram submetidos ao SEP e, portanto, se enquadram a suas exigências e normas.

Nessa terceira fase da pesquisa, psicólogas e estagiárias de psicologia estão presentes por três dias da semana, em turnos alternados entre manhãs e tardes, junto com os adolescentes, que ou vão sozinhos aos atendimentos ou em companhia de amigos - o que é bastante comum. Muitos adolescentes levam um ou dois amigos inicialmente e, ao longo dos atendimentos, cada um a seu tempo, estabelecem transferência e passam a não precisar tanto dos amigos para falar sobre suas histórias.

Alguns professores das escolas em que atuamos anunciam também precisarem de atendimento. Suas queixas se referem, basicamente, ao cansaço com o trabalho e à dificuldade em lidar com os alunos. Relatam que veem tantos problemas graves nos alunos, que, somados aos seus, se sentem muitas vezes sem saída. Os docentes são ouvidos na sala dos professores ou mesmo nos corredores, enquanto os alunos fazem deveres ou provas.

A clínica também se dá fora da escola, a partir dos atendimentos efetuados na ONG Chega Junto, onde os adolescentes têm prioridade. É interessante notar que jovens que já estiveram em rodas de conversa com psicólogos ou estudantes de psicologia não raro os solicitam quando percebem que algo não vai bem, seja com eles ou com outra pessoa. Os adolescentes da escola estadual onde atuamos têm hoje um grêmio, no qual já está instituída uma forma de lidar com o outro a partir da fala. O que nos parece, pela ordem cronológica dos acontecimentos, é que a criação desse grêmio também é resultado do nosso trabalho na escola.

Temos, como objetivo geral desta pesquisa, promover alguma mudança política por meio da clínica, ou seja, impulsionar a implicação do sujeito tanto em sua vida particular quanto no coletivo. Dessa forma, investe-se, também, na qualificação de estagiários e na formação continuada de profissionais que se interessem pela psicanálise, seja com o trabalho na ONG Chega Junto ou na rede de assistência, saúde e educação. Entendemos que são os casos que tecem essa rede e, a partir de discussão e intervenção, poderá haver alguma diferença e promoção de heterogeneidade, como nos ensina Oury (2009Oury, J. (2009). O coletivo. Hucitec.).

Hoje, criar espaços de acolhimento para que os jovens possam ser reconhecidos como sujeitos implicados na própria realidade, com possibilidades de escolher e construir a própria vida com mais autonomia, é o objetivo principal da ONG Chega Junto.

Objetivando ampliar nossa área de atuação, temos tentado parcerias com outras instituições para favorecer o processo de busca dos jovens em relação às atividades com que se identificam.

Nas supervisões na ONG Chega Junto, desde sua inauguração, temos recebido muitos casos oriundos de diversos dispositivos públicos de atendimento, que, devido à precariedade dos serviços, trabalhando com equipes mínimas e assoberbados com as exigências burocráticas de prefeituras e órgãos jurídicos, deparam-se com a impossibilidade de atenderem, especialmente, crianças e adolescentes.

Nossas supervisões na ONG Chega Junto se dão em dois tempos: em uma semana discutimos questões emergenciais da instituição de ensino e casos clínicos e, em outra, discutimos textos referentes à teoria psicanalítica. Não raro, um membro da equipe convida profissionais de outras áreas para promoverem atividades em oficinas nas instituições de ensino ou para debate de temas que promovam o querer saber. Conforme o interesse de cada membro da equipe na pesquisa, diversificam-se as atividades, tais como oficinas de bonecos ou de escrita, debates com a participação de professores da região sobre temas como preconceito racial, questões de gênero etc.

A equipe gestora é composta por quatro psicólogos - três com experiência em atendimentos clínicos de crianças/adolescentes e intervenção institucional e um psicólogo mestre em educação, com experiência em intervenção institucional; uma psicanalista, que aí desenvolve sua pesquisa de doutorado1 1 Apostando no sujeito para a educação a partir da psicanálise. , e uma profissional com experiência organizacional. Contamos, ainda, com a colaboração de uma psicóloga que trabalha na rede de assistência e de estagiários do curso de graduação de psicologia da Universidade de Vassouras. O trabalho que se realiza atualmente é testemunho do interesse dedicado por cada um desses profissionais ao projeto.

Os estudantes de psicologia da Universidade de Vassouras que ingressam para estágio no projeto objetivam a construção de uma formação profissional voltada para atendimento a adolescentes e crianças a partir da teoria psicanalítica. De seus depoimentos, recolhemos algumas observações que esclarecem suas expectativas: há “a vontade de fazer parte de um projeto social” e “apostar em sujeitos para que eles possam construir e transformar a própria realidade”; como também “ter contato com os casos depois trabalhados nas supervisões”; além de “conhecer a prática psicanalítica aplicada à instituição escolar”, “adquirir uma visão que vai além das salas de aula, principalmente quando se trabalha junto aos dispositivos de políticas públicas”. Nesse aspecto, é bastante interessante o depoimento de uma estagiária:

O que me levou a escolher a pesquisa foi ver o desejo dos coordenadores em fazer dar certo e, depois, de entender o quanto [esse trabalho] é importante para as pessoas que não conseguiriam esse atendimento facilmente em nenhum outro lugar. . . . Através da troca de conhecimento, do investimento que fazemos uns nos outros, das experiências compartilhadas, do desejo de um que se encontra com o desejo do outro, é possível que estes saiam do papel, por meio de um trabalho teórico-prático e, acima de tudo, humano.

Mas não são apenas os estagiários que se dizem enriquecidos com a participação na pesquisa. Também os psicólogos que nela atuam relatam o quanto o trabalho na equipe incrementa sua formação continuada, de tal modo que, como observa uma psicóloga, “não seria possível individualmente em uma clínica. A aplicação do saber psicanalítico atravessado pelas questões institucionais me traz um novo viés a ser aplicado na clínica”. Outra psicóloga observa o quanto está sendo importante acompanhar um caso há três anos, “por toda a transformação no decorrer dos atendimentos. Foi através dele que pude aprender na prática o que chamamos de transferência”. O caso em questão havia sido atendido por vários psicólogos na escola e sempre em companhia de amigos. Com a instalação gradativa da transferência com essa psicóloga, esse trabalho permitiu que o adolescente concluísse sua formação na escola e que, mesmo assim, continuasse “frequentando os atendimentos com avanços importantes na sua vida profissional”.

Outra psicóloga, há sete anos na pesquisa, observa: “Não vejo forma mais rica de atuação profissional que o trabalho que desenvolvemos junto à ONG, já que é possível uma prática clínica sem as restrições de um setting analítico tradicional”.

O fato de não haver o engessamento da burocracia, que, por vezes, atravessa muitos serviços de atendimento público, possibilita a descoberta de novas formas de atuação, da conexão entre a prática e a teoria (por meio das supervisões), bem como facilita a transmissão de um saber que só é possível por meio da troca de casos, experiências e estudo.

Um testemunho que perpassa todos os depoimentos coletados por ocasião da preparação dos festejos do primeiro aniversário da ONG Chega junto, em 2019, não nega uma base ideológica que aposta que, com o devido acolhimento, cada sujeito presente na escola tem suas potencialidades singulares - na contramão das burocracias institucionais -, o que introduz uma ação política - no sentido amplo da palavra - em que cada um, assumindo um lugar no trabalho de campo, é potencial de mudança e de resposta inovadora diante do que, até então, era apenas motivo de queixa. Segundo uma das psicólogas, sobre o modo e funcionamento da ONG Chega Junto, trata-se de

Uma prática com rigor em relação à teoria psicanalítica, mas sem rigidez em relação à forma de atender os adolescentes. . . . Os sujeitos podem ser atendidos em outros lugares que não só no espaço físico da ONG e dentro da escola. Esses adolescentes podem se apresentar e se posicionar propondo oficinas na ONG ou escola e conversarem sobre isso e o que mais quiserem no ponto de ônibus e na praça da cidade. O importante é o sujeito ter lugar para falar e ser ouvido.

Também é relatado pelos psicólogos que atuam na pesquisa o desejo de

ampliar a prática da psicologia para muitos outros espaços. Seria uma forma de colocar em prática um compromisso social pautado na promoção de bem-estar social e psicológico para todos. . . . Também aposto que pequenas ações contribuem para mudanças no contexto econômico e político de um país.

A partir desses depoimentos, verifica-se que os objetivos iniciais do projeto não apenas se mantêm como se enriquecem com a prática e a inclusão de novos projetos. Eles se fortalecem com a proposta da formação continuada, que leva em conta a importância da articulação entre uma prática conjugada ao desejo de cada participante e a teoria: “Dividir, discutir a teoria e a prática com os colegas da equipe é muito rico, já que é através do trabalho em equipe que nos constituímos profissionais”, afirma Claudio Ramos Peixoto idealizador da pesquisa. O fato de o funcionamento da ONG Chega Junto não demandar uma gerência burocratizada agiliza as propostas de ações inovadoras, inclusive em relação ao que o discurso universitário impõe, abrindo espaço para parcerias, rodas de conversas e mudanças nas práticas pedagógicas. As respostas nem sempre são imediatas, mas, quando vêm, testemunham a consistência do trabalho e, ipso facto, seu reconhecimento, pela direção das escolas, dos dispositivos clínicos de saúde da região e, fundamentalmente, dos alunos e professores aos quais se dirige o trabalho. Por exemplo, recentemente surgiu a proposta de se promoverem espaços mais sistematizados com as famílias e responsáveis de alunos de determinada escola como resposta às dificuldades por ela vivenciadas no relacionamento dos alunos com seus contextos familiares.

Escola e Famílias

Desde o século XIX, a escola, cooptada pela ideologia liberal do modo capitalista de produção, abriu suas portas às camadas pobres da população e passou a ter como tarefa o ajustamento dessa nova clientela às necessidades da sociedade fabril em plena extensão. Sua missão era formar cidadãos úteis e obedientes às novas regras de trabalho e de vida - a unificação de costumes e a inculcação da consciência de nacionalidade eram as demandas a serem atendidas.

A função redentora da escola tinha como principal público-alvo as famílias das camadas pobres da população, potenciais fornecedoras de mão de obra para os empregos de baixo valor, mas essenciais ao crescente número de fábricas e serviços agregados (obras, comércio, transportes etc.). Nesse sentido, elas deveriam ser convencidas de sua inferioridade racial, cultural e dos problemas orgânicos que transmitiam ou causavam em seus filhos e que tanto interferiam em seu rendimento escolar (Luckesi, 1991Luckesi, C. C. (1991). Filosofia da educação. Cortez.). Para certificar a veracidade desse ideário burguês-liberal, os testes da iniciante psicologia serviram como uma luva. A psicologia exerceu - e ainda exerce - importante papel para justificar o fracasso daqueles que não conseguem alcançar as metas da educação escolar (Machado & Souza, 2004Machado, A. M., & Souza, M. P. R. (2004). As crianças excluídas da escola: Um alerta para a psicologia. In A. M. Machado & M. P. R. Souza (Orgs.), Psicologia escolar: Em busca de novos rumos (4a ed., pp. 39-54). Casa do Psicólogo.; Patto, 2000Patto, M. H. S. (2000). A produção do fracasso escolar: Histórias de submissão e rebeldia (2a ed.). Casa do Psicólogo.).

A implicação da psicologia com a práxis de culpabilização das famílias em relação ao fracasso escolar ganhou, em períodos posteriores, novas fórmulas justificadoras: a desestruturação familiar (e a psicanálise da época não era isenta de responsabilidade nisso) e a carência cultural (promulgada pela psicologia norte-americana).

Na década de 1970, a escola reforçou seu arsenal acusatório, aumentando seu poder defensivo e o abismo que cavou entre ela e os pais. As teorias norte-americanas de carência cultural se enraizaram no discurso escolar para explicar o não aprendizado das crianças, uma vez que seu capital cultural não se adequava àquele que a escola transmitia.

Apesar de já transcorrido meio século, constata-se que as formas medicalizantes para as dificuldades no processo de ensino-aprendizagem persistem nos dias atuais, transformando algo que tem como causa fatores macroestruturais em problemas individuais/familiares. Assim, problemas no ensino-aprendizagem são considerados inexistentes, havendo, sim, dificuldades de aprendizagem cujo foco estaria nas famílias, que não fornecem o necessário apoio à educação de seus filhos.

Evidentemente, há situações e comportamentos que justificam tais críticas dos docentes aos pais, mas não são subsídios consistentes para classificação de uma família e, tampouco, para generalizações carregadas de preconceitos de classe, etnia ou gênero. Ou seja, são situações particulares ou momentâneas transformadas em recorrentes, e sustentam pensamentos estereotipados (males hereditários, desestruturação familiar, carência cultural etc.), que persistem arraigados para acobertar a incapacidade da escola em lidar com o que difere dos padrões inculcados na sociedade. Servem tão somente como justificativa ideal para a escola se desimplicar do fracasso na formação de sujeitos, problema que, na realidade, esse sistema produz ou ajuda a concretizar.

Agindo dessa forma com os pais, a escola completa o corolário de contradições da educação inclusiva brasileira, excluindo de seu interior parceiros fundamentais para a formação de pessoas que podem ser sujeitos de si e da vida em coletividade. Como não educa ninguém - nem a si mesma -, não aprende como transformar o que é potencial em reais práticas pedagógicas emancipatórias (Freire, 1996Freire, P. (1996). Pedagogia da autonomia: Saberes necessários à prática educativa. Paz e Terra.).

Nesse contexto, esquecem-se das ideias centrais de Paulo Freire - referência constante nos textos de planos educacionais dos governos e de projetos político-pedagógicos das escolas -, tais como: a educação é uma troca entre sujeitos e suas individualidades; na interação com outros, podemos melhor nos conhecer para nos reconstruirmos todo o tempo; na troca apreendemos nuances da realidade que ampliam e, muitas vezes, transformam nossa percepção sobre ela; dos choques, inerentes a esse intercâmbio, surgem novos conhecimentos que podem ser a mola para ações renovadas e transformadoras.

Nesse sentido, o que a escola conhece sobre “suas” famílias? Informações obtidas na ocasião da matrícula? O que uma vizinha conta em conversas de porta de entrada? O que está espalhado pelo noticiário “boca a boca” da comunidade? O que consta em relatórios de conselheiros ou diagnósticos de experts? Poucas são as referências das famílias baseadas no que elas mesmas relatam, e são escassos, também, os dados provenientes de diálogos, de encontros entre família/responsável e escola.

Por outro lado, o que as famílias sabem sobre a escola? Conhecem sua pedagogia? Como são elaboradas as avaliações de seus filhos? Têm conhecimento sobre os eventos que a escola pretende promover e suas datas? Conhecem o calendário escolar? Sabem as datas para as quais estão previstas as reuniões de pais? Sabem que há conselho de pais, qual sua função e quando acontecem seus encontros? Em sua quase totalidade, as famílias desconhecem esses dados que compõem a estrutura de funcionamento das unidades escolares, pois estes lhes são sonegados.

Dessa forma, o que trocam escola e família, além de múltiplas e mútuas queixas e acusações? Se a primeira lança mão da força simbólica calcada em seu poder instituído e legitimado para impor normas e punir desvios, resta às famílias responderem ao descaso com que elas e seus filhos são tratados restringindo os contatos ao estritamente necessário e, geralmente, burocrático, com a instituição.

Para a escola, é comum o envio de bilhetes vinculando a entrada da criança/adolescente no espaço escolar à presença de um responsável; muitas vezes (quando lhe convém), envia uma solicitação escrita, minimamente fundamentada, para que o conselho tutelar convoque um membro da família para averiguações ou para que algum profissional da área da saúde faça uma rápida avaliação (ou exame) e diagnostique aquele que lhe foi encaminhado.

As famílias costumam dar pouca importância ao que é falado ou solicitado, e não buscam detalhamentos ou simplesmente desconsideram seus possíveis desdobramentos; outras vezes, temem contestar as queixas por se sentirem acuadas pelo discurso recheado de siglas e nomes técnicos que desconhecem. Assim, ameaças aos profissionais surgem como resposta e costumam acontecer por meio dos alunos: “se você fizer isso, minha mãe vai te denunciar”, quando estes são contrariados de forma mais veemente. O trabalho em escolas nos permite verificar que, por vezes, esse tipo de recado pode ser a interpretação da criança sobre o que ouviu de conversas de adultos. Qualquer que seja sua roupagem, é preocupante constatar a criança sendo usada como mensageira de um discurso que, inicialmente, não lhe pertence, mas passa a fazer parte de seu imaginário.

A utilização do aluno como arauto de normas e valores não é recente nem exclusivo das famílias. Desde o século XIX, as escolas têm por hábito utilizar os alunos como instrumento de difusão de regras médicas ou legais. No decorrer de nossa atuação, presenciamos diversos exemplos dessa situação em algumas escolas: seja o professor aconselhando o aluno a pedir ao pai que o auxilie nas tarefas escolares, seja enviando um recado para a mãe “caprichar” no uniforme escolar ou no banho do aluno, ou, ainda, dizendo que seus pais deveriam “aparecer na escola, pelo menos de vez em quando”.

Crianças e adolescentes, nesse sentido, estão na interseção tensa entre escola e família, quando deveriam estar na convergência de suas heterogeneidades. O pouco caso de uma com a outra e a ignorância recíproca sobre os desejos de famílias e educadores resultam em confusões afetivas e cognitivas nos alunos, além das que já lhes são próprias desse momento de infância e adolescência.

O não compartilhamento de ideias ou procedimentos entre escola e família sobre os impasses inerentes à vida escolar e outros em nada contribui para superá-los, e trabalha no sentido inverso daquilo que ambas se propõem a fazer: formar pessoas para conviver em sociedade com suas variadas demandas de forma crítica e independente.

A escola é um espaço importante na vida da criança e do adolescente, que precisam ser acolhidos de forma cuidadosa para que a percebam como um espaço significativo em sua formação integral e não como um espaço de exclusão legitimada dos que não se adaptam ao modelo imposto pelo sistema político/educacional. É fundamental, então, que os profissionais compreendam as crianças e os adolescentes como sujeitos inseridos em variados contextos socioculturais e que necessitam de espaços que os recebam e ajudem na superação de seus entraves cognitivos, afetivos e/ou sociais.

Considerações Finais

Atualmente, vive-se uma falência das instituições escolares denunciada especialmente pelo desânimo dos professores (muitos adoecidos pelo trabalho) e pelo aumento, a cada ano, no percentual de evasão escolar dos jovens. A dificuldade em apostar nos sujeitos que ali estão, juntamente com a pressa nos resultados, que precisam aparecer de forma satisfatória nas estatísticas das gestões municipais, estaduais ou federal, agrava o problema. Respostas simples a questões complexas costumam estar erradas e por isso precisa haver aumento de investimentos financeiros e de pesquisas e intervenções nesses espaços, com a urgente reformulação do sistema educacional. Nesse cenário, o apoio psicológico torna-se condição prioritária, visando ao desenvolvimento profissional dos professores e à aprendizagem dos alunos.

Os adolescentes alegam que a escola é chata; já os professores, que está cada vez mais difícil trabalhar nesses espaços e se relacionar com os alunos. Todos, de certa forma, adoecidos e se evadindo desse lugar de formação acadêmica e construção de laços sociais que levamos para toda a vida.

Por outro lado, entendemos, a partir de estudo teórico e da atuação de nossa equipe nas escolas, que muitos alunos e professores se mostram desejosos e ansiosos por mudanças na dinâmica escolar, mas com a participação de todos os diretamente envolvidos no processo. São esses atores, que vivenciam a rotina escolar, que devem propor soluções para desfazer o nó cego que o nosso país, ao longo de anos, atou e não sabe desatar.

A partir dos recortes de experiências apresentados no decorrer do artigo, pode-se perceber o quanto é fundamental e eficaz a oferta de uma espécie de “clínica aplicada na escola”. O que inicialmente nomeamos psicanálise em extensão, presentificada no ambiente escolar enquanto construção de espaços de escuta e fala dos sujeitos ali presentes, revela como a circulação da palavra pode promover transformações de questões antes consideradas impossíveis.

Por meio da aposta de atribuição do saber para resolução de problemas do meio aos próprios sujeitos que ali estão no dia a dia, pôde-se constatar que, quanto mais próximo à realidade em questão, maior conhecimento e ferramentas se têm para solucionar imprevistos ou entraves. A nós pesquisadores foi atribuído o papel de impulsionadores para o aparecimento dos sujeitos e de suas potências.

Nessa mesma perspectiva e direção opera o trabalho também na ONG Chega Junto, já que, também com o intuito de auxiliar no suporte às intervenções escolares, por meio do viés psicanalítico como base de trabalho, proporciona a oferta de um espaço em que a atuação dos profissionais envolve auxiliar quem ali chega para atendimento ou parceria a sustentarem seus desejos, direitos, sem serem suprimidos por burocracias ou discursos totalizantes.

Com relação aos efeitos do trabalho apresentado para os pesquisadores, além do aprimoramento de suas práticas e aprofundamentos no campo psicanalítico (seja por meio das supervisões ou através da própria atuação e troca nas instituições) e acadêmico, no decorrer da pesquisa, observa-se um engajamento no trabalho cada vez maior diante do movimento também mais autoral de cada pesquisador pela descoberta e manifestação de seus desejos e ideais com o trabalho.

A pesquisa levada a efeito no interior do estado do Rio de Janeiro, nas cidades de Mendes e Vassouras, descrita parcialmente neste artigo, fundamenta-se na aposta no sujeito (de desejo e de direitos) e na psicanálise articulada à educação, pois entende-se ser assim possível contribuir para mudanças nos espaços escolares e na produção acadêmica aliada a essa prática de intervenção.

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    Apostando no sujeito para a educação a partir da psicanálise.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    16 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    27 Jun 2020
  • Aceito
    31 Mar 2021
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