Acessibilidade / Reportar erro

Por uma Pesquisa e Escrita Parafusos: Pulos, Rodopios e Invenções de Si

For Research and Writing Screws: Jumps, Twirls and Inventions of Self

Para Tornillos de Investigación y Escritura: Saltos, Giros e Autoinvenciones

Resumo

O artigo parte da aposta na pesquisa como uma prática em movimento, na composição de territórios do ato de pesquisar como uma experiência. Inspiradas(os) na força disruptiva do torcer-retorcer dos Parafusos (folguedo sergipano, derivado de práticas de resistência à escravidão dos povos pretos), propomos um método-pensamento de inventar modos de ver, dizer e narrar a partir daquilo que está ao nosso redor, uma posição em relação ao mundo e a si mesmo, engendrando a ideia de que este mundo não é um dado, mas um efeito de nossas práticas. A partir dessa perspectiva, intentamos interpelar as próprias práticas discursivas e não discursivas da Psicologia, em favor de abrir trilhas nas quais esse saber possa refundar sua própria história, acentuando suas descontinuidades e heterogeneidades e, com isso, uma atitude de fazer frente às tendências colonialistas, agora em suas versões neoliberais. Esse modo de pesquisar se faz por: operar uma ideia-método genealógico-cartográfica e uma escrita polifônica; produzir máquinas de guerras nômades, minoritárias, pós-identitárias, decoloniais; e inventar com aquilo que está ao nosso redor em favor de saberes e fazeres das redes locais, que, tais como a planta mangabeira, não se deixam domesticar.

Palavras-chave:
Psicologia; Pesquisa; Escrita; Experiência; Invenção

Abstract

The article starts from the research as a moving practice; in the composition of territories of the act of researching as an experience. Inspired by the disruptive force of the twisting-twining of the Screws (revelry from Sergipe, derived from practices of resistance to the slavery of black people), we propose a thought-method of inventing ways of seeing, saying, and narrating from what is around us, a position in relation to the world and itself, engendering the idea that this world is not a given, but an effect of our practices. From this perspective, we try to question the very discursive and non-discursive practices of Psychology, in favor of opening trails, in which this knowledge can refund its own history, accentuating its discontinuities and heterogeneities and, thus, an attitude of facing the colonialist tendencies, now in their neoliberal versions. This way of searching is done by: operating a genealogical-cartographic idea-method and polyphonic writing; producing nomadic, minority, post-identity, decolonial war machines; and inventing with what is around us, in favor of knowledge and practices of local networks, which, like the mangabeira plant, do not allow domestication.

Keywords:
Psychology; Search; Writing; Experience; Invention

Resumen

Este artículo parte de la investigación como práctica en movimiento, en la composición de territorios del acto de investigar como experiencia. Inspirándonos en la fuerza disruptiva de torsión-retorsión de los Tornillos (juerga de Sergipe, derivada de prácticas de resistencia a la esclavitud de los negros), proponemos un método de pensamiento para inventar formas de ver, decir y narrar a partir de lo que nos rodea, una posición en relación con el mundo y con él mismo, el cual constituye la idea de que este mundo no es un hecho, sino un efecto de nuestras prácticas. Desde esta perspectiva, pretendemos cuestionar las prácticas discursivas y no discursivas de la Psicología en favor de abrir caminos, en las cuales este conocimiento pueda refundar su propia historia, acentuando sus discontinuidades y heterogeneidades y, así, una actitud de hacer ante las prácticas colonialistas, ahora desde una perspectiva neoliberal. Este modo de investigación se realiza mediante: el funcionamiento de un método-idea de escritura genealógica, cartográfica y polifónica; la producción de máquinas de guerra nómadas, minoritarias y posidentitarias; y la composición con el tema que nos rodea a favor del conocimiento y las redes locales que no puede ser domesticada, como el árbol mangabeira.

Palabras clave:
Psicología; Investigación; Escritura; Experiencia; Invención

Torcer e retorcer práticas de pesquisa

Quem quiser ver o bonito

Saia fora e venha ver

Venha ver os parafusos

A torcer e a distorcer 1 1 As epígrafes das seções deste artigo são todas de trechos de música do Grupo Parafusos, compostos há mais de 120 anos.

Em meados do século XIX, na região centro-sul da então província de Sergipe Del Rey, negros escravizados inventaram uma estratégia de fugir das senzalas, surrupiar alimentos e o que fosse encontrado nas fazendas de cana-de-açúcar. Nas noites de lua cheia, roubavam as anáguas brancas das sinhazinhas, vestiam-nas e saíam pulando e rodopiando em uma dança assombrosa e misteriosa para os senhores de engenho, as sinhás e os capitães do mato. Rodopiavam, torciam e retorciam, tal qual um parafuso. E, como tal, produziam furos, rachaduras, forçavam as travas das senzalas e empreendiam fugas para os mocambos e quilombos da região. A dança produzia uma imagem distorcida, borrada: algo entre o escuro da pele e da noite, e a brancura veloz das anáguas em rodopios - um borrão que assustava2 2 Era costume da época as sinhazinhas vestirem anáguas de sete côvados, bem rodadas e ornadas, com rendas e bicos franceses. Tais roupas ficavam ao relento durante a noite, depois de terem passado por todo um processo, caseiro, de branqueamento. Justamente nesse momento, elas eram furtadas pelos negros fujões que as usavam como cobertor e nas artimanhas de fuga. Por conta do alto número de roubos das anáguas, estas passaram a não mais serem colocadas nos varais durante as noites (Avelino, 2018). . De que(m) mesmo os capitães do mato estavam correndo (atrás)? Após a abolição da escravatura, os negros libertos da região saíram pelas ruas vestidos com as mesmas roupas das fugas, dançando, rodopiando e cantando em sinal de zombaria aos antigos senhores de engenho. As práticas de zombaria ganharam força, transformando-se em tradição, em um folguedo que, ano após ano, ganha as ruas de Lagarto (cidade do estado de Sergipe) e enaltece a resistência e artimanha do povo negro quanto a algumas de suas formas de luta contra a escravidão. Os brincantes3 3 No início das apresentações dos brincantes Parafusos, um dos componentes se personificava como índio, em alusão à cobertura oferecida pelos nativos nas fugas dos escravos. desse folguedo costumam apontar que os Parafusos são de tipo único, que sua origem remete àquela região e somente existe em Lagarto (Avelino, 2018Avelino, C. (2018). Os sentidos da liberdade: Trajetórias, abolicionismo e relações de trabalho no Vale do Cotinguiba no Pós-Abolição (Sergipe, 1880 - 1930) [Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense]. Repositório institucional da UFF. https://www.historia.uff.br/stricto/td/2007.pdf
https://www.historia.uff.br/stricto/td/2...
).

Desde o século XIII, no entanto, povos africanos de origem Malê e adeptos ao islã possuem rituais de dança semelhantes aos que hoje são executados pelos participantes dos Parafusos. Trata-se dos rituais Dervixes, danças praticadas por monges muçulmanos malês como forma de manter conexão com Allah. Sabe-se que, durante o século XIX, na região das províncias da Bahia e de Sergipe, a presença de negros escravizados de origem Malê era frequente. Exerciam uma forte influência nas revoltas contra os senhores de escravo e a escravidão, sobretudo após o levante conhecido como a Revolta dos Malês, ocorrido na Bahia em 1835. Muitos negros malês, com a cabeça a prêmio, pós-levante, fugiram para a província de Sergipe. O temor de novas revoltas dos negros em territórios outros pode também ter relação com o temor dos senhores brancos para com os pretos e suas danças misteriosas (Avelino, 2018Avelino, C. (2018). Os sentidos da liberdade: Trajetórias, abolicionismo e relações de trabalho no Vale do Cotinguiba no Pós-Abolição (Sergipe, 1880 - 1930) [Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense]. Repositório institucional da UFF. https://www.historia.uff.br/stricto/td/2007.pdf
https://www.historia.uff.br/stricto/td/2...
).

Figura 1
Parafusos de Lagarto4 4 Imagem do “perfil” de uma página oficial do grupo folclórico nas redes sociais. https://www.facebook.com/Grupo-folcl%C3%B3rico-Parafusos-124462937887423/ .

Portanto, as origens dos Parafusos dançantes enraízam-se, de forma rizomática, para além das terras do centro-sul de Sergipe. Atravessam o vasto Oceano Atlântico, trazidas à força nos navios carregados de corpos escravizados, onde estes se descobriram negros5 5 Pois, como nos diz Silvio de Almeida (2019), um negro é um negro por causa do racismo e não porque sua negritude é valorizada ou reconhecida, assim como um branco não é branco por causa da sua brancura. O racismo ancora-se, portanto, em estruturas políticas e econômicas que não cessam de produzir indivíduos brancos e não brancos. Não há, dessa forma, uma natureza dada e uma essência exata no que se designa negro - é a produção do racismo que faz coincidir/adequar a negritude e o negro. . As origens dos Parafusos, tais como o mar, são carregadas de movimentos turbulentos, imprecisos, paradoxais. São capazes de fazer naufragar a mais imponente embarcação e logo depois apresentarem-se calmas, como se não houvesse passado uma tormenta, fazendo perder-se qualquer vestígio do que fora engolido por sua força e voracidade. São, enfim, origens sem um ponto inicial: uma gênese.

Walter Benjamin (2013Benjamin, W. (2013). Prólogo epistemológico-crítico. In W. Benjamin, Origem do drama trágico alemão (2a ed., pp. 13-47). Autêntica.) toma a origem como uma categoria histórica, mas que não pode ser vista como fonte primeira das coisas ou mesmo como algo que designa o seu devir. Ela deve ser pensada como aquilo que emerge do processo, que está em vias de nascer e fenecer. Por exemplo: um mero tabuleiro de xadrez não pode ser visto apenas como uma tessela de madeira polida, mas, sim, como efeito de uma série de processos, acontecimentos, conflitos que remetem desde o processo do crescimento do tronco da árvore, dos tipos de madeiras utilizadas, de qual camada de tronco foi retirada, até se houve ou não interferências de larvas ou do clima no desenvolvimento da peça etc.6 6 No livro Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino (2009) criou uma história narrando os encontros e diálogos entre o mercador veneziano Marco Polo e o imperador tártaro Kublai Khan. Em um determinado momento, Kublai acreditava que, se cada cidade fosse pensada como um tabuleiro de xadrez e, portanto, com determinadas formas de se ocupar e se movimentar nos espaços da cidade, conhecer as regras que regem o tabuleiro urbano favoreceria o domínio completo sobre este. Assim, para Kublai, bastava entender tudo que se passava em seu reino, para assim dominá-lo por completo. E é em meio a esse contexto, então, que Marco Polo retruca: “O seu tabuleiro, senhor, é uma marchetaria de duas madeiras: ébano e bordo. A casa sobre a qual se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma camada do tronco que cresceu num ano de estiagem. Observe como estão dispostas as fibras. Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto tentou despontar num dia de primavera precoce, mas a geada noturna obrigou-o a desistir. Eis um poro mais largo: talvez tenha sido o ninho de uma larva; não de um caruncho, pois este, logo depois de nascer, teria continuado a escavar, mas de uma lagarta, que roeu as folhas e foi a causa pela qual a árvore foi escolhida para ser abatida… Esta margem foi entalhada com a goiva pelo ebanista a fim de aderi-la ao quadrado vizinho, mais saliente…” (Calvino, 2009, pp. 121-122). (Calvino, 2009Calvino, I. (2009). As cidades invisíveis (2a. ed.). Companhia das Letras.).

Na mesma direção, Foucault (2008aFoucault, M. (2008a). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 15-37). Graal., p. 20) nos aponta o problema que é perscrutar as coisas no sentido de uma origem: “é preciso ser metafísico para lhe procurar uma alma da idealidade longínqua da origem”. A recusa por uma pesquisa da origem está no cerne do sentido da desnaturalização daquilo que parece um dado; é a recusa de uma busca pela exatidão, pela substância, daquilo que é idêntico a si, relegando ao plano do acidental tudo que não parece coerente com essa identidade. Trata-se de uma pavimentação do caminho da pesquisa e da construção do entendimento das coisas que alvejam o terreno da produção de conhecimento, que se ensurdecem para a história e que mergulham nas crenças metafísicas.

Nas suas teses sobre o conceito de história, Benjamin (1994cBenjamin, W. (1994c). Sobre o conceito de história. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (7a ed., pp. 222-232). Brasiliense.) pontua que o passado não pode ser encarado como um fato em si mesmo, estático, ao qual se poderia ter acesso sempre que se quisesse, estando lá da mesma forma que sempre foi. Ao contrário, o passado está em movimento e dotado de força para suscitar e provocar desencaminhamentos no presente. Assim, a origem dos Parafusos ou a sua invenção não pode ser pensada somente a partir de uma situação de estratégia de fuga. O pular, rodopiar, torcer e retorcer dos Parafusos de outrora e de hoje são como imagens cintilantes, vestígios esquecidos que fazem saltar ao presente reminiscências de um passado que não está acabado. “Ora, se o genealogista7 7 Seria uma espécie de pesquisador meticuloso, documentário e paciente, que está disposto a se ocupar com a singularidade dos acontecimentos, afastando-se de toda finalidade monótona e disposto a trabalhar com “pergaminhos embaralhados, riscados várias vezes e reescritos” (Foucault, 2008a, p. 15). tem o cuidado de escutar a história em vez de acreditar na metafísica, o que é que ele aprende?” (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 15-37). Graal., p. 17). Provavelmente vai recolher aqueles “vestígios esquecidos” e compor com eles narrativas díspares, percebendo que há algo a mais atrás das coisas, um algo diferente, que não se trata de um segredo essencial e sem data, mas de um segredo constituído por peças que lhe eram estranhas. Não estamos, portanto, buscando descobrir qual versão histórica se aproximaria mais da origem verdadeira dos parafusos, mas buscando composições que produzam novas formas de pensar, inspirando-nos no próprio movimento de torção inventado por essa dança.

Uma dança ritualística transmutou-se, ganhou outros sentidos, tornou-se arma de enfrentamento de sofrimentos intoleráveis (Baptista, 2013Baptista, L. (2013). Demolições da memória de um psicólogo anônimo: A invasão do cotidiano por flechas do Vietnam. Mnemosine, 9(2), 19-34. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41525
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
). Os negros fugidos usavam artefatos produzidos a partir daquilo que o mundo dispõe, daquilo que emergia da força de um passado inacabado e que carrega consigo imagens capazes de criar brechas, rupturas no que se achava sólido, já dado, em favor de outros modos de pensar, de lutar, e da criação de uma outra realidade possível. Inventavam-na com o que estava ao seu redor, mostrando que a guerra poderia ser feita por outros caminhos e que esta já havia começado faz tempo8 8 “A guerra começou faz tempo”, expressão usada pela aluna Geovanna Almeida Benedito num exercício de escrita em disciplina optativa ofertada no segundo semestre de 2019 e que articulava alunos de pós-graduação e graduação em Psicologia e em Cinema na Universidade Federal de Sergipe. .

A dança, os rodopios, o torcer-distorcer dos Parafusos nos dizem mais do que uma história de assombração como uma estratégia de fuga que acabou por virar folguedo, arte. “A arte tem sempre algum devir que traz um afecto acultural, um monstro que provoca a degradação do território, o caos que tanto se sobrepõe às regras da criação” (Zordan, 2005Zordan, P. (2005). Arte com Nietzsche e Deleuze. Revista Educação e Realidade, 30(2), 261-272. https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/12472/7387
https://seer.ufrgs.br/index.php/educacao...
, p. 269). O que podemos dizer que aprendemos com a arte é que a forma pode ser desfeita, feita de outro modo, mas sempre a partir daquilo que nos rodeia, capturando sua potência disruptiva e criadora. A dança dos Parafusos diz de uma arte de existência. Uma artistagem (Corazza, 2006Corazza, S. (2006). Artistagens: Filosofia da diferença e educação. Autêntica.) que ainda carrega consigo a força de um outro devir, que pode se efetivar no, para e contra o presente. O devir não é questão de estratos históricos, ele é contra a história9 9 A não ser que tomemos aqui o sentido de história que Foucault (2008ª, p. 27) empresta de Nietzsche para acentuar que o sentido histórico se articula mais à ideia de proveniência e emergência, afastando-se do sentido da origem e reintroduzindo o “devir em tudo o que se tinha acreditado imortal no homem”. . “O devir é questão de virtualidades e acontecimentos, mas também de dispositivos, de técnicas, de enunciados, quer dizer, de uma multiplicidade de elementos que constituem um agenciamento a um só tempo pragmático e experimental” (Lazzarato, 2004Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume., p. 148). Um devir de lutas e enfrentamentos contra modos de pensar que se querem hegemônicos, homogêneos, a-históricos e paralisantes.

Vestígios esquecidos pululam: uma dança ritualística transmutou-se, ganhou outros sentidos, tornou-se arma de enfrentamento também para nós, permitindo-nos traçar narrativas de um tempo presente.

(Des)parafusando práticas de pesquisa

Venha ver os parafusos

A torcer e a distorcer

O que a dança, os rodopios, o torcer-distorcer dos Parafusos nos convocam a pensar sobre os modos de fazer pesquisa? Em vez de um método e metodologias que buscam descrever estados de coisas, seria possível fazer da pesquisa um modo de acompanhar processos como formas de invenção de si e do mundo? Apostamos que sim. Apostamos na composição de um território de pesquisa como experiência de pensamento, engajando-se na criação de realidades por meio de imagens cintilantes como a dos Parafusos, que fazem saltar ao presente reminiscências de um passado não acabado, que fazem situar e localizar nossa política de produção de conhecimento: falamos com o sotaque das línguas nordestinas, com os sabores das mangabas de nossa terra, fruto nativo que não se pode plantar, que simplesmente brota selvagemente. É um fruto que não se pode colher, pois o que está no pé ainda não se deu: é possível apenas catar o que já caiu do pé. Mangaba boa é a que já está no chão, todo mundo sabe disso. Pode tirar do pé e esperar amadurecer? Pode, mas ela não fica tão suculenta. Pode tentar plantar? Pode, mas será difícil vingar - e, mesmo que assim aconteça, vai dar poucas frutas, inclusive não tão boas como as frutas nativas. A mangabeira é, em suma, uma planta que não se deixa domesticar.

Assim, nos afastamos da ideia de processamento de dados em que haveria um conjunto de inputs a serem manejados segundo regras da cognição científica. Regras que, por sua vez, seriam tomadas como um conjunto de competências e habilidades que configurariam a lógica da pesquisa. Conforme indicam Pozzana e Kastrup (2015Pozzana, L. & Kastrup, V. (2015). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, V. Kastrup & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Sulina.), nos afastamos da representação de formas a serem constituídas (descobertas10 10 Até porque a descoberta exige a existência de um objeto dado, que aguarda o olhar treinado do cientista dedicado ou do filósofo atento, que busca a verdade sobre ele, retomando aqui uma busca pela origem. Foucault (2008a, p. 18), novamente emprestando de Nietzsche, nos lembra de que o que se “descobre” no início das coisas não é a identidade preservada da origem, mas a “discórdia entre as coisas, é o disparate”. A própria razão, eles nos lembram, não nasceu da dedicação à verdade e do rigor dos métodos científicos, mas da paixão dos cientistas e do acaso. ) com base na coleta de informações dadas, para arriscarmos uma prática de pesquisa em movimento, um outro modo de pensar e ver, uma outra linguagem. Um método-pensamento a inventar formas de ver e dizer, a disputar como se narra. Tais disputas, segundo nos indica Haraway (2009Haraway, D. (2009). Saberes localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
), são lutas a respeito do que terá vigência como explicações científicas do mundo, são lutas a respeito de como ver e dizer.

Modos de conhecer constituem modos de ver e modos de viver. Modos de conhecer envolvem uma posição em relação ao mundo e a si mesmo, uma atitude política que nos habita, instituem uma certa maneira de estar no mundo, de habitar um território existencial. Essa nossa atitude aproxima conhecimento e criação, germinando a ideia de que o mundo não é um dado, mas efeito de nossas práticas.

Dessa posição e com essa atitude, desejamos falar da pesquisa como uma experiência que abrange uma cognição encarnada e um tempo de ressonâncias que não é - ou que ao menos não se quer ser - o tempo cronológico dos relógios do capital e do desenvolvimento (irmão do progresso) humano; envolve o escavar de um espaço-tempo-corpo para o pensamento, a linguagem, a sensibilidade e a ação, para que as palavras,

algumas palavras, antes que se desgastem ou se fossilizem para nós, antes de permanecerem capturadas, também elas pelas normas do saber e pelas disciplinas do pensar, antes que nos convertam, ou as convertamos em parte de uma doutrina ou de uma metodologia, antes que nos subordinem, ou as subordinemos a esse dispositivo de controle do pensamento que chamamos de “investigação”, ainda [possam] conter um gesto de rebeldia, um não, e ainda [possam] ser perguntas, aberturas, inícios, janelas abertas, modos de continuar vivos, de prosseguir, caminhos de vida, possibilidades do que não se sabe, talvez (Larrosa, 2014Larrosa, J. (2014). Tremores: Escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica., p. 75).

Uma experiência de pesquisar que aposta nas errâncias, no risco, no perder-se frente àquilo que nos é familiar. Perder-se tal como nos perdemos na floresta, mas com instrução (Benjamin, 2004Benjamin, W. (2004). Tiergarten. In W. Benjamin, Imagens de Pensamento (pp. 82-83). Assírio & Alvim.). Aprender a se pôr ao risco do acaso na experiência do choque, do torcer-retorcer, sem saber se vamos parar no mesmo lugar e sabendo que, a cada rodopio, a cada encontro, os passos a percorrer poderão ser modificados. Essa aposta, então, nos aponta que outras formas de pesquisar são possíveis e, com elas, outras formas de narrar, de tecer escritos também. Narrativas que são forjadas na disposição à errância e a outras formas de experienciar o pesquisar (Rodrigues, 2018Rodrigues, Helmir O.. (2018). Escritas errantes nas tramas urbanas. Revista Mnemosine, 14(2), 161-173. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41687/28956 .
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
).

Tomamos as narrativas como modos de intercambiar experiências, encarando-as como uma forma específica e positiva de se transmitirem saberes (Benjamin, 1994aBenjamin, W. (1994a). Experiência e Pobreza. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (7ª ed., pp. 114-119). Brasiliense., 1994bBenjamin, W. (1994b). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (7a ed., pp. 197-221). Brasiliense.). Nessa prática, o narrador retira das experiências aquilo que ele conta, sendo que aquilo que é contado incorpora-se às experiências daqueles que ouvem. Além disso, um ponto importante quanto às narrativas é que não há uma intenção em dar explicações, em traduzir literalmente e da forma mais pura possível a coisa narrada, tal como se faz com uma informação, ou ainda em conceber tal coisa narrada como atrelada à figura de quem narra.

Tomar a narrativa como um tipo de prática que nos permita transmitir experiências. Um tipo de comunicação que não pressuponha explicações já dadas, mas que permita àquele que as ouve ou lê tomá-las também como experiências, assimilá-las às experiências próprias e poder, a partir delas, transmitir a outrem. Experiências que desencaminhem o presente, que nos desprendam de nós mesmos e das quais saiamos transformados, nunca os mesmos (Rodrigues, 2018Rodrigues, Helmir O.. (2018). Escritas errantes nas tramas urbanas. Revista Mnemosine, 14(2), 161-173. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41687/28956 .
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index....
, p. 166).

Mais uma vez dessa posição e com essa atitude, não alçamos generalizações nem muito menos o Uno e o Universal, nos afastamos da constituição de grandes narrativas e do trabalho que, para ser científico, precisa utilizar a teologia de alguns métodos prescritos. Para nós, método é uma estratégia, arte de invenção que se efetua no próprio ato de pesquisa, em intrínseca relação com a instalação conceitual, a construção do problema de pesquisa e a política de narratividade que se quer coletiva.

Para além de uma disputa de narrativa - entendendo o discurso como um jogo, estratégias de disputa e de exercícios de poder (Foucault, 1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Loyola.) que atravessam as práticas sociais e que constituem modos de subjetivação -, estamos à espreita também da possibilidade de abrir outros caminhos. Pode a Psicologia refundar sua própria história, correndo por fora e abrindo trilhas ainda não calçadas pelas práticas colonialistas históricas, bem como não fortalecendo as engrenagens dos colonialismos contemporâneos? Sabemos que essa tarefa tem sido ensaiada aqui e acolá, ao se pensar, por exemplo, a Psicologia como espaço de dispersão de saber (Garcia-Roza, 1977Garcia-Roza, L. A. (1977). Psicologia: Um espaço de dispersão de saber. Rádice, 1(4), 20-26.) ou ainda como mais um arquipélago do que um continente (Prado Júnior, 2000Prado Júnior, B. (2000). Alguns ensaios: Filosofia, literatura, psicanálise. Paz e Terra.), acentuando suas descontinuidades e heterogeneidades. Não é novidade, sabemos que não caminhamos sozinhos, mas sabemos também que traçar outros caminhos passa por começar a conversar com quem ficou para trás, com vidas, autoras e autores infames11 11 Quando Foucault (2013) se refere à infâmia, procura distingui-la do que ele chama de infâmia aparente, aquela da qual se beneficiam os homens que causaram escândalo, citando alguns exemplos, como Sade. Essa aparente infâmia diz respeito ao fato de que, apesar do “horror respeitoso” que inspiraram, são homens de fama, mesmo que as razões dessa fama sejam inversas às que hegemonicamente tornam os homens gloriosos. Aqui, ao contrário, estamos à espreita do que ele definiu como “vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui, juntar alguns restos” (Foucault, 2013, p. 212). , por cavoucar interlocutoras que podem, conosco, escrever novas histórias.

Fazer pesquisa em bando

Roda, roda Parafuso

Quero ver rodar

Neste texto, ensaiamos algumas linhas de composição com o tema da pesquisa em ciências humanas. Ensaios que, quando nos havemos com as questões do nosso tempo, são alinhavados com inquietações, reflexões e sugestões, isto é, com algo do que nos tem atravessado ao sermos tocados pelas forças do mundo e que ainda reverbera na tentativa insistente de fazer pesquisa na imanência do vivo e do viver. Modos de fazer pesquisa que se atentam para a potência da amizade, da aposta de que só se trabalha bem com amigos12 12 No livro Impressões de Michel Foucault, Roberto Machado (2017), ao relatar sobre um encontro do pensador francês com um grupo de professores universitários no Rio de Janeiro, narra situações nas quais discussões destes professores com Foucault acabaram enveredando para situações de tensão provocadas pelo que ele chama de uma “disputa intelectual insuportável”. Machado conta que, após momentos desse tipo, preferiu trabalhar com alunos a trabalhar com professores, e que afirmar tais encontros faziam-no sentir que só se trabalha bem com amigos. . Acompanhadas/o por Parafusos e Mangabas, Liliana da Escóssia, Teresa Nobre, Maurício Mangueira, Manoel Mendonça, Marcelo Ferreri, Marcos Melo, Luis Antonio Baptista, Cecília Coimbra, Simone Paulon, Dagmar Meyer, Fernando Seffner, Jeane Felix, Patrícia Balestrin, Roberto Machado, Gilles Deleuze, Felix Guattari, Michel Foucault, Renè Lourau, Donna Haraway, Judith Butler e tantas outras, tornamos o coração de nossas práticas o chamamento para resistir, habitando a barriga do monstro da ciência (Haraway, 2009Haraway, D. (2009). Saberes localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
), produzindo narrativas locais por meio da lida com dados dispersos que pululam do cotidiano de nossa terra, multiplicando sentidos, estranhando o que aparece como óbvio.

Ali mesmo, no chão da nossa terra, perscrutando uma terra outra, de um chão que berra13 13 O “chão que berra” parte de uma ideia apresentada por Georges Didi-Huberman (2013, p. 109) em um ensaio intitulado Cascas. Nele, o autor narra uma visita que fez ao local onde fora o campo de concentração de Auschwitz e que, a partir de 1947, foi transformado em museu. Em alguns pontos desse ensaio, o pensador francês nos alerta para uma característica presente no chão do local: “o chão berra”. Um solo castigado, arrasado, rachado pela história e que, por conta de momentos de inundação provocados pela chuva, traz para a superfície vestígios da chacina, fragmentos de ossos dos corpos assassinados. Essa imagem, esse berrar do chão, provoca inquietações nos curadores do museu, naqueles que estão visitando e, sobretudo, inquieta e faz tremer o presente. Um presente que resumiu Auschwitz a um museu de Estado, a um espaço, supostamente, neutro, a um local no qual já se está, previamente, demarcado o que será motivo de espanto - em referência às atrocidades ali cometidas, onde os visitantes, porém, estariam protegidos, como se os mortos não mais estivessem por lá. Contudo, as forças desses vestígios, que insistem em vir à superfície, mostram que o passado aterrador, dos corpos carbonizados, transformados em cinzas, está nas flores dos campos, na água do lago. , pudemos acompanhar um processo de encantamento nosso com o fazer pesquisa - ou ao menos com a possibilidade de fabular outros modos de pesquisar. Sim, existem, ainda bem, outros modos de pensar e fazer pesquisa! Fazer-pensar pesquisa, convertendo-a em algo mais parecido com uma arte do que com uma técnica, bem ali onde ela se encontra com ética: um ir dando forma à existência (e o gerúndio aqui não é cacoete). Mais do que descrever estados de coisas, interessa acompanhar processos, interessa fazer da pesquisa uma experiência, intervenção, invenção de si e do mundo. Ou, como diria Foucault (2006Foucault, M. (2006). Mesa-redonda em 20 de maio de 1978. In M. B. Motta (Org.), Ditos & Escritos IV: Estratégia, saber-poder (pp. 335-351). Forense Universitária.), fazer da pesquisa uma instalação coletiva que possibilite o escamar de “lugares-comuns”, um movimento de colocar em suspensão

algumas “evidências”, . . . de modo que certas frases não possam mais ser ditas tão facilmente, ou que certos gestos não mais sejam feitos sem, pelo menos, alguma hesitação; contribuir para que algumas coisas mudem nos modos de perceber e nas maneiras de fazer; participar desse difícil deslocamento das formas de sensibilidade e dos umbrais de tolerância (Foucault, 2006Foucault, M. (2006). Mesa-redonda em 20 de maio de 1978. In M. B. Motta (Org.), Ditos & Escritos IV: Estratégia, saber-poder (pp. 335-351). Forense Universitária., p. 347).

Tudo isso para dizer que, juntes, temos tido a alegria (e alegria é sempre potente e compartilhada) de acompanhar um processo de (des)aprendizagem e cultivo se dando pela intercessão de/em nós com as forças do presente, uma ativação de uma (outra) sensibilidade que aposta, como diria Jorge Larrosa (2014Larrosa, J. (2014). Tremores: Escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica.), não em impor nem propor, mas na exposição de se fazer pesquisa e pesquisador(a) no olho do furacão da experiência, fazer pesquisa tremendo, pulando, rodopiando, torcendo e retorcendo. Fazer da escrita uma questão de pesquisa, em que experiência abra caminho para línguas outras e o outrar da língua (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações (1972-1990). Editora 34.). Traçar narrativas locais e localizadas que brotem de nossas experiências de/na vida, de diários de campo, de registros mnemônicos, de dados dispersos, do que usualmente ficaria fora das pesquisas - ou ao menos do publicizável de (nossas) pesquisas. Fazer da pesquisa uma narrativa de si (Rago, 2011Rago, M. (2011). Escritas de si, parresia e feminismos. In G. Castelo Branco & A. Veiga-Neto, Foucault: Filosofia e política (pp. 251-268). Autêntica.). Uma memória de si que é contramemória, que é coletiva (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 15-37). Graal.).

Por uma política da narratividade minoritária

Parafuso e, ê.

Parafuso e, a.

Parafuso, acerte a pisada,

no meio da estrada não pode parar

Escrevemos tremendo, inquietos, como que tateando um caminho ainda por vir. Tremendo e insistindo em habitar o coração da pergunta há algum tempo feita por Donna Haraway (2009Haraway, D. (2009). Saberes localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 25): “Com o sangue de quem foram feitos os meus olhos?”. Com o sangue de quem foram feitos nossos olhos? Que sangue escorre ou é estancado junto ao vazar e ao publicizar das nossas narrativas, com que política de verdade temos coadunado? Há algum tempo temos sido mobilizados pelo desejo de fazer das nossas pesquisas territórios de habitação coletiva (Kastrup & Passos, 2013Kastrup, V., & Passos, E. (2013). Sobre a validação da pesquisa cartográfica: Acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal: Revista de Psicologia, 25(2), 391-413. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200011
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
), de luta, inventando metodologias locais, não extrativistas (Santos & Meneses, 2010Santos, B., & Meneses, M. (Orgs.). (2010). Epistemologias do Sul. Cortez.), e colocando-nos na contramão de um colonialismo etnocida (Clastres, 2004Clastres, P. (2004). Arqueologia da violência: Pesquisas de antropologia política. Cosac e Naify.).

Fazer da pesquisa, por exemplo, um território contra a criminalização da pobreza e de certos usos de drogas - criminalização que está articulada a práticas de medicalização, moralização e marginalização que justificam e naturalizam a discriminação e a matança de corpos negros; criminalização de gestos e modos de viver que resistem à alma empresa (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações (1972-1990). Editora 34.). Fazer pesquisas que interpelem as próprias práticas discursivas e não discursivas da Psicologia por dentro, no confronto de um fazer que se forja no entremeio de atualização de práticas pastorais14 14 Práticas psi pensadas em um contexto de uma economia de circulação dos discursos e dos jogos de verdade como uma atualização da prática pastoral, operando estratégias de ortopedia, de produção de obediência por meio de dispositivos de “dependência integral” (Foucault, 2008b), “que fortalecem processos de individualização e despotencialização da vida como ação política” (Oliveira, 2015, p. 29). . Essa é uma questão que salta para primeiro plano em pesquisas que arriscam colocar o presente das práticas “psi” em análise: o que pode um psicólogo frente a desigualdades sociais, à pobreza profundamente estalada? O que pode a psicologia frente a durezas, sofrimentos e deleites da vida de quem se encontra às margens da sociedade urbanizada? O que pode a psicologia frente a uma concepção de cidade como espaço a ser regulado, ordenado, que permite a fluidez em favor do desenvolvimento de um mercado e de modos de vida enquanto capital humano? O que pode a psicologia junto àqueles que não participam da moral da vida ativa? O que pode a psicologia junto ao povo do campo, das florestas e das águas? O que pode a psicologia face ao genocídio reeditado nas periferias das cidades brasileiras, no coração da floresta amazônica ou nos manguezais sergipanos, hoje, agora, o que ela pode? Recorremos

àquela frase famosa e manjada do Manifesto Comunista (não lembro que página): “é a pobreza de novo”, ou “são os pobres de novo”, algo assim. Imprecisão quanto à frase, mas o que me interessa não esqueci: o “de novo” daquele texto. É esse de novo, essa recorrência, esse ponto que é de longa duração na história que quero ressaltar, e quero colocar ela em algum lugar do entremeio da pesquisa. Porque acho que é por esse ponto que levantamos questões à Psicologia. Em função dela levantamos questões em relação à recorrente tentativa de enquadrar a pobreza (tentativas que contam com a participação dos psicólogos)15 15 Parte do parecer - gentilmente cedido para este artigo - de Marcelo Ferreri em ocasião da banca de qualificação de Robert do Carmo Santos (PPGPSI/UFS), em março de 2020. .

Para nós, esse “de novo” permite dar língua e corpo a intensidades afetivas que pedem travessia, permite narrá-las enquanto se questiona a alavanca do progresso psicológico e se puxa seu freio de mão desenvolvimentista (Latour, 2020Latour, B. (2020). Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise (D. Danowski & E. V. de Castro, Trads.). N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/28
https://www.n-1edicoes.org/textos/28...
). Visto que esse “de novo” brota de mil lugares na história, tal recorrência possui infinitos entremeios nos modos de vida. Eis nossa proposta, então: pedir passagem para narrar a vida, afirmá-la em sua expansão, mesmo ali onde nada parecia restar, criar composição. Compor com a artesania de um modo de vida outro que, em vez de ocupar-se do viver bem, do comer e servir de ração para o capital, exercita o bem viver, o resistir - mesmo sendo atravessado e constituído pelo capitalismo. Resistir nos pequenos gestos dos quebradores e assadores de castanhas, das encantadoras de mariscos, dos pescadores de tarrafa, das enxadas nos campos do sertão, dos que ousam produzir para subsistir e não para vender, do viver uma vida nas ruas da cidade, do delirar uma razão dos que atravessam a linha do psicotizar. O que a psicologia pode desaprender nessas paisagens existenciais, com esses ecossistemas de pensamento, em que as três ecologias, subjetiva, social e ambiental, tremem formas de vida constituídas? A artesania da vida nessas paisagens parece forjar gestos de resistência, pequenos gestos que nos permitem, ao acompanhá-los, tracejar um certo distanciamento daquilo em que estamos imersos, puxar a alavanca do desenvolvimentismo, inclusive o “psi”, recusando a tarefa primordial, neoliberal e positiva (negando todos os conflitos inerentes aos processos “psi”) de forjar/legitimar empreendedores de si.

Retomemos nossa aposta: com nossas pesquisas, constituir um comum entre heterogêneos, gestar territórios que escancaram a relação e a retroalimentação entre capitalismo, racismo, machismo, etarismo e etnocentrismo - empreendimento, não nos esquecemos, orquestrado pela deusa ciência. Pois bem, lutar contra sabemos o quê. Mas esses tempos tão entristecedores e paralisantes parecem solicitar outras formas de luta, a composição de resistências ativas: que o borrão provocado pela dança dos Parafusos nos inspire a resistir e a pesquisar de forma articulada e transversal, fugindo também dos purismos, enterrando de vez o problema da origem, da verdade e da legitimidade, engendrando uma política da experimentação:

um colocar à prova, uma experimentação. . . . Ela não consiste apenas na urgência de ser contra, nem em definir as constantes e as invariantes para o estar junto. Tanto a urgência do engajamento quanto a ação em favor da igualdade devem estar subordinadas a uma política que se abra à esfera do acontecimento, a uma política do devir, à política como experimentação. (Lazzarato, 2004Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume., p. 148).

“Não baixemos a guarda” (guarda, a postos, militância, tudo parece tão militar); “mantenhamos os punhos cerrados, as portas trancadas, os muros levantados, as identidades blindadas” (tudo parece tão privatizante, tão capital, ração do capital). “Resistir com força bruta” (tudo parece tão machista). Resistir, lutar pela expansão da vida e, se for para nos entregarmos, que nos entreguemos aos encontros, à vida, à cólera e à alegria, que brotemos do impossível chão acimentado. Sem dúvida, resistir é da “natureza” de nosso trabalho, é da “natureza” de pesquisas em movimento que se lançam da lama grossa da vida, fazendo uma pausa no Grande Movimento Capital, colocando-o, em alguma medida, em análise.

Dito isso, despontam alguns desafios, como operar com uma ideia-método genealógica e cartográfica com força para fazer da escrita uma experiência polifônica, múltipla, constituída por vários platôs de análise coletiva, inventar procedimentos metodológicos que sigam nessa direção, como, por exemplo, devolver, ao campo de pesquisa constituído, trechos de diários de campo, de entrevistas, numa espécie de análise e restituição coletiva e processual, com a pesquisa e seu problema ainda em movimento. Como, afinal, por meio dessa análise, acessar o plano coletivo de forças moventes, ir além das formas constituídas (Kastrup & Passos, 2013Kastrup, V., & Passos, E. (2013). Sobre a validação da pesquisa cartográfica: Acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal: Revista de Psicologia, 25(2), 391-413. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200011
https://doi.org/10.1590/S1984-0292201300...
)?

Outro desafio diz respeito a nós, outros, tantos mundos possíveis. Como constituirmos uma máquina de guerra16 16 “que não seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos” (Deleuze, 1992, p. 212). nômade, minoritária, dando outros sentidos para a palavra minoria, para que ela não siga sendo o nome dado a uma maioria esquadrinhada, classificada, identificada?17 17 Como nos diz Deleuze (1992), a ideia de minoria está mais relacionada à ausência e recusa de modelos do que por uma designação numérica. Uma minoria pode ser mais numerosa que a maioria, mas esta última se define por um modelo que impõe uma conformidade, enquanto aquela se caracteriza, justamente, pela recusa do modelo, pois é um processo, um devir. De acordo com esse pensador francês, o povo é sempre uma minoria criadora; quando este cria modelos para si, pode se tornar majoritário, e, mesmo que isso pareça necessário para sua própria sobrevivência, não podemos esquecer que sua potência está na capacidade de criar - presente no modelo, mas nunca dependendo dele. Pisando no chão das lutas identitárias devagarinho, honrando essas lutas18 18 Pois, como nos diz Silvio de Almeida (2019, p. 17), se, por um lado, o “identitarismo” - modo pelo qual, segundo ele, se convencionou chamar no Brasil o tema das políticas identitárias - é um problema para quaisquer pleitos emancipatórios, recusar, aprioristicamente, de colocar a questão da identidade no trato dessas lutas também é igualmente um problema, já que seria impossível contar as histórias de formação social dos países da América Latina, por exemplo, ignorando as lutas políticas alinhadas com o que ele chamou de uma “concepção revolucionária de identidade”, a partir do autor tomado por ele como referência, Asad Haider. , falando desde a habitação de territórios de pesquisa e luta pela vida de mulheres de povos e comunidades tradicionais, mais especificamente marisqueiras e mangabeiras de Sergipe, mas também em imersão na luta antimanicomial e na luta feminista e antirracista, vivendo suas aberturas e fechamentos, suas ampliações e limites, sua tomada de poder pelos governos em nome de suas vidas subsumidas a identidades identificadas, em nome de um Deus-Estado, de um Deus-Mercado etc. Vimos debatendo-nos com a necessidade de pensarmos em práticas de lutas pós-identitárias, em caminhos para a construção de um pertencimento que não é o mesmo que ser designada por uma identidade, mas engajar-se num devir capaz daquilo de que não seríamos capazes de outro modo. Retomemos, aqui, a potência do borrão, do esfumaçado da imagem provocado pelo movimento sem fim de parafusar, que vai e volta, como quem se esconde e confunde, e de como esse movimento impõe um ritornelo de escape das estratégias de definição da sua própria origem. Sua história é contada sempre parcialmente, são restos colhidos, escutados aqui e ali. Não há uma grande narrativa para entender o que fizeram essas pessoas emergirem girando, torcendo e distorcendo aqui por essas bandas. Rebatimentos… rebatemo-nos em meio a dois processos de subjetivação diferentes:

uma subjetivação majoritária que remete a um modelo de poder estabelecido, histórico, ou estrutural, e uma subjetivação minoritária que não cessa de transbordar, por excesso ou por falta, o limiar representativo do padrão majoritário. . . . o “para todos” [para todas as mulheres] se diz de duas maneiras diferentes, conforme remete à democracia majoritária ou à democracia do devir. No primeiro caso, o “para todos” determina ou a integração das minorias ou a sua exclusão (igualmente no que diz respeito à cidadania, à norma televisiva, à norma sexual, à norma salarial etc.). No segundo caso, o “para todos” não significa nem integração, nem exclusão, pois todo mundo se torna minoritário, potencialmente minoritário, na medida em que não há mais modelo algum reconhecido como majoritário. . . . é somente no devir que podemos encontrar o “todos” que está no fundamento da democracia, pois o devir minoritário consiste em engajar-se num devir e subtrair-se à determinação do poder. . . . O que é “universal” é o devir (Lazzarato, 2004Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume., pp. 149-150).

Uma pista dada por Lazzarato (2004Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume., p. 150) é a de que “a mutação se faz instalando-se ‘entre’ esses dois níveis, . . . traçando uma linha que impede o molar de se encerrar em modelos majoritários e fazendo o molecular a fonte de processos de criação e de subjetivação”. Mas como insurgir do rebanho identitário identificado? Como nos despojar de nossas armaduras identitárias? Ou como usá-las, performá-las em situações de combate, mas jamais confundi-las com toda a imensidão que cabe numa vida? Na experiência de se constituir a partir de uma multiplicidade de políticas relacionais e suas formas hegemônicas? E se, eventualmente, identidade e pessoa colaram, sobrepuseram-se, como descolar dessa identidade? O que colocar no lugar? Que armas de luta temos à mão? Que gestos de resistência podemos ensaiar?

é o fora da medida ou o incomensurável, o não numerável, então o único “padrão”, o único “modelo”, a única “medida” deste “alegre excedente”, deste potencial de criação, só pode ser a multiplicidade dos devires. O êxodo só pode ser conhecido sob a forma de devir, transformação cotidiana desta terra, deste corpo de mulher (Lazzarato, 2004Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume., p. 150).

E esse nós expande-se para todo corpo amansado, arrebanhado, organizado como humano. “É a construção de um pertencimento que já não significa designar ou ser designado por uma identidade, mas muito pelo contrário, engajar-se num devir . . . capaz daquilo de que não seríamos capazes de outro modo” (Lazzarato, 2004Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume., p. 147).

O feminismo também tem isso: ele não coloca só o problema do reconhecimento dos direitos da mulher em tal ou qual contexto profissional ou doméstico. Ele é portador de um devir feminino que diz respeito não só a todos os homens e às crianças, mas, no fundo, a todas as engrenagens da sociedade. Aí não se trata de uma problemática simbólica - no sentido da teoria freudiana, que interpretava certos símbolos como sendo fálicos e outros maternos - e sim de algo que está no próprio coração da produção da sociedade e da produção material. Eu o qualifico de devir feminino por se tratar de uma economia do desejo que tende a colocar em questão um certo tipo de finalidade da produção das relações sociais, um certo tipo de demarcação, que faz com que se possa falar de um mundo dominado pela subjetividade masculina, no qual as relações são justamente marcadas pela proibição desse devir (Guattari & Rolnik, 2000Guattari, F., & Rolnik, S. (2000). Micropolítica: Cartografias do desejo. Vozes., p. 73).

Entendemos, por exemplo, a radicalidade de uma luta feminista e de mulheres que se dá num embate conosco mesmas, no qual, por meio de práticas discursivas e não discursivas, nos fizemos mulheres de determinados tipos e não de tantos outros (im)possíveis. Uma luta fiada pela categoria mulher, “um signo construído no patriarcado” (Tiburi, 2018Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: Para todas, todes e todos. Rosa dos Tempos., p. 21), condição de subjugação, um signo que precisamos fazer tremer, vibrar, bifurcar. Como lutar não (ou pelo menos não só) por reconhecimento de identidades dissidentes nesta sociedade que identifica/inclui para excluir, mas pela expansão da vida (de todas e cada uma) em devires minoritários, “transformação cotidiana desta terra” (Lazzarato, 2004Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume., p. 150)?

Nessa direção, parece ser também necessário dar outros sentidos para a palavra aliança e mestiçagem, e compor alianças mestiças - pois estes tempos pedem alianças. E não se trata aqui de seguir reificando “o mito da miscigenação espontânea nem da democracia racial” (Lira, 2019Lira, C. (2019). Raças, drogas e subjetivação: Uma cartografia dos territórios epistemológicos das Residências Multiprofissionais em Saúde Mental [Projeto de qualificação de mestrado não publicado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul., p. 6) ou de gênero, por exemplo. Trata-se de produzir lutas heterogêneas, de produzir comum por um excesso de diferenças, borrando as fronteiras identitárias, rindo destas e dos feitores que nos perseguem amedrontados, ativando, assim, a historicidade do que se poderia chamar de “categoria contemporânea de identidade” (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Prefácio à edição brasileira. In A. Haider, Armadilha da identidade: Raça e classe nos dias de hoje (pp. 1-19). Veneta., p. 10), numa fuga que não se sabe para onde vai e não quer saber. Esses autores aqui convocados nos lembram que tal categoria esteve presente historicamente na organização das lutas políticas emancipatórias e revolucionárias, ela não é uma “armadilha” em si. As armadilhas se configuram na medida em que se reduz a política à afirmação de identidades específicas, o que, para eles, se alinha a uma reafirmação da subjetividade colonial e não a uma efetiva mudança estrutural:

É, portanto, contra o próprio processo político e econômico de constituição de subjetividades que se deve lutar, e por isso é fundamental que as identidades sejam consideradas como um dado analítico e como um elemento concreto de organização estratégica e/ou tática política sem o que não há revolução, e mesmo reforma, possível. . . . Por isso, tomar a identidade como centro da política é o mesmo que tentar acabar com o capitalismo comprando todas as mercadorias existentes até que não sobre mais nenhuma (Almeida, 2019Almeida, S. (2019). Prefácio à edição brasileira. In A. Haider, Armadilha da identidade: Raça e classe nos dias de hoje (pp. 1-19). Veneta., p. 13).

Esse parece ser nosso desafio, desses nossos tempos, em que as resistências, as subjetividades e as redes são precocemente fagocitadas pelas máquinas capitalísticas: “experimentar costuras teóricas [mas também técnicas, de dispositivos, de enunciados, experimentar agenciamentos] possíveis e diálogos de fronteira entre autores e autoras da perspectiva da filosofia da diferença e da perspectiva antirracista e descolonial” (Lira, 2019Lira, C. (2019). Raças, drogas e subjetivação: Uma cartografia dos territórios epistemológicos das Residências Multiprofissionais em Saúde Mental [Projeto de qualificação de mestrado não publicado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul., p. 6). A alegria das misturas, das composições, dos agenciamentos, das resistências não localizadas e não passíveis de identificação, do nomadismo e hibridismo, eu, outro, tantos mundos (im)possíveis. Ousar fabular sis e mundos, agenciando-nos com linhas de fuga às determinações bionecropolíticas. “E descobriu que o novo que tanto procura/ Já não estava na grandeza mas no menor do Brasil” (Polayne, 2009Polayne, P. (2009). Arrastada [Música]. Em O circo singular: As canções de exílio. The Ochard.). Para finalizar com mais um desafio, voltemos ao início deste texto, inventar com o que está ao nosso redor, localizando nossos saberes:

o processo de destruição de uma cultura ligado à destruição ontológica de seres humanos é o que Boaventura de Sousa Santos chamou de “epistemicídio” (Grosfoguel, 2016), sendo definido como a eliminação de saberes locais perpetrada por um conhecimento estrangeiro, a partir do colonialismo e capitalismo modernos (Lira, 2019Lira, C. (2019). Raças, drogas e subjetivação: Uma cartografia dos territórios epistemológicos das Residências Multiprofissionais em Saúde Mental [Projeto de qualificação de mestrado não publicado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul., p. 9).

É o que Pierre Clastres (2004Clastres, P. (2004). Arqueologia da violência: Pesquisas de antropologia política. Cosac e Naify.), em Arqueologia da Violência, chamaria de etnocídio: a destruição de toda uma ecologia de pensamento, de culturas e modos de vida locais em nome da forma-Homem universal. É o que Cynthia Veiga (2002Veiga, C. (2002). A escolarização como projeto de civilização. Revista Brasileira de Educação, (21), 90-103. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000300008
https://doi.org/10.1590/S1413-2478200200...
) indica ao assinalar escolarização como um projeto de civilização, um projeto de embranquecimento. E foi assim que nos lembramos dos Parafusos sergipanos que, na escola, aprendemos como folclore. Uma das autoras deste texto foi “inventar” de “dançá-lo” em suas férias de infância em Niterói/RJ (nasceu em Niterói), recebendo em troca olhares estranhos e risadas de adultos e crianças - eles não riam com ela e, sim, dela, da outra, da nativa. Nunca mais ela quis dançar reisado ou parafuso. Por muitos anos, ela quis manter seu sotaque carioca.

Anos mais tarde, já como professora universitária, desaprendeu em parafuso - acompanhada, ainda bem, do bando que habita este texto - todo um longo percurso de apagamento de sua/nossa história local, nordestina, que resiste com sotaque outro que não os globais (plim, plim): os Parafusos rodam hoje honrando a fuga de escravos sergipanos que, na época da escravidão, roubavam anáguas das senhoras e as escondiam na senzala. Pelas noites, negros se cobriam até o pescoço com as anáguas e pintavam seus rostos com barro branco. Aproveitando-se do medo de assombro dos capitães do mato, rodavam, fugindo, chegando, quando dava tudo certo, aos quilombos. Resistência negra! Pensando nessa história sergipana, na escolarização como projeto de civilização, na academia articulada ao projeto epistemológico da modernidade - um projeto com sotaque europeu e que no Brasil tem sotaque de sul e sudeste -, a pergunta que inicia e (não) encerra este texto vai na direção de uma crítica descolonial e decolonial em favor dos saberes e fazeres das redes locais, na aposta da pesquisa como um modo de restituição: como criar, a partir da pesquisa, territórios de composição com os saberes e fazeres locais?

Referências

  • Almeida, S. (2019). Prefácio à edição brasileira. In A. Haider, Armadilha da identidade: Raça e classe nos dias de hoje (pp. 1-19). Veneta.
  • Avelino, C. (2018). Os sentidos da liberdade: Trajetórias, abolicionismo e relações de trabalho no Vale do Cotinguiba no Pós-Abolição (Sergipe, 1880 - 1930) [Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense]. Repositório institucional da UFF. https://www.historia.uff.br/stricto/td/2007.pdf
    » https://www.historia.uff.br/stricto/td/2007.pdf
  • Baptista, L. (2013). Demolições da memória de um psicólogo anônimo: A invasão do cotidiano por flechas do Vietnam. Mnemosine, 9(2), 19-34. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41525
    » https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41525
  • Benjamin, W. (1994a). Experiência e Pobreza. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (7ª ed., pp. 114-119). Brasiliense.
  • Benjamin, W. (1994b). O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (7a ed., pp. 197-221). Brasiliense.
  • Benjamin, W. (1994c). Sobre o conceito de história. In W. Benjamin, Obras escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura (7a ed., pp. 222-232). Brasiliense.
  • Benjamin, W. (2004). Tiergarten. In W. Benjamin, Imagens de Pensamento (pp. 82-83). Assírio & Alvim.
  • Benjamin, W. (2013). Prólogo epistemológico-crítico. In W. Benjamin, Origem do drama trágico alemão (2a ed., pp. 13-47). Autêntica.
  • Calvino, I. (2009). As cidades invisíveis (2a. ed.). Companhia das Letras.
  • Clastres, P. (2004). Arqueologia da violência: Pesquisas de antropologia política. Cosac e Naify.
  • Corazza, S. (2006). Artistagens: Filosofia da diferença e educação. Autêntica.
  • Deleuze, G. (1992). Conversações (1972-1990). Editora 34.
  • Didi-Huberman, G. (2013). Cascas. Serrote: Uma Revista de Ensaios, Artes Visuais, Ideias e Literatura, (13), 99-133.
  • Foucault, M. (1996). A ordem do discurso: Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Loyola.
  • Foucault, M. (2006). Mesa-redonda em 20 de maio de 1978. In M. B. Motta (Org.), Ditos & Escritos IV: Estratégia, saber-poder (pp. 335-351). Forense Universitária.
  • Foucault, M. (2008a). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 15-37). Graal.
  • Foucault, M. (2008b). Segurança, Território, População: Curso dado no Collège de France (1977-1988). Martins Fontes.
  • Foucault, M. (2013). A vida dos homens infames. In M. Foucault, Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV (pp. 203-222). Forense Universitária.
  • Garcia-Roza, L. A. (1977). Psicologia: Um espaço de dispersão de saber. Rádice, 1(4), 20-26.
  • Guattari, F., & Rolnik, S. (2000). Micropolítica: Cartografias do desejo. Vozes.
  • Haraway, D. (2009). Saberes localizados: A questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, (5), 7-41. https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
    » https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/1773
  • Kastrup, V., & Passos, E. (2013). Sobre a validação da pesquisa cartográfica: Acesso à experiência, consistência e produção de efeitos. Fractal: Revista de Psicologia, 25(2), 391-413. https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200011
    » https://doi.org/10.1590/S1984-02922013000200011
  • Larrosa, J. (2014). Tremores: Escritos sobre a experiência. Belo Horizonte: Autêntica.
  • Latour, B. (2020). Imaginar gestos que barrem o retorno da produção pré-crise (D. Danowski & E. V. de Castro, Trads.). N-1 edições. https://www.n-1edicoes.org/textos/28
    » https://www.n-1edicoes.org/textos/28
  • Lazzarato, M. (2004). Política da multiplicidade. In D. Lins & P. Pelbart (Orgs.), Nietzsche e Deleuze: Bárbaros, civilizados (pp. 147-158). Annablume.
  • Lira, C. (2019). Raças, drogas e subjetivação: Uma cartografia dos territórios epistemológicos das Residências Multiprofissionais em Saúde Mental [Projeto de qualificação de mestrado não publicado]. Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
  • Machado, R. (2017). Impressões de Michel Foucault. N-1.
  • Oliveira, Sandra R. S. de. (2015). A obediência como virtude e saúde: Atualização do pastorado nas práticas psicológicas contemporâneas [Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense]. Repositório institucional da UFF. http://slab.uff.br/wp-content/uploads/sites/101/2021/06/2015_t_SandraRaquel.pdf
    » http://slab.uff.br/wp-content/uploads/sites/101/2021/06/2015_t_SandraRaquel.pdf
  • Polayne, P. (2009). Arrastada [Música]. Em O circo singular: As canções de exílio. The Ochard.
  • Pozzana, L. & Kastrup, V. (2015). Cartografar é acompanhar processos. In E. Passos, V. Kastrup & L. Escóssia (Orgs.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 52-75). Sulina.
  • Prado Júnior, B. (2000). Alguns ensaios: Filosofia, literatura, psicanálise. Paz e Terra.
  • Rago, M. (2011). Escritas de si, parresia e feminismos. In G. Castelo Branco & A. Veiga-Neto, Foucault: Filosofia e política (pp. 251-268). Autêntica.
  • Rodrigues, Helmir O.. (2018). Escritas errantes nas tramas urbanas. Revista Mnemosine, 14(2), 161-173. https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41687/28956 .
    » https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/mnemosine/article/view/41687/28956
  • Santos, B., & Meneses, M. (Orgs.). (2010). Epistemologias do Sul. Cortez.
  • Tiburi, M. (2018). Feminismo em comum: Para todas, todes e todos. Rosa dos Tempos.
  • Veiga, C. (2002). A escolarização como projeto de civilização. Revista Brasileira de Educação, (21), 90-103. https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000300008
    » https://doi.org/10.1590/S1413-24782002000300008
  • Zordan, P. (2005). Arte com Nietzsche e Deleuze. Revista Educação e Realidade, 30(2), 261-272. https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/12472/7387
    » https://seer.ufrgs.br/index.php/educacaoerealidade/article/view/12472/7387
  • 1
    As epígrafes das seções deste artigo são todas de trechos de música do Grupo Parafusos, compostos há mais de 120 anos.
  • 2
    Era costume da época as sinhazinhas vestirem anáguas de sete côvados, bem rodadas e ornadas, com rendas e bicos franceses. Tais roupas ficavam ao relento durante a noite, depois de terem passado por todo um processo, caseiro, de branqueamento. Justamente nesse momento, elas eram furtadas pelos negros fujões que as usavam como cobertor e nas artimanhas de fuga. Por conta do alto número de roubos das anáguas, estas passaram a não mais serem colocadas nos varais durante as noites (Avelino, 2018Avelino, C. (2018). Os sentidos da liberdade: Trajetórias, abolicionismo e relações de trabalho no Vale do Cotinguiba no Pós-Abolição (Sergipe, 1880 - 1930) [Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense]. Repositório institucional da UFF. https://www.historia.uff.br/stricto/td/2007.pdf
    https://www.historia.uff.br/stricto/td/2...
    ).
  • 3
    No início das apresentações dos brincantes Parafusos, um dos componentes se personificava como índio, em alusão à cobertura oferecida pelos nativos nas fugas dos escravos.
  • 4
    Imagem do “perfil” de uma página oficial do grupo folclórico nas redes sociais. https://www.facebook.com/Grupo-folcl%C3%B3rico-Parafusos-124462937887423/
  • 5
    Pois, como nos diz Silvio de Almeida (2019)Almeida, S. (2019). Prefácio à edição brasileira. In A. Haider, Armadilha da identidade: Raça e classe nos dias de hoje (pp. 1-19). Veneta., um negro é um negro por causa do racismo e não porque sua negritude é valorizada ou reconhecida, assim como um branco não é branco por causa da sua brancura. O racismo ancora-se, portanto, em estruturas políticas e econômicas que não cessam de produzir indivíduos brancos e não brancos. Não há, dessa forma, uma natureza dada e uma essência exata no que se designa negro - é a produção do racismo que faz coincidir/adequar a negritude e o negro.
  • 6
    No livro Cidades Invisíveis, Ítalo Calvino (2009)Calvino, I. (2009). As cidades invisíveis (2a. ed.). Companhia das Letras. criou uma história narrando os encontros e diálogos entre o mercador veneziano Marco Polo e o imperador tártaro Kublai Khan. Em um determinado momento, Kublai acreditava que, se cada cidade fosse pensada como um tabuleiro de xadrez e, portanto, com determinadas formas de se ocupar e se movimentar nos espaços da cidade, conhecer as regras que regem o tabuleiro urbano favoreceria o domínio completo sobre este. Assim, para Kublai, bastava entender tudo que se passava em seu reino, para assim dominá-lo por completo. E é em meio a esse contexto, então, que Marco Polo retruca: “O seu tabuleiro, senhor, é uma marchetaria de duas madeiras: ébano e bordo. A casa sobre a qual se fixou o seu olhar iluminado foi extraída de uma camada do tronco que cresceu num ano de estiagem. Observe como estão dispostas as fibras. Aqui se percebe um nó apenas esboçado: um broto tentou despontar num dia de primavera precoce, mas a geada noturna obrigou-o a desistir. Eis um poro mais largo: talvez tenha sido o ninho de uma larva; não de um caruncho, pois este, logo depois de nascer, teria continuado a escavar, mas de uma lagarta, que roeu as folhas e foi a causa pela qual a árvore foi escolhida para ser abatida… Esta margem foi entalhada com a goiva pelo ebanista a fim de aderi-la ao quadrado vizinho, mais saliente…” (Calvino, 2009Calvino, I. (2009). As cidades invisíveis (2a. ed.). Companhia das Letras., pp. 121-122).
  • 7
    Seria uma espécie de pesquisador meticuloso, documentário e paciente, que está disposto a se ocupar com a singularidade dos acontecimentos, afastando-se de toda finalidade monótona e disposto a trabalhar com “pergaminhos embaralhados, riscados várias vezes e reescritos” (Foucault, 2008aFoucault, M. (2008a). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 15-37). Graal., p. 15).
  • 8
    “A guerra começou faz tempo”, expressão usada pela aluna Geovanna Almeida Benedito num exercício de escrita em disciplina optativa ofertada no segundo semestre de 2019 e que articulava alunos de pós-graduação e graduação em Psicologia e em Cinema na Universidade Federal de Sergipe.
  • 9
    A não ser que tomemos aqui o sentido de história que Foucault (2008ªFoucault, M. (2008a). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 15-37). Graal., p. 27) empresta de Nietzsche para acentuar que o sentido histórico se articula mais à ideia de proveniência e emergência, afastando-se do sentido da origem e reintroduzindo o “devir em tudo o que se tinha acreditado imortal no homem”.
  • 10
    Até porque a descoberta exige a existência de um objeto dado, que aguarda o olhar treinado do cientista dedicado ou do filósofo atento, que busca a verdade sobre ele, retomando aqui uma busca pela origem. Foucault (2008aFoucault, M. (2008a). Nietzsche, a genealogia e a história. In M. Foucault, Microfísica do poder (25a ed., pp. 15-37). Graal., p. 18), novamente emprestando de Nietzsche, nos lembra de que o que se “descobre” no início das coisas não é a identidade preservada da origem, mas a “discórdia entre as coisas, é o disparate”. A própria razão, eles nos lembram, não nasceu da dedicação à verdade e do rigor dos métodos científicos, mas da paixão dos cientistas e do acaso.
  • 11
    Quando Foucault (2013)Foucault, M. (2013). A vida dos homens infames. In M. Foucault, Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV (pp. 203-222). Forense Universitária. se refere à infâmia, procura distingui-la do que ele chama de infâmia aparente, aquela da qual se beneficiam os homens que causaram escândalo, citando alguns exemplos, como Sade. Essa aparente infâmia diz respeito ao fato de que, apesar do “horror respeitoso” que inspiraram, são homens de fama, mesmo que as razões dessa fama sejam inversas às que hegemonicamente tornam os homens gloriosos. Aqui, ao contrário, estamos à espreita do que ele definiu como “vidas que são como se não tivessem existido, vidas que só sobrevivem do choque com um poder que não quis senão aniquilá-las, ou pelo menos apagá-las, vidas que só nos retornam pelo efeito de múltiplos acasos, eis aí as infâmias das quais eu quis, aqui, juntar alguns restos” (Foucault, 2013Foucault, M. (2013). A vida dos homens infames. In M. Foucault, Estratégia, poder-saber. Ditos e escritos IV (pp. 203-222). Forense Universitária., p. 212).
  • 12
    No livro Impressões de Michel Foucault, Roberto Machado (2017)Machado, R. (2017). Impressões de Michel Foucault. N-1., ao relatar sobre um encontro do pensador francês com um grupo de professores universitários no Rio de Janeiro, narra situações nas quais discussões destes professores com Foucault acabaram enveredando para situações de tensão provocadas pelo que ele chama de uma “disputa intelectual insuportável”. Machado conta que, após momentos desse tipo, preferiu trabalhar com alunos a trabalhar com professores, e que afirmar tais encontros faziam-no sentir que só se trabalha bem com amigos.
  • 13
    O “chão que berra” parte de uma ideia apresentada por Georges Didi-Huberman (2013Didi-Huberman, G. (2013). Cascas. Serrote: Uma Revista de Ensaios, Artes Visuais, Ideias e Literatura, (13), 99-133., p. 109) em um ensaio intitulado Cascas. Nele, o autor narra uma visita que fez ao local onde fora o campo de concentração de Auschwitz e que, a partir de 1947, foi transformado em museu. Em alguns pontos desse ensaio, o pensador francês nos alerta para uma característica presente no chão do local: “o chão berra”. Um solo castigado, arrasado, rachado pela história e que, por conta de momentos de inundação provocados pela chuva, traz para a superfície vestígios da chacina, fragmentos de ossos dos corpos assassinados. Essa imagem, esse berrar do chão, provoca inquietações nos curadores do museu, naqueles que estão visitando e, sobretudo, inquieta e faz tremer o presente. Um presente que resumiu Auschwitz a um museu de Estado, a um espaço, supostamente, neutro, a um local no qual já se está, previamente, demarcado o que será motivo de espanto - em referência às atrocidades ali cometidas, onde os visitantes, porém, estariam protegidos, como se os mortos não mais estivessem por lá. Contudo, as forças desses vestígios, que insistem em vir à superfície, mostram que o passado aterrador, dos corpos carbonizados, transformados em cinzas, está nas flores dos campos, na água do lago.
  • 14
    Práticas psi pensadas em um contexto de uma economia de circulação dos discursos e dos jogos de verdade como uma atualização da prática pastoral, operando estratégias de ortopedia, de produção de obediência por meio de dispositivos de “dependência integral” (Foucault, 2008bFoucault, M. (2008b). Segurança, Território, População: Curso dado no Collège de France (1977-1988). Martins Fontes.), “que fortalecem processos de individualização e despotencialização da vida como ação política” (Oliveira, 2015Oliveira, Sandra R. S. de. (2015). A obediência como virtude e saúde: Atualização do pastorado nas práticas psicológicas contemporâneas [Tese de doutorado, Universidade Federal Fluminense]. Repositório institucional da UFF. http://slab.uff.br/wp-content/uploads/sites/101/2021/06/2015_t_SandraRaquel.pdf
    http://slab.uff.br/wp-content/uploads/si...
    , p. 29).
  • 15
    Parte do parecer - gentilmente cedido para este artigo - de Marcelo Ferreri em ocasião da banca de qualificação de Robert do Carmo Santos (PPGPSI/UFS), em março de 2020.
  • 16
    “que não seriam definidas de modo algum pela guerra, mas por uma certa maneira de ocupar, de preencher o espaço-tempo, ou de inventar novos espaços-tempos” (Deleuze, 1992Deleuze, G. (1992). Conversações (1972-1990). Editora 34., p. 212).
  • 17
    Como nos diz Deleuze (1992)Deleuze, G. (1992). Conversações (1972-1990). Editora 34., a ideia de minoria está mais relacionada à ausência e recusa de modelos do que por uma designação numérica. Uma minoria pode ser mais numerosa que a maioria, mas esta última se define por um modelo que impõe uma conformidade, enquanto aquela se caracteriza, justamente, pela recusa do modelo, pois é um processo, um devir. De acordo com esse pensador francês, o povo é sempre uma minoria criadora; quando este cria modelos para si, pode se tornar majoritário, e, mesmo que isso pareça necessário para sua própria sobrevivência, não podemos esquecer que sua potência está na capacidade de criar - presente no modelo, mas nunca dependendo dele.
  • 18
    Pois, como nos diz Silvio de Almeida (2019Almeida, S. (2019). Prefácio à edição brasileira. In A. Haider, Armadilha da identidade: Raça e classe nos dias de hoje (pp. 1-19). Veneta., p. 17), se, por um lado, o “identitarismo” - modo pelo qual, segundo ele, se convencionou chamar no Brasil o tema das políticas identitárias - é um problema para quaisquer pleitos emancipatórios, recusar, aprioristicamente, de colocar a questão da identidade no trato dessas lutas também é igualmente um problema, já que seria impossível contar as histórias de formação social dos países da América Latina, por exemplo, ignorando as lutas políticas alinhadas com o que ele chamou de uma “concepção revolucionária de identidade”, a partir do autor tomado por ele como referência, Asad Haider.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    15 Set 2020
  • Aceito
    18 Abr 2021
Conselho Federal de Psicologia SAF/SUL, Quadra 2, Bloco B, Edifício Via Office, térreo sala 105, 70070-600 Brasília - DF - Brasil, Tel.: (55 61) 2109-0100 - Brasília - DF - Brazil
E-mail: revista@cfp.org.br