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(Sobre)viver na Rua: Narrativas das Pessoas em Situação de Rua sobre a Rede de Apoio

(About) Living on the Street: Narratives of Homeless People about the Support Network

(Sobre)vivir en la Calle: Narrativas de Personas en Situación de Calle sobre la Red de Apoyo

Resumo

A população em situação de rua (PSR), em seu cotidiano, se relaciona com diferentes pessoas, grupos e/ou coletivos ligados à execução das políticas públicas, às organizações não governamentais, familiares ou a membros da sociedade civil. Pensar nessas dinâmicas de trabalho, cooperação e auxílio remete a pensar sobre uma rede de apoio que constrói estratégias com essa população. Tendo presente essas problematizações, este estudo teve como objetivo analisar as narrativas das pessoas em situação de rua sobre como é produzida sua rede de apoio. Para tanto, foi realizado um estudo qualitativo, de orientação etnográfica, sendo utilizada a observação participante, registros em diário de campo e entrevistas narrativas. Participaram seis pessoas em situação de rua que recebem alimentação ofertada por projetos sociais em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. Os dados produzidos foram analisados a partir da Análise Temática. As análises expressam as especificidades das narrativas das trajetórias de vida associadas à chegada às ruas e à composição de uma rede de apoio na rua. Ao conhecer como se produz e opera essa rede de apoio, a partir das narrativas das pessoas em situação de rua, problematiza-se a complexidade dessa engrenagem e o desafio de produzir ações integradas entre as diferentes instâncias da rede. Nisso, destaca-se a potencialidade de práticas que levem conta à escuta, ao diálogo e à articulação na operacionalização de políticas públicas atentas às necessidades dessa população.

Palavras-chave:
Pessoas em situação de rua; Políticas públicas; Rede de apoio

Abstract

The street population, in their daily lives, relates to different people, groups and/or collectives linked to the execution of public policies, to non-governmental organizations, family members, or to members of civil society. Thinking about these dynamics of work, cooperation, and assistance leads to thinking about a support network that builds strategies with this population. Having these problematizations in mind, this study aims to analyze the narratives of homeless people about how their support network is produced. To this end, a qualitative study was carried out, with ethnographic orientation, using participant observation, records in a field diary, and narrative interviews. Participated in the research six homeless people who receive food offered by social projects in a municipality in the interior of Rio Grande do Sul. The data produced were analyzed using the Thematic Analysis. The analyzes express the specifities of the narratives of life trajectories associated with the arrival on the streets and the composition of a support network on the street. By knowing how the support network is produced and operated, the complexity of this gear and the challenge of producing integrated actions between the different instances of the network are problematized. Thus, it highlights the potential of practices that consider listening, dialogue, and articulation in the operationalization of public policies that are attentive to the needs of this population.

Keywords:
Homeless people; Public policy; Support network

Resumen

Las personas en situación de calle en su cotidiano se relacionan con distintas personas, grupos y/o colectivos, que están vinculados a la ejecución de políticas públicas, organizaciones no gubernamentales, familiares o miembros de la sociedad civil. Pensar en estas dinámicas de trabajo, cooperación y ayuda nos lleva a una red de apoyo que construye estrategias con estas personas. Teniendo en cuenta esta problemática, este estudio tiene como objetivo analizar las narrativas de las personas en situación de calle acerca de cómo se produce su red de apoyo. Con este fin, se realizó un estudio cualitativo, etnográfico, utilizando observación participante, registros de diario de campo y entrevistas narrativas. Este estudio incluyó a seis personas en situación de calle que reciben alimentos ofrecidos por proyectos sociales en una ciudad del interior de Rio Grande do Sul (Brasil). Se utilizó el Análisis Temático. Los análisis expresan las especificidades de las narrativas de las trayectorias de vida asociadas con la llegada a las calles y la composición de una red de apoyo en la calle. Al saber cómo se produce y opera la red de apoyo, a partir de las narrativas de las personas en la calle, se problematizan la complejidad de este equipo y el desafío de producir acciones integradas entre las diferentes instancias de la red. Destaca el potencial de las prácticas que tienen en cuenta la escucha, el diálogo y la articulación en la implementación de políticas públicas que estén atentas a las necesidades de esta población.

Palabras clave:
Personas en situación de calle; Políticas públicas; Red de apoyo

Vidas em situação de rua e a produção de redes de apoio

A existência de pessoas vivendo nas ruas das cidades vem de longa data. No final do século passado, percebeu-se um aumento significativo dessa população que toma como moradia os espaços públicos da cidade, praças, parques e calçadas, como também os albergues e casas de passagem (Sicari & Zanella, 2018Sicari, A. A., & Zanella, A. V. (2018). Pessoas em situação de rua no Brasil: revisão sistemática. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(4), 662-679. https://doi.org/10.1590/1982-3703003292017
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), passando a ser denominada como população em situação de rua (PSR).

Várias são as nomenclaturas utilizadas para definir a PSR associadas a determinadas perspectivas sociais, econômicas e políticas (Cunda & Silva, 2020Cunda, M. F., & Silva, R. N. (2020). Me chamam rua, população, uma situação: os nomes da rua e as políticas da cidade. Psicologia & Sociedade, 32, e223876. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2020v32223876
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). No Brasil, o termo “morador de rua” ou “povo de rua” dá lugar à “população em situação de rua”, o que aponta para uma pluralidade de condições que levam pessoas à rua e à consequente necessidade de organização social e de luta por direitos, até então invisibilizados. Essa mudança na denominação demarca um posicionamento que busca ultrapassar visões assistencialistas, impregnadas de estigma e generalização dos modos de vida na rua, e passa a priorizar a construção de ações voltadas para um sujeito de direitos (Rosa, 2005Rosa, C. M. M. (2005). Vidas de rua. Hucitec: Associação Rede Rua.; Schuch & Gehlen, 2012aSchuch, P., & Gehlen, I. (2012a). A “situação de rua” para além de determinismos: explorações conceituais. In A. Dorneles, J. Obst & M. Silva (Orgs.), A rua em movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre (pp. 27-41). Didática Editora do Brasil.).

A partir dos anos 2000, acompanha-se um crescente desenvolvimento de políticas públicas voltadas a essa população, que consideraram a composição de grupos heterogêneos, a pobreza extrema, os vínculos fragilizados ou rompidos e o espaço da rua como seu local de moradia e sustento, os principais aspectos que definem a PSR (Brasil, 2006Brasil. (2006). Relatório do I Encontro Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério Do Desenvolvimento Social E Combate À Fome.; Brasil, 2009Brasil. (2009). Rua: Aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.; Brasil, 2012Brasil. (2012). Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Ministério da Saúde.). Inclusive, há estudos que destacam a possibilidade de se considerar aspectos que enfatizem definições associadas à diversidade, às potencialidades e às singularidades existentes na rua (Broide, Broide, Schor, 2018Broide, E. E., Broide, J., & Schor, S. M. (Coords.). (2018). População de rua: pesquisa social participativa, censo, perfil demográfico e condições de vida na cidade de São Paulo. Juruá.; Rosa, 2005Rosa, C. M. M. (2005). Vidas de rua. Hucitec: Associação Rede Rua.; Schuch & Gehlen, 2012bSchuch, P., & Gehlen, I. (2012b). Desafios metodológicos ao estudar populações “em situação de rua”. In A. Dorneles, J. Obst & M. Silva (Orgs.), A rua em movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre (pp. 27-41). Didática Editora do Brasil.; Silva, 2017Silva, E. S. (2017). Me apoia aí: para entender tem que conviver: um grupo com pessoas em situação de rua e seus agires em saúde [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul].). Nesse sentido, a PSR demarca uma categoria social complexa ao se considerar os múltiplos processos sociais de vulnerabilização que a produzem e a condicionam, antes mesmo da ida para as ruas, o que implica na orientação de análises que não a reduzam a perspectivas individuais e patologizantes (Mendes, Ronzani, & Paiva, 2019Mendes, K. T., Ronzani, T. M., & Paiva, F. S. de. (2019). População em situação de rua, vulnerabilidades e drogas: uma revisão sistemática. Psicologia & Sociedade , 31, e169056. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31169056
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).

Neste estudo, o uso da terminologia “população em situação de rua” reporta-nos à heterogeneidade, à pluralidade de condições, mas, também, às existências singulares, aos seus protagonismos e direitos (Silva, 2017Silva, E. S. (2017). Me apoia aí: para entender tem que conviver: um grupo com pessoas em situação de rua e seus agires em saúde [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul].). De modo a dar visibilidade às trajetórias de vida, às vivências relacionais e afetivas imersas na “situação de rua”, parte-se de um esforço de reiterar a complexidade das análises, ao enfatizar as potencialidades presentes nas ruas e a necessidade de valorizar a dimensão situada daqueles que fazem da rua seu espaço de moradia. O estar na rua é visto como um processo, uma transitoriedade que permeia o cotidiano e a busca por (sobre)viver na rua. Por isso, cabe indagar: como são produzidas as estratégias para sobreviver nas ruas? Quais as redes são acionadas? Quais são as narrativas da PSR sobre a produção de sua rede de apoio?

A elaboração de possíveis respostas para essas questões leva em conta que a PSR se relaciona com diferentes atores sociais, seja nas políticas públicas, nas instituições governamentais, nas organizações não governamentais ou na sociedade civil (Broide et al., 2018Broide, E. E., Broide, J., & Schor, S. M. (Coords.). (2018). População de rua: pesquisa social participativa, censo, perfil demográfico e condições de vida na cidade de São Paulo. Juruá.). O “estar em situação de rua” estabelece dinâmicas de trabalho, cooperação e auxílio, associadas a uma rede de apoio que constrói estratégias de sobrevivência com essas pessoas.

A rede de apoio é definida pelo tecer dos fios entre conhecimento, cuidado, atenção e acolhimento, que ligam os diferentes atores ao trabalho com as pessoas em situação de rua. Além disso, ela também contempla o emaranhado entre a abordagem e o cuidado, disposto tanto pela sociedade civil quanto pelos projetos sociais que distribuem alimentos para essa população, a oferta de escuta especializada e referência no território dos serviços e dos profissionais que trabalham nas políticas públicas, a cooperação e as trocas vivenciadas nas ruas entre a PSR. Ao compreender que a produção da rede de apoio é situada no território, inerente à construção com todos os atores envolvidos, vislumbra-se possibilidades de intervenções que fortaleçam suas potencialidades, a visibilidade das suas necessidades e que operem em prol da garantia de direitos. Historicamente, está presente no Brasil o somatório de práticas tanto de instituições públicas quanto não governamentais, que juntas se complementam e oferecem cuidados e atendimento à PSR (Vieira, Bezerra, & Rosa, 1992Vieira, M. A. da C., Bezerra, E. M. R., & Rosa, C. M. M. (1992). População de rua: quem é, como vive, como é vista. Hucitec.). O trabalho com essa parcela populacional demanda articulações entre esses diferentes atores, a fim de pactuar trocas de experiências efetivas para qualificar a atuação, além de ser uma potente ferramenta de colaboração mútua de trabalho (Broide et al., 2018Broide, E. E., Broide, J., & Schor, S. M. (Coords.). (2018). População de rua: pesquisa social participativa, censo, perfil demográfico e condições de vida na cidade de São Paulo. Juruá.).

No campo das políticas públicas, constatam-se avanços em relação à garantia de direitos, em prol de um atendimento integral, numa perspectiva intersetorial, que visa romper com práticas tutelares e assistencialistas. O processo de mobilizações e lutas culminou na aprovação da Política Nacional para a População em Situação de Rua (Brasil, 2009Brasil. (2009). Rua: Aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.) e na implantação de serviços específicos ligados à saúde e à assistência social, como o Consultório na Rua e o Centro Pop. No que pese a importância e o reconhecimento dessas políticas públicas, suas implantações e operacionalizações ainda seguem sendo um desafio diante de um panorama de cortes de recursos e de não investimento. Da mesma forma, tal desafio se estende à efetivação de práticas intersetoriais que considerem o cuidado e o respeito à construção de vínculos, um olhar pautado nas potencialidades dos sujeitos e uma postura profissional que demande objetivos técnicos, sociais e éticos (Silva, 2017Silva, E. S. (2017). Me apoia aí: para entender tem que conviver: um grupo com pessoas em situação de rua e seus agires em saúde [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul].).

Ao levar em conta que a rede de apoio deve contemplar possibilidades de ajuda, escuta e construções coletivas, ao invés de prescrever uma solução, propõem-se um “pensar juntos” com as narrativas da PSR. A partir do encontro com os diferentes saberes, compõem-se um itinerário de cuidado pactuado numa perspectiva da rede de apoio. Sendo assim, e tendo presente as narrativas das singularidades das histórias das vidas que habitam a rua, as especificidades dos processos que ressignificam o sobre(viver) nesse ambiente, em diferentes pontos da cidade, e os elementos que constituem sua rede de apoio, este estudo objetivou analisar as narrativas dessa população sobre como é produzida essa rede de apoio.

A caminhada metodológica

O estudo seguiu uma perspectiva etnográfica (Geertz, 2002Geertz, C. (2002). Obras e vidas: o antropólogo como autor. Editora UFRJ.; Oliveira, 1996Oliveira, R. C. (1996). O trabalho do antropólogo: olhar, ouvir, escrever. Revista de Antropologia, 39(1), 13-37. http://www2.fct.unesp.br/docentes/geo/necio_turra/MINI%20CURSO%20RAFAEL%20ESTRADA/TrabalhodoAntropologo.pdf
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) e foi realizado em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. O município possui uma população estimada de 211.005 pessoas (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 2019Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2019). Estimativas da população residente com data de referência 1o de julho de 2019. IBGE. https://cidades.ibge.gov.br/brasil/rs/rio-grande/panorama
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), caracteriza-se como uma cidade portuária e litorânea, e com uma população advinda de diversas regiões do estado e do país.

Esta pesquisa ocorreu entre os meses de abril e setembro de 2019, com a inserção da primeira autora nas atividades de um projeto social que oferece refeições à PSR, junto ao espaço da geladeira e cozinha comunitária, no centro da cidade. A equipe de voluntários do projeto social realiza a preparação das refeições e as distribui em marmitas às pessoas, no local e pelas ruas da cidade.

A partir da inserção na equipe, além de acompanhar as atividades desenvolvidas pelo grupo, foi possível familiarizar-se com o campo, se aproximar dos participantes, conhecendo o contexto no qual vivem e acompanhar seus modos de estar e (sobre)viver na rua, além de compreender os elementos que compõem a rede de apoio à PSR.

Para a produção dos dados, foram utilizados a observação participante, registros em diário de campo e a realização de entrevistas narrativas (Jovchelovitch & Bauer, 2002Jovchelovitch, S., & Bauer, M. W. (2002). Entrevista narrativa. In M. W. Bauer & G. Gaskel, Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático (pp. 90-113). Vozes.), tendo participado das entrevistas seis pessoas em situação de rua vinculadas ao projeto social.

A entrevista narrativa foi composta por questões sociodemográficas, como idade, cor da pele, estado civil e tempo em situação de rua, e por questões norteadoras relacionadas ao processo de ida para rua, à produção de uma rede de apoio e a planos futuros. Na condução das entrevistas, priorizou-se a composição de espaços de escuta das histórias de vida, sendo flexível para acolher outras temáticas que poderiam emergir. Ao longo do texto, foram utilizados nomes fictícios para preservar a identidade dos participantes.

As entrevistas foram gravadas e transcritas, e o material produzido foi analisado a partir da Análise Temática (Braun & Clarke, 2006Braun, V., & Clarke, V. (2006). Using Thematic Analysis in Psychology. Qualitative Research in Psychology, 3(2), 77-101. https://doi.org/10.1191/1478088706qp063oa
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; Clarke & Braun, 2013Clarke, V., & Braun, V. (2013). Teaching Thematic Analysis. Methods, 26(2), 120-123.) que, por sua vez, procurou identificar os temas geradores e representativos relacionados às trajetórias de vida ligadas à produção da rede de apoio oferecida e produzida pela PSR. Com isso, produziu-se dois eixos temáticos: a) Trajetórias de vida e rua - narrativas da chegada às ruas - e b) Quem apoia na rua - narrativas sobre a composição de redes de apoio.

Trajetórias de vida e rua: narrativas da chegada às ruas

A vida às vezes a gente se prepara para uma coisa, e acontece outra muito diferente…” (Daniel)

Nesta categoria serão apresentados os participantes da pesquisa, com enfoque nas narrativas de vida associadas à ida para a rua. Entre os fatores desencadeadores desse fenômeno, estão rupturas, conflitos, fragilização dos vínculos afetivos e familiares, a dependência química e questões econômicas, sociais e de saúde.

Antônio, 31 anos, negro, solteiro, está em situação de rua há 10 anos. Conta que obtém sua renda por meio do Programa Bolsa Família e das atividades laborais que realiza como cuidador de carro, vendedor de frutas, como “chapa”, na carga e descarga de caminhões. E conclui: “o que aparecer a gente faz aí também”. Refere-se ao uso de álcool e de crack, mas nega problemas de saúde, “nesses 10 anos nunca parei dentro do hospital”.

Bruno, 47 anos, branco, viúvo, está em situação de rua há três dias. Relembra que sua vida mudou após a morte de sua esposa há 12 anos: “com a perda dela, a minha vida foi abaixo, como as lágrimas foram, minha vida também. Foi quando eu comecei a usar droga, e essa droga só me tirou, não me deu nada”. Conta que começou a trabalhar, que tem expectativas de conseguir se organizar financeiramente e, assim, sair das ruas. Diz depender da manutenção do tratamento contra o HIV e não usar crack há uma semana.

Carlos, 31 anos, pardo, solteiro, está em situação de rua há um ano e nove meses. Relata que obtém seu sustento por meio das atividades nas ruas, como cuidar de carros e pedir nas casas. Menciona que sua família é seu principal apoio, especialmente seu pai. Admite fazer uso de álcool e de crack, mas diz não ter nenhum problema de saúde.

Daniel, 69 anos, pardo, enfatiza que foi casado oito vezes, tem oito filhos e cinco netos. Conta que está em situação de rua há sete meses e que obtém seu sustento somente de seu trabalho como catador de materiais recicláveis. Sobre sua saúde, comenta que possui problemas de labirintite, que o impossibilitou de renovar a sua habilitação de motorista, fato que ocasionou mudanças importantes em sua vida, já que trabalhava como caminhoneiro. Relata fazer uso de álcool e ressalta a companhia de seu cachorro, que o ajuda a cuidar da carroça de materiais reciclados e do local onde costuma pernoitar.

Eduardo, 33 anos, branco, solteiro, possui uma filha de cinco meses e está em situação de rua há um ano. Segundo ele, obtém seu sustento com doações de pessoas, cuidando de carros e por meio do Programa Bolsa Família. Diz que é “muito nervoso” e que, por isso, já fez uso de medicação para “se acalmar”. Além disso, chegou a dizer que o nascimento da filha tem sido sua motivação para sair das ruas e deixar o vício em álcool e em outras drogas.

Fernando, 29 anos, pardo, possui uma companheira e está há 12 anos em situação de rua. Como forma de buscar sustento, cuida de carros, vende balas, vende suco no verão, pede dinheiro no semáforo, cata latas de alumínio, e recebe o benefício do Programa Bolsa Família. Relata ter problemas com o uso de crack.

Os dados sociodemográficos dos participantes corroboram com outros estudos realizados a nível nacional (Brasil, 2009Brasil. (2009). Rua: Aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.), em São Paulo (Broide et al., 2018Broide, E. E., Broide, J., & Schor, S. M. (Coords.). (2018). População de rua: pesquisa social participativa, censo, perfil demográfico e condições de vida na cidade de São Paulo. Juruá.) e Porto Alegre (Schuch, Gehlen, & Santos, 2017Schuch, P., Gehlen, I., & Santos, S. R. dos. (2017). População de rua: políticas públicas, práticas e vivências. CirKula.), que traçam o perfil geral da PSR. No Brasil, tal população é majoritariamente masculina (82%), em São Paulo, o número de homens em situação de rua é três vezes maior do que o de mulheres e, em Porto Alegre, 85% das pessoas que estão nas ruas são homens. No que tange à identificação raça/cor, três dos participantes da presente pesquisa se autodeclaram pardos, dois deles, brancos, e um deles, negro. Dados semelhantes foram encontrados na pesquisa nacional, na qual 67% da PSR se autodeclara negra (Brasil, 2009Brasil. (2009). Rua: Aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.). Assim, como em Porto Alegre, 36,9% dos participantes se autodeclaram pretos ou pardos (Schuch et al., 2017Schuch, P., Gehlen, I., & Santos, S. R. dos. (2017). População de rua: políticas públicas, práticas e vivências. CirKula.) e, em São Paulo, o grupo de “não brancos” compõem 73% do total da população, constituindo a maior parte da PSR (Broide et al., 2018Broide, E. E., Broide, J., & Schor, S. M. (Coords.). (2018). População de rua: pesquisa social participativa, censo, perfil demográfico e condições de vida na cidade de São Paulo. Juruá.).

Em relação aos fatores desencadeadores da ida para as ruas, os participantes referiram como principais motivos a dependência química, os desentendimentos familiares e a falta de oportunidades de emprego e geração de trabalho e renda. Os estudos ainda indicam que esses fatores da ida às ruas são complexos e estão relacionados justamente com as perdas familiares, os vínculos desfeitos, desemprego e a dependência química (Brasil, 2009Brasil. (2009). Rua: Aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.; Broide et al., 2018Broide, E. E., Broide, J., & Schor, S. M. (Coords.). (2018). População de rua: pesquisa social participativa, censo, perfil demográfico e condições de vida na cidade de São Paulo. Juruá.; Schuch et al., 2017Schuch, P., Gehlen, I., & Santos, S. R. dos. (2017). População de rua: políticas públicas, práticas e vivências. CirKula.).

Durante a entrevista, Fernando relembrou situações de conflitos familiares e que, devido ao uso de drogas, foi para as ruas, e explica: “eu não queria dar trabalho para minha família, e eu vim para rua, na rua não dou trabalho para ninguém, não dou preocupação para ninguém, faço a minha e pronto”.

Já Bruno relembra que, após a morte de sua esposa, vivenciou outras perdas em sua vida, como do trabalho e de moradia, que contribuíram para o agravo de sua dependência química, e que esses fatores associados acabaram desencadeando na situação de rua:

Eu perdi minha esposa e comecei a usar crack. . . . Então o que me trouxe assim, a vir para rua foi a falta de, na verdade eu não vou mentir, foi a fome mesmo. Em casa não tinha nada, não tô trabalhando, minha família não quer saber de mim, porque no caso, eu era usuário.

A narrativa de Bruno encadeia uma trajetória de vida em que a ida para a rua se associa ao uso de drogas, ao desemprego e à fome. Isso sinaliza e faz pensar sobre a complexidade de fatores sociais, econômicos e políticos que produzem processos de vulnerabilização (Mendes et al., 2019Mendes, K. T., Ronzani, T. M., & Paiva, F. S. de. (2019). População em situação de rua, vulnerabilidades e drogas: uma revisão sistemática. Psicologia & Sociedade , 31, e169056. https://doi.org/10.1590/1807-0310/2019v31169056
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). Schuch e Gehlen (2012bSchuch, P., & Gehlen, I. (2012b). Desafios metodológicos ao estudar populações “em situação de rua”. In A. Dorneles, J. Obst & M. Silva (Orgs.), A rua em movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre (pp. 27-41). Didática Editora do Brasil.) fazem referência às rupturas e mobilidades que permeiam e marcam a vida e as relações dessa população, de modo que, muitas vezes, a ida para a rua acontece em decorrência de rupturas sociais, afetivas, profissionais e familiares e, em outras, ainda são provocadas por questões de saúde e de dependência química.

Aliás, sobre a dependência química, outros dois participantes mencionaram o uso de drogas e mudanças em diferentes âmbitos de suas vidas. Carlos refaz sua trajetória de vida, relembrando: “Foi assim, eu trabalhava e coisa e tal, aí eu comecei a usar bastante droga, até então eu perdi quase todo tempo da minha vida usando essa porcaria aí”. As questões que envolvem a dependência química exigem estratégias e abordagens que visem à diminuição do dano e que promovam a saúde compatível com as demandas das pessoas (Brasil, 2012Brasil. (2012). Manual sobre o cuidado à saúde junto à população em situação de rua. Ministério da Saúde.). Além disso, atentar para as condições de vulnerabilização (Ayres, Franca Junior, Calazans, & Saletti Filho, 2003Ayres, J. R. C. M., Franca Junior, I., Calazans, G. J., & Saletti Filho, H. C. (2003). O conceito de vulnerabilidade e as práticas de saúde: novas perspectivas e desafios. In D. Czeresnia & C. M. Freitas (Orgs.), Promoção da saúde: conceitos, reflexões, tendências (pp. 121-143). Fiocruz.) que a PSR está exposta cotidianamente implica em considerar os riscos do contexto e em priorizar ações e políticas públicas que contemplem a perspectiva dos sujeitos envolvidos, estreitando relações entre saúde e os modos de vida dos sujeitos, atravessadas por fatores desiguais das determinações da saúde (Oliveira, 2018Oliveira, R. G. (2018). Práticas de saúde em contextos de vulnerabilização e negligência de doenças, sujeitos e territórios: potencialidades e contradições na atenção à saúde de pessoas em situação de rua. Saúde e Sociedade, 27(1), 37-50. https://dx.doi.org/10.1590/s0104-12902018170915
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).

Constatou-se, também, a partir das narrativas analisadas, que há uma fragilização nas relações afetivas entre os participantes entrevistados e seus familiares, contudo, essas relações ainda fazem parte da vida desses sujeitos. Ou seja, “estar em situação de rua não significa necessariamente que houve rompimento definitivo de vínculos familiares” (Kunz, Heckert, & Carvalho, 2014Kunz, G. S., Heckert, A. L., & Carvalho, S. V. (2014). Modos de vida da população em situação de rua: inventando táticas nas ruas de Vitória/ES. Fractal: Revista de Psicologia, 26(3), 919-942. https://doi.org/10.1590/1984-0292/1192
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, p. 937), como pode ser percebido na fala de Fernando: “Claro tenho, tenho contato com a minha família, sim. Eu só não tô lá porque eu não quero. Porque eu prefiro a rua, já me acostumei a ficar na rua, aí eu fico na rua”. E, igualmente, na fala de Antônio: “Tenho com todos meus parentes, os próximos, meus irmãos, minha mãe. . . . Tão aqui, eu que não procuro morar mais, mas eu me dou com todo mundo, mas só de visita só, parente”. Outros participantes também disseram possuir conexões com os familiares, seja por meio de uma visita à residência onde moravam, um contato via redes sociais ou por telefonemas, ou ainda pela ajuda recebida por algum membro da família.

Além disso, evidenciou-se que mesmo fragilizado o vínculo familiar também pode ser considerado como parte da rede de apoio a dois dos participantes. Eduardo menciona o convite de sua família para estar mais perto: “Eles mandaram eu ir para lá, mas eu não gosto, eu gosto de viver sozinho. Parente bom é longe do cara, para nós não tá brigando ou se incomodando, cada um já tem uma mania, mano”. Já Carlos, ressalta a importância do apoio recebido de seu pai em relação às suas demandas de alimentação e agasalho: “Quem me apoia de verdade é meu pai, só meu pai. Meu pai passa aqui toda hora, e me apoia em alguma coisa, bagulho de comida, traz panelão de comida ou tenta me dar dinheiro”.

Identifica-se nas narrativas dos participantes que, mesmo com histórico de rupturas e as especificidades dos fatores que desencadearam a situação de rua, ainda está presente o contato com familiares, mesmo que de forma pontual. Apesar das situações conflituosas e de rompimento dos vínculos familiares que possam ser consideradas desencadeadoras da ida para rua, ressalta-se que algum tipo de contato com os familiares se mantém, demonstrando, assim, que tais vínculos não foram rompidos completamente após a saída de casa, e que o trabalho de fortalecimento de vínculos é uma potente ferramenta (Brasil, 2009Brasil. (2009). Rua: Aprendendo a contar: Pesquisa Nacional sobre População em Situação de Rua. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.).

Os dados produzidos reafirmam a importância de o trabalho nas políticas públicas estar alicerçado em ações que contemplem a acolhida, escuta e vínculo (Souza, Mesquita, & Sousa, 2017Souza, S. E. F. de, Mesquita, C. F. B., & Sousa, F. S. P. de. (2017). Abordagem na rua às pessoas usuárias de substâncias psicoativas: um relato de experiência. Saúde em Debate, 41(112), 331-339. https://doi.org/10.1590/0103-1104201711226
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). Para isso, é necessário compreender as diferentes trajetórias de vida e contextos familiares, afetivos, históricos, sociais e culturais da PSR. Objetivando, desse modo, a construção de propostas de intervenção que dialoguem com as demandas dos sujeitos em prol da constituição de projetos de vida, que potencializem as redes de identificação e apoio mútuo conforme a singularidade de cada sujeito envolvido (Crepop, 2016Crepop. (2016). Nota técnica com parâmetros para atuação as (os) profissionais de psicologia no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Conpas. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2016/12/Nota-técnica-web.pdf
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). Para isso, deve-se contar com uma proposta de trabalho intersetorial, com a atuação multiprofissional e com articulação em rede, no intuito de proporcionar uma atenção integral à PSR.

Quem apoia na rua: narrativas sobre a composição de redes de apoio

A galera apoia dentro de uma possibilidade” (Antônio).

Nesta categoria será apresentada a produção da rede de atenção à PSR, no intuito de compreender as estratégias utilizadas para sobreviver nas ruas. Para isso, são delineados os caminhos percorridos na busca para satisfazer as demandas por alimentação, vestuário, higiene pessoal, abrigo, saúde e garantia de direitos.

A partir das narrativas, pôde-se compreender que a rede de apoio à PSR é composta por quatro eixos: a) as instituições governamentais pactuadas pelas políticas públicas; b) as entidades não governamentais que atendem as demandas de alimentação e vestuário; c) a sociedade civil e a família, que apoiam com donativos em geral; e d) a própria PSR, que por meio de suas relações e rotinas são fontes de acolhimento e apoio mútuo.

De modo situado, é necessário diferenciar a sociedade civil ou a família das entidades não governamentais, pois, a partir das narrativas, compreende-se que para a PSR os atores que compõem a sociedade civil são os restaurantes, lancherias, padarias e pessoas que dispõem de alguma oferta de alimentação, agasalho ou auxílio financeiro. Já as entidades não governamentais são identificadas como os projetos sociais e grupos de alimentação que se reúnem semanalmente e distribuem alimentação e agasalhos para ela durante a noite.

Entre os serviços governamentais implantados no município por meio das políticas públicas, estão o Centro de Referência Especializado de Assistência Social para População em Situação de Rua (Centro Pop) e o Serviço Especializado em Abordagem Social (SEAS), ambos dispositivos da política pública de assistência social, o albergue municipal, conveniado a uma organização não governamental, a Secretaria Municipal de Cidadania e Assistência Social, e, no âmbito da saúde, o Consultório na Rua. Cada um dos participantes, com suas especificidades, mencionou acessar tais dispositivos governamentais e fazer uso dos serviços ofertados em cada instituição.

Os participantes apontaram a necessidade de recorrer às instituições governamentais como estratégia para garantir as necessidades básicas, como alimentação, vestuário e higiene pessoal. Carlos relembra que buscou o dispositivo de assistência quando suas opções de lugares para banho haviam sido negadas, e conta: “fui no Centro Pop, foi uma vez só, que eu precisava muito tomar um banho”. Ao mencionar sobre o apoio recebido do albergue, Bruno descreve que “eles dão uma refeição, tem direito a um banho, que é pô, um banho faz falta para o pessoal que anda caminhando”.

Já Antônio se refere ao Centro Pop como um lugar que faz parte de sua rotina, ele relata: “costumo frequentar lá, dar uma banda, se alimentar. . . A galera apoia dentro de sua possibilidade”. Fernando, quando questionado sobre quem ele considera que o apoia, responde: “Deus, ele que me dá saúde e que me mantém vivo. E pra tomar banho e comer, é ali no Centro Pop e Albergue e o pessoal na rua que dá uma força, que entregam comida”.

Mesmo que de forma esporádica, uma parcela dos participantes admitiu fazer uso dos serviços ofertados pela assistência social, seja para o acesso à garantia de direitos, ao auxílio para realização de consulta médica, ou ao encaminhamento de documentação de identificação em tais dispositivos.

O acesso à alimentação, a higiene pessoal, as necessidades fisiológicas, o vestuário e abrigo são considerados necessidades básicas do ser humano (Costa, 2005Costa, A. P. M. (2005). População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos & Contextos, 4(1), 1-15. http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/993/773
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). Sendo assim, a implantação e a oferta de serviços de assistência social se tornam a porta de entrada da PSR à garantia desses direitos básicos e dos direitos relacionados à cidadania. Quando foi perguntado quem lhe apoiava na rua, Daniel informou: “isso tem lá, tem lá o Centro Social, lá no final do Canalete, o M [educador social do SEAS] é quem tá me apoiando, me auxiliando assim nos documentos, documentação nova e tá assim”.

Há garantias na legislação de acesso à saúde da PSR por meio do Consultório na Rua, entretanto, tal dispositivo não pode ser a única porta de acesso dessas pessoas à saúde (Brasil, 2014Brasil. (2014). Saúde da população em situação de rua: um direito. Ministério da Saúde.). É preciso uma comunicação entre os dispositivos específicos que atendem essa população e os demais serviços de saúde, como as Unidades Básicas de Saúde (UBS), laboratórios e redes hospitalares.

Como prevê a Portaria nº 940, de 28 de abril de 2011 (Ministério da Saúde, 2011Ministério da Saúde. (2011). “Portaria nº 940/2011”. Diário Oficial da União seção 1, 82 (maio): 58. http://www.saude.mt.gov.br/upload/documento/4/portaria-ministerial-n-940-regulamenta-o-sistema-cartao-nacional-de-saude-[4-050511-SES-MT].pdf
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), estão dispensados para os ciganos, nômades e moradores de rua a exigência de apresentar o endereço do domicílio permanente para aquisição do Cartão SUS, assim como para posterior acesso aos serviços de saúde (Brasil, 2014Brasil. (2014). Saúde da população em situação de rua: um direito. Ministério da Saúde.). No entanto, sabe-se que muitas vezes a realidade encontrada é diferente; na maioria das cidades brasileiras os serviços de saúde ainda não estão adequados às necessidades e realidades da PSR (Costa, 2005Costa, A. P. M. (2005). População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos & Contextos, 4(1), 1-15. http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/993/773
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). Como no caso de Eduardo, que relatou que precisou buscar ajuda da equipe do Centro Pop para conseguir acessar o atendimento médico.

A partir da discussão produzida, e de acordo com as “Orientações técnicas: Centro de Referência especializado para População em situação de Rua e serviço especializado para Pessoas em Situação de Rua” (Brasil, 2011Brasil. (2011). Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua - Centro Pop. Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.), acredita-se que as políticas públicas devem atuar na garantia dos direitos desses sujeitos, contemplando os aspectos da sua existência relacionados à saúde, assistência, educação e, fundamentalmente, à cidadania. Para tanto, é essencial um trabalho que leve em conta o contexto em que a PSR está inserida, assim como a articulação entre os diferentes âmbitos, a fim de construir uma pactuação na lógica intersetorial, potencializando, enfim, o trabalho em rede. No entanto, compreende-se que há desafios, falhas e potencialidades presentes na articulação em rede que, muitas vezes, se encontra fragilizada devido à precarização da estrutura dos serviços e do trabalho. Nesse sentido, deve-se considerar a constância do corte de verbas e dos investimentos direcionados à qualificação, ampliação e à manutenção dos serviços e dispositivos previstos nas políticas públicas, esses entraves que fragilizam a operacionalização de ações que visam a garantia dos direitos das pessoas em situação de rua por meio dessas mesmas políticas e que abrem espaço para atuação de instituições não governamentais.

Em referência ao apoio oferecido pelas instituições não governamentais, identificaram-se seis projetos sociais, em sua maioria ligados a organizações religiosas que se reúnem para distribuir alimentação e agasalhos durante a semana e à noite. Próximo ao centro da cidade há uma estrutura de uma cozinha industrial, utilizada por alguns dos grupos, para produção e distribuição de alimentação e, junto a esse espaço, está a geladeira comunitária. O funcionamento da geladeira pode ser traduzido pela frase “quem tem, põe, quem não tem, tira”.

Coabitam com o processo de efetivação das políticas públicas as práticas de atendimento à PSR prestadas por entidades filantrópicas ou religiosas. Essas práticas remontam às primeiras iniciativas de atenção e cuidado a essa população advindas de grupos religiosos e filantrópicos, os quais buscavam suprir as necessidades básicas de alimentação e agasalhos para os “sofredores da rua” (Schuch & Gehlen, 2012aSchuch, P., & Gehlen, I. (2012a). A “situação de rua” para além de determinismos: explorações conceituais. In A. Dorneles, J. Obst & M. Silva (Orgs.), A rua em movimento: debates acerca da população adulta em situação de rua na cidade de Porto Alegre (pp. 27-41). Didática Editora do Brasil.). Os projetos sociais, as organizações não governamentais, atendem as necessidades básicas, como alimentação, vestuário, acolhida e/ou abrigo, e atuam em conjunto com a rede de serviços socioassistenciais, integrando ações solidárias da sociedade civil e compondo estratégias para que a PSR supra suas necessidades básicas e sobrevivam nas ruas (Costa, 2005Costa, A. P. M. (2005). População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos & Contextos, 4(1), 1-15. http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/993/773
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). Vale ressaltar a importância de se atentar a essas práticas, que, se por um lado apontam para a organização social de grupos e coletivos solidários na efetivação de direitos, por outro, podem remontar a práticas assistencialistas que vão de encontro à luta pela garantia de direitos, autonomia e protagonismo dessa população. E ressaltam as lacunas de atenção e assistência não efetivadas pelas políticas públicas.

O apoio recebido pelas instituições não governamentais foi mencionado por todos os participantes. Antônio relembra que o apoio oferecido pelas entidades religiosas existe há algum tempo na cidade e, segundo ele, “as igrejas ajudam mais, sempre ajudaram, antes de ter o Centro Pop, o Centro Pop é novo. O Centro Pop tem cinco anos, eu vivo a 10 na rua”. Também recorda que a primeira ajuda que recebeu nas ruas foi da igreja, e conta: “O V. ajudava bastante também, no início que eu caí na rua. . . Ele dava café da manhã todos os dias, era o Centro Pop da católica”. Fernando também mencionou o apoio recebido das entidades religiosas logo que chegou às ruas, relembrando que não havia serviços governamentais na época. Sendo assim, no município do estudo se constatou a presença de setores religiosos na operacionalização de dispositivos das políticas públicas, por vezes não havendo uma separação entre práticas assistencialistas-religiosas e práticas ancoradas na garantia de direitos.

Os demais participantes mencionaram a geladeira comunitária como o principal local de apoio à alimentação, onde buscam refeições sempre que necessitam. Para Carlos, a geladeira atende as demandas da população: “primeiro lugar a geladeira, né, a geladeira aqui apoia qualquer um”. Fernando também diz que a geladeira é acessada pela população em geral. Quando perguntado se considera a geladeira como parte da rede de apoio, responde: “mas a geladeira aqui é apoio da cidade, entendesse? É, todo o pessoal da cidade vem aqui e traz comida aqui na geladeira, quem tem. Quem não tem tira, quem tem? Tá escrito ali, ó”.

A “geladeira”, como é nomeada pelos participantes, pode ser considerada uma “boca de rango” (Kunz et al., 2014Kunz, G. S., Heckert, A. L., & Carvalho, S. V. (2014). Modos de vida da população em situação de rua: inventando táticas nas ruas de Vitória/ES. Fractal: Revista de Psicologia, 26(3), 919-942. https://doi.org/10.1590/1984-0292/1192
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; Vieira et al., 1992Vieira, M. A. da C., Bezerra, E. M. R., & Rosa, C. M. M. (1992). População de rua: quem é, como vive, como é vista. Hucitec.), pois é reconhecida como um espaço para se alimentar sempre que necessário e os participantes se organizam nos horários e dias da semana em que há maior disponibilidade de comida. Em suas narrativas, a geladeira aparece como parte da rede de apoio para alimentação e sobrevivência diária: “sempre há comida”, “a geladeira é uma benção” e “sempre pego comida ali”.

Além da geladeira e dos projetos sociais, os participantes também relataram o apoio que recebem da sociedade civil e de seus familiares. A exemplo disso, Fernando conta que:

Tem mais uns restaurantes aí, que eu não me lembro o nome, chega e eles me fornecem o almoço, mas só depois das 2 horas também, senão eles não fornecem, antes não dá, mas, depois das 2 horas, é só chegar ali, que eles arrumam ali um marmitex.

Além da oferta de alimentação, observa-se a construção de relações afetivas em meio aos apoios recebidos e oferecidos. Daniel comenta o apoio recebido de um estabelecimento comercial: “Sim, sim, o dono da F. ali, sempre que eu passo ali ele sempre me apoia em alguma coisa, sempre tem algo”. E também menciona a relação que possui com os vigilantes que trabalham na agência bancária, onde costuma pernoitar na marquise. Conta que, muitas vezes, os trabalhadores ao chegarem de manhã cedo conversam com ele e demonstram preocupação com sua situação de rua.

O “estar em situação de rua” é permeado por relações das mais variadas formas. Segundo Vale e Vecchia (2019Vale, A. R., & Vecchia, M. D. (2019). “UPA é nós aqui mesmo”: as redes de apoio social no cuidado à saúde da população em situação de rua em um município de pequeno porte. Saúde e Sociedade , 28(1), 222-234. https://doi.org/10.1590/s0104-12902019180601
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), o cuidado comunitário oferecido pela rede de apoio social pode ser considerado um determinante para o acesso à diversos recursos e garantias de direitos básicos, principalmente em cidades de pequeno e médio porte. Constitui essa rede de apoio social diversos atores, tais como: famílias, vizinhos, amigos e ações de voluntários, as quais são fundamentais no cotidiano e na oferta de cuidado nas ruas.

Em relação ao apoio oferecido pelos familiares, é plausível considerar as especificidades dos vínculos existentes entre os participantes e seus familiares que, mesmo de forma fragilizada, fazem parte da rede de apoio aos participantes. Como enfatiza Eduardo, ao mencionar o apoio que recebe da sua família, tanto em relação à alimentação quanto à higiene pessoal: “meus parentes me apoiam cara. Tem uns primos meus que me apoiam no banho. No aeroporto ali, tem uma família que me apoia. Tem também minha família, me apoia, mano, minha mãe, minha família”.

No processo de estar em situação de rua a garantia dos recursos que primam pela sobrevivência se dá por meio de redes de solidariedades, as quais são tecidas a partir das relações estabelecidas entre os sujeitos. Como se pode acompanhar nas narrativas, muitas vezes o apoio recebido à PSR é ofertado por diferentes pessoas com vínculos estabelecidos no contexto da rua. Ou seja, constrói-se uma rede de solidariedade em determinado espaço da rua e com os sujeitos ali envolvidos (Kunz et al., 2014Kunz, G. S., Heckert, A. L., & Carvalho, S. V. (2014). Modos de vida da população em situação de rua: inventando táticas nas ruas de Vitória/ES. Fractal: Revista de Psicologia, 26(3), 919-942. https://doi.org/10.1590/1984-0292/1192
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). Os dados produzidos estabelecem correlação com uma rede de apoio composta, tanto por demandas às necessidades básicas e pela garantia de direitos quanto por relações de solidariedade e afetos entre os participantes.

Para entender a dinâmica da rua e as redes que são construídas nesse território, é necessário compreender que as relações aí produzidas se dão por meio dos variados encontros existentes nas ruas. Silva (2017Silva, E. S. (2017). Me apoia aí: para entender tem que conviver: um grupo com pessoas em situação de rua e seus agires em saúde [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul]., p. 74) compreende que “na rua, não dá para viver sem essas trocas, são várias redes de apoio que se formam: com o ‘cara do bar’, o ‘cara da tabacaria’ ou a ‘madrinha do prédio azul’”. Segundo a autora, no contexto da rua, muitos encontros acontecem ao mesmo tempo, os quais muitas vezes não são percebidos: são pessoas que chegam e param, que entregam algum apoio, conversam, saem. Enfim, nesses vários encontros há trânsitos e apoios que precisam ser observados e compreendidos.

A quarta estrutura que completa a rede de apoio mencionada pelos participantes refere-se à existência do apoio entre a própria PSR. Segundo os participantes, o apoio ocorre desde o compartilhamento de agasalhos, alimentação, álcool e outras drogas, e destacam-se práticas que envolvem sentimentos de companheirismo e cooperação entre os envolvidos.

Na fala de Antônio, percebe-se que o apoio existente na rua entre a PSR é algo que está presente no cotidiano da rua: “a gente se conhece já, tem um monte de tempo que se conhece. Faz um monte de tempo, sete, oito anos mora na rua, de dormir junto no frio, com a mesma coberta”. A colaboração entre a PSR também é mencionada por Carlos, que conta: “esse blusão foi outro mendigo que me deu porque eu tava duro de frio, já vi muita gente tirar da própria mochila pra apoia o cara, isso é irmandade”.

A própria PSR pode ser considerada uma das estruturas da rede de apoio, seja pela ajuda que recebem na rua de outros sujeitos ali presentes, como agasalhos ou alimentos doados, ou, ainda, álcool e outras drogas também compartilhados entre eles, seja pela organização de dinâmicas para se conseguir alguma renda. Além disso, é perceptível que os vínculos afetivos construídos entre a PSR também fazem referência a uma rede de apoio; muitos participantes relatam as amizades que conceberam nas ruas, descrevendo histórias de parcerias, cooperação e companheirismo.

Em seu estudo, Kunz et al. (2014Kunz, G. S., Heckert, A. L., & Carvalho, S. V. (2014). Modos de vida da população em situação de rua: inventando táticas nas ruas de Vitória/ES. Fractal: Revista de Psicologia, 26(3), 919-942. https://doi.org/10.1590/1984-0292/1192
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) identificaram que o apoio existente nas ruas perpassa as relações estabelecidas entre a PSR. Trata-se, portanto, de uma organização de regras e gestos que compõem a solidariedade entre os sujeitos, tanto no compartilhar da alimentação quanto na troca de informações que favoreçam o coletivo, relacionado ao cuidado pessoal ou ao uso de álcool ou outras drogas.

Outro aspecto mencionado é o apoio recebido logo na chegada à rua. Por conhecer a dinâmica e as relações existentes nesse espaço, a própria PSR transmite as primeiras informações sobre onde suprir as principais demandas relacionadas à alimentação, higiene pessoal e indicação de local seguro para dormir. Bruno, que estava há três dias em situação de rua, contou que o primeiro apoio que recebeu nas ruas foi de outras pessoas em situação de rua. Segundo ele, passou por dificuldades na primeira noite, mas no segundo dia encontrou um colega nas ruas que lhe indicou onde ficava o albergue, e lhe disse: “na hora do aperto se tu chegar de manhã mesmo, e não tiver nada, tu vai entrar no lugar, vai numa lancheria lá, aquela lancheria lá apoia”. O participante considera a PSR unida, e acredita que por possuir a experiência de estar na rua sabe quais lugares buscar conforme as demandas. Por isso, torna-se ela mesma a primeira rede de apoio às pessoas que chegam às ruas.

Magni, Dickel, Gehlen e Schuch (2008Magni, C. T., Dickel, I. K., Gehlen, I., & Schuch, P. (2008). População adulta em situação de rua em Porto Alegre: especificidades sócio-antropológicas. In I. Gehlen, M. B. Silva & S. R. Santos (Orgs.), Diversidade e proteção social: estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre: afro-brasileiros; crianças, adolescentes e adultos em situação de rua; coletivos indígenas; remanescentes de quilombos (pp. 31-70). Centhury.), em sua pesquisa, constataram a existência de redes de companheirismo e amizade, uma vez que os participantes mencionaram tais redes como um dos principais aspectos que mais gostavam na rua. Segundo os autores, “a categoria ‘pessoal da rua, amizades’ alcançou 12,8% das respostas dos entrevistados, expressando que esse espaço é um lugar também de criação de relações sociais e não apenas de rompimento, como é frequente no imaginário social” (Magni et al.Magni, C. T., Dickel, I. K., Gehlen, I., & Schuch, P. (2008). População adulta em situação de rua em Porto Alegre: especificidades sócio-antropológicas. In I. Gehlen, M. B. Silva & S. R. Santos (Orgs.), Diversidade e proteção social: estudos quanti-qualitativos das populações de Porto Alegre: afro-brasileiros; crianças, adolescentes e adultos em situação de rua; coletivos indígenas; remanescentes de quilombos (pp. 31-70). Centhury., p. 39).

Ao longo da pesquisa foi possível perceber que cada uma das quatro instâncias - a) instituições governamentais, b) entidades não governamentais, c) sociedade civil/família e d) PSR - prestam assistência e garantem meios de sobrevivência aos sujeitos na rua. Nesse sentido, destacam-se a oferta de espaços para higiene pessoal ou alimentação e o acesso à garantia de direitos, como mencionado pelos participantes em referência às instituições governamentais, a distribuição de alimentação e vestuário ofertada pelas organizações não governamentais, a busca por refeições em restaurantes, lancherias e comércios, oferecidas pela sociedade civil ou pela família, assim como o compartilhamento de alimentação, vestuário e outras coisas entre a própria PSR.

Entretanto, cabe refletir que esse apoio, na mesma medida que garante acesso a tais necessidades, não prevê, em sua maioria, estratégias e ações integradas que possibilitem a mudança da condição de rua ou auxílio na consolidação de projetos futuros para além da rua, se assim for da vontade das pessoas em situação de rua. Além disso, não há uma articulação entre as possibilidades de ofertas de cuidado e atenção disponíveis, tão pouco um trabalho integrado que dialogue com a perspectiva de um cuidado intersetorial e em rede, que vise a garantia de direitos e o acesso a políticas públicas de qualidade.

Costa (2005Costa, A. P. M. (2005). População em situação de rua: contextualização e caracterização. Textos & Contextos, 4(1), 1-15. http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fass/article/view/993/773
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) menciona, ainda, que a solidariedade ofertada à PSR, tanto pela sociedade civil quanto pelos grupos de voluntários, é majoritariamente avaliada como uma ação isolada, quando não periódica, que quase sempre acaba não colaborando na efetivação de políticas públicas ou da saída dessas pessoas da rua pelos profissionais que atuam com elas. Segundo a autora, inúmeros são os exemplos dessa solidariedade em nossa sociedade, desde pessoas, comerciantes e famílias que “adotam” as pessoas que vivem próximas à suas residências ou comércios, até os grupos de voluntários que distribuem comida e roupas à noite para as pessoas que vivem nas ruas.

A rede de apoio atende as demandas dos sujeitos que se sentem assistidos, porém, Broide et al. (2018Broide, E. E., Broide, J., & Schor, S. M. (Coords.). (2018). População de rua: pesquisa social participativa, censo, perfil demográfico e condições de vida na cidade de São Paulo. Juruá.) atentam para o fato de que a relação da PSR com a cidade e os diferentes grupos que distribuem alimentos e roupas, sejam entidades não governamentais ou equipes de serviços públicos, está marcada pelo assistencialismo. Dessa forma, os autores enfatizam que é preciso romper com esse olhar e pactuar uma mobilização que propicie outra visão de trabalho.

A partir dos dados produzidos, é possível concluir que, na chegada às ruas, os participantes criam estratégias para sobreviver e buscam apoio para suprir suas necessidades básicas, como alimentação, ganhos financeiros, vestuário, local para dormir ou morar, ressignificando, com isso, a sua situação de rua, tornando-a um novo modo de viver. E, assim, construindo uma engrenagem desse (sobre)viver nas ruas, conforme a apresentada na Figura 1.

Figura 1
Engrenagem do (sobre)viver nas ruas.

Entende-se, desse modo, que a rede de apoio se baseia na construção de uma engrenagem para (sobre)viver nas ruas. Com isso, percebe-se também que o chegar às ruas, aprender os manejos para sobreviver nesse território, ressignificar esse espaço e oportunizar vivências nesse ambiente estão interligados, não necessariamente nessa ordem. Sendo assim, podemos pensar a rede de apoio produzida como um motor dessa engrenagem, visto que é constituída por intermédio dos efeitos das relações e das experiências produzidas na rua.

A compreensão da rede de apoio demanda acompanhar a complexidade da sua produção, encadeada pelas possibilidades e lacunas presentes na execução das políticas públicas, nas práticas envoltas pela solidariedade e pelo assistencialismo das instituições não governamentais e dos condicionantes de vulnerabilização do estar em situação de rua. Observa-se o quanto essa rede está pautada em políticas de governo e não na garantia de direitos via políticas públicas. Nos últimos anos, a falta de investimentos, a precarização na estrutura dos serviços, os profissionais sobrecarregados e sem incentivo à educação permanente agravaram ainda mais essas lacunas na garantia de direitos dessa população, acabando por fortalecer práticas meramente assistencialistas.

Considerações finais

No decorrer desta pesquisa, pôde-se acompanhar que a rede de apoio produzida possui grande significado e importância para a sobrevivência das pessoas em situação de rua. Entende-se que são as próprias pessoas que demandam as práticas que são ofertadas pelos atores que compõem as estruturas da rede de apoio. Cabe considerar que a dinâmica das ruas, relacionada à população pesquisada, está pautada no imediatismo, no atendimento às demandas conforme surgem e necessitam ser supridas. Enfatiza-se, portanto, que os participantes da rede, em suas diferentes instâncias, não demonstraram preocupações a longo prazo ou planejamentos articulados, voltando-se a atender, a curto prazo, as necessidades apresentadas.

Conjectura-se que as vivências e as experiências desse (sobre)viver nas ruas faz girar uma engrenagem muito pautada pelo assistencialismo, que remonta a práticas anteriores e que não favorece o acesso da PSR aos equipamentos e serviços da rede de proteção social. Sendo assim, é necessário entender o território e apontar a importância de defender a efetivação das políticas públicas para o enfrentamento dos problemas e concretização de ações inclusivas voltadas à PSR. É a partir da articulação em rede, do trabalho intersetorial e da atuação multiprofissional na lógica do cuidado integral que a garantia de direitos, do protagonismo e da autonomia dessa população pode ser evidenciada e fortalecida.

Ao retomar a analogia da engrenagem, considera-se seu funcionamento como um paradoxo por estar em constante processo, resultando-se de uma produção que se dá a partir das relações e encontros acionados nas ruas. Desse modo, é importante repensar e construir práticas que potencializem o trabalho desenvolvido pelos atores sociais que compõem as diferentes instâncias dessa rede de apoio. Uma construção coletiva que deve acontecer junto às diferentes vozes envolvidas nessa diversificada rede, e que, assim, pelo fazer com, possa se voltar às práticas que contemplem tanto as ofertas já atendidas nessa engrenagem de (sobre)viver quanto propostas de intervenções, como debates e meios de participação social, que deem visibilidade, autonomia e representatividade às vozes por muitas vezes silenciadas. Seria possível tal desafio?

Por meio da oferta de espaços de escuta e acolhimento, emergiram enriquecedoras narrativas sobre as mais variadas realidades e contextos vivenciados nas ruas. Em vários momentos ao longo da pesquisa, os participantes expressaram satisfação ao serem ouvidos, acolhidos e respeitados. A partir de suas narrativas, foi possível perceber o quão intenso foi para os sujeitos participarem da pesquisa e compartilharem suas vozes, sensações e compreensões sobre o mundo. Em cada olhar e gesto identificou-se o quanto os participantes se sentiram valorizados por poderem contar sobre suas histórias e trajetórias de vida. Salienta-se, com isso, a importância de oportunizar espaços nos quais a PSR possa expressar suas vozes e percepções acerca de seus desejos, necessidades e sonhos, e, enfim, romper com os ciclos de invisibilidade e estigmas que permeiam o viver nas ruas.

Destaca-se que pesquisar com a PSR possui uma complexa trama de fatores que precisam ser considerados, desde a singularidade de cada sujeito, até o contexto social, econômico e político onde estão inseridos. Neste estudo, precisa-se ressaltar a ausência de participantes do sexo feminino: foi realizado contato com algumas mulheres que frequentavam o projeto, porém, todas as tentativas de aproximação para propor a entrevista não foram correspondidas. A partir disso, vemos a necessidade de dar continuidade a espaços como esse e de manter uma busca mais dedicada pela vinculação ao público feminino, tendo em vista a importância de potencializar as vozes e dar visibilidade a essas mulheres em situação de rua.

Como desfecho deste estudo, salienta-se que as inquietações e reflexões acerca das problemáticas que compuseram as discussões deste trabalho não cessam por aqui. As motivações que estiveram presentes para a realização desta pesquisa ainda persistem. Lutar por políticas públicas que garantam os direitos dessa população é algo contínuo, e o combate às práticas assistencialistas, que não se situam a partir da garantia de direitos, necessita ser discutido e (des)construído a partir de debates, reflexões e, principalmente, da participação de todos os atores envolvidos nessa temática. Por isso mesmo é tão necessário estruturar espaços e oportunidades que nos permitam escutar os desejos e as especificidades da PSR, e que qualifiquem o trabalho dos profissionais e da sociedade civil que prestam atendimento a tal população, potencializando, dessa forma, o trabalho colaborativo da rede de apoio e o fortalecimento de políticas públicas efetivas e de qualidade. Por fim, almeja-se que a rede de apoio, em si mesma, possa ser um agente político e de resistência em momentos de crise, além de mais potente nos momentos de cuidado e participação social.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    19 Set 2020
  • Revisado
    04 Maio 2021
  • Aceito
    28 Jun 2021
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