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Sessenta Anos da Profissão de Psicóloga(o) no Brasil: Percursos e Desafios

Sixty Years of Psychology in Brazil: Paths and Challenges

Sesenta Años de Profesión de Psicóloga/o en Brasil: Trayectoria y Desafíos

Neste número especial, alusivo aos sessenta anos da regulamentação da Psicologia como profissão no Brasil, convidamos todas, todos e todes a acompanhar pesquisas, análises e reflexões sobre trajetórias de nossa profissão nesse período. Conforme destacado no edital de convite a esta edição comemorativa, há seis décadas acompanhamos os percursos, percalços, avanços e desafios da Psicologia como ciência e profissão nas suas diferentes áreas de atuação e em diversos setores da sociedade. Cada vez mais, a psicologia brasileira vem conquistando destaque em diversas áreas, especialmente por sua ação técnico-científica e política em diversos campos estratégicos do marco público, tornando-se referência em diferentes políticas sociais, com destaques na assistência, na saúde mental e na avaliação psicológica, por exemplo. A Psicologia brasileira se implica crítica e crescentemente na defesa de direitos humanos, na luta contra opressões étnico-raciais, de gênero e de classe, assim como na garantia de direitos sociais. Notabiliza-se, nesse período, sua atuação nos espaços das políticas públicas, especialmente da saúde, assistência social, mobilidade humana, cultura, educação e segurança.

A proposta deste número especial é, sobretudo, destinada à reflexão quanto a práticas e saberes da Psicologia brasileira, articulando estes campos em uma análise das produções, reflexões e experiências com as perspectivas futuras da profissão no Brasil. Buscamos selecionar, dentre os artigos aqui publicados, aqueles que incluíram essa trajetória de 60 anos e que, a partir desse movimento, trouxeram o processo de produção das práticas psicológicas para o enfrentamento dos desafios atuais e futuros da sociedade.

De uma profissão inicialmente implicada com uma noção de sujeito e de campo prático alinhado com um projeto individualista e liberal, acompanhando as evoluções democráticas da sociedade brasileira, a Psicologia foi não apenas se envolvendo com uma nova perspectiva de sociedade, mas contribuindo ativamente na sua construção. Pode-se dizer que houve uma espécie de “giro político” em nossa ciência e profissão. Quando a psicologia foi regulamentada, estava imbuída de um forte caráter de disciplinarização e normalização, no sentido foucaultiano (Foucault, 1984Foucault, M. (1984). Vigiar e punir. Vozes.). Por exemplo, uma de suas funções privativas, prevista na Lei nº 4.119/1962, é a de “solução de problemas de ajustamento”, ou seja, capturar os “desvios” para adaptá-los às normas instituídas. Naquela época ainda havia o imaginário instituído de a Psicologia ser exercício de profissionais liberais.

Contudo, devido aos debates e campanhas fomentados pelo Sistema-Conselhos de Psicologia, em conjunto aos sindicatos de psicólogos a partir do fim da década de 1970, essas concepções começaram a se transformar (Hur, 2012Hur, D. U. (2012). Políticas da psicologia: Histórias e práticas das associações profissionais (CRP e SPESP) de São Paulo, entre a ditadura e a redemocratização do país. Psicologia USP, 23(1), 69-90. https://doi.org/10.1590/S0103-65642012000100004
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). Também foram vetores importantes dessas transformações os tensionamentos e as problematizações advindas dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil, que demandavam da psicologia deslocamentos não só políticos e técnicos, mas também teórico-epistêmicos - e, por consequência, metodológicos - com vistas a afirmar seu compromisso social na construção de formas de viver efetivamente democráticas e contra formas de opressão e violência das mais diversas (Barros, Benício, & Bicalho, 2019Barros, J. P. P., Benício, L. F. S., & Bicalho, P. P. G. (2019). Violências no Brasil: Que problemas e desafios se colocam à psicologia? Psicologia: Ciência e Profissão, 39(spe 2), 33-44. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225580
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).

Neste momento dos 60 anos da Psicologia, também se faz importante um exercício de memória para saber que esta tem uma história de muita luta e dedicação, que nos permitiram a conquista de uma sociedade mais democrática. Nesse sentido, o ativismo de psicólogas e psicólogos nos trouxe a possibilidade de visibilizarmos que essas lutas são necessárias, almejando que sejam empreendidas coletivamente e a partir de uma pluralidade de conhecimentos. Daqui em diante, temos de seguir na produção de práticas contextualizadas e potentes, que nos alicercem diante dos desmontes e desinvestimentos que estamos vivendo na maioria dos setores que trabalham em busca da igualdade social (Marques, Roberto, Gonçalves, & Bernardes, 2019Marques, C. F., Roberto, N. L. B., Gonçalves, H. S., & Bernardes, A. G. (2019). O que significa o desmonte? Desmonte do que e para quem? Psicologia: Ciência e Profissão , 39(spe2), 6-18. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225552
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).

Neste início de década, temos vivido em um contexto de ataque à democracia atravessado por disputas e polarização político-partidárias, fanatismo moral-religioso, mentiras propagadas virtualmente como notícias verdadeiras e a adoção de modelos econômico e de desenvolvimento que destroem a natureza e visam ao aumento da riqueza de poucos, desconsiderando as conquistas sociais de anos de luta da sociedade brasileira. Para o enfrentamento dessa situação, é importante a recuperação da memória histórica de lutas de nossa categoria e da prática de classe, como já sugeriu Martín-Baró (2017Martín-Baró, I. (2017). O latino indolente: Caráter ideológico do fatalismo latino-americano. In I. Martín-Baró, Crítica e libertação na psicologia: Estudos psicossociais (pp. 173-203). Vozes.) e que ainda continua uma recomendação bastante atual.

Os tensionamentos trazidos pelo contexto social desde o surgimento da Psicologia até o presente são necessários tanto em relação às práticas quanto aos referenciais teóricos, para que nos mobilizem não somente como categoria profissional ou campo acadêmico, mas como cidadãos implicados politicamente com o cuidado, com a urgência por condições básicas de vida e, principalmente, contrários às violências e à exposição da vida à morte. Necessitamos ter presente o fato de que as desigualdades e as opressões que existem em nossa sociedade não são causadas por apenas um marcador social de diferença, mas nas encruzilhadas de diversas opressões e desigualdades.

As entidades de Psicologia acompanharam o devir transformador dos movimentos históricos pela anistia e pela redemocratização do país (Conselho Regional de Psicologia - 6ª Região, 1994Conselho Regional de Psicologia 6ª região. (1994). Uma profissão chamada psicologia: CRP-06, 20 anos. Conselho Regional de Psicologia 6ª Região.), problematizando a função social e política da profissão, levantando a bandeira do compromisso social da Psicologia para a produção de outros mundos possíveis, que não fossem apenas o da normalização e o das crenças e valores das elites sociais. De uma profissão sobretudo de profissionais liberais, passa-se a debater a psicóloga como trabalhadora sujeita às mesmas vicissitudes da empregabilidade. De uma ciência e profissão comprometida com o status quo, em uma sociedade fundada a partir de uma matriz colonial e patriarcal que se reproduz continuamente, para uma ciência e profissão que se coloca na luta contra o racismo e as opressões de gênero, movimentando-se, para tanto, na direção de escuta de sujeitos, grupos e territorialidades historicamente alvos de práticas de subalternização, efetivando o diálogo com saberes silenciados e apagados.

Outra ocorrência importante a ser lembrada foi a participação institucional ativa dos profissionais de Psicologia com seu saber para a construção do Sistema Único de Saúde, que, por exemplo, iniciou uma trajetória de atividade social intensa na construção de pautas cidadãs e no projeto de uma sociedade mais equânime. Já nos anos 2000, a profissão teve participação protagonista na construção e implantação do Suas (Sistema Único de Assistência Social), que possibilitou uma intensa ampliação do atendimento psicossocial a parcelas da comunidade que não tinham acesso aos serviços psicológicos e, evidentemente, um aumento do mercado de trabalho para psicólogas, além de ter proporcionado novas problematizações na e à própria Psicologia também como campo de produção de conhecimentos (Oliveira, Rodrigues, Battisnelli, & Cruz, 2019Oliveira, E. C. S., Rodrigues, L., Battisnelli, B. M., & Cruz, L. R. (2019). Raça e política de assistência social: Produção de conhecimento em psicologia social. Psicologia: Ciência e Profissão , 39(spe2), 141-152. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225556
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).

Entretanto, as transformações da profissão não se restringem à transição de um “setting privado” à atuação nas diversas políticas públicas, e não se limitam ao âmbito das instituições concretas. A reflexão e crítica da Psicologia são radicais e contínuas, a tal ponto que a rotação do “giro político” da Psicologia continua. Começou-se a questionar os próprios fundamentos do “sujeito psicológico”, que grosso modo, é historicamente encarnado no rosto do homem-branco-civilizado de classe média (Deleuze & Guattari, 1996Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia vol. 3. Editora 34.). Dessa forma, nos últimos anos a Psicologia e seu “sujeito” se pluralizam e multiplicam, trazendo à tona as questões de gênero, da diversidade sexual, das minorias étnicas e raciais, dos povos originários, indígenas e de comunidades rurais e periféricas, visibilizando a problemática da dominação e do conflito de classes sociais. Portanto, nesse “giro político” da Psicologia assume-se uma inédita perspectiva decolonial, em que já estamos muito distantes do afã de solucionar problemas de ajustamento, e mais próximos do objetivo de potencializar as singularidades e diferenças dessas minorias que existem e insistem.

Um movimento importante, nesse sentido, é o de busca por novas epistemologias suleantes pela Psicologia brasileira - expressas por alguns artigos nesta coletânea - pelas quais se reconhece o valor dos saberes e modo de vida dos povos nativo americanos, que têm nos mostrado que apesar da colonização e dominação, houve resistência e consciência de que outra Psicologia e outro mundo são sim possíveis (Romero, Calegare, Gil, & Prieto, 2021Romero, L. E. L., Calegare, M., Gil, P. A. P., & Prieto, R. S. (2021). Veredas hacia las psicologías ancestrales nativoamericanas. In M. Calegare, R. S. Prieto, P. A. P. Gil, & L. E. L. Romero (Orgs.), Por los caminos de las psicologías ancestrales nativoamericanas vol. 1: Teoria, avances epistémicos y práxis comunales (pp. 27-49). EDUA; Alexa Cultural.). Isso implica, necessariamente, em reconhecer o lugar do sujeito com quem a psicóloga está lidando, que tem origem histórica, condição social, raça-etnia, gênero, idade, classe social, entre outras intersecções que possamos lhes atribuir. A partir desse reconhecimento, é possível gerar novos conhecimentos, teorias e técnicas à Psicologia brasileira.

Neste número especial, apresentamos quinze trabalhos que ilustram essa trajetória e propõem reflexões chave para o panorama atual - suas influências e campos emergentes - entendendo-os como marcos para uma leitura de nossa história, mas sobretudo, posições do presente que lançam pistas para os caminhos possíveis da profissão no futuro. Lançam-se à leitura produções de diferentes campos analíticos, territórios de práticas e afiliações institucionais e geográficas, distribuídos em dois eixos centrais.

O primeiro dos eixos é parte de uma análise mais focada na organização de nosso marco histórico e identitário. Estas propostas se caracterizam por textos que discutem nossa história, nossa crítica à nossa própria profissão e formação, e reflexões sobre campos estratégicos de nossos fazeres na sociedade brasileira, como a clínica, a avaliação psicológica e as análises institucionais.

No segundo eixo, mais dedicado à construção de nossa relação com a sociedade brasileira, os textos refletem o posicionamento da Psicologia brasileira frente a temas como a defesa dos direitos humanos, com ênfase na análise de nossa implicação nas políticas públicas, notadamente nas da infância e juventude, de assistência social, de gênero, sexualidade e saúde reprodutiva, de educação inclusiva e de direitos dos povos indígenas e outros povos tradicionais. Esses artigos retratam pesquisas e problematizações sobre o panorama ético, político, prático e acadêmico desses campos na psicologia brasileira das últimas décadas.

A Comissão Editorial agradece a todas as pessoas que submeteram as mais de noventa propostas para esse número comemorativo. Agradecemos a confiança e esperamos que suas reflexões possam figurar em outros números desta ou de outras publicações, contribuindo para o crescimento de um campo analítico de implicação da profissão - com nossa ciência e nossa sociedade. Além disso, esperamos que este número da Psicologia: Ciência e Profissão se some às celebrações pelos sessenta anos da regulamentação de nossa profissão no Brasil como um ponto de reflexão sobre nossos fazeres e saberes, com crítica e esperança no crescimento de uma área e profissão orientada pelo conhecimento, em defesa da cidadania e da dignidade das vidas humanas.

Boa leitura.

Referências

  • Barros, J. P. P., Benício, L. F. S., & Bicalho, P. P. G. (2019). Violências no Brasil: Que problemas e desafios se colocam à psicologia? Psicologia: Ciência e Profissão, 39(spe 2), 33-44. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225580
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  • Conselho Regional de Psicologia 6ª região. (1994). Uma profissão chamada psicologia: CRP-06, 20 anos. Conselho Regional de Psicologia 6ª Região.
  • Deleuze, G., & Guattari, F. (1996). Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia vol. 3. Editora 34.
  • Foucault, M. (1984). Vigiar e punir. Vozes.
  • Hur, D. U. (2012). Políticas da psicologia: Histórias e práticas das associações profissionais (CRP e SPESP) de São Paulo, entre a ditadura e a redemocratização do país. Psicologia USP, 23(1), 69-90. https://doi.org/10.1590/S0103-65642012000100004
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  • Marques, C. F., Roberto, N. L. B., Gonçalves, H. S., & Bernardes, A. G. (2019). O que significa o desmonte? Desmonte do que e para quem? Psicologia: Ciência e Profissão , 39(spe2), 6-18. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225552
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  • Martín-Baró, I. (2017). O latino indolente: Caráter ideológico do fatalismo latino-americano. In I. Martín-Baró, Crítica e libertação na psicologia: Estudos psicossociais (pp. 173-203). Vozes.
  • Oliveira, E. C. S., Rodrigues, L., Battisnelli, B. M., & Cruz, L. R. (2019). Raça e política de assistência social: Produção de conhecimento em psicologia social. Psicologia: Ciência e Profissão , 39(spe2), 141-152. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225556
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  • Romero, L. E. L., Calegare, M., Gil, P. A. P., & Prieto, R. S. (2021). Veredas hacia las psicologías ancestrales nativoamericanas. In M. Calegare, R. S. Prieto, P. A. P. Gil, & L. E. L. Romero (Orgs.), Por los caminos de las psicologías ancestrales nativoamericanas vol. 1: Teoria, avances epistémicos y práxis comunales (pp. 27-49). EDUA; Alexa Cultural.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    06 Jun 2022
  • Aceito
    06 Jun 2022
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