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Militância enquanto Convite ao Diálogo: o Caso da Militância Monodissidente1 1 A pesquisa de mestrado que foi base para este artigo teve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - protocolo nº 88882.333306/2019-01. Apesar de ter sido aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE: 29121320.5.0000.5561) nas etapas iniciais, foi dispensada em etapas posteriores, dado que,em virtude da pandemia da covid-19, não ocorreu a etapa empírica prevista no projeto de pesquisa.

Activism as an Invitation for the Dialogue: the Case of Monodissident Activism

La Militancia como Invitación al Diálogo: el Caso de la Militancia Monodisidente

Resumo

Este artigo é uma produção teórica de caráter reflexivo que focaliza a relação entre pesquisa e militância a partir do construtivismo semiótico-cultural em psicologia, tendo como base o caso da militância monodissidente. A noção de monodissidência foi cunhada no percurso da militância bissexual para se referir a uma ferramenta analítica de ordem político-comunitária que contempla todas as pessoas que se atraem sexual e/ou romanticamente por mais de um gênero. São contrapostas concepções distintas de militância político-social em psicologia: de um lado, militância é entendida a partir de um autocentramento do militante, vinculado a uma rede de exclusões, negações, vedação e defesas psicológicas em relação à experiência; de outro, há uma compreensão dialógica de militância. Metodologicamente, a proposta de pesquisa se fundamenta no campo da participação observante, entendendo que o pesquisador está, primeiro, na condição de participante de certo campo sociocultural, a partir do qual passa a observar e refletir sobre fenômenos que ocorrem nele. Tomamos como ilustração a trajetória de construção da militância monodissidente do primeiro autor, trazendo tensionamentos dialógicos para a análise, postos em discussão com outras reflexões situadas sobre o tema. O conjunto de tensionamentos dialógicos emergidos nesse percurso foi mapeado e compreendido como um processo de multiplicação dialógica no encontro de self pesquisador com o self militante.

Palavras-chave:
Militância; Monodissidência; Self; Multiplicação Dialógica; Construtivismo Semiótico-Cultural em Psicologia

Abstract

This paper is a theoretical production of reflective character that focuses on the relationship between research and activism from the semiotic-cultural constructivism in psychology, based on the case of monodissident activism. The notion of monodissent was coined during bisexual activism to refer to an analytical tool of a political-community order that includes all people who are sexually and/or romantically attracted to more than one gender. Different conceptions of political-social activism in psychology are opposed: on the one hand, activism is understood from the militant’s self-centeredness, linked to a network of exclusions, denials, gatekeeping, and psychological defenses regarding experience; on the other hand, there is a dialogical understanding of activism. Methodologically, the research proposal is based on the field of observant participation, understanding that the researcher is, first, in the condition of a participant in a certain sociocultural field, from which he starts to observe and reflect on phenomena that occur there. We take as an illustration the trajectory of the construction of the monodissident activism of the first author, bringing dialogical tensions to the analysis, discussed with other reflections on the subject. The set of dialogic tensions that emerged in this path was mapped and understood as a process of dialogic multiplication in the encounter of the researcher self with the activist self.

Keywords:
Activism; Monodissent; Self; Dialogical Multiplication; Semiotic-Cultural Constructivism in Psychology

Resumen

Este artículo realiza una producción teórica y reflexiva sobre la relación entre investigación y activismo desde el constructivismo semiótico-cultural en Psicología, a partir del caso del activismo monodisidente. La noción de monodisidencia fue acuñada en el transcurso de la militancia bisexual para referirse a una herramienta analítica de orden político-comunitario que incluye a todas las personas que se sienten atraídas sexual y / o románticamente por más de un género. Se contraponen distintas concepciones de la militancia político-social en Psicología: por un lado, la militancia se entiende desde el egocentrismo del militante, vinculado a un entramado de exclusiones, negaciones, sellamientos y defensas psicológicas con relación a la experiencia; por otro, existe una comprensión dialógica de la militancia. La investigación utiliza como metodología la participación del observador, entendiendo que el investigador se encuentra, en primer lugar, en la condición de participante de determinado campo sociocultural, desde donde comienza a observar y reflexionar sobre los fenómenos que allí ocurren. Tomamos como ilustración la trayectoria de la construcción de la militancia monodisidente del primer autor, trayendo tensiones dialógicas al análisis, discutidas con otras reflexiones sobre el tema. El conjunto de tensiones dialógicas que surgieron en este camino se caracteriza y se comprende como un proceso de multiplicación dialógica en el encuentro del self investigador con el self militante.

Palabras clave:
Militancia; Monodisidencia; Self; Multiplicación Dialógica; Constructivismo Semiótico-Cultural en Psicologia

Este artigo é uma produção teórica de caráter reflexivo acerca da relação entre pesquisa e militância a partir do construtivismo semiótico-cultural em psicologia, tendo como base o caso da militância monodissidente. A noção de monodissidência foi proposta por Vas (2020Vas, D. (2020). Minha militância monodissidente. Bi-Sides. https://bit.ly/3GIsmKG
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, 2021), a partir do seu percurso na militância bissexual, para se referir a uma ferramenta analítica de ordem político-comunitária que contempla todas as pessoas que se atraem sexual e/ou romanticamente por mais de um gênero. Este artigo contrapõe visões de como militâncias político-sociais podem ser compreendidas em psicologia a partir da participação observante do autor no contexto da militância monodissidente. Essa militância está pautada no combate à bifobia e ao monossexismo, que são respectivamente a opressão contra pessoas que se atraem por mais de um gênero, e o sistema social que privilegia pessoas monossexuais (Jaeger, Longuini, Oliveira, & Toneli, 2019Jaeger, M. B., Longuini, G. D. N., Oliveira, J. M. C., & Toneli, M. J. F. (2019). Bissexualidade, bifobia e monossexismo: Problematizando enquadramentos. Periódicus, 2(11), 1-16. https://doi.org/10.9771/peri.v2i11.28011
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).

A monodissidência foi proposta como uma ferramenta analítica de ordem político-comunitária que contempla todas as pessoas que se atraem sexual e/ou romanticamente por mais de um gênero. Trata-se de uma forma dialógica de militância, aberta e atenta à diversidade inerente ao modo de vida militante, distinguindo-se, portanto, de uma noção fundada no autocentramento do militante, vinculado a uma rede de exclusões, negações, vedação e defesas psicológicas em relação à experiência (Figueiredo, 1993Figueiredo, L. C. (1993). A militância como modo de vida: Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, 1(2), 205-216.). Tal contraponto será elaborado considerando a noção de modo de vida (Foucault, 1981Foucault, M. (1981). De l’amitié comme mode de vie. Gai Pied, (25), 38-39.) e o debate em torno da intervenção psicológica e da educação (Valsiner, 2003a/2017Valsiner, J. (2017a). Between self and societies: Creating psychology in a new key. Tallinn University Press. (Trabalho original publicado em 2003); 2003b/2017Valsiner, J. (2017b). Missions in history and history through a mission: Inventing Better Worlds For Humankind In: Between Self and Societies: Creating Psychology in a New Key. Tàllinn University Press, pp. 217-235. (Trabalho original publicado em 2003)).

Para ilustrar as ideias expostas, apresentamos um levantamento bibliográfico realizado nas publicações do site do coletivo Bi-Sides, do qual Vas é membro. Textos que versavam sobre a construção da militância e a monodissidência, bem como publicações citadas nesses trabalhos, foram considerados. Assim, na atuação militante do coletivo selecionado para estudo está presente a defesa de uma militância dialógica, pautada na experiência de abertura para uma construção em coautoria que inclua diversidades de perspectivas sobre temas focalizados pelo coletivo.

A noção de multiplicação dialógica (Silva Guimarães, 2010Silva Guimarães, D. (2010). Articulações e implicações da noção de perspectiva no construtivismo semiótico-cultural para a compreensão das relações eu - outro: Possível diálogo com o perspectivismo ameríndio [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Repositório da Produção USP. https://bit.ly/3Xa92eG
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, 2013) - proposta teórico-metodológica do construtivismo semiótico-cultural em psicologia -, será introduzida visando explicitar as lacunas que existem na interação de um self com um outro ou entre perspectivas multidimensionais de um mesmo self. A partir dessa ferramenta, podemos compreender, por exemplo, como as perspectivas de pesquisador e militante, dentre outras possíveis, podem dialogar, sem fundir ou eliminar suas especificidades. Com isso, passamos a conceber possíveis contribuições da psicologia cultural dialógica na construção de campos semióticos capazes de abrigar a alteridade enquanto dimensão da experiência de si e dos outros, que excede as compreensões a partir de uma ou de outra perspectiva. As experiências de alteridade suscitam processos ativos de elaborações semióticas a partir dos questionamentos mútuos que emergem nas pessoas. Retomaremos essa questão ao final do texto, quando discutirmos as tensões entre as posições de militante e pesquisador nos processos de construção de conhecimento em psicologia.

Participação observante: uma reflexão teórico-metodológica no campo do construtivismo semiótico-cultural em psicologia

O construtivismo semiótico-cultural (CSC) em psicologia é uma perspectiva teórico-metodológica que se debruça sobre temas como interações verbais na relação eu-outro, a forma como o conhecimento é construído e reconstruído e o processo de desenvolvimento simbólico individual (Simão, 2010Simão, L. M. (2010). Ensaios dialógicos: Compartilhamento e diferença nas relações eu outro. Hucitec.). O CSC focaliza o processo intersubjetivo de construção da subjetividade, considerando como fundamental a precedência do outro na construção de si (Simão, 2003cSimão, L. M. (2003c, 27 de maio). Sociogênese e alteridade em Pierre Janet [Apresentação de trabalho]. 3º Congresso Norte-Nordeste de Psicologia, João Pessoa, Paraíba, Brasil.). É um guia temporário e flexível, com propósitos instrumentais para realizar pesquisas em psicologia, enfatizando processos bidirecionais de transformação que se dão nos encontros humanos, em que compartilhamentos e diferenças se configuram mutuamente (Simão, 2004cSimão, L. M. (2004c, 26 de agosto). Why otherness in research domain of semiotic-cultural constructivism [Apresentação de trabalho]. 3th International Conference on the Dialogical Self, Varsóvia, Polônia.). Uma das principais vias de transformação no desenvolvimento humano ocorre através da busca pelo compartilhamento de experiências com o outro, ou seja, da busca pela intersubjetividade (Silva Guimarães & Simão, 2007Silva Guimarães, D., & Simão, L. M. (2007). Intersubjetividade e desejo nas relações sociais: o caso dos jogos de representação de papéis. Interacções, 3(7), 30-54. https://doi.org/10.25755/int.344
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).

Articulado ao CSC, a metodologia empregada na pesquisa buscou evidenciar e compreender os sentidos de tensões dialógicas que emergem no debate sobre o que configura uma militância, em especial no seu caráter sociopolítico. Tais tensionamentos existem num certo campo-tema (Spink, 2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pós-construtivista. In: Psicologia & Sociedade; 15 (2) Jul-Dez 2003. (pp 18-42).), o qual é entendido “como um complexo de redes de sentidos que se interconectam, […] um espaço criado, […] herdado ou incorporado […] e negociado na medida em que busca se inserir nas suas teias de ação” (Spink, 2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pós-construtivista. In: Psicologia & Sociedade; 15 (2) Jul-Dez 2003. (pp 18-42)., p.11). Não é um espaço criado apenas voluntariamente, mas debatido e negociado dentro de processos que apresentam muitas faces e materialidades e acontecem em lugares diferentes.

Nesta discussão, monodissidência designa um certo campo-tema. Este campo-tema abarca diálogos, tensionamentos e vivências de pessoas monodissidentes, em que se apresentam como vértices suas orientações sexuais, identidades e identificações, seus gêneros e performances de gênero, elementos, símbolos culturais e produções. A resultante apontada por essas tensões pode ser um certo habitar sereno e confiado no mundo (Figueiredo, 1996/2013Figueiredo, L. C. (2013). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes. Trabalho original publicado em 1996.). A noção de monodissidência, portanto, é utilizada aqui como uma forma de organizar o campo complexo e multifacetado das orientações sexuais, sem a pretensão de se constituir como mais uma categoria identitária.

Outro ponto de partida metodológico para esta discussão se refere à noção de participação observante (Bastien, 2007Bastien, S. (2007). Observation participante ou participation observante? Usages et justifications de la notion de participation observante en sciences sociales. Recherches Qualitatives, 27(1), 127-140.; Malfitano & Marques, 2011Malfitano, A. P. S., & Marques, A. C. R. (2011). A entrevista como método de pesquisa com pessoas em situação de rua: Questões de campo. Revista Cadernos de Terapia Ocupacional, 19(3), 289-296.). Esta noção considera que quem pesquisa está, primeiro, na condição de participante de um certo campo sociocultural do qual emergem as questões relevantes de serem estudadas. Participação observante se distingue de observação participante, proposta metodológica segundo a qual “é o pesquisador que vai ao campo para realizar uma investigação. Seu objetivo não é a participação, mas a observação” (Malfitano & Marques, 2011Malfitano, A. P. S., & Marques, A. C. R. (2011). A entrevista como método de pesquisa com pessoas em situação de rua: Questões de campo. Revista Cadernos de Terapia Ocupacional, 19(3), 289-296., p. 290). Ao contrário, a proposta de participação no campo sociocultural compreende que quem pesquisa observa os fenômenos e propõe-se a refletir sobre eles.

O pesquisador constrói o conhecimento a partir de uma experiência que emerge em seu campo afetivo-cognitivo, passando a refleti-la segundo sistemas psico-filosóficos que orientam suas compreensões acerca do fenômeno estudado. Entendemos que os pressupostos de participação sociocultural do pesquisador no CSC se assemelham à reflexão a partir do campo de participação observante, implicando-lhe em sua própria experiência afetivo-cognitiva. A pesquisa científica, em especial na psicologia, é entendida como um processo construtivo que se desenvolve simbolicamente na relação entre pesquisadores e participantes, promovendo uma compreensão momentânea do mundo diante das suas expectativas, esperanças e preocupações.

Pessoas monodissidentes ocupam diversos locais e, portanto, um recorte que pudesse privilegiar certos fenômenos e vivências se fez imperativo. No contexto de pandemia em que a pesquisa se realizou, escolhemos nos debruçar sobre o universo do ciberativismo, considerando como ocorreu o levantamento de ideias e reflexões de militantes monodissidentes abordados aqui. Dentro desse universo, decidimos pelo recorte que privilegiava textos em sites e blogs, em vez de explorar o turbulento e tenso campo das redes sociais, em que muito se produz e se discute.

Entendemos que as vivências de monodissidentes não ocorrem somente na internet, sendo que a maioria delas ocorre fora das redes. Escolhemos analisar as produções de monodissidentes disponibilizadas na internet, mesmo sabendo que, com isso, um grande número de vivências e fenômenos deixa de ser contemplado. Isso se justifica dado que muitas trocas materiais e simbólicas se estabelecem nessa porção do campo-tema, em que militâncias se estruturam e se desenvolvem ativa e contemporaneamente.

Em convergência com as reflexões teórico-metodológicas apontadas, temos, na presente situação de pesquisa, que Vas se caracterizava como militante e só depois passou a investigar temas emergentes na condição de pesquisador. É importante ressaltar que muitas das reflexões surgem em virtude da sua inserção no campo cultural da militância bissexual. Assim, o conhecimento aqui registrado é resultado de trocas, tensões e negociações entre as experiências que surgem das relações de Vas em seu contexto de militância.

A seguir, incluímos no diálogo publicações de Vas no site do coletivo Bi-Sides e trabalhos de outros militantes, visando delinear as especificidades dos caminhos que a militância monodissidente tem percorrido, ampliando para uma reflexão sobre militâncias dialógicas, ainda que não se deem necessariamente pelas vias da monodissidência.

Compreendendo a militância monodissidente

Ao pensar a história do movimento bissexual no Brasil, Daniela Furtado, militante bissexual e fundadora do coletivo Bi-Sides, distingue quatro fases temporais (Frente Bissexual Brasileira, 2020Frente Bissexual Brasileira. (2020, 26 de setembro). Festival Bi+ (parte 1) [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/3Zd6P48
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). Na primeira, enquanto a militância LGBT+ em países como Estados Unidos e Inglaterra se consolidava como movimento social desde o final da década de 1960, no Brasil ela surge apenas no final da década de 1970 (Fachini, 2011), adiada provavelmente pela ditadura militar. Na década de 1980, contudo, começa a se tornar evidente a participação de pessoas bissexuais na construção do movimento LGBT+, num processo marcado pela luta e sobrevivência contra a aids (Jaeger et al., 2019Jaeger, M. B., Longuini, G. D. N., Oliveira, J. M. C., & Toneli, M. J. F. (2019). Bissexualidade, bifobia e monossexismo: Problematizando enquadramentos. Periódicus, 2(11), 1-16. https://doi.org/10.9771/peri.v2i11.28011
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).

A segunda fase, nos anos 2000, foi delineada pela criação do Coletivo Brasileiro de Bissexuais (CBB) em 2005, no XII Encontro Brasileiro de Gays, Lésbicas e Transgêneros (EBGLT). Antes disso, em 2004, surgiu o Espaço B da Associação da Parada GLBT [Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros] de São Paulo (Jaeger et al., 2019Jaeger, M. B., Longuini, G. D. N., Oliveira, J. M. C., & Toneli, M. J. F. (2019). Bissexualidade, bifobia e monossexismo: Problematizando enquadramentos. Periódicus, 2(11), 1-16. https://doi.org/10.9771/peri.v2i11.28011
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). De acordo com Regina Facchini, também presente no evento Festival Bi+ (Frente Bissexual Brasileira, 2020Frente Bissexual Brasileira. (2020, 26 de setembro). Festival Bi+ (parte 1) [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/3Zd6P48
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), as atividades do CBB estavam concentradas na cidade de São Paulo. O CBB foi oficialmente o primeiro coletivo nacional de bissexuais, e encerrou suas atividades em 2007, quando foi dissolvido depois de um problema com a indicação de representante do coletivo para o Seminário de Saúde GLBTT (Costa et al., 2010Costa, A. M., Santos, A., Simões, C., Falivene, R., Facchini, R., Canuto, R., Oliveira, R. M. R., Neves, R. G., Rosa, R. B. C., & Maurano, T. (2010, 22 de junho) Dissolução do Coletivo Brasileiro de Bissexuais (agosto de 2007). Espaço B. https://bit.ly/3QeP6VW
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). Em esfera nacional, existiu também o Núcleo de Bissexuais de Brasília (Núcleo Bis), criado em 2005 (Jaeger et al., 2019Jaeger, M. B., Longuini, G. D. N., Oliveira, J. M. C., & Toneli, M. J. F. (2019). Bissexualidade, bifobia e monossexismo: Problematizando enquadramentos. Periódicus, 2(11), 1-16. https://doi.org/10.9771/peri.v2i11.28011
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).

A terceira fase do movimento bissexual no Brasil se inicia com a criação do coletivo Bi-Sides por Daniela Furtado em 2010 (Portalmpost, 2010Portalmpost. (2010, 6 de junho). Bissexual começa movimento por nova representação na sociedade brasileira [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/3X4xuOI
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). A marca dessa fase é a ampliação do movimento iniciado pelo CBB para o âmbito virtual, ganhando mais visibilidade. As primeiras atividades do Bi-Sides consistiram em rodas de conversas em piqueniques, de modo a relatar e compartilhar experiências. Na sequência, foi criado um grupo de bissexuais no Google Grupos e, então, a primeira versão do site Bi-Sides. Com o tempo, o grupo migrou para o Facebook, ganhando visibilidade nacional. A partir daí, vários outros coletivos bissexuais vão surgindo no território brasileiro (Jaeger et al., 2019Jaeger, M. B., Longuini, G. D. N., Oliveira, J. M. C., & Toneli, M. J. F. (2019). Bissexualidade, bifobia e monossexismo: Problematizando enquadramentos. Periódicus, 2(11), 1-16. https://doi.org/10.9771/peri.v2i11.28011
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). O Bi-Sides é entendido como o precursor do ciberativismo bissexual no Brasil, de acordo com Regina Facchini (Frente Bissexual Brasileira, 2020Frente Bissexual Brasileira. (2020, 26 de setembro). Festival Bi+ (parte 1) [Vídeo]. YouTube. https://bit.ly/3Zd6P48
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).

A quarta fase do movimento bissexual se situa no momento presente, com ressonâncias do Festival Bi+ realizado em setembro de 2020, o qual foi organizado por diversos coletivos bissexuais brasileiros, bem como militantes autônomos. Busca-se agora mudar o cenário da militância bissexual nacional, de modo a incentivar a luta por direitos e pela garantia de políticas públicas voltadas a bissexuais, bem como pela criação de redes organizadas em âmbito nacional.

Ao tratar da militância bissexual, estamos lidando com a participação ativa de muitas pessoas que significam e ressignificam os sentidos de suas experiências. Traremos a seguir o relato de participação de Vas no processo de construção da militância, engendrando suas experiências pessoais, coletivas e a própria pesquisa como campos de ação distintos, mas articulados em seu modo de vida.

Meu percurso formal na militância bissexual começa em 2016, quando criei na Universidade de São Paulo (USP), onde cursava a graduação em Psicologia, um grupo de acolhimento presencial para pessoas não-monossexuais 2 2 Uma pessoa monossexual se atrai por apenas um gênero, sendo ela hetero ou homossexual. . Minha intenção era não restringir o grupo a pessoas bissexuais, incluindo assim pansexuais e quaisquer outras pessoas que se atraíssem por mais de um gênero, motivado pela proposta de Eisner (2011Eisner, S. (2011, 17 de outubro). Some differences and similarities between bisexuality and pansexuality. Bi Radical. https://bit.ly/3jUSd9b
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) de um movimento conjunto entre bi e pansexuais. Dei ao grupo o nome de Monodissidência, pensando que a dissidência da monossexualidade era uma forma de resistência.

Considerei o grupo uma experiência de sucesso, durando cerca de um ano. Convocando as pessoas a participarem através de eventos de Facebook, entrei em contato com outras militâncias e firmei laços de amizade e parceria com outras pessoas, solidificando minha luta. Os encontros do grupo Monodissidência se encerraram em 2016 e, com isso, entendi que era o momento de expandir a militância para novas instâncias. Percebi, ao longo do tempo, que monodissidência se tornou uma ideia de grande aderência nas militâncias feitas nas redes sociais, em âmbito nacional, ressoando entre as pessoas, e que uma empreitada que focasse em unir politicamente todos os que se atraíam por mais de um gênero parecia ser algo de grande interesse social.

Ainda no ano de 2016, comecei a ser chamado para dar palestras e mediar mesas de discussão sobre o tema. Certa vez, logo antes de uma mesa sobre saúde mental bissexual em que seria mediador, uma pessoa assexual e arromântica3 3 A assexualidade é uma orientação sexual que se refere à ausência total ou condicional de atração sexual; arromanticidade é uma orientação romântica que se refere à ausência total ou condicional de atração romântica. se aproximou e disse que se monodissidência era sobre pessoas que se separavam da monossexualidade, ela, por não se atrair nem sexual e nem romanticamente por outras pessoas, também não era monossexual. Isso fez e continua fazendo sentindo para mim, se entendermos que monossexuais se atraem apenas por um gênero e pessoas assexuais e arromânticas se atraem por ninguém. Levando isso em conta, e pensando que monodissidência buscava falar sobre a presença de atração por mais de um gênero, passei a tratar monodissidência como uma ferramenta político-comunitária que contempla todas as pessoas que se atraem sexual e/ou romanticamente por mais de um gênero, não mais como dissidência da monossexualidade. A ideia de dissidência ainda está presente como uma forma de resistência ao monossexismo e à bifobia, mas já não é a ideia definidora do termo. Monodissidência fala de pessoas bissexuais, pansexuais, polissexuais, com identidades fluidas, microrrótulos, sem rótulo, ou que possam vir a ser nomeadas ainda (Vas, 2020Vas, D. (2020). Minha militância monodissidente. Bi-Sides. https://bit.ly/3GIsmKG
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)4 4 O excerto original foi modificado. .

Uma primeira análise que fazemos deste relato é que a ideia de monodissidência surgiu de um duplo movimento de união e separação. Enquanto Vas (2020Vas, D. (2020). Minha militância monodissidente. Bi-Sides. https://bit.ly/3GIsmKG
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) buscava uma posição bastante cindida da monossexualidade, também objetivava encontrar um ponto comum em grupos que, embora diferentes, apresentavam similaridades para se articularem. A abertura ao diálogo não era plena e irrestrita, mas direcionada à construção de um espaço comum que pudesse ser usufruído por um conjunto específico de pessoas. Encontrou certo ruído na busca pelo diálogo com diversas vozes simultaneamente, que, apesar de não ser necessariamente interessante, ele também pode proporcionar movimento de transformação nas ações e compreensões prévias.

Uma segunda consideração permite entender o porquê de a monodissidência ser entendida como ferramenta analítica de ordem político-comunitária. Pensá-la enquanto ferramenta é considerá-la com certo propósito, havendo situações mais ou menos apropriadas para utilizá-la. Levar em conta as experiências de atração por mais de um gênero que não estão contempladas pelas orientações sexuais já bem estabelecidas é uma dessas situações. Nesse sentido, é uma ferramenta analítica, pois permite criar e se aprofundar em distinções importantes, considerando detalhes e sutilezas, a saber, os tensionamentos do campo-tema em que se insere.

A partir do encontro de Vas com a pessoa arromântica e assexual, surge um ruído que leva a monodissidência a ter não só sua definição alterada, como também a ganhar um escopo mais preciso no contexto da militância bissexual. Além de se definir pela negativa, a dissidência da monossexualidade afirma quais grupos ela contempla. Assim, com o termo monodissidência passamos a referir certo campo-tema (Spink, 2003Spink, P. K. (2003). Pesquisa de campo em psicologia social: uma perspectiva pós-construtivista. In: Psicologia & Sociedade; 15 (2) Jul-Dez 2003. (pp 18-42).).

No campo-tema da militância monodissidente, Jussara R. Oliveira (2019Oliveira, J. R. (2019, 3 de julho). Bi, pan, poli? Aro, ace? Desafios na construção de um movimento monodissidente. Medium. https://bit.ly/3GJDOFY
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) destaca a necessidade de irmos além das definições dadas às orientações sexuais, e afirma acreditar “que às vezes a gente se desgasta demais nesses termos e perde o foco que é a busca de direitos para nossa comunidade, que passa por preconceitos em comum, independente da forma com que vocês se identificam” (Oliveira, 2019Oliveira, J. R. (2019, 3 de julho). Bi, pan, poli? Aro, ace? Desafios na construção de um movimento monodissidente. Medium. https://bit.ly/3GJDOFY
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). Kaique Oliveira Fontes (2020aOliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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) vai ao encontro dessa posição ao afirmar que o movimento bissexual - e não só ele - está centrado excessivamente na busca de definições para a bissexualidade, em vez de criar outras demandas e lutar por objetivos mais amplos. É preciso combater a ilusão de que há desunião e falta de comunidade, dando passos mais firmes na construção da militância.

Visibilidade é escancarar, ainda mais, a falta de dados que nós temos sobre nossa participação apagada nas articulações em conjunto com movimentos gay, por exemplo; continuar pautando a necessidade da construção de dados científicos que incluem pessoas bissexuais como categoria própria, reconhecendo que temos especificidades a serem observadas; é discutir cada vez mais a patologização de nossas vivências e combater as violências que enfrentamos em diversos campos da saúde; focar na construção de espaços em que a maioria NÃO SEJA BRANCA, NEM CIS5 5 Pessoas cisgênero são aquelas que estão de acordo com o gênero imposto no nascimento. Uma pessoa que discorde dessa imposição e se identifique de um modo diferente é uma pessoa transgênero. (Oliveira Fontes, 2020aOliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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, grifo do autor).

A militância monodissidente não é o único caminho possível para a construção de uma militância dialógica, mesmo quando a luta é contra a bifobia e o monossexismo. Nesse sentido, Oliveira Fontes e Avila (2020Oliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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) lembram que é importante olhar a bissexualidade e pansexualidade não só “como maneiras de enxergar e se relacionar com as questões de gênero e sexualidade, mas também como movimentos políticos”. Com isso, nota-se que esses movimentos políticos são diferentes, ainda que não se apaguem. Essa perspectiva é importante não só por levar em conta o processo de construção de cada uma dessas identidades políticas, suas histórias e atravessamentos, mas também porque, quando bissexuais e pansexuais direcionam esforços à uma militância conjunta, existe o risco de se deixar de lado que o processo de consolidação de uma identidade ocorreu de forma diferente da outra (Oliveira Fontes & Avila, 2020Oliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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).

Ao se pensar monodissidência sem considerar a integralidade da pansexualidade e de outras orientações sexuais, como identidades autônomas, corre-se o risco de homogeneizar movimentos diferentes, a despeito de suas similaridades. Assim, “pensar exclusivamente em uma militância conjunta sem considerar as especificidades de outras identidades pode acabar prejudicando e até mesmo impedindo que a pan e polissexualidade sejam reconhecidas como identidades que não derivam da bissexualidade” (Oliveira Fontes & Avila, 2020Oliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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). Esse é um cuidado essencial para que a monodissidência, enquanto ferramenta analítica e proposta político-comunitária, se mantenha como um dos caminhos possíveis para uma militância dialógica. Monodissidência deve operar como uma via de diálogo e troca, sustentando disparidades e inclusive desencontros. E, nesse sentido, justamente por ser uma ferramenta, ela não é essencial para que se crie uma militância que permita diálogo entre diferentes movimentos políticos.

Oliveira Fontes e Avila (2020Oliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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) afirmam que uma proposta de luta conjunta não pode representar ameaças a qualquer movimento contemplado pela monodissidência, visto que a intenção de se unir é justamente lutar contra estruturas que entendem que o campo das orientações sexuais se limita apenas ao binarismo homem-mulher. Porém, uma proposta de luta conjunta só se torna possível quando todas as orientações contempladas respeitam os espaços, posições e definições que cabem a elas, o que nem sempre acontece (Oliveira Fontes & Avila, 2020Oliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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). Nesse sentido, os autores apontam a necessidade de pensar uma articulação entre um movimento integralmente bissexual e um movimento integralmente pansexual.

É necessário ter cuidado com este último ponto, visto que pensar em articulação entre movimentos integrais, sejam eles de quaisquer orientações sexuais, só é possível quando existem, em primeiro lugar, orientações sexuais bem delimitadas e com identidades já estabelecidas. Assim, pessoas com sexualidades fluidas, com micro identidades e/ou sem identidades sexuais definidas, bem como outras orientações sexuais que não possuem uma movimentação política atuante, correm o risco de ficar à deriva nessa articulação. Nesse sentido, a monodissidência ainda se apresenta como uma ferramenta útil para pensar uma articulação entre as mais diversas formas de sexualidades que se atraem por mais de um gênero. Considerando o que Oliveira Fontes e Avila (2020Oliveira Fontes, K. & Avila, K. (2020, 26 de agosto). As diferenças entre o ativismo bi e pan. Bi-Sides. https://bit.ly/3CtNMJc
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) colocam, torna-se central que uma militância pautada num projeto monodissidente abarque a pluralidade de cada ator contemplado por ela, de uma maneira que suas especificidades não sejam anuladas em prol de um objetivo comum.

Com isso, percebemos que, embora a monodissidência não seja o único caminho possível para uma articulação entre movimentos distintos, de modo a construir uma militância dialógica nesse campo, ela ainda pode ocupar um lugar relevante nessa empreitada. É assim que a monodissidência se torna uma ferramenta analítica, o que aponta para a necessidade de identificar quais são os momentos adequados para usá-la e quando ela pode se apresentar como um empecilho para uma articulação dialógica.

Para Monaco (2020Monaco, H. M. (2020). “A gente existe!”: Ativismo e narrativas bissexuais em um coletivo monodissidente [Dissertação de mestrado, Universidade Federal de Santa Catarina]. Repositório Institucional da UFSC. https://bit.ly/3Zbxdvc
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), a ideia de monodissidência permite que aqueles que participam de um movimento bissexual não estejam fixos em uma identidade acabada, mas em uma que seja transmutável e permeável. A autora aponta que a monodissidência, ao lado da dimensão romântica da atração, não se reduzindo à atração sexual, levanta um questionamento acerca do deslocamento do sexo como o centro da luta política. Ela indaga se, com a emergência da monodissidência como termo agregador, o sexo deixa de ser o centro da identidade, particularmente das identidades bi e pansexuais.

Entendemos que Monaco (2000) apresenta a discussão de descentralização do sexo como eixo estruturante das lutas políticas típicas de movimentos LGBT+. Sob o mote da libertação sexual, muitos movimentos de longa tradição dentro do campo das lutas LGBT+ reivindicam direitos relativos ao envolvimento sexual e afetivo com quem desejarem. Enquanto um objetivo relevante, entendemos que Monaco (2000) salienta a importância de pautar não só o direito de amar e ter relações sexuais, mas o próprio direito de existir enquanto LGBT+.

Encabeçar lutas conjuntas, em consonância com as diversas orientações sexuais que se atraem por mais de um gênero, vai além das relações afetivas e sexuais que essas pessoas estabelecem. Levando em conta o grau de violência e vulnerabilidade a que pessoas que se atraem por mais de um gênero são submetidas (Jorm, Korten, Rodgers, Jacomb, & Christensen, 2002Jorm, A., Korten, A., Rodgers, B., Jacomb, P., & Christensen, H. (2002). Sexual orientation and mental health: Results from a community survey of young and middle-aged adults. British Journal of Psychiatry, 180(5), 423-427. https://doi.org/10.1192/bjp.180.5.423
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; Shearer et al., 2016Shearer, A., Herres, J., Kodish, T., Squitieri, H., James, K., Russon, J., Atte, T., & Diamond, G. (2016). Differences in mental health symptoms across lesbian, gay, bisexual, and questioning youth in primary care settings. Journal of Adolescent Health, 59(1), 38-43. https://doi.org/10.1016/j.jadohealth.2016.02.005
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), entendemos que a luta contra a bifobia e o monossexismo pode ser feita em conjunto, visando seu direito de existir e se manterem vivas. Um desses caminhos é o da monodissidência. Assim, elaborar um movimento conjunto entre esses grupos é pautar não só demandas internas, mas considerar quais são os elementos comuns que os afetam quando se pensa sua inserção na sociedade.

Considerando isso, apresentamos rapidamente o Contrato epistêmico do apagamento bissexual [The epistemic contract of bisexual erasure], de Kenji Yoshino (2000Yoshino, K. (2000). The epistemic contract of bisexual erasure. Stanford Law Review, 52(2), 353-478. https://doi.org/10.2307/1229482
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). Este trabalho discorre sobre quais os benefícios e motivações que monossexuais (homo e heterossexuais) obtêm quando apagam e deslegitimam a bissexualidade enquanto orientação sexual válida. Yoshino (2000Yoshino, K. (2000). The epistemic contract of bisexual erasure. Stanford Law Review, 52(2), 353-478. https://doi.org/10.2307/1229482
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) afirma que o contrato epistêmico do apagamento bissexual serve para a estabilização da monossexualidade. Em um mundo em que a bissexualidade não existisse, a atração por pessoas de gêneros parecidos e a atração por pessoas de gênero diferentes seriam mutuamente exclusivas. Em outras palavras, homo e heterossexualidade seriam as únicas sexualidades existentes. Assim, se uma pessoa fosse homossexual, necessariamente ela não seria heterossexual, e vice-versa. Além disso, o autor afirma que monossexuais definem suas orientações sexuais a partir do gênero das pessoas por quem se atraem e, em contrapartida, bissexuais rompem essa lógica ao não dependerem do gênero de suas parcerias afetivo-sexuais para se entenderem enquanto tais. Por fim, Yoshino (2000Yoshino, K. (2000). The epistemic contract of bisexual erasure. Stanford Law Review, 52(2), 353-478. https://doi.org/10.2307/1229482
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) afirma que a bissexualidade desestabiliza as normas da monogamia, visto que aqui é tratada como um excesso, enquanto a monossexualidade é estar somente com um gênero por vez.

Vas (2021Vas, D. (2021). Militância enquanto convite ao diálogo: O caso da militância monodissidente [Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo]. Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP. https://bit.ly/3VS2pws
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), em sua dissertação de mestrado, argumenta que, ao se propor a falar de bissexuais, Yoshino (2000Yoshino, K. (2000). The epistemic contract of bisexual erasure. Stanford Law Review, 52(2), 353-478. https://doi.org/10.2307/1229482
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) descreve fenômenos que contemplam todas as formas de atração por mais de um gênero, podendo se expandir e ir além do recorte da bissexualidade. Assim, entendemos que o monossexismo e a bifobia, por meio do Contrato epistêmico do apagamento bissexual (Yoshino, 2000Yoshino, K. (2000). The epistemic contract of bisexual erasure. Stanford Law Review, 52(2), 353-478. https://doi.org/10.2307/1229482
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), afetam a todas as orientações sexuais que se atraem por mais de um gênero, não apenas pessoas bissexuais. Torna-se ainda mais relevante, portanto, pensar em um movimento conjunto, proposto aqui pela noção de monodissidência, de modo a lutar contra essas formas de opressão e violências, considerando as ressalvas e cuidados apontados neste trabalho.

Repensando concepções monológicas de militância

Figueiredo (1993Figueiredo, L. C. (1993). A militância como modo de vida: Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, 1(2), 205-216.) discute a militância como um modo de vida emergente a partir do século XIX que passou a cultivar novas formas de subjetividade. Nesse contexto, a militância nasce como um sintoma de sua realidade sociocultural, “excluindo-se, porém, o que neste mundo já poderia apontar para a abertura de novos espaços” (Figueiredo, 1993Figueiredo, L. C. (1993). A militância como modo de vida: Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, 1(2), 205-216., p. 207). Trata-se de um enrijecimento da ordem do dogmatismo resistente à experiência, outro tema profundamente trabalhado pelo autor (Figueiredo, 1992/2007Figueiredo, L. C. (2007). A invenção do psicológico: Quatro séculos de subjetivação 1500-1900. Escuta. Trabalho original publicado em 1992., 1989/2009Figueiredo, L. C. (2009). Matrizes do pensamento psicológico. Vozes. Trabalho original publicado em 1989., 1996/2013Figueiredo, L. C. (2013). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes. Trabalho original publicado em 1996.) para discorrer sobre dificuldades de se lidar com a angústia ou a inquietação. Essas dificuldades decorrem da negatividade que as experiências, em sua dimensão de alteridade, impõem ao sujeito diante de suas preconcepções.

Figueiredo (1993Figueiredo, L. C. (1993). A militância como modo de vida: Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, 1(2), 205-216.) enfatiza que o militante se configura como uma “identidade essencialmente resistente, consagrada à mesmice e à própria conservação” (p. 2, grifo do autor), pautada em uma “rede de exclusões, negações, vedação e defesas”, enfatizando, portanto, um caráter autocentrado que afasta o militante de forças externas, as quais colocariam em ameaça sua identidade resistente. O modo de subjetivação militante acabaria por repetir o próprio contexto que busca modificar, excluindo qualquer possibilidade de transformação e sem atingir resultados concretos. Figueiredo (1993Figueiredo, L. C. (1993). A militância como modo de vida: Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, 1(2), 205-216.) entende, desse modo, a militância como o oposto de uma verdadeira ação política.

Entendemos que essas posições são de caráter monológico. Linell (2009Linell, P. (2009). Rethinking language, mind and world dialogically: Interactional and contextual theories of human sense-making. Information Age Publishing.) caracteriza monologismo como parte de teorias cognitivas de processamento de informação, as quais concebem comunicação como uma mera transferência de mensagem de um transmissor para um receptor. No monologismo, existem concepções da linguagem consistindo em signos estáticos e significados fixos, enquanto os contextos nos quais essas linguagens existem são tratados como alheios a elas, considerando seus usos, pensamentos e a comunicação em si.

Boa parte da crítica de Figueiredo está pautada na afirmação de que é um problema quando a militância se torna modo de vida. Entendemos que o cenário apresentado por Figueiredo (1993Figueiredo, L. C. (1993). A militância como modo de vida: Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, 1(2), 205-216.) não alcança a totalidade dos fenômenos que podem ser entendidos como militância. Pensando em uma direção oposta, Foucault (1981Foucault, M. (1981). De l’amitié comme mode de vie. Gai Pied, (25), 38-39.), ao discutir a amizade como modo de vida, aponta a existência de valores que são compartilhados entre pessoas de um certo coletivo, um conjunto de ideias e símbolos que por vezes só apresentam sentido quando considerados dentro de um contexto específico e que, fora dele, ou não aparecem, ou se apresentam de forma diluída, disfarçada. Não é possível desvincular a ideia de modo de vida de uma ideia de locus, de localidade onde ela se manifesta. Um modo de vida é necessariamente compartilhado em um grupo de pessoas, e, portanto, nunca por uma pessoa sozinha, fora de contexto. É preciso, então, entender que lugar é esse que as pessoas se encontram e podem realizar suas trocas simbólicas e materiais.

Compreendemos que, para Foucault (1981Foucault, M. (1981). De l’amitié comme mode de vie. Gai Pied, (25), 38-39.), a amizade como modo de vida pode ser a possibilidade de uma abertura ao diálogo e de coconstrução de sentidos e significados compartilhados, um aspecto significativo das militâncias contemporâneas que iremos aprofundar mais adiante nas reflexões sobre a militância monodissidente. Considerando que militância pode ser um modo de vida, compreendemos que o que caracterizaria o ethos da militância são as criações de sentidos, significados e experiências comuns, os quais apontam para uma direção de mudança social levando em conta contradições e tensionamentos que surgem nesse encontro. Entendemos a noção foucaultiana de modo de vida como podendo estar intimamente ligada à noção de ethos trazida por Figueiredo (1996/2013Figueiredo, L. C. (2013). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes. Trabalho original publicado em 1996.), considerando que a amizade como modo de vida pode apontar para possibilidades do “gozar, do trabalhar, do pensar, do representar, do brincar e do experimentar” (Figueiredo, 1996/2013Figueiredo, L. C. (2013). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes. Trabalho original publicado em 1996.). Ao discutir o lugar da ética na construção do conhecimento psicológico, Figueiredo (1996/2013Figueiredo, L. C. (2013). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes. Trabalho original publicado em 1996.) aponta para a importância das formas serenas e confiadas de habitar no mundo.

Retomando nossa reflexão sobre militância, é importante que conquistas de direitos que ocorreram no passado e ocorrem no presente sejam afirmadas pelas militâncias como tentativas de diminuir o sofrimento e a vulnerabilidade social de segmentos da sociedade, visando ampliar as condições do habitar sereno e confiado, condição para a saúde no entendimento de Figueiredo (1996/2013Figueiredo, L. C. (2013). Revisitando as psicologias: Da epistemologia à ética das práticas e discursos psicológicos. Vozes. Trabalho original publicado em 1996.). As pautas de grande parte das militâncias não podem ser diminuídas, como se a região da militância “vida política, religiosa, acadêmica” e sua direção “revolucionária, conservadora ou alternativa” (Figueiredo, 1993Figueiredo, L. C. (1993). A militância como modo de vida: Um capítulo na história dos (maus) costumes contemporâneos. Cadernos de Subjetividade, 1(2), 205-216., p. 3) não devessem ter centralidade nas análises.

Defendemos, então, que quando a militância se torna um modo de vida, ela pode demandar uma abertura ao diálogo e a autoquestionamentos. Ou seja, quando uma pessoa decide se inserir em uma militância, sua práxis, engajamento sociopolítico e seus estudos afetam a maneira como ela lida com o mundo. A militância passa a ser um convite ao diálogo, ao invés de um autocentramento redundante.

Articulando distinções e intervenções a um recorte sobre militância

Entendemos militância como engajamento coletivo em uma causa que modifica uma realidade ou estrutura social, visando melhorar as condições de vida de um grupo focalizado. Isso converge com a concepção de militância de Wright, Taylor e Moghaddam (1990Wright, S. C., Taylor, D. M., & Moghaddam, F. M. (1990). Responding to membership in a disadvantaged group: From acceptance to collective protest. Journal of Personality and Social Psychology, 58(6), 994-1003. https://doi.org/10.1037/0022-3514.58.6.994
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). Para pensar militância, apresentamos o que diz Valsiner (2003b/2017Valsiner, J. (2017b). Missions in history and history through a mission: Inventing Better Worlds For Humankind In: Between Self and Societies: Creating Psychology in a New Key. Tàllinn University Press, pp. 217-235. (Trabalho original publicado em 2003)) quando ele se debruça sobre a possibilidade de considerar a educação como uma intervenção direta sobre certas circunstâncias socialmente avaliadas. Toda mudança promove uma ruptura daquilo que era, construindo algo que ainda não é. As iniciativas em educação, por exemplo, permitem criar formas de conhecimentos superando formas antigas, o que gera tensão entre o que já existia e o que se deseja criar. Nesse sentido, faremos uma ponte entre educação e militância.

A primeira ideia presente na definição de militância acima é a de um fenômeno de ordem sociocultural percebido como real e relevante. No caso da militância, o foco recai sobre o que é entendido como indesejável e passível de ser transformado, o que permite identificar aspectos estruturais envolvidos ou tensionamentos relevantes de modo a agir efetivamente sobre eles. Por exemplo, militantes percebem que existem pessoas em situação de vulnerabilidade social e lutam para que elas não estejam mais nessa situação.

A segunda colocação possível de se depreender da definição de militância em discussão parte do pressuposto de que militar por uma causa só pode ocorrer em âmbito coletivo, com outras pessoas que também estão engajadas no processo de transformação de forma organizada ou não. Não é necessário se inserir em uma organização social, porém, enquanto um ato individual e desarticulado pode ter motivações e até resultados transformadores, ela não infere no aspecto coletivo característico do que estamos considerando como militância.

A militância é construída através de intervenções em certos pontos ou estruturas da sociedade, realizando distinções entre o que os militantes julgam ser bom e interessante e o que julgam não ser. Para efetivar um projeto intervencionista, o militante precisa, portanto, entender o modo de ser da realidade social sobre a qual deseja intervir, muitas vezes partindo das suas próprias vivências e experiências. Para isso, são criadas distinções de modo a localizar quais são os pontos de diferença entre realidades sociais. Esta ideia está presente quando Valsiner (2003b/2017Valsiner, J. (2017b). Missions in history and history through a mission: Inventing Better Worlds For Humankind In: Between Self and Societies: Creating Psychology in a New Key. Tàllinn University Press, pp. 217-235. (Trabalho original publicado em 2003)) apresenta na centralidade da distinção EU (NÓS) < > ISTO/VOCÊ (ELES) como base para qualquer função psicológica, na relação contrastante sujeito-objeto.

Em termos ontológicos, o contraste “NÓS somos X e ELES são Z” (Valsiner, 2003/2017Valsiner, J. (2017a). Between self and societies: Creating psychology in a new key. Tallinn University Press. (Trabalho original publicado em 2003), grifo do autor) aparece de forma neutra e sem valoração, marcando apenas que existe uma diferença e nada mais. Isso pode ocorrer devido à pouca informação disponível sobre o outro, bem como quando tal distinção não representa ameaça ou interesse para quem a faz. Ao mesmo tempo que percebem as diferenças, as pessoas atribuem valor a uma e outra, considerando, por exemplo, uma realidade social sendo boa e outra sendo ruim, ou, então, entendendo que o estado atual é ruim diante de um cenário imaginado como bom. Valsiner (2003b/2017Valsiner, J. (2017b). Missions in history and history through a mission: Inventing Better Worlds For Humankind In: Between Self and Societies: Creating Psychology in a New Key. Tàllinn University Press, pp. 217-235. (Trabalho original publicado em 2003)) afirma que a valoração de uma distinção ocorre quando NÓS nos interessamos por ELES, acabando com a neutralidade, gerando dois cenários possíveis: um no qual entendemos que NÓS somos melhores do que ELES, e outro no qual NÓS somos piores do que ELES.

Ambas as valorações evocam possibilidades de ação. É possível não se importar com tal diferença ou então tomar um caminho para que ela deixe de existir, no sentido de que eles se tornam como nós ou nós como eles. Do mesmo modo, é possível tomar um caminho que intensifique a diferença: nós somos melhores/piores do que eles e deveríamos manter isso desse modo. Para este objetivo em específico, não é necessário um movimento de intervenção, apenas manter segregação social e manutenção de castas/estratificações sociais (Valsiner, 2003b/2017Valsiner, J. (2017b). Missions in history and history through a mission: Inventing Better Worlds For Humankind In: Between Self and Societies: Creating Psychology in a New Key. Tàllinn University Press, pp. 217-235. (Trabalho original publicado em 2003)).

Feitas as distinções, uma pessoa pode decidir que quer modificar a realidade social na qual está inserida. Para fazer esta passagem, adicionam-se metas às valorações existentes no processo de distinção. A distinção nós/eles cria uma malha complexa de decisões sociomorais para quem se entender enquanto nós. Eles são Z e devem se manter assim? Ou então se tornar X como nós somos? Ou então eles se juntam a nós em erradicar essa diferença, de modo a nos tornarmos todos Y? É aqui que surge, do nosso ponto de vista, o tensionamento que se torna base para um processo de militância. Se entendemos que militância pode ser a busca pela mudança de uma estrutura social, é porque percebemos que há algo além da mera distinção valorativa entre os vários sujeitos que estão em tensão nesse contexto. Há uma busca pela mudança da estrutura e, por conta disso, uma meta é adicionada às distinções. A partir dessas metas, há uma base relativamente estável para realizar intervenções.

O militante realiza intervenções a partir das distinções que faz entre o que é desejável ou indesejável para nós e para os outros. A intervenção pode se dar a partir de uma ação violenta, com a quebra da ordem estabelecida e mesmo outras formas mais sutis de dominação. Enquanto quem intervém pode se apresentar com uma boa intenção, também pode acabar reproduzindo sistemas de opressão, por vezes até coloniais. Isso ocorre, por exemplo, quando missionários levam o que consideram ser a luz do conhecimento para povos que consideram ser menos evoluídos (Valsiner, 2003a/2017Valsiner, J. (2017a). Between self and societies: Creating psychology in a new key. Tallinn University Press. (Trabalho original publicado em 2003)).

É interessante refletir sobre a posição da intervenção como violência que Valsiner (2003/2017Valsiner, J. (2017a). Between self and societies: Creating psychology in a new key. Tallinn University Press. (Trabalho original publicado em 2003)) aponta, visto que muitas vezes um grupo busca realizar uma intervenção sobre um grupo dominante. O grupo dominado ou oprimido resiste e busca modificar a situação que está inserido, justamente porque está sujeito a violências e vulnerabilidades.

Há três caminhos típicos que podem ocorrer em um sistema de intervenção de uns sobre outros. O primeiro resultado comum de uma intervenção é que ela não surta efeito algum. O segundo resultado é que a intervenção pode ser efetiva no período em que os sistemas de amortecimento não estão ativados, o que evidencia a necessidade de um bom timing para que haja sucesso. Enquanto a intervenção busca mudar a trajetória de um sistema, o sistema em si apresenta uma inércia que visa atenuar os esforços da intervenção. O terceiro resultado focaliza os efeitos persistentes e constantes de uma intervenção e menos os efeitos imediatos. Dado que todas as organizações sociais são sistemas abertos, nenhuma intervenção por princípio pode garantir o resultado esperado pelas intenções de quem intervém (Valsiner, 2003a/2017Valsiner, J. (2017a). Between self and societies: Creating psychology in a new key. Tallinn University Press. (Trabalho original publicado em 2003)).

Ao focalizar questões de ordem estrutural, ou seja, que ditam sobre o funcionamento da sociedade, as militâncias esperam encontrar muita resistência às suas intervenções. As estruturas sociais não são entidades amorfas e passivas, mas são mantidas ativamente por pessoas que participam da sociedade e se beneficiam com a conservação de um estado de coisas. Nesse sentido, formas de resistir a uma intervenção podem ser mais ou menos explícitas.

Valsiner (2003a/2017Valsiner, J. (2017a). Between self and societies: Creating psychology in a new key. Tallinn University Press. (Trabalho original publicado em 2003)) considera que uma intervenção pode ser neutralizada, parcialmente incorporada ou então repelida. Esforços de militância são neutralizados quando são silenciadas as vozes de quem busca mudar a sociedade. Isso pode ser entendido quando criadores de conteúdos em redes sociais têm seus canais de diálogo derrubados pelo site em que estão ancorados, as informações sobre suas reivindicações não são noticiadas, ou então qualquer outra forma que, sem ser por confronto direto, consegue anular os efeitos das intervenções. As intervenções conseguem ser parcialmente incorporadas quando elas de fato passam a mudar alguma realidade ou estrutura da sociedade, ainda que não inteiramente. Legalização do casamento homoafetivo no Brasil é um exemplo desse caso, em que pessoas que experimentam atração pelo mesmo gênero passam a poder se casar legalmente, uma conquista do movimento LGBT+. Contudo, é central lembrar que a LGBTfobia ainda é estruturante da sociedade atual, então o esforço de intervir nisso, de modo a criar uma outra sociedade que não seja construída sobre este pilar, se mantém ativo e necessário. Repelir atos de militância pode acontecer de diversas formas, como em atos de violência policial, muito comuns em protestos e passeatas públicas de reivindicações diversas, ou ao se criar leis que criminalizem certas atuações políticas e manifestações de luta.

A maioria dos esforços de intervenção militante está fadada ao fracasso, porque nem sempre o alvo da intervenção está com suas defesas amortecidas, ainda mais considerando suas tentativas de neutralizá-la e repeli-la. Nos casos em que as defesas estão amortecidas, certos avanços podem ser feitos e certas conquistas podem ser alcançadas, como o casamento civil mencionado acima. Considerando, porém, que as militâncias possuem metas de transformações sociais e estruturais, é essencial pensar nos efeitos duradouros que buscam efetivar, indo além dos efeitos imediatos ainda que estes sejam importantes, visto que aqueles vão pavimentando o caminho para conquistas mais longas e persistentes.

Um último ponto elaborado a partir da articulação com as reflexões de Valsiner (2003a/2017Valsiner, J. (2017a). Between self and societies: Creating psychology in a new key. Tallinn University Press. (Trabalho original publicado em 2003)) fala sobre o processo de mudança do próprio militante na sua relação com o processo de militância e com outros militantes. Para intervir na sociedade de modo a modificá-la, é essencial realizarmos uma intervenção em nós mesmos quanto à questão em foco no processo de militância. Assim, podemos pensar um passo além dos processos de distinção que foram descritos acima por Valsiner (2003b/2017Valsiner, J. (2017b). Missions in history and history through a mission: Inventing Better Worlds For Humankind In: Between Self and Societies: Creating Psychology in a New Key. Tàllinn University Press, pp. 217-235. (Trabalho original publicado em 2003)), visto que até agora quem ocupa a posição de nós não está apto a tomar a posição que eles já ocupam. Podemos considerar que no processo de mudança a valoração não precisa ser de cima para baixo, ou seja, perceber o outro como inferior e buscar que ele mude a partir de um referencial nosso. Podemos nos entender numa posição em que nós buscamos mudar diante do referencial do outro.

Consideremos uma distinção na qual o outro está numa posição que julgamos mais interessante que a nossa, no caso uma posição mais desconstruída no que diz respeito às estruturas sociais em que buscamos intervir. Podemos pensar que nós estamos numa posição X e eles numa posição Z, e buscamos estar também na posição Z, de desconstrução. Levando em conta as várias possibilidades, percebemos que o esforço de uma intervenção é mudar a realidade do outro, o qual está na posição que reproduz os efeitos da estrutura sobre a qual buscamos intervir. Atuamos para desconstruir racismo, LGBTfobia, machismo, capacitismo, psicofobia, gordofobia, dentre tantas outras estruturas que vemos nas pessoas e instituições sociais. Nesse sentido, há também um esforço contínuo para desconstruir esses efeitos que existem em nós, passando para a posição desconstruída.

Consideremos o cenário específico da construção da noção de monodissidência, como apresentado anteriormente neste artigo. Percebemos que nós, pessoas que se atraem por mais de um gênero, não somos monossexuais, do mesmo modo que eles, assexuais e arromânticos, também não o são. Poderíamos pensar, num primeiro momento, que tanto nós quanto eles estaríamos imbricados em ser monodissidentes. Contudo, a distinção ocorre quando percebemos que nós nos atraímos por vários gêneros e eles, não. No que diz respeito à definição de monodissidência, uma meta é adicionada a essa distinção, de modo que ela contemple a característica comum das orientações sexuais que se atraem por mais de um gênero, intenção inicial proposta. Assim, a mudança da definição de monodissidência que apresentamos no início do artigo pode ser entendida como a aplicação da meta na distinção valorada, como pensada no esquema a seguir:

Figura 1
Aplicação da meta na distinção valorada da noção de monodissidência.

Considerando-se todas essas possibilidades, percebemos várias direções que uma valoração pode assumir quando uma distinção é feita entre eu e outro, sem necessariamente assumir que nós sempre estamos buscando realizar um movimento de proteção egóico, em que vemos o outro como uma ameaça e algo a ser rejeitado ou transformado. O processo de transformação pode ter diferentes centros e todos eles podem ser valorados como positivos, negativos ou neutros.

Um desafio que se impõe à militância é de que não existe um consenso nem sobre as estratégias mais interessantes para realizar essa passagem, nem sobre os objetivos que se pretende alcançar a longo prazo. Entre militâncias diversas, esses objetivos e estratégias podem convergir ou divergir, podendo ser motivo de embates e tensões entre diferentes militantes. Por isso militar pode ser cansativo e frustrante, visto que são várias intervenções a serem feitas simultaneamente, além das divergências encontradas entre militantes. Não só há tensão entre militante e sociedade, como também entre militantes de diferentes abordagens e até de parecidas. Buscar construir caminhos mais próximos, unificando-os quando possível mas mantendo sua pluralidade e diversidade, é o que entendemos como uma boa estratégia de modificação da sociedade de modo mais efetivo.

Quem pesquisa também milita! A relação entre militância e processos de construção de conhecimento

Carré (2016Carré, D. (2016). Either scholar or activist? Thinking cultural psychology beyond academia. Culture & Psychology, 22(3), 424-432. https://doi.org/10.1177/1354067X16645296
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) afirma que seria estranho pensar em um pesquisador que não se implica e não se interessa pelos temas que estuda. É inevitável que as ciências apresentem pontos de vista e um enquadre normativo sobre os quais elas se debruçam, o que implica dizer que não existe neutralidade em ciência. Com isso, cabe pensar que uma pesquisa com motivações voltadas às mudanças sociais seja um ponto de encontro entre pesquisador e militante. Innis (2016Innis, R. E. (2016). Between philosophy and cultural psychology: Pragmatist and semiotic reflections on the thresholds of sense. Culture & Psychology , 22(3), 331-361. https://doi.org/10.1177/1354067X16638847
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), num sentido semelhante, aponta que a psicologia cultural enquanto uma ciência humana não é e não pode ser indiferente às práticas humanas, considerando-as apenas peças em exibição num museu de curiosidades, analisadas apenas para entretenimento e satisfação destas curiosidades, ou então para mero avanço pessoal e político.

Com esses entendimentos, podemos pensar que boa parte dos temas investigados pelos pesquisadores ocorre por conta da experiência sentida como inquietante (Simão, 2003a, 2016Simão, L. M. (2016). Culture as a moving symbolic border. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(1), 14-28. https://doi.org/10.1007/s12124-015-9322-6
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) em relação a certos fenômenos e questões que são tomados para estudo. Experiências de ruptura ou descontinuidade podem aparecer a partir das tensões que surgem nas interações intersubjetivas. As rupturas produzem uma experiência afetiva inquietante devido aos excessos de significado típicos das relações de alteridade. O foco de Simão (2003bSimão, L. M. (2003b). Beside Rupture-Disquiet; beyond the Other-Alterity. Culture & Psychology , 9(4), 449-459. https://doi.org/10.1177/1354067X0394007
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, 2016Simão, L. M. (2016). Culture as a moving symbolic border. Integrative Psychological and Behavioral Science, 50(1), 14-28. https://doi.org/10.1007/s12124-015-9322-6
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) está na construção ontológica da subjetividade humana, em que se faz presente uma lacuna entre expectativa e experiência. Visto que essa lacuna gera desconforto e angústia, uma reorganização do significado da experiência se faz necessária, de modo a reduzir a tensão por meio de encaixes e conformações. A pesquisa, assim, surge como forma de resolver essa tensão dentro desse contexto investigativo.

Podemos retomar aqui a noção de participação observante (Bastien, 2007Bastien, S. (2007). Observation participante ou participation observante? Usages et justifications de la notion de participation observante en sciences sociales. Recherches Qualitatives, 27(1), 127-140.). Se entendemos que nessa metodologia o pesquisador está, primeiro, participando no campo para só depois passar a observar de modo investigativo o que nele ocorre, fica nítido como é impossível pensar em neutralidade no fazer científico. Quem pesquisa já se insere nesse contexto, age sobre ele e o modifica diretamente. Mais interessante do que buscar a neutralidade, entender como funciona e quais os efeitos dessa inserção no campo, permite que a investigação científica avance e se aprofunde.

Considerando os lugares de pesquisador e militante, trazemos a noção de multiplicação dialógica (Silva Guimarães, 2010Silva Guimarães, D. (2010). Articulações e implicações da noção de perspectiva no construtivismo semiótico-cultural para a compreensão das relações eu - outro: Possível diálogo com o perspectivismo ameríndio [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Repositório da Produção USP. https://bit.ly/3Xa92eG
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, 2013), de modo a compreender o self a partir da ideia de facetas que se dialogam. As facetas do pesquisador e do militante se encontram e produzem tensionamentos ao entrar em diálogo, mostrando a ambivalência entre a posição de Vas enquanto pesquisador e a posição de pessoa bissexual, com ambas se debruçando sobre o tema da monodissidência por meio de diferentes perspectivas.

A noção de multiplicação dialógica foi proposta como uma ferramenta teórico-metodológica no âmbito do construtivismo semiótico-cultural em psicologia, que permite focalizar as lacunas existentes na interação de um self com um outro (Simão, 2003a; Zittoun, Duveen, Gillespe, Invision, & Psaltis, 2003Zittoun, T., Duveen, G., Gillespie, A., Invision, G., & Psaltis, C. (2003). The use of developmental resources in developmental transition. Culture & Psychology , 9(4), 415-448. https://doi.org/10.1177/1354067X0394006
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). Essa noção visa entender a alteridade de uma pessoa quando o eu e o outro constroem um campo comum de diálogo. Ao mesmo tempo, concebe interpolações e aproximações, encontros e desencontros entre as mais diversas trocas que podem permitir que o diálogo continue ou se encerre.

Uma das questões principais discutida pela multiplicação dialógica é que, em diálogos interculturais, conceitos similares não coincidem um com outro de forma objetiva (Silva Guimarães, 2013Silva Guimarães, D. (2013). Self and dialogical multiplication. Interacções, 9(24), 214-242. https://doi.org/10.25755/int.2843
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), visto que mal-entendidos são inerentes ao diálogo. Dessa forma, é necessário um esforço mútuo entre duas pessoas para que possam sintonizar entre si (Rommetveit, 1992Rommetveit, R. (1992). Outlines of a dialogically based socio-cognitive approach to human cognition and communication. In A. H. Wold (Eds.), The dialogical alternative: Towards a theory of language and mind (pp. 19-44). Scandinavian University Press.). Existem dimensões não traduzíveis entre culturas e, assim, certas experiências subjetivas não podem ser comunicadas entre planos semióticos incompatíveis.

Entendemos, então, que a relação entre objeto, outros e o self é multiplicada. A tríade Outro-Self-Objeto “indica que um objeto representado socialmente se constitui como resultado de uma negociação simbólica dialógica entre membros de uma determinada comunidade” (Silva Guimarães, 2010Silva Guimarães, D. (2010). Articulações e implicações da noção de perspectiva no construtivismo semiótico-cultural para a compreensão das relações eu - outro: Possível diálogo com o perspectivismo ameríndio [Tese de doutorado, Universidade de São Paulo]. Repositório da Produção USP. https://bit.ly/3Xa92eG
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, p. 107). Em meio a diferentes perspectivas, contudo, objetos não focalizados em uma comunidade podem ser focalizados em outra, não havendo necessariamente similaridade entre objetos tomados para o diálogo em comunidades distintas.

Esse é um ponto central da multiplicação dialógica: existem diferentes objetos de referência no discurso de um self que está engajado no encontro com outro self, ou então de uma faceta de um self diante da outra faceta desse mesmo self, mutualmente se afetando num campo de nebulosidade imanente. Por nebulosidade entendemos o fluxo de experiência ainda não nomeada na fronteira do self, do outro e do mundo (Valsiner, 2007aValsiner, J. (2007a). Culture in minds and societies: Foundations of Cultural Psychology. Sage., 2007bValsiner, J. (2007b). Human development as migration: Striving toward the unknown. In L. M. Simão & J. Valsiner (Eds.), Otherness in question: Labyrinths of the self (pp. 349-378). Information Age Publishing.). Ao mesmo tempo, limites semióticos são criados e socialmente compartilhados de modo a lidar com as experiências inquietantes (Simão, 2003bSimão, L. M. (2003b). Beside Rupture-Disquiet; beyond the Other-Alterity. Culture & Psychology , 9(4), 449-459. https://doi.org/10.1177/1354067X0394007
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) que emergem desse campo nebuloso (Silva Guimarães, 2013Silva Guimarães, D. (2013). Self and dialogical multiplication. Interacções, 9(24), 214-242. https://doi.org/10.25755/int.2843
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).

Figura 2
Multiplicação dialógica entre o self pesquisador e self militante.

Tomando Vas como referencial, a figura acima mostra, de um lado, o self de um pesquisador que escolhe monodissidência como tema de investigação cientifica diante da psicologia cultural-semiótica construtivista e que está inserido num contexto que contempla outros pesquisadores, o orientador e todo o modo de vida de um pesquisador que tenta se construir ao longo da formação acadêmica. Do outro lado, está a faceta do self militante bissexual que também tem monodissidência como seu objeto de construção e investigação de discurso político-social, contemplando outros militantes da causa, bem como pessoas monodissidentes, sejam elas militantes ou não, considerando a própria experiência não só enquanto militante, mas também enquanto pessoa bissexual para além da militância.

Nesse recorte, ambas as facetas do self têm monodissidência como seu objeto, porém com tratamentos bastante distintos. A faceta do pesquisador tenta investigar a ideia de monodissidência perante um enquadre psicológico, analisando com quais conceitos ela melhor dialoga e buscando entender quais conhecimentos científicos são construídos sobre e a partir dela. Já a faceta do militante se preocupa não com enquadres psicológicos, mas em tentar entender quais os efeitos que essa ideia apresenta junto a seus colegas de militância, na própria militância e também com outros monodissidentes. O enquadre aqui é sociopolítico, focalizado na ideia de comunidade e união. Resta a pergunta: o objeto referido pelo termo monodissidência no campo da pesquisa e no campo da militância é o mesmo, ou em cada contexto estamos nos referindo a objetos distintos?

Habitando o campo imanente de nebulosidade, há um encontro de cada uma das facetas que passam a negociar em um diálogo ora construtivo, promovendo articulações e permitindo a emergência da novidade, ora tensionado. A faceta do pesquisador por vezes encontra dificuldades em lidar com a monodissidência que o militante tem como objeto. Essa monodissidência está enquadrada num contexto em que o pesquisador pouco tem como dialogar, sendo necessário realizar uma tradução em seu sentido a fim de que possa ser apreendida e internalizada como objeto de estudo. Isso também ocorre com o militante, que precisa traduzir a monodissidência do pesquisador de modo a apreendê-la e colocá-la em diálogo consigo e com a alteridade com quem se relaciona.

A Figura 2 mostra a ambivalência entre a posição do pesquisador que se debruça sobre o tema da bissexualidade e da monodissidência, e de pessoa bissexual e, portanto, monodissidente. As experiências prévias afetam a construção que o primeiro pesquisador faz na relação com a pesquisa, considerando o campo de trabalho. As experiências intersubjetivas são internalizadas, ocorrendo assim um tensionamento intrassubjetivo entre o objeto de investigação científica e o objeto não científico de interesse que permeia o campo sociocultural (Bastos & Silva Guimarães, 2014Bastos, S., & Silva Guimarães, D. (2014). Cultural-affective bonds in field-research: Towards a semiotic-constructivist understanding of circus daily life. Psychology & Society, 6(2),1-19. ). Desse modo, é inevitável considerar o pesquisador como parte do campo que estuda e seria imprudente fazer o oposto.

Considerações finais

Apresentamos uma visão monológica de militância como um contraponto às visões de militância que nós defendemos e apresentamos ao longo deste artigo. Com isso, fizemos uma ponte para delinear a militância em termos teóricos e abrangentes de modo a criar um esqueleto que qualquer militância possa se encaixar, ainda que cada uma delas possua particularidades não generalizáveis. O objetivo de generalização não pretendeu reduzi-las a uma estrutura estanque, mas sim de apontar um ponto de partida comum.

Para a discussão, analisamos parte da trajetória do primeiro autor, a fim de entender a noção de monodissidência, passando para a análise de trabalhos de militantes e refletindo sobre diferentes formas de se pensar militância enquanto convite ao diálogo. Localizamos o papel e a relevância da monodissidência enquanto ferramenta analítica e proposta político-comunitária. Se começamos este artigo numa lógica de oposição, passamos para um entendimento de militância enquanto abertura para o diálogo, numa relação de transformação tanto das estruturas sociais quanto daquele que milita.

Por fim, trouxemos a multiplicação dialógica como uma ferramenta que permite articular as várias facetas do self de uma mesma pessoa que pode contemplar, por exemplo, as perspectivas de militante e pesquisador. Com isso, pudemos colocar lado a lado tais perspectivas, com ambas se debruçando sobre o tema da monodissidência, entendendo suas diferenças e ressignificações.

Tivemos como objetivo apresentar uma perspectiva sobre militância que permitisse entender sua estrutura geral. Este artigo não pretendeu dar conta de toda a estrutura de uma militância, tampouco almejou adentrar em todos os detalhes e particularidades das diversas militâncias existentes. Esperamos que as ideias aqui debatidas sirvam para alavancar novas discussões sobre militância, aprofundando as reflexões iniciadas e apontando novas direções relevantes para compreendermos o fenômeno da militância e sua relação com processos de construção de conhecimento nas relações eu-outro-mundo. Esperamos também que este artigo sirva para aprofundar os conhecimentos sobre o próprio processo de construção do conhecimento científico, entendendo que não existe neutralidade científica e que todo fazer científico, portanto, é sempre político.

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  • Zittoun, T., Duveen, G., Gillespie, A., Invision, G., & Psaltis, C. (2003). The use of developmental resources in developmental transition. Culture & Psychology , 9(4), 415-448. https://doi.org/10.1177/1354067X0394006
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  • 1
    A pesquisa de mestrado que foi base para este artigo teve financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) - protocolo nº 88882.333306/2019-01. Apesar de ter sido aprovada pelo Comitê de Ética (CAAE: 29121320.5.0000.5561) nas etapas iniciais, foi dispensada em etapas posteriores, dado que,em virtude da pandemia da covid-19, não ocorreu a etapa empírica prevista no projeto de pesquisa.
  • 2
    Uma pessoa monossexual se atrai por apenas um gênero, sendo ela hetero ou homossexual.
  • 3
    A assexualidade é uma orientação sexual que se refere à ausência total ou condicional de atração sexual; arromanticidade é uma orientação romântica que se refere à ausência total ou condicional de atração romântica.
  • 4
    O excerto original foi modificado.
  • 5
    Pessoas cisgênero são aquelas que estão de acordo com o gênero imposto no nascimento. Uma pessoa que discorde dessa imposição e se identifique de um modo diferente é uma pessoa transgênero.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    12 Fev 2021
  • Aceito
    25 Nov 2021
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