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Disputas em torno da Regulamentação da Profissão: A Psicologia em Defesa das Orientações Sexuais e Identidades de Gênero

Disputes around the Regulation of the Profession: Psychology in Defense of Sexual Orientations and Gender Identities

Disputas sobre la Regulación de la Profesión: La Psicología en Defensa de las Orientaciones Sexuales e Identidades de Género

Resumo

A normativa do Conselho Federal de Psicologia nº 1/1999, que estabelece normas de atuação para as(os) psicólogas(os) em relação à questão da orientação sexual, ao longo das últimas duas décadas tem sido objeto de investidas judiciais e legislativas para sustar seus efeitos. Foi observado também que a normativa CFP nº 01/2018, que se refere à atuação com pessoas transexuais e travestis, foi a mais rapidamente atacada após sua publicação, quando comparada aos mais de 1.500 atos oficiais publicados pelo Conselho Federal de Psicologia ao longo de sua história de quase 50 anos. E, mais recentemente, foi publicada uma normativa que trata da conduta profissional quanto às bissexualidades e demais orientações não monossexuais, a CFP nº08/2022. Este artigo tem como objetivo analisar os principais motivos das disputas e as estratégias construídas ao longo do processo de resistência pela Psicologia brasileira, em meio a tensões entre seu posicionamento, expresso pelas resoluções, e a sociedade.

Palavras-chave:
Psicologia; Orientação Sexual; Identidade de Gênero

Abstract

Normative no. 01/99 of the Federal Council of Psychology, which establishes standards of action for psychologists regarding the issue of sexual orientation, over the last two decades has been the object of legal and legislative attacks to suppress its effects. Moreover, the CFP normative no. 01/18, which refers to working with transgender individuals and travestis, was the most quickly attacked, when compared to the more than 1,500 official acts published by the Federal Council of Psychology throughout its history of almost 50 years. More recently, a normative law was published on the professional conduct regarding bisexualities and other non-monosexual orientations-CFP no. 08/22. This article analyses the main reasons for the disputes and strategies built along the resistance process by Brazilian Psychology, amidst tensions between its positions, expressed by the resolutions, and society.

Keywords:
Psychology; Sexual Orientation; Gender Identity

Resumen

El reglamento del Consejo Federal de Psicología 01/99 que establece estándares de acción para psicólogas/os en relación con relación al tema de la orientación sexual, durante las últimas dos décadas, ha sido objeto de ataques judiciales y legislativos para reprimir sus efectos. Además, se observó que el reglamento del CPF 01/18 que trata la práctica con las personas transexuales y travestis fue el más rápidamente atacado, entre los más de 1.500 actos oficiales publicados por el Consejo Federal de Psicología a lo largo de su historia de casi 50 años. Y, más recientemente, se publicó el reglamento, el CPF 08/22, que plantea la acción profesional en relación con las bisexualidades y otras orientaciones no monosexuales. Este artículo tiene como objetivo analizar las principales razones de disputas y las estrategias construidas por la Psicología Brasileña a lo largo del proceso de resistencia en medio de las disputas entre su postura planteada mediante las resoluciones y la sociedad.

Palabras clave:
Psicología; Orientación Sexual; Identidad de Género

Introdução

Em meio à efeméride dos 60 anos de regulamentação da profissão, cabe lembrar uma história de um pouco mais de duas décadas: em 22 de março de 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) expediu a Resolução nº 01, que “Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual” (CFP, 1999Conselho Federal de Psicologia (1999). Resolução n. 01/1999. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf
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, p. 1), que sofreu inúmeros ataques ao longo dos últimos anos, materializados por projetos de lei e ações judiciais cujo objeto de contestação se configura em torno da expressa proibição da promoção de tentativas de intervenção profissional sobre a orientação sexual, partindo de perspectiva patológica. Afirma-se, portanto, que não há cura para o que não é doença, nem reorientação para o que não é desvio. A resolução CFP nº 01/1999 é a resolução que mais sofreu ataques na história da regulamentação da Psicologia brasileira.

Publicada no dia 29 de janeiro de 2018, quase vinte anos após a nº 01/99, a resolução CFP nº 01/2018 “estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis” (CFP, 2018aConselho Federal de Psicologia (2018a). Resolução n. 01/2018. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf
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, p. 1). Essa resolução é fruto de diversas discussões no âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia e apresenta importantes afirmações ético-políticas acerca da transexualidade e da travestilidade, assim como de outros conceitos fundamentais para o debate acerca da despatologização das identidades trans e da garantia de autonomia de cada sujeito para a autodeterminação em relação às expressões e identidades de gênero. A data escolhida marca o dia da visibilidade trans, em alusão ao dia 29 de janeiro de 2004, em que um grupo de ativistas travestis e transexuais foi ao Congresso Nacional se manifestar em favor da campanha “Travesti é Respeito”, em um histórico ato político em favor do respeito à diversidade de identidades de gênero no Brasil. A resolução CFP nº 01/2018 é a resolução que mais rapidamente sofreu ataques na história da regulamentação da Psicologia brasileira: menos de uma semana após sua assinatura foi impetrada a primeira Ação Civil Pública questionando sua legitimidade.

E, no ano em que são comemorados os 60 anos de regulamentação, é publicada a resolução nº 08/2022, que “estabelece normas de atuação para profissionais da psicologia em relação às bissexualidades e demais orientações não monossexuais” (Resolução CFP 8, 2022Resolução n. 8, de 17 de maio de 2022. (18 maio 2022). Estabelece normas de atuação para profissionais da psicologia em relação às bissexualidades e demais orientações não monossexuais. Diário Oficial da União. https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Resolucao-CFP-008-2022-05-17.pdf
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, p. 1), em 18 de maio de 2022, dia internacional de luta contra a homofobia, transfobia e bifobia. A data foi escolhida porque, em 17 de maio de 1990, a Organização Mundial da Saúde (OMS) excluiu a homossexualidade da Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID).

Considerando os 1.705 atos oficiais (resoluções, portarias e instruções normativas) publicados pelo Conselho Federal de Psicologia; desde o primeiro, no dia 30 de abril de 1974, até o mais recente em relação à conclusão deste texto, publicado em 26 de maio de 2022, o ato oficial que mais sofreu ataques é exatamente a resolução que garante direitos a pessoas homossexuais. Por outro lado, o ato oficial que mais rapidamente foi atacado é a resolução que garante direitos a pessoas travestis e transexuais. Quais são as disputas, e por que são tão disputados, os posicionamentos acerca das orientações sexuais e identidades de gênero?

As duas resoluções, publicadas em um hiato cronológico de quase 20 anos, são marcadas por trajetórias de lutas e resistências. Em uma inspiração genealógica ao olhar para a história (Foucault, 1979Foucault, M. (1979). Microfísica do poder. Graal.), faz-se necessário perceber as condições para emergência das lutas e embates do presente. Este texto pretende analisar tensões que a resoluções estabelecem atualmente para a psicologia e a sociedade, e as disputas em torno do posicionamento oficial da Psicologia brasileira.

As resoluções CFP nº 01/1999, CFP nº 01/2018 e CFP nº 08/2022

O Conselho Federal de Psicologia, conforme previsto pela Lei Federal nº 5.766/1971, tem por obrigação fiscalizar, orientar e disciplinar o exercício profissional de psicólogas e psicólogos em território brasileiro. Uma das maneiras de cumprir suas funções é por meio da expedição de resoluções, que determinam os limites da ética profissional e, assim, posiciona a Psicologia brasileira frente a determinadas disputas. O Conselho Federal de Psicologia é a entidade que congrega o maior número de profissionais de psicologia no mundo. Pontua-se que as(os) mais de 420.000 psicólogas(os) brasileiros1 1 Dados atualizados em 08 de junho de 2022. Disponível em http://www2.cfp.org.br/infografico/quantos-somos contabilizados no ano dos 60 anos da regulamentação da profissão correspondem a mais de 20% desses profissionais em todo o planeta, estimados em cerca 2 milhões.

A Resolução 01/1999 foi elaborada após denúncias feitas pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) de práticas psicológicas com a promessa declarada de converter o desejo sexual da homossexualidade para a heterossexualidade (Cassal & Bicalho, 2011Cassal, L. C. B., & Bicalho, P. P. G. (2011). Homofobia & sexualidade: O medo como estratégia de biopoder. Revista de Psicologia da UNESP, 10(2), 57-64.). O CFP avaliou que não tinha instrumentos éticos para regular tal matéria e, por meio de debates públicos com profissionais, pesquisadores e militantes, elaborou a referida resolução, que “Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual” (CFP, 1999Conselho Federal de Psicologia (1999). Resolução n. 01/1999. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf
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, p. 1). Mais especificamente, o documento proíbe práticas de patologização, bem como a manifestação de discursos e a colaboração com eventos que favoreçam a estigmatização de pessoas. Vale destacar que a resolução atingiu imensa visibilidade, “pois ao mesmo tempo que essa resolução muito nos orgulha, por tudo aquilo que ela representa e afirma, ela também é a resolução mais atacada do Sistema Conselhos de Psicologia, ao longo desses 20 anos”2 2 Fala de Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, autor deste texto, na qualidade de membro da Diretoria do Conselho Federal de Psicologia, em cerimônia de comemoração dos 20 anos da resolução 01/99. (CFP, 2019aConselho Federal de Psicologia (2019a). Resolução 01/99 completa 20 anos. CFP. https://site.cfp.org.br/resolucao-01-99-completa-20-anos/
https://site.cfp.org.br/resolucao-01-99-...
, n. p.). A resolução foi questionada em diferentes instâncias.

Em 2010 - um ano após a realização de eventos em todo o país com a finalidade de visibilizar a resolução que à época completava 10 anos - foi interposto um mandado de segurança, no âmbito do processo 024170-41.2009.4.01.3400, alegando inconstitucionalidade da Resolução. Em 2011, o Projeto de Decreto Legislativo 234 intentou sustar os efeitos da resolução, sob a justificativa de que “ao restringir o trabalho dos profissionais e o direito da pessoa de receber orientação profissional, por intermédio do questionado ato normativo, extrapolou o seu poder regulamentar” (Campos, 2011Campos, J. (2011). Projeto de decreto legislativo nº 234. Câmara dos deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=505415
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
, p. 2). Ainda em 2011, o Ministério Público Federal (MPF) propôs a Ação Civil Pública 0018794-17.2011.4.02.5101, solicitando anulação da Resolução, sob a alegação de que o CFP exorbitou do poder regulamentar, violando inúmeros princípios e regras constitucionais, como o da legalidade, o direito fundamental ao livre exercício profissional, o princípio da dignidade da pessoa humana e a liberdade de manifestação do pensamento, entre outros. O pedido de antecipação dos efeitos de anulação foi feito pelo MPF, pois entendeu que a Resolução causaria danos para psicólogas e psicólogos - que estariam impedidos de exercer a profissão livremente -, e para os homossexuais que voluntariamente pudessem procurar auxílio psicológico para se afirmar como heterossexuais, por estarem insatisfeitos com sua orientação. Essa ação foi retirada de tramitação, pois o julgamento foi em favor da perfeita legalidade da resolução.

Posteriormente, em 2014, o Projeto de Decreto Complementar nº 1.457/2014 dispôs sustar os efeitos da resolução, sob a justificativa de que a normativa declara que a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão. Para o autor do decreto, este seria posicionamento político, sem base científica e que desconsideraria substanciais estudos no campo da Psicologia e da Psicanálise que indicariam o contrário. Afirma, ainda, que a resolução teria por objetivo perseguir psicólogos ligados a grupos religiosos que oferecem tratamento para o dito “homossexualismo [sic]” (Eurico, 2014Eurico, P. (2014). Projeto de decreto legislativo n. 1.457. Câmara dos deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=611176
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
, p. 3). Em 2016, o Projeto de Lei nº 4.931 propôs autorizar o profissional de saúde mental a atender e aplicar terapias e tratamentos visando auxiliar a mudança da orientação sexual, deixando o paciente de ser homossexual para ser heterossexual, desde que corresponda ao seu desejo. Tal lei anularia os efeitos da Resolução nº 01/1999.

Ainda em 2016, o Projeto de Decreto Legislativo da Câmara (PDC) nº 539 pede a sustação dos efeitos da Resolução nº 01/1999 do CFP, com a justificativa de que, por meio desta, o Conselho Federal de Psicologia estaria arrogando para si competência do congresso nacional e direito de legislar, sob o manto da Lei nº 5.766, de 20 de dezembro de 1971, rompendo assim os direitos fundamentais. O PDC teve por objetivo supostamente estabelecer e conservar a competência do congresso nacional alegando que a referida competência vem sendo usurpada por poderes que não têm como atividade típica a alteração de normas legais (Cassal, Bello, & Bicalho, 2019Cassal, L. C. B., Bello, H. L., & Bicalho, P. P. G. (2019). Enfrentamento à LGBTIfobia, afirmação ético-política e regulamentação profissional: 20 anos da resolução CFP no 01/1999. Psicologia: Ciência e Profissão, 39(spe3), 113-128. https://doi.org/10.1590/1982-3703003228516
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

Finalmente, em 2017, um grupo (composto por 22 psicólogas e um psicólogo) entrou com a ação popular 1011189-79.2017.4.01.3400, com pedido de liminar objetivando a suspensão dos efeitos da resolução. Alegavam que ela seria um ato de censura, que impediria os psicólogos de desenvolverem estudos, atendimentos e pesquisas científicas acerca dos comportamentos e práticas homoeróticas; constituindo, assim, um ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do País. Tal ação, acatada pelo Juiz Federal da 14ª Vara (Distrito Federal), Waldemar Claudio de Camargo, resultou em liminar e posterior sentença que descaracterizou a resolução, pois apesar de mantê-la na íntegra, a decisão judicial determinou ao CFP que a interpretasse de modo a não proibir a prática psicológica de reorientação sexual para “egodistônicos que desejassem tal mudança”. Tal decisão foi mantida até o mês de abril de 2019, quando liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) em favor de pedido de reclamação do CFP desfez os efeitos da sentença. Em maio de 2019 foram convocados para um evento realizado no Senado Federal, e transmitido em rede nacional pela TV Senado3 3 https://www.youtube.com/watch?v=AOSxWDxLpm8 , os dois polos da disputa. De um lado Rozângela Alves Justino, com reconhecida liderança entre os 23 profissionais de Psicologia que ingressaram com a ação civil pública de 2017, que se autointitulava “psicóloga cristã”, com históricas práticas que a resolução proíbe, e do outro lado Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, à época diretor do Conselho Federal de Psicologia, quem assina este texto.

Em janeiro de 2020, enfim, ocorre a confirmação da liminar; com a decisão sentenciada de que somente ao Supremo Tribunal Federal cabe questionar resoluções federais de conselhos profissionais. Vitória da Psicologia, vitória da diversidade.

É importante assinalar que a Resolução nº 01/1999 foi a primeira regulamentação do CFP sobre essa matéria. Entretanto, o Código de Ética Profissional vigente, promulgado por meio da resolução nº 10/2005 do Conselho Federal de Psicologia, incorporou a mesma orientação daquele documento. Especificamente, o artigo 2º veda a pessoas profissionais de psicologia: “b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais” (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional - Resolução CFP n. 10/05. CFP., p. 9).

Além disso, em conformidade com decisões de Congressos Nacionais da Psicologia (CNP), nos últimos anos o CFP construiu e promulgou resoluções para garantia do direito às identidades de gênero de pessoas trans. Para psicólogas e psicólogos, a Resolução nº 14/2011 estabeleceu a possibilidade de inclusão do nome social na Carteira de Identidade Profissional (CIP) no campo “observação”, e seu uso em materiais de divulgação (CFP, 2011bConselho Federal de Psicologia (2011b). Resolução n. 14/2011. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2011/06/resolucao2011_014.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
). Essa solução, bastante limitada por manter o nome de registro civil em destaque, foi aperfeiçoada com a Resolução nº 10/2018, que cria um campo na CIP para o nome social, ao lado da fotografia da(o) psicóloga(o), além de garantir seu uso e o reconhecimento da identidade de gênero autodeterminada em todos os procedimentos e espaços do Sistema Conselhos de Psicologia (CFP, 2018bConselho Federal de Psicologia (2018b). Resolução n. 10/2018. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/04/SEI_CFP-0037173-Resolu%C3%A7%C3%A3o.pdf
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). E, no ano de 2022, pela primeira vez foi elaborada política de reserva de vagas para a composição de chapas com vistas às eleições dos Conselhos Regionais e Federal de Psicologia, com uma das categorias a ser preenchida por pessoas trans, juntamente com duas outras, em 10% de todas as chapas a serem organizadas.

De forma mais ampla, o CFP estabeleceu a diretriz ética na atuação profissional da psicologia com pessoas travestis e transexuais por meio da Resolução nº 01/2018. Com perspectiva similar à 01/1999, esse documento proíbe práticas de patologização e discriminação, e exige de profissionais o enfrentamento da transfobia e do preconceito.

Publicada no dia 29 de janeiro de 2018, a resolução CFP nº 01/2018 “estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis” (CFP, 2018Conselho Federal de Psicologia (2018a). Resolução n. 01/2018. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
, p. 1). Essa resolução é fruto de diversas discussões no âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia, e apresenta importantes afirmações ético-políticas acerca da transexualidade e da travestilidade, assim como de outros conceitos fundamentais para o debate acerca da despatologização das identidades trans e da garantia de autonomia de cada sujeito para a autodeterminação em relação às expressões e identidades de gênero. O texto da resolução é voltado ao exercício profissional das psicólogas e psicólogos e prevê práticas contrárias ao preconceito e à discriminação de pessoas transexuais e travestis:

Ainda, apresenta-se como importante instrumento normativo de recusa à transfobia, deslocando epistemologicamente a problemática do sofrimento das pessoas travestis e transexuais do registro individual (sofrimento intrapsíquico) para o registro do laço social (a transfobia como motor do sofrimento por meio dos efeitos do preconceito na deterioração dos vínculos sociais e institucionais). (Lionço, 2018Lionço, Tatiana. (2 fev. 2018). Autonomia e autodeterminação da psicologia brasileira: O caso da Resolução CFP 01/2018. UnB Notícias. https://www.noticias.unb.br/artigos-main/2057-autonomia-e-autodeterminacao-da-psicologia-brasileira-o-caso-da-resolucao-cfp-01-2018
https://www.noticias.unb.br/artigos-main...
, para. 1).

Temos, portanto, um documento histórico que faz da Psicologia brasileira uma importante aliada às lutas trans. O dia escolhido para a publicação dessa Resolução não foi ao acaso: dia 29 de janeiro é quando se comemora o “Dia da Visibilidade Trans”, marcando, portanto, uma data de luta pelas pessoas transexuais e travestis para garantir acesso aos direitos fundamentais que ainda são costumeiramente negados a esse grupo no nosso país.

Contudo, alguns dias depois da publicação dessa resolução do CFP, o Ministério Público Federal de Goiás (MPFGO) entrou com uma Ação Civil Pública com vistas a suspender o documento sob a principal alegação de cerceamento ao exercício profissional, que extrapola as competências de um conselho de classe. A manifestação inicial do CFP se deteve no formalismo jurídico para afirmar que uma Ação Civil Pública não é o instrumento adequado para esse tipo de pedido, argumentação que foi acatada pelo juiz federal, portanto não houve discussão sobre o conteúdo apresentado pelo MPFGO. Uma aparentemente nova (e insistente) ação foi iniciada pelo mesmo Procurador da República, também como uma Ação Civil Pública, até o fechamento deste texto ainda não analisada pelo Judiciário.

O principal argumento apresentado na Ação Civil Pública é o de que a Resolução do CFP “feriu a liberdade do exercício profissional e de expressão intelectual, científica e comunicativa dos psicólogos”, que estaria prevista na Constituição Federal como Direito Fundamental e que só poderia sofrer modificação por lei. Assim, há um questionamento acerca das possibilidades de atuação e de construção de normativas por parte de um conselho de classe; a autonomia e a autodeterminação do próprio Conselho Federal de Psicologia foi posta em questão a despeito de toda uma produção acadêmica da Psicologia no Brasil sobre essas temáticas (Lionço, 2018Lionço, Tatiana. (2 fev. 2018). Autonomia e autodeterminação da psicologia brasileira: O caso da Resolução CFP 01/2018. UnB Notícias. https://www.noticias.unb.br/artigos-main/2057-autonomia-e-autodeterminacao-da-psicologia-brasileira-o-caso-da-resolucao-cfp-01-2018
https://www.noticias.unb.br/artigos-main...
).

Ainda na esteira dessa argumentação inicial, apresenta-se a falaciosa ideia de que pessoas transexuais e travestis que buscam profissionais de Psicologia terão acesso negado a partir do entendimento desta resolução. Há, portanto, uma inversão do discurso: utilizando-se de uma premissa relacionada ao cuidado e à importância da atuação da Psicologia, afirma-se que estes profissionais não poderão atender às demandas que lhe são apresentadas pelas pessoas transexuais e travestis. Discursos semelhantes que fundamentam os questionamentos à resolução CFP 01/1999.

Toda a argumentação da ação baseia-se no discurso da liberdade de expressão e de exercício profissional que estaria sendo violada pelo Conselho Federal de Psicologia a partir da resolução. O texto do processo ignora a principal questão da resolução que é coibir a produção de discurso de ódio e vale-se de duas estratégias 1) não fazer menção alguma aos motivos pelos quais a resolução justifica a si mesma em seu corpus textual e 2) valer-se de um ideal universal de liberdade que, propositalmente, ignora que há grandes diferenças entre livre reprodução de discriminação e fomento a discursos de ódio, e liberdade intelectual e profissional na elaboração e oferta de cuidados específicos. (Cavalcanti, Carvalho, & Bicalho, 2018Cavalcanti, C. S., Carvalho, M. W. V., & Bicalho, P. P. G. (2018). A estranha liberdade de odiar: Uma análise do processo de ação civil pública contra a resolução 01/2018 do Conselho Federal de Psicologia. Periódicus, 1(10), 231-249. https://doi.org/10.9771/peri.v1i10.27943
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, pp. 242-243).

Afirmando a necessidade de discutir desde dentro do nosso próprio campo de saber e construir produções autônomas de uma perspectiva de trabalho que não seja inteiramente pautada na psiquiatria, alguns campos da psicologia vêm se constituindo como espaços de produção de contradiscursos, que partindo dos saberes psi (psiquiatria, psicologia, psicanálise) questionam a violenta imposição normativa dos processos de patologização das diferenças, historicamente efetuados por esses saberes (Arán, 2009Arán, M. (2009). A psicanálise e o dispositivo da diferença sexual. Estudos Feministas, 17(3), 653-673. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2009000300002
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
).

Contudo, apesar das batalhas discursivas ganhas por hora, cabe reafirmar que, dentre todas as resoluções produzidas pelo Conselho Federal de Psicologia, justamente a resolução CFP nº 01/1999, talvez o único documento no país que regulamenta a proibição e aponta a ineficácia de “terapias de reorientação sexual para gays e lésbicas”, figura como a que mais sofreu ataques nos campos jurídico e legislativo. Ao que vemos, uma resolução específica direcionada à população trans, que atenta para a necessidade de despatologização das práticas psi, para o respeito às autodeterminações de gênero e que aponta para o caráter estrutural das cisnormatividades, incomoda profundamente projetos fundamentalistas que buscam na psicologia ferramentas de controle das dissidências.

Acreditamos na potência do diálogo como forma de potencialização das diferenças, porém, quando nos deparamos com os dados alarmantes de toda a violência a que a população LGBTQI+ é exposta no Brasil (Cassal, Garcia, & Bicalho, 2011Cassal, L. C. B., Garcia, A. M., & Bicalho, P. P. G. (2011). Psicologia e o dispositivo da sexualidade: Biopolítica, identidades e processos de criminalização. Psico, 42(4), 465-473.), entendemos o caráter urgente de, paralelamente aos diálogos com a população mais ampla, estabelecer marcos normativos que impeçam que a psicologia continue a ser instrumento de opressão e naturalização de discriminações e discursos de ódio (Cavalcanti, Barbosa, & Bicalho, 2018Cavalcanti, C. S., Barbosa, R. B., & Bicalho, P. P. G. (2019). Os tentáculos da tarântula: Abjeção e necropolítica em operações policiais a travestis no Brasil pós-redemocratização. Psicologia: Ciência e Profissão , 38(spe2), 175-191. https://doi.org/10.1590/1982-3703000212043
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
). Desse modo, reafirmando o caráter político e administrativo do conselho profissional como espaço de orientação e fiscalização das práticas de profissionais de psicologia, entendendo que historicamente pessoas LGBTQI+ vêm sendo vítimas dos mais variados discursos homofóbicos, lesbofóbicos, bifóbicos e transfóbicos em todos os campos profissionais, resoluções como a nº 01/1999, nº 01/2018 e nº 08/2022 se fazem ainda necessárias na garantia de alguma proteção, respeito e humanização de vidas historicamente tidas como abjetas.

Em junho de 2020, o CFP participou do webinário “Resistência Bissexual e Lésbica e o Feminismo contra o Neofascismo”, atividade que ocorreu durante a Semana do Orgulho e Resistência LGBTQI+. Na ocasião, coletivos do movimento político bissexual entregaram à representante do CFP uma nota com estudos acadêmicos sobre a bissexualidade, solicitando posicionamento sobre a necessidade de um atendimento livre de bifobia e uma proposta de diretriz e resolução para uma prática psicológica antibifóbica. O pedido foi pauta de discussão na 21ª Reunião Plenária, tendo sido aprovada a realização de um webinário sobre o tema, que ocorreu no dia 13 de novembro de 2020, especialmente para as(os) conselheiras(os) federais. Diante do pleito dos Coletivos que assinaram a nota, e considerando as questões pontuadas, em junho de 2021 a Plenária do CFP aprovou o encaminhamento da solicitação de elaboração de uma normativa sobre a atuação dos(as) psicólogos(as) em relação à bissexualidade, para apreciação e deliberação da Assembleia das Políticas, Administração e Finanças (Apaf) do Sistema Conselhos de Psicologia.

A Apaf foi realizada nos dias 25 e 26 de junho de 2021, e aprovou que o Grupo de Trabalho (GT) Diversidade Sexual sistematizasse uma normativa sobre a atuação das(os)(es) psicólogas(os)(es) em relação à bissexualidade. Já na primeira reunião do GT após a assembleia, elencou-se a construção da normativa como tarefa prioritária. O GT fez diversas reuniões para construir a normativa. Finalizada a tarefa, apresentou o texto para a Apaf, que aprovou o documento por unanimidade, nos dias 29 e 30 de abril de 2022. As presidentes e os presidentes dos Conselhos Regionais de Psicologia (CRP), reunidos em Brasília, solicitaram ao CFP que a resolução fosse publicada no dia 17 de maio.

O contexto que insiste na heteronormatividade e na cisgeneridade compulsórias

É importante identificar alguns contextos que fazem com que as Resoluções nº 01/1999, nº 01/2018 e nº 08/2022 sejam muito relevantes para a Psicologia e para as afirmações no campo de Direitos Humanos. Vale ressaltar que os ataques que as Resoluções nº 01/1999 e nº 01/2018 sofreram (e sofrem) foram e são marcados fortemente por motivação religiosa de sujeitos fundamentalistas.

Em 2019, no dia 28 de junho, o Conselho Federal de Psicologia publicou o livro Tentativas de Aniquilamento das Subjetividades LGBTI (CFP, 2019bConselho Federal de Psicologia (2019b). Tentativas de aniquilamento de subjetividades LGBTI. CFP.). Com esse trabalho, destacamos que as práticas que tentam reorientar o que não se apresenta sob a normativa heterossexual e cisgênera se configuram como práticas de tortura. Isso é verificado, ainda, no Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas, publicado em 2011 (CFP, 2011aConselho Federal de Psicologia (2011a). Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2011. CFP.)4 4 Dois anos após a publicação do relatório foi realizada uma grande reportagem jornalística, junto ao coordenador desta inspeção (que é o autor deste texto) e publicada no jornal O Globo, a fim de verificar o uso das denominadas comunidades terapêuticas com fins de “cura gay”. Para conferir: https://oglobo.globo.com/brasil/clinicas-prometem-tratamento-de-cura-gay-9113264 , ratificado no Relatório de Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas de 2017, realizado pelo Conselho Federal de Psicologia, em parceria com o Ministério Público Federal (MPF) e o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) (CFP, MNPCT & MPF, 2018Conselho Federal de Psicologia, Ministério Público Federal & Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (2018). Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relatorio-da-inspecao-nacional-em-comunidades-terapeuticas_web.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
). Ainda em 2019 a revista Psicologia: Ciência e Profissão, mantida pelo Conselho Federal de Psicologia, publicou o número especial “O Lugar da Psicologia frente às orientações sexuais e identidades de gênero”, com 19 artigos, tendo como finalidade

. . . afirmar o compromisso ético-político da Psicologia no cenário nacional no enfrentamento às violências dirigidas às pessoas LGBTs, dando visibilidade às produções acadêmicas que demonstram o desenvolvimento da ciência psicológica em direção à proteção e aos cuidados que garantam a dignidade, a autonomia e a emancipação das pessoas com orientações sexuais e identidades de gênero que fogem ao padrão cis-heteronormativo. (Cavalcanti, Bicalho, & Sposito, 2019Cavalcanti, C. S., Bicalho, P. P. G., & Sposito, S. E. (2019). O lugar da psicologia frente às orientações sexuais e identidades de gênero. Psicologia, Ciência e Profissão, 29(spe), 3-5. https://doi.org/10.1590/1982-3703000062019
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
, p. 3).

As práticas que tentam reverter orientações e identidades se configuram como práticas de tortura por violarem direitos humanos, por utilizarem de ameaça, força, constrangimento, violência e gerarem danos físicos e psíquicos. Temos um pequeno vislumbre dessa situação no contexto dessas Comunidades Terapêuticas que, em sua maioria, são evangélicas ou de motivação evangélica ou católica. Há evidências de tentativas de reorientação da homossexualidade, desconsideração da diversidade sexual, e repressão da expressão das sexualidades, por vezes associando homossexualidades, bissexualidades, travestilidades e transexualidades à ideia de pecado (CFP et al., 2018Conselho Federal de Psicologia, Ministério Público Federal & Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (2018). Relatório da inspeção nacional em comunidades terapêuticas - 2017. CFP. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/06/Relatorio-da-inspecao-nacional-em-comunidades-terapeuticas_web.pdf
https://site.cfp.org.br/wp-content/uploa...
).

De fato, conforme elaboram Dunker e Kyrillos (2010Dunker, C. I. L., & Kyrillos, F., Neto. (2010). Curar a homossexualidade? A psicopatologia prática do DSM no Brasil. Revista Mal-Estar e Subjetividade, 10(2), 425-446.), uma ação social estigmatizante e o contexto político preconceituoso sobre gênero e sexualidade produzem angústia em sujeitos que se percebem dissidentes à heteronormatividade, o que pode gerar vários efeitos psíquicos de sofrimento. Sawaia (1999Sawaia, B. B. (1999). As artimanhas da exclusão: Análise psicossocial e ética da desigualdade social. Vozes.) caracterizou como “sofrimento ético-político” os afetos experimentados pela dor de habitar um espaço hostil a um determinado modo de existência. No entanto, alguns psicólogos com motivações religiosas propõem utilizar o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) e o CID5 5 Vale destacar que o DSM III (de 1987) e o CID 11 (de 2018) retiraram a “orientação sexual egodistônica” da lista de categorias patológicas. para justificar suas práticas, produzindo uma pseudociência em que a saída para esse sofrimento seria a modificação da orientação homossexual.

Além disso, o psicólogo cognitivista espanhol Jiménez Díaz (2012Jiménez Díaz, R. (2012). La génesis de las parafilias sexuales y la homosexualidad egodistónica: El modelo de los mecanismos tensionales. Avances en Psicología Latinoamericana, 30(1), 146-158.) pesquisou pessoas que apresentam desconforto com suas orientações homossexuais e constatou que toda tentativa de reversão da homossexualidade gerava efeitos iatrogênicos em seus pacientes. Por isso, é dever da Psicologia promover uma análise sobre os contextos sociais e políticos que produzem sofrimento. A tentativa de modificação das orientações homossexuais só se sustentaria em contextos religiosos fundamentalistas que não se baseiam na produção ética, laica e científica da Psicologia.

O exercício profissional irregular em psicologia não pode ser justificado por mera discordância com as normas vigentes: elas devem ser disputadas politicamente por meio dos processos democráticos do Sistema Conselhos de Psicologia (definição de prioridades no Congresso Nacional da Psicologia - CNP) e embasadas técnica e cientificamente por meio de pesquisa teórica e experimental, regulada pelas resoluções de ética em pesquisa com seres humanos - nº 466/2012 e nº 510/2014 do Conselho Nacional de Saúde. Dessa feita, a Resolução CFP nº 01/1999 se mostra eficiente na manutenção da ética e da ciência psicológicas por proibir práticas de tortura com motivações religiosas. Em outras palavras, essas práticas não apresentam embasamento teórico psicológico; portanto não podem ser enquadradas como parte desse exercício profissional. Além disso, produzem efeitos que violam direitos humanos, gerando sofrimento e adoecimento psíquico, ferindo a possibilidade de uma ética profissional comprometida com a produção de saúde.

Breves Considerações

O que as resoluções CFP nº 01/1999, nº 01/2018 e nº 08/2022 buscam enfrentar é o regime de verdade que torna legítimo, ou ao menos aceitável, a violência (discursiva, física e institucional) contra a população LGBTQI+, a ponto de ser, hoje, um fato recorrente e corriqueiro. Desse modo, enquanto psicologia, discursos e falas de destruição não pertencem ao nosso campo legítimo de exercício profissional.

Os segmentos da sociedade brasileira que advogam pela manutenção dos padrões heteronormativos têm atuado no sentido de sustar e retirar os marcos legais e jurídicos que garantiram os avanços de direitos e cidadania da população LGBTQI+, entre eles a Resolução CFP nº 01/1999 e a Resolução CFP nº 01/2018.

Tais segmentos, que defendem que o que não é heterossexual e cisgênero deve ser tratado como patologia ou desvio, se alicerçam em concepções que remontam a amálgamas de visões fundamentalistas de algumas vertentes religiosas, ou ainda versões (também) fundamentalistas da ciência médica e psicológica, além de visões conservadoras das relações sociais. São posturas calcadas numa lógica de naturalização da heterossexualidade e da cisgeneridade como padrões a serem seguidos, visando garantir um projeto de sociedade que diminua o espaço de cidadania e direitos para pessoas que vivenciam diversidades de expressões de gênero e orientação sexual.

Entende-se que a LGBTIfobia é um processo de estigmatização que incorre em violação de direitos, como efeito de representações de inferiorização, patologização e mesmo desumanização, que recaem sobre sujeitos cuja orientação sexual e expressão de gênero não estão em conformidade com os estereótipos da cis-heteronormatividade (Petry & Meyer, 2011Petry, A. R., Meyer, D. E. E. (2011). Transexualidade e heteronormatividade: Algumas questões para a pesquisa. Textos & Contextos, 10(1), 193-198.; Vergueiro, 2015Vergueiro, V. (2015). Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: Uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal da Bahia].). O preconceito é o dispositivo que promove a manutenção do sofrimento. Dessa forma, não é a condição existencial de ser LGBTQI+ que gera o sofrimento, mas sim as vivências de exclusão e marginalização causadas pela discriminação.

As violências lesbofóbica, homofóbica, bifóbica, travestifóbica e transfóbica, no Brasil, se manifestam nos diversos espaços sociais - intrafamiliar, escolar, religioso e laboral - por meio de estigmatizações; evasão escolar; rejeição social e familiar; perda de vínculos nos espaços religiosos; e dificuldade de acesso e permanência no mercado de trabalho (Cassal & Bicalho, 2008Cassal, L. C. B., & Bicalho, P. P. G. (2008). “Não importa ser ou não ser, importa parecer”: Pistas sobre violência homofóbica e educação. In A. Bortolini (Org.), Diversidade sexual e de gênero na escola: Educação, cultura, violência e ética (pp. 78-93). Pró-Reitoria de Extensão/UFRJ.).

A construção sociocultural da LGBTIfobia e suas expressões violentas são fenômenos complexos, e o envolvimento e a prática da Psicologia podem (e devem) contribuir para sua diminuição. Deverão, a psicóloga e o psicólogo, ter como princípio o respeito à livre orientação sexual dos indivíduos e apoiar a elaboração de formas de enfrentamento no lidar com as realidades sociais de maneira integrada. Isso porque a questão da orientação sexual, como expressão do direito humano, se distancia radicalmente de conceitos de cura e doença, desvio e reorientação.

A despatologização é a reparação de um grave erro histórico, que produziu estigmatização, sofrimento e violência. A 01/1999, a 01/2018 e a 08/2022 corroboram, de fato, com tal sentido político. As resoluções, já nacional e internacionalmente reconhecidas, podem vir a sofrer alguma restrição por instituições exteriores ao Sistema Conselhos, como houve anteriormente. Entretanto, a experiência da psicologia em nome da despatologização das orientações sexuais e identidades de gênero está marcada nos profissionais, na produção de conhecimento e na sociedade. Além disso, o Código de Ética Profissional (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005). Código de Ética Profissional - Resolução CFP n. 10/05. CFP.) defende e promove os direitos humanos de forma geral e, especificamente, veta que profissionais induzam convicções de orientação sexual, que podemos entender como as práticas de tentativa de reversão da homossexualidade, e veta que profissionais induzam convicções de identidade de gênero, que podemos entender como as práticas de tentativa de reversão da transexualidade. Isso porque a Psicologia brasileira tem histórias e memórias de décadas de lutas.

Em 1999, a proibição de práticas e procedimentos de reorientação sexual na psicologia foi avaliada como necessária e estratégica. Mais de vinte anos depois, percebemos que ela continua importante e objeto de disputa, mas também reconhecemos que é insuficiente. Afinal, a resolução CFP nº 01/1999 é o marco de um projeto ético e político, a ser defendido, do que queremos para a psicologia: rigor técnico, fundamentação científica, impacto social e garantia de direitos. Projeto reafirmado com a resolução nº 01/2018 e com a resolução nº 08/2022.

Encerramos enfim, com Cavalcanti, Carvalho e Bicalho (2018Cavalcanti, C. S., Carvalho, M. W. V., & Bicalho, P. P. G. (2018). A estranha liberdade de odiar: Uma análise do processo de ação civil pública contra a resolução 01/2018 do Conselho Federal de Psicologia. Periódicus, 1(10), 231-249. https://doi.org/10.9771/peri.v1i10.27943
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), inspirados em Michel Foucault:

Por fim, atentarmos para a gravidade que atravessa a proliferação institucional de discursos vazios fundamentados em verdades construídas a partir de discursos de ódio. Nos cabe ao fim lembrar das precauções de Michel Foucault quando em Os Anormais aponta que “e os discursos de verdade que fazem rir e que tem o poder institucional de matar são, ao fim das contas, numa sociedade como a nossa, discursos que merecem um pouco de atenção” (Foucault, 2010, p. 7). (p. 191).

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  • 2
    Fala de Pedro Paulo Gastalho de Bicalho, autor deste texto, na qualidade de membro da Diretoria do Conselho Federal de Psicologia, em cerimônia de comemoração dos 20 anos da resolução 01/99.
  • 3
  • 4
    Dois anos após a publicação do relatório foi realizada uma grande reportagem jornalística, junto ao coordenador desta inspeção (que é o autor deste texto) e publicada no jornal O Globo, a fim de verificar o uso das denominadas comunidades terapêuticas com fins de “cura gay”. Para conferir: https://oglobo.globo.com/brasil/clinicas-prometem-tratamento-de-cura-gay-9113264
  • 5
    Vale destacar que o DSM III (de 1987) e o CID 11 (de 2018) retiraram a “orientação sexual egodistônica” da lista de categorias patológicas.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    09 Jun 2022
  • Aceito
    09 Jun 2022
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