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Vagalumes e Biografemas: Poéticas e Políticas Públicas no Desligamento Institucional por Maioridade

Fireflies and Biographems: Poetics and Public Policies Regarding Institutional Removal Due to Adulthood

Luciérnagas y Biografemas: Poéticas y Políticas Públicas en Desconexión Institucional Debido a la Edad Adulta

Resumo

Este artigo versa sobre o processo de desligamento institucional por maioridade de jovens que residem em serviços de acolhimento. Aposta-se em uma política do sensível para visibilizar os encontros e desencontros que acontecem entre as e os jovens e as políticas públicas brasileiras. Para tanto, realizaram-se encontros com jovens que já haviam passado pelo processo de desligamento e com jovens que logo completariam 18 anos e teriam de sair das instituições de acolhimento. Para tornar visíveis essas existências, investiu-se na escrita de biografemas, inspirados na obra de Roland Barthes. Os conceitos de necropolítica e vidas precárias foram fundamentais para compreender as omissões do Estado no momento do desligamento. Verificou-se que o Estado pode maximizar a precariedade de algumas vidas, especialmente daquelas marcadas por características de raça, gênero e classe culturalmente marginalizados. Contudo, é também o encontro com as políticas públicas que garante melhores condições de vida para alguns, facilitando o acesso à universidade e ao mercado de trabalho. A pesquisa aponta que, diante do abandono, as e os jovens se fazem vagalumes, produzindo luminosidades em meio à escuridão e reivindicando o direito à vida.

Palavras-chave:
Desligamento Institucional; Juventudes; Biografemas; Políticas Públicas

Abstract

This article discusses the process of institutional removal of young people that reside in foster care institutions for reaching adulthood. It relies on a politics of the sensitive to make visible the encounters and mismatches that take place between young people and Brazilian public policies. To do so, meetings were held with young people who had already experienced the removal process and with young people who would soon turn 18 and would have to leave the host institutions. To make these existences visible, this study invested in the writing of biographems, inspired by the works of Roland Barthes. The concepts of necropolitics and precarious lives were fundamental to understand the omissions of the State at the time of removal. It was also found that the State can maximize the precariousness of some lives, especially those marked by culturally marginalized race, gender, and class characteristics. However, it is also the encounter with public policies that ensures better living conditions for some, facilitating access to the university and the labor market. This research points out that, in the face of abandonment, young people become fireflies, producing luminosity amid the darkness and claiming the right to life.

Keywords:
Institutional Removal; Youth; Biographems; Public Policies

Resumen

Este artículo aborda el proceso de desconexión institucional justificado por la edad adulta de los jóvenes que residen en los servicios de acogida. Utilizamos una política sensible para hacer visibles las reuniones y los desajustes que tienen lugar entre los jóvenes y las políticas públicas brasileñas. Con este fin, se celebraron reuniones con los jóvenes que ya habían pasado por el proceso de desconexión institucional y también con los jóvenes que pronto cumplirían los 18 años y tendrían que abandonar las instituciones de acogida. Para hacer visibles estas existencias, se redactaron biografemas, inspirados en el trabajo de Roland Barthes. Los conceptos de necropolítica y vida precaria fueron fundamentales para comprender las omisiones del Estado en el momento de la desconexión. Se encontró que el Estado puede maximizar la precariedad de algunas vidas, principalmente de aquellas marcadas por características de raza, género y clase culturalmente marginadas. Sin embargo, el encuentro con las políticas también puede garantizar mejores condiciones de vida para algunos, facilitándoles el acceso a la universidad y al mercado laboral. Esta investigación señala que, ante el abandono, los jóvenes se convierten en luciérnagas, produciendo luminosidad en medio de la oscuridad y reclamando el derecho a la vida.

Palabras clave:
Desconexión Institucional; Jóvenes; Biografemas; Políticas Públicas

Gostaria de transmitir algo, mesmo que seja um pequenino grão de areia - talvez isso eu consiga. Se eu puder transmitir esse minúsculo grão, extraindo-o de tantos outros infinitos, talvez valha a pena investir minha vida nisso. É melhor penetrar fundo, até o âmago dos âmagos, mesmo das coisas minúsculas, tratando-as com cuidado. Ainda há tempo (Ohno, 2016Ohno, K. (2016). Treino e(m) poema (Tae Zuzuki, Trad.). N-1., p. 24).

Escrevemos porque buscamos aliados. Precisamos de aliados (Deleuze, 2013Deleuze, G. (2013). Conversações (P. P. Pelbart, Trad.). Editora 34., p. 34).

Escrevemos com a intenção de fazer ver ínfimas existências. Tal como em “A Vida dos Homens Infames” (Foucault, 2003Foucault, M. (2003). A vida dos homens infames. In M. Foucault, Ditos e escritos IV. Estratégia, poder-saber (pp. 203-222). Forense Universitária.), os sujeitos que integram as discussões vindouras também ficam visíveis por meio do encontro com o poder. Para Deleuze (2013Deleuze, G. (2013). Conversações (P. P. Pelbart, Trad.). Editora 34.), o homem infame carrega em si um feixe luminoso e uma onda acústica, “são os grãos dançantes na poeira do visível, e lugares móveis num murmúrio anônimo” (p. 138). Quando jovens em situação de desligamento institucional por maioridade se chocam com as políticas públicas (de assistência social, saúde, educação ou segurança), produzem o que denominamos, nesse estudo, lampejos. Eis nosso interesse: narrar e visibilizar os encontros e desencontros das e dos jovens com o poder no momento do desligamento institucional e, nesse sentido, olhar com atenção e cuidado para as faíscas e luminosidades que produzem.

Essa escrita é efeito de uma pesquisa de mestrado realizada em Porto Alegre - RS. Tal como na pesquisa, apostamos uma vez mais em uma racionalidade do sensível, posicionamo-nos poeticamente para nos inserirmos nas trincheiras que se situam no entre; nos espaços que produzem cuidado, abandono, violências, proteção, abertura de possibilidades ou o fechamento delas. Escrevemos para tocarmos e nos darmos ao toque (L. B. Costa & C. B. Costa, 2019Costa, L. B., & Costa, C. B. (2019). Short Scenes: A escrita acadêmica como combate. Polis e Psique, 9(2), 171-186. https://doi.org/10.22456/2238-152X.92295
https://doi.org/https://doi.org/10.22456...
).

Para dialogarmos sobre o sufocamento da vida e sobre jovens que insurgem contra o poder de morte do Estado, assumimos uma subjetividade poeta, conforme discute Preciosa (2010Preciosa, R. (2010). Rumores discretos da subjetividade. Sulina.), em que recolhemos ingredientes durante o ato de pesquisar para, depois, os devolvermos constelação de inventos. Subjetividade poeta enquanto ato político de afirmação da vida. Assim, já de início, apontamos para a existência de uma guerra permanente, contudo, não basta saber que ela existe, “é preciso reativá-la, fazê-la deixar as formas latentes e surdas em que ela prossegue sem que a percebamos bem e levá-la a uma batalha decisiva para qual devemos preparar-nos” (Foucault, 2005Foucault, M. (2005). Em defesa da sociedade (M. E. Galvão, Trad.). Martins Fontes., p. 322). Assumimos a existência da guerra e investimos em uma política da delicadeza como contragolpe.

Para tanto, iniciamos este artigo com uma discussão sobre a metáfora dos vagalumes, tensionando as políticas de visibilidade engendradas no contemporâneo e explicitando como narrativas biografemáticas adentram esse trabalho para disputar um lugar sensível às existências minúsculas. Como segundo movimento, discutiremos as terminologias que dão nome ao processo de saída das instituições, articuladas aos significados variados que as e os jovens produzem sobre o existir nesses espaços; atualiza-se a noção de desinstitucionalização, preconizada pela política de saúde mental como potência para o campo estudado. Discutiremos, por fim, através da escrita de biografemas, as políticas de morte e os burburinhos poéticos de vida que permeiam esses espaços.

Sobre Vagalumes e Biografemas

Pasoline (1973, citado em Didi-Huberman, 2011Didi-Huberman, G. (2011). Sobrevivência dos vaga-lumes (V. Casa Nova & M. Arbex, Trads.). Editora UFMG.), ao discutir o aniquilamento da cultura popular pelo fascismo, afirmou que os vagalumes haviam desaparecido, pois já não percebia movimentos de combate por aqueles que eram empurrados ao apagamento. Didi-Huberman (2011)Didi-Huberman, G. (2011). Sobrevivência dos vaga-lumes (V. Casa Nova & M. Arbex, Trads.). Editora UFMG., no entanto, se contrapôs fortemente a essa teoria:

Seria criminoso e estúpido colocar os vagalumes sob um projetor acreditando assim melhor observá-los. . . . Para conhecer os vagalumes, é preciso observá-los no presente de sua sobrevivência: é preciso vê-los dançar vivos no meio da noite, ainda que essa noite seja varrida por alguns ferozes projetores (p. 52).

Enquanto Pasoline continuasse a direcionar seus holofotes ao escuro, à procura dos vagalumes, não os encontraria. Para enxergá-los, é preciso adentrar os escuros de nosso tempo. Não nos esqueçamos: “o bom olhar é um olhar duvidoso” (Barthes, 2012Barthes, R. (2012). Cadernos da viagem à China (I. C. Benedetti, Trad.). Martins Fontes., p. 216).

Nessa perspectiva, insistimos na pesquisa sobre as zonas de visibilidades no campo do acolhimento institucional, adentrando um território ainda pouco discutido: o processo de desligamento institucional por maioridade. Apostamos que, se olhássemos com atenção, também conseguiríamos ver vagalumes - jovens produzindo visibilidades de si.

Para tanto, nos aproximamos de jovens que em breve completariam 18 anos e teriam de sair de instituições de acolhimento, encontramos jovens que já haviam passado pelo desligamento institucional por maioridade, escutamos profissionais e recorremos à literatura para imaginarmos outras histórias de acolhimento e desligamento. Assim, a Fundação de Proteção Especial do Rio Grande do Sul (FPE) foi parceira para realização da pesquisa, também se colocando em movimento para acolher o processo do pesquisar e produzir reflexões plurais. Ainda, para saber dos variados movimentos que aconteciam em Porto Alegre e que estavam de algum modo ligados à temática de pesquisa, conhecemos organizações não governamentais (ONG) e projetos sociais. Os encontros com as e os jovens aconteceram individualmente, e eram elas e eles que determinavam por quanto tempo nos veríamos, quantas vezes e em que lugar. Assim, cada encontro foi singular, livre, sem protocolos: abertura para o espontâneo do encontro; para o desejo. Então, ao acompanharmos a dança de cinco vagalumes, uma questão se fez improrrogável: como narrar essas vidas?

Butler (2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética (R. Bettoni, Trad.). Autêntica.) afirma que a impossibilidade de narrarmos plenamente uma vida indica que estamos eticamente implicadas nela. Jamais conseguiríamos contar verdadeiramente uma história ou decalcá-la em uma folha de ofício e dizer “eis a vida”. Assim, partimos do estilhaço como potência; fragmentos de história que, ao se lançarem ao mundo com certa força, podem habitar outros espaços, “um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte” (Barthes, 2005Barthes, R. (2005). Sade, Fourier, Loyola (M. Laranjeira, Trad.). Martins Fontes., p. XVII).

Provocadas pela necessidade de mostrar minúcias com cuidado e atentas à ética que se quer com a vida de outras e outros, encontramos na biografemática de Roland Barthes a sustentação de que carecíamos. Enlaçadas com as vidas que passaram a nos constituir durante a pesquisa, confiamos em uma escrita encharcada de afetações.

Barthes (1984Barthes, R. (1984). A câmara clara: Nota sobre a fotografia (J. C. Guimarães, Trad.). Nova Fronteira., 2005Barthes, R. (2005). Sade, Fourier, Loyola (M. Laranjeira, Trad.). Martins Fontes.) produz vestígios, ao longo de sua obra, sobre a noção de biografema, evidenciando a impossibilidade de representar um sujeito. Em Sade, Fourier, Loyola, aprendemos que a potência de um biografema está também em sua mobilidade, na capacidade de fugir de destinos e tocar em outros corpos. Já em A Câmara Clara, afirma que chamou de biografemas os traços biográficos que, na vida de um escritor, o encantavam. Ao analisar fotografias e se interrogar sobre a ligação que tinha com elas, discorre sobre studium e punctum. O primeiro diz respeito a um interesse cultural, ao gosto por alguém ou um investimento geral. Já o segundo atravessava esse campo de interesse, “parte da cena, como uma flecha, e vem me transpassar” (Barthes, 1984Barthes, R. (1984). A câmara clara: Nota sobre a fotografia (J. C. Guimarães, Trad.). Nova Fronteira., p. 46). Punctum, portanto, como algo que punge, corta, faz ferida… a intensidade com que um detalhe o atravessa.

Costa (2011Costa, L. B. (2011). Estratégias biográficas: Biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche, Henry Miller. Sulina.) mostra que estilhaçar verdades é potência, é criar possibilidades. Há jeitos interessantes de contar a vida e, para isso, é necessário

tomar partido da biografia enquanto criação (e não somente como representação de um real já dado por um passado vivido) é colocar-se diante de uma política que se mostra contrária a todo uso biográfico que sufoca a vida, de toda estratégia ou metodologia thanatográfica (p. 36).

Para Ribeiro (2015Ribeiro, E. M. (2015). Biografema, studium, punctum, fotografia: Quase um método. Em Tese, 21(2), 45-64. http://dx.doi.org/10.17851/1982-0739.21.2.45-64
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), o biografema impulsiona certa perscrutação. É aquilo que permite ajustar o zoom para se aproximar de um detalhe de vida, de nuances e ranhuras que só podem ser vistas de perto, com descabida atenção. Como Barthes (2012Barthes, R. (2012). Cadernos da viagem à China (I. C. Benedetti, Trad.). Martins Fontes.), resistimos a olhar o que a priori seria olhável, deixamo-nos surpreender durante o percurso. É assim que produzimos um modo de narrar as vidas encontradas na pesquisa: partimos de pequeninos detalhes, de acontecimentos que poderiam parecer insignificantes, e convidamos a ficção para nos ajudar a narrar. Portanto, “essa vida <antes de ser biografada da forma como é> não era” (Costa, 2011Costa, L. B. (2011). Estratégias biográficas: Biografema com Barthes, Deleuze, Nietzsche, Henry Miller. Sulina., p. 52). Trata-se, justamente, de dar a ver com outra intensidade.

Fazer, pois, da pesquisa biografemática um exercício de liberdade. Liberdade, no sentido foucaultiano, que só pode existir a partir de relações de poder e resistência, que exige um caminho de cuidado de si, invenção de uma nova relação consigo mesmo. “A liberdade é da ordem dos ensaios, das experiências, dos inventos, tentados pelos próprios sujeitos que, tomando a si mesmos como prova, inventarão seus próprios destinos” (Sousa Filho, 2011Sousa, A., Filho. (2011). O cuidado de si e a liberdade ou a liberdade é uma agonística. In D. M. de Albuquerque Júnior, A. Veiga-Neto, & A. Souza Filho (Orgs.), Cartografias de Foucault (pp. 13-26). Autêntica., p. 16). É preciso deixar o outro viver, pois a vida é justamente aquilo que excede qualquer relato que se possa dar (Butler, 2015Butler, J. (2015). Relatar a si mesmo: Crítica da violência ética (R. Bettoni, Trad.). Autêntica.).

Desacolher, Desabrigar, Desligar?

Muitas nomenclaturas são usadas cotidianamente para referir o processo de saída de crianças e jovens de instituições de acolhimento: desacolher, desabrigar e desligar. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), desde sua primeira versão, nomeia desligamento o processo de saída das casas de acolhimento. Com a Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009Lei nº 12.010, de 3 de agosto de 2009. (2009, 3 de agosto). Dispõe sobre adoção; altera as Leis nº 8.069, de 13 de julho de 1990 - Estatuto da Criança e do Adolescente, 8.560, de 29 de dezembro de 1992; revoga dispositivos da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil, e da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; e dá outras providências. https://bit.ly/3GPchmq
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, alterações foram feitas no ECA, entre elas, a substituição do termo abrigo por acolhimento institucional. Também o documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes (2009Orientações técnicas: Serviços de acolhimento para crianças e adolescentes. (2009). Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. https://bit.ly/3GS9WaF
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), mesmo que mencione o acolhimento institucional na modalidade abrigo, refere-se ao processo de saída da casa de acolhimento como desligamento. No mesmo ano, foi publicada a Instrução Normativa nº 3, de 3 de novembro de 2009Instrução normativa nº 3, de 3 de novembro de 2009. (2009, 3 de novembro). Institui a guia única de acolhimento, familiar ou institucional, de crianças e adolescentes, e a de desligamento, fixa regras para o armazenamento permanente dos dados disponíveis em procedimentos de destituição ou suspensão do poder familiar. https://bit.ly/3WXTMBW
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, que, em seu art. 1º, institui a Guia Nacional de Acolhimento e a Guia Nacional de Desligamento de Crianças e Adolescentes. Então, com base nos documentos oficiais, entende-se que o modo mais adequado de nomearmos esse processo é desligamento.

Possivelmente, enquanto as instituições de acolhimento eram chamadas de abrigos, falava-se em abrigamento institucional e, logo, desabrigamento institucional. Do mesmo modo, pensando na lógica do acolhimento, tem-se o desacolhimento. Entretanto, as palavras não são inocentes; é através delas que atribuímos sentido ao mundo.

Desabrigar (s.d.)Desabrigar. (s.d.). In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de https://bit.ly/3vLY835
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: tirar o abrigo; desamparar; sair do abrigo; despir a roupa de abafo. Desacolher (s.d.)Desacolher. (s.d.). In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de https://bit.ly/3vQHTSG
https://bit.ly/3vQHTSG...
: não acolher; repelir. Desligar (s.d.)Desligar. (s.d.). In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de https://bit.ly/3GMziXl
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: desunir (o ligado); desatar; desobrigar; absolver. Ao mencionarmos desabrigar e desacolher, se recorrermos para o significado presente no dicionário, estamos diante de um processo que parece acontecer sem o cuidado e tempo necessários. Desamparar, repelir, tirar a roupa que esquenta… infelizmente, acontece: tira-se o abrigo. Des-acolher, utiliza-se o prefixo que sinaliza o processo de desfazer algo. Desfazer a acolhida?

Enquanto não temos palavra mais adequada, chamamos o processo de desligamento, corroborando a expressão usada nos documentos oficiais. Essa palavra também não nos agrada, parece técnica e pontual, cumprimento de protocolo. “Se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível” (Ribeiro, 2017Ribeiro, D. (2017). O que é lugar de fala? Letramento., p. 41). Contudo, desligar: desliga-se o que está ligado. Vagalumes acendem, piscam, ligam. Desliga-se a luz dos vagalumes? Como produzir saídas que não provoquem tal apagamento?

Silva (2010Silva, M. E. S. (2010). Acolhimento institucional: Maioridade e desligamento [Dissertação de mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte]. Repositório institucional UFRN. https://bit.ly/3vObLPm
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) sugere que o desligamento seja pensado através da ideia de desinstitucionalização preconizada pela reforma psiquiátrica, já que algumas e alguns jovens passam muitos anos nesses serviços, o que pode provocar certa dependência e, desse modo, dificultar a construção de autonomia. Assim, pensar em desinstitucionalização e não apenas em desligamento se refere a um processo de construção de independência, que deve ocorrer com o apoio de outros serviços da rede de assistência social, saúde e educação. Mesmo que a noção tenha sido elaborada para a saída de moradores de instituições asilares - hospitais psiquiátricos, casas de repouso com privação de liberdade -, pode ser atualizada no campo do desligamento institucional, em que pese a necessidade de promover certo domínio sobre as atividades da vida diária e pertencimento a outros espaços.

Poderíamos pensar o desligamento institucional como uma saída de casa? Aliás, como as e os jovens percebem seu morar? Os encontros da pesquisa evidenciam que não há consenso. Para alguns, a instituição significa lar, para outros, é abrigo ou passagem ou prisão.

Assim, nos demoramos em um significado de casa proveniente da encadernação: “espaço entre dois nervos, na lombada de um livro encadernado = entrenervo” (“Casa”, s.d.Casa. (s.d.). In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de Recuperado em 9 de janeiro de 2023, de https://bit.ly/3GORS0N
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). Parece que, para alguns, a instituição de acolhimento é isso, entrenervo. Espaço entre um lugar e outro, entre o lar familiar e o lar para onde se irá após a saída da instituição. Mas, na possibilidade de flexionar a palavra, entre-nervos, espaço de nervosismo entre a saída da casa familiar e a necessidade de sair de uma instituição.

Sentir-se em casa é singular, depende da experiência de cada sujeito. Seja pelo tempo de permanência na instituição, pela presença ou não de irmãs ou irmãos no mesmo espaço físico, com quem se divide o quarto, do quanto se é escutada ou escutado. Depende, especialmente, da flexibilização de algumas normas institucionais. É possível sentir fome fora dos horários estabelecidos de café da manhã, almoço, lanche ou janta? É possível que uma instituição seja casa, seja lar?

Considerar que o modo de habitar é singular implica saber que a saída também é. É possível e importante o estabelecimento de protocolos, passos ou orientações para o desligamento, mas é imprescindível que seja um processo elaborado no um a um, considerando as demandas, necessidades, anseios e desejos de cada jovem.

Alertas Para Estremecer a (sua) Casa: Políticas de Morte, Poéticas de Vida

Aurora acabara de chegar em casa quando tocaram a campainha. Levantou da cadeira e se pôs a olhar o espaço que desejava mobiliar. Aqueles eram os primeiros dias na peça que conseguira alugar com o dinheiro guardado do seu estágio. Ela sabia há bastante tempo que teria de sair da casa de acolhimento quando completasse 18 anos. Semanas antes, debruçou-se demoradamente para encontrar um lar que pudesse pagar. Há duas semanas de seu aniversário, uma técnica perguntara se ela já sabia para onde iria. Aurora sabia, tinha se organizado sozinha. Com seu sorriso encantador, abriu a porta: aí estava a prometida cesta básica organizada para dar suporte aos jovens que saem de abrigos. Dispôs os alimentos sobre a mesa, separou-os, guardou uma parte no armário da cozinha e a outra, devolveu à sacola. No dia seguinte tomou seu café da manhã sem pressa e, ao sair de casa, levou consigo a sacola de alimentos. Após caminhar algumas quadras, entregou parte de sua cesta para uma amiga. Ninguém a ensinara a cozinhar.

Butler (2018a)Butler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira. nos convoca a uma nova ontologia corporal - de um corpo social que depende de outros e carrega vulnerabilidade - para repensar a precariedade, o desejo, a exposição. Esse movimento implica reconhecer o ser como entregue a outros, como dependente de normas e organizações capazes de maximizar ou minimizar a precariedade da vida. Apresenta-se a problemática de como apreender uma vida, qual seja, como uma vida é reconhecida. A partir do entendimento de que todas e todos estão, em alguma medida, nas mãos de outros, a filósofa entende a precariedade como uma condição compartilhada por todas e todos: somos vidas precárias.

Afirmar essa precariedade é assumir que “a possibilidade de sua manutenção depende, fundamentalmente, das condições sociais e políticas, e não somente de um impulso interno para viver” (Butler, 2018aButler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira., p. 40), ou seja, é preciso que existam condições que façam essa vida ser vivível. Erroneamente, poderíamos compreender que, quanto mais uma vida depende de outras, maior sua precariedade. Logo, se mais precisa de políticas públicas, mais precária. Contudo, essa pesquisa assume outros contornos. Os encontros no campo apontam para vidas que podem estar ainda mais precárias do que aquelas que encontramos: jovens que moram na rua, que têm envolvimento com o tráfico, aqueles ameaçados de morte ou cumprindo medidas socioeducativas.

A precariedade exprime aquilo que é comum a todas as vidas, que não garante, jamais, sua persistência. A condição precária designa uma condição politicamente induzida em que determinados grupos sociais ficam expostos à violência e à morte. Expressa, pois, uma maximização da precariedade em função da violência do Estado, em que “estar protegido da violência do Estado-Nação é estar exposto à violência exercida pelo Estado-Nação; assim, depender do Estado-Nação para a proteção contra a violência significa precisamente trocar uma violência potencial por outra” (Butler, 2018aButler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira., p. 47).

Assim como o Estado age no momento do acolhimento institucional para proteger as vidas da violação de direitos, é também ele que pode produzir uma série de outras violências, como é possível notar quando não efetua o desligamento institucional de modo adequado e deixa as e os jovens à própria sorte, abandonados. Também em Agamben (2002Agamben, G. (2002). Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua (H. Burigo, Trad.). Editora UFMG.) é possível visualizar o caráter ambíguo presente nessa realidade. Abandonado: bando. Bando é aquele remetido à própria separação, mas que também fica à mercê daquele que o abandona, estando, então, dispensado e capturado.

Nessa perspectiva, é possível considerar que o Estado maximiza a precariedade das e dos jovens quando deixa de atuar para sua autonomia. Como, após longos anos de institucionalização, saber qual de seus remédios deve ser tomado em determinado horário? Aliás, por qual motivo se toma aquela medicação? Como marcar uma consulta médica? Como se locomover pela cidade sem cartão para o ônibus? Como aproveitar os alimentos da cesta básica se não se sabe cozinhar? Cabe transcrever uma das perguntas de Butler (2018a)Butler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira.: “como começar a pensar em maneiras de assumir a responsabilidade pela minimização da condição precária?” (p. 57). Eis nossa tarefa.

Em Porto Alegre, foi criado o Núcleo de Acompanhamento ao Desligamento Institucional (Nadi), da Fundação de Proteção Especial (FPE), órgão vinculado à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos, responsável por realizar acolhimentos institucionais de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social. O núcleo foi pensado para suprir algumas necessidades básicas daquelas e daqueles que saem de instituições, como cesta básica para alimentação e produtos de higiene. Contudo, sabem que, mesmo que necessárias, essas contribuições não minimizam os sofrimentos decorrentes do processo de desligamento. Nessa perspectiva, investem na realização de círculos da paz com jovens em processo de desligamento. A metodologia, muito utilizada pela justiça restaurativa, visa criar um espaço acolhedor para a resolução de conflitos.

No Nadi os círculos foram organizados para melhor escutar as demandas das e dos jovens, além de ajudá-los a construir movimentos possíveis para a saída do acolhimento. O espaço fortalece o pensar coletivo, em que acolhidas, acolhidos, técnicos e representantes de instituições possam se escutar e pensar juntos. Intenta-se, com o fortalecimento do projeto, que todas e todos os jovens acolhidos possam participar desses círculos antes e após o desligamento institucional. A iniciativa, portanto, aproxima-se da orientação do ECA no que se refere a manter programas de acompanhamento de egressos. Os círculos têm o compromisso de escutar vozes: Estado minimizando as precariedades que pode ter maximizado.

Para Butler (2018a)Butler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira., estando a vulnerabilidade associada a arranjos institucionais e sociais mais do que a características pessoais, é nos arranjos que se deve mexer. O fortalecimento da autonomia precisa acontecer desde a entrada nas instituições de acolhimento, e não somente na iminência da saída. Uma preparação gradativa para o desligamento institucional implica o alargamento das relações sociais das e dos jovens, a aposta do fortalecimento de vínculos (com a escola, com as unidades básicas de saúde, com os cursos profissionalizantes, com o apadrinhamento afetivo etc.), a facilitação de acesso aos espaços comunitários da cidade, fomentar contato com eventos culturais e artísticos, produção de certa liberdade para transitar pelas cozinhas das casas de acolhimento e auxiliar na preparação das refeições, uso da lavanderia para o cuidado das roupas, acompanhar e ensinar uma organização possível do dinheiro com aqueles que recebem auxílios e investimento nas possibilidades de trabalho e fontes de renda para aqueles que não contam com benefícios. É justamente por ser um trabalho intenso que a preparação gradativa para o desligamento deve ser investida por outros serviços que não apenas as instituições de acolhimento.

Uma vez que não pode haver vida sem condições que a sustentem, nossas obrigações e responsabilidades públicas são com as condições que a possibilitam. É preciso operar sua sustentação fora das instituições enquanto as e os jovens ainda as habitam. Sustentar condições para a existência é, portanto, “nossa responsabilidade política e a matéria de nossas decisões éticas mais árduas” (Butler, 2018aButler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira., p. 43).

Aurora tem um desencontro com as políticas de proteção durante o processo de desligamento. Esse não contato aumenta sua precariedade, que talvez tenha sido diminuída em outro momento por essa mesma política. No entanto, usa da inventividade de si e de relações cultivadas fora das políticas estatais e encontra um lugar para habitar o/no mundo. Aurora preparou para si mesma o nascer do sol. E ele nasceu. Mas não deveria ter sido tão difícil.

Luca lembra com carinho do amigo que evadiu do abrigo aos 17 anos. “Ele queria liberdade!” Olha o porta-retratos vazio sobre a penteadeira enquanto fala, penso que ali deveria ter uma fotografia de Joaquim. “Mas ele se perdeu, sabe?” Não sei. “Voltou para vila… e quando não se tem emprego na vila, tem que ir para o tráfico. Ele levou um tiro, não sei se de policial ou de bandido.” Mais uma pele preta rasgada pela bala. Ninguém sabe de seu velório. Ninguém sabe onde foi enterrado. Aqui, de onde estou, deixo uma lágrima cair e lhe dou adeus. De nada adianta. Chove tempestivamente em Porto Alegre.

O reconhecimento do valor de uma vida pode ser medido através de sua possibilidade de ser enlutada (Butler, 2018aButler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira.). Não se trata do luto enquanto uma expressão subjetiva ou clínica, mas antes de um luto coletivo, que carrega em si uma dimensão ética, política e social. Para ela, o valor de uma vida aparece de fato quando sua perda tem importância, assim, “a possibilidade de ser enlutada é um pressuposto para toda a vida que importa” (p. 32). A violência do Estado não se evidencia apenas no modo como as pessoas morrem, mas também através da divisão desigual de luto público. Esse movimento fala de uma capacidade de indignação diante dessas mortes, uma resposta afetiva que passa por um processo de regulação de jogos de forças, que permite ou não reconhecer uma vida. Se uma vida não pode ser lamentada, significa que nunca foi considerada vivida, ou seja, que “nunca contou de verdade como vida” (p. 64). O luto, portanto, como afirmação da vida e reconhecimento de seu valor.

Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro (Lispector, 2016Lispector, C. (2016). Mineirinho. In B. Moser (Org.), Todos os contos (pp. 386-390). Rocco., pp. 386-387).

O que permitiu 13 tiros em Mineirinho, mais de 80 tiros (na primeira apuração) e 257 disparos (na segunda análise) de fuzil e pistola em Evaldo dos Santos Rosa, homem negro que dirigia seu carro com a família, no Rio de Janeiro, em 7 de abril de 2019, ou que autorizou ceifar a vida de Joaquim, jovem negro que estava sob tutela do Estado, é que todos eles não têm suas vidas reconhecidas. Estão destituídos, por meio de enquadramentos políticos e sociais, de humanidade.

“Esse é meu susto: o rosto, o corpo, a pele, a língua, atributos ditos humanos, não bastam para assegurar o direito à vida” (Bento, 2018Bento, B. (2018). Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, (53), Artigo e185305. https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
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, p. 14). O pavor é ainda maior ao dar-se conta de que, além de não garantir existência, a pele, quando negra, pode ser justificativa para um não reconhecimento da humanidade do outro. A maioria dos jovens acolhidos e desligados institucionalmente com quem me encontrei são negras e negros: o Estado, uma vez mais, maximizando a precariedade dessas vidas.

Para discutir a distribuição desigual do direito à vida no Brasil, Bento (2018Bento, B. (2018). Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, (53), Artigo e185305. https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
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), apoiada em Achille Mbembe, Michel Foucault e Judith Butler, compreende que, para a existência da governabilidade da população, é preciso que se produza, ininterruptamente, zonas de morte. Nesses espaços, portanto, o aniquilamento de vidas é legitimado e entendido como necessário.

A noção de necropoder trata de uma formação específica de terror, que abre espaço para o uso bélico da política, ou seja, uma subjugação da vida ao poder de morte. Mbembe (2016Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, (32), 123-151.) cria os conceitos de necropolítica e necropoder para explicar a criação de mundos de morte, em que populações inteiras são destituídas de seu caráter de humano. Através de seus estudos sobre a ocupação colonial, o filósofo camaronês discorre sobre o processo de territorialização em que as pessoas podem ser classificadas em diferentes categorias e, desse modo, infligidas de um poder soberano e violento. “Soberania significa ocupação, e ocupação significa relegar o colonizado em uma terceira zona, entre o status de sujeito e objeto” (p. 135).

Isto posto, Bento (2018Bento, B. (2018). Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação? Cadernos Pagu, (53), Artigo e185305. https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
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), através dos estudos sobre a violência contra a população negra e contra os povos indígenas, evidencia que o Estado tem papel fundamental na produção de reconhecimento daquilo é humano. A produção de medo e pânico é o que garante a sustentação das necropolíticas.

Com a morte de Mineirinho, Clarice Lispector (2016Lispector, C. (2016). Mineirinho. In B. Moser (Org.), Todos os contos (pp. 386-390). Rocco.) repudia a justiça que vela seu sono. “Para que minha casa funcione, exijo de mim como primeiro dever que eu seja sonsa, que eu não exerça a minha revolta e o meu amor, guardados. Se eu não for sonsa, minha casa estremece” (p. 387). Aquilo que é a violência em Mineirinho, é furtivo em quem dorme no momento do disparo dos tiros, já que se “evita o olhar do outro para não corrermos o risco de nos entendermos” (p. 387). Acontece que quem entende, desorganiza, diz ela. Assim, não é possível que nos façamos de sonsas diante da realidade crua da violência.

Reconhecer precariedades implica lutar pelo reconhecimento daquela vida, abrindo a possibilidade de ela tornar-se algo que ainda não se conhece. É preciso invocar uma comoção pública. Butler (2018a)Butler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira. aponta que “onde uma vida não tem nenhuma chance de florescer é onde devemos nos esforçar para melhorar as condições de vida” (p. 43). Quando as e os jovens vivenciam realidades de acolhimento institucional e se fazem vagalumes - em suas revoltas, em suas poesias, em seus slams, em suas negações, em seus aceites para se mostrar em uma pesquisa - além de demonstrarem sua existência plural, “estão reivindicando reconhecimento e valorização, estão exercitando o direito de aparecer, de exercitar a liberdade, e estão reivindicando uma vida que possa ser vivida” (Butler, 2018bButler, J. (2018b). Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia (F. S. Miguens, Trad.). Civilização Brasileira., p. 33). Não sejamos sonsos. É preciso fazer estremecer a casa.

Durante a pesquisa, um diálogo escancara os efeitos do abandono do Estado:

As meninas geralmente começam a namorar e vão morar com a família do namorado, teve uma, é exceção né, mas que está morando em outro país, porque era atleta e conseguiu uma bolsa para morar fora… para os meninos que é mais complicado, lembro de um que voltou a morar com a mãe, outro foi para a vila e começou a trabalhar com o tráfico, a maioria vai para o tráfico… teve um que morreu logo depois que saiu do abrigo. [A outra complementa:] “Um?” [e então volta seu rosto para mim:] “Tu queres que eu faça uma lista com o nome de todos que saíram do abrigo e morreram?”

“As vidas de quem são abreviadas mais facilmente? . . . Como essa exposição diferencial à mortalidade é gerenciada?” (Butler, 2018bButler, J. (2018b). Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia (F. S. Miguens, Trad.). Civilização Brasileira., p. 56). Certamente está articulada ao racismo e às formas de abandono produzidas pelo Estado. Os discursos sobre humanização e valorização diferenciada das vidas permitem que, no momento da saída do acolhimento institucional, jovens fiquem desamparados e expostos às zonas de morte. Não se trata, propriamente, de afirmar uma falha nas equipes que efetuam o cuidado, mas justamente de pensar na falta de políticas ou orientações para esse momento.

Ao afirmar o necropoder como política de produção de morte, mais do que um aumento do risco de morte, Mbembe (2016Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, (32), 123-151.) argumenta que o reconhecimento da vida só pode vir do outro, é o outro que dá sentido a uma existência. Contudo, a população negra é aquela para a qual o necropoder se direciona mais fortemente. O não reconhecimento da humanidade de alguém o deixa mais exposto às políticas de morte. Assim, “política é uma arte de reconhecimento de gente, a população que permanece desconhecida pode ser alvo da violência” (Noguera, 2018Noguera, R. (2018). Dos condenados da terra à necropolítica: Diálogos filosóficos entre Frantz Fanon e Achille Mbembe. Revista Latinoamericana del Colegio Internacional de Filosofía, (3), 59-73., p. 69).

A escassez de dados no que se refere às discussões de gênero e acolhimento/desligamento institucional nos faz ancorar a discussão nos encontros e nos relatos vividos durante a pesquisa. A discussão é, portanto, localizada. Não dispomos de dados nacionais no que diz respeito à continuidade da vida fora das instituições de acolhimento após a maioridade. No entanto, escutamos muitas histórias de meninas que, próximas da maioridade, iniciaram namoros ou engravidaram, tendo como efeito morar junto com o companheiro/companheira.

As relações afetivas, muitas vezes assumidas às pressas, evidenciam um caminho possível para o desligamento, mesmo que seus desdobramentos sejam múltiplos. “Eu comecei a namorar, tia, ele é um guri gente boa, até me disse que se eu engravidar ele vai assumir o filho e vamos morar juntos, mas eu vou cuidar né, para não acontecer agora”. Não se trata, aqui, de apontar para papeis atribuídos culturalmente aos homens e às mulheres, como se nessa configuração o homem protegesse a mulher, já que meninas que namoram meninas também encontram possibilidade de morar com a companheira, mas de visibilizar que esse é um movimento recorrente entre acolhidas mulheres, ou seja, é uma das estratégias produzidas no processo de desligamento da instituição.

Entretanto, não presenciamos relatos parecidos sobre meninos que iniciam namoros e se mudam para a casa da namorada/namorado. Com eles, a história é diferente: ato infracional, evasão da instituição, abuso de drogas ou envolvimento com tráfico ao voltar para a vila. Trata-se, evidentemente, de uma questão de gênero. Sabendo que gênero não é natural, mas produzido socialmente e entrelaçado na cultura, os caminhos percorridos pelos meninos podem ser dialogados a partir da produção de masculinidades.

Connell e Messerschmidt (2013Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2013). Masculinidade hegemônica: Repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2013000100014
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) pontuam que discutir masculinidades não equivale a discutir a categoria homens, já que não se refere a um grupo de pessoas, mas trata-se justamente de processos de subjetivações. Assim, é possível pensar em masculinidades hegemônicas e masculinidades marginalizadas ou subordinadas, admitindo que as identidades não são estáticas, mas construções sociais.

A partir de estudos realizados por feministas negras, como Collins (2015Collins, P. H. (2015). Em direção a uma nova visão: Raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In R. Moreno (Org.), Reflexões e práticas de transformação feminista (pp. 13-42). SOF.), encontramos mais ferramentas para pensar gênero e relações de poder. Ao discutirem fortemente os atravessamentos entre raça e gênero, evidenciam que não é possível afirmar que todas as mulheres estão subordinadas aos homens, pois são constatações que não consideram os diversos fatores que constroem identidades. As posições de poder e privilégios estão atreladas a diversos fatores além de raça e gênero, como orientação sexual, identidade de gênero, classe social, idade, escolaridade, religião, nacionalidade etc.

A interlocução entre produção de masculinidades e violência precisa ser cuidadosa, para que não se cristalize um discurso universalista. Há pluralismo na construção de masculinidades, e os discursos que as constituem se modificam de acordo com as nuances dos territórios. Comumente dizemos que as características associadas ao masculino são as de coragem, agressividade e força, e que essas características subjetivam os homens. Contudo, conforme apontam Connell e Messerschmidt (2013Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2013). Masculinidade hegemônica: Repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2013000100014
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), é desejável que eliminemos a ideia de uma masculinidade hegemônica fixa para não ignorarmos as distintas transformações nessas definições sociais. Portanto, não podemos falar em um modelo trans-histórico de masculinidade.

O autor descreve a existência de sobreposições nos modelos de masculinidades (que ora se diferenciam, ora se acoplam aos modelos locais, regionais e globais). Alguns discursos somente podem circular em ambientes sociais específicos, conforme já nos apontava Foucault (1996Foucault, M. (1996). A ordem do discurso (L. F. A. Sampaio, Trad.). Loyola.), dependem de condições de possibilidades para sua existência. A masculinidade não determina um tipo de homem, mas “uma forma como os homens se posicionam através de práticas discursivas” (Connell & Messerschmidt, 2013Connell, R. W., & Messerschmidt, J. W. (2013). Masculinidade hegemônica: Repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282. https://doi.org/10.1590/S0104-026X2013000100014
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, p. 257).

É possível discutir relações de poder e produção de masculinidades atravessadas pela violência através do modo como acontecem desligamentos de meninos. Considerando que esses jovens passaram por violações de direitos, que são oriundos de territórios vulneráveis, que talvez tenham vivenciado o encarceramento de alguém conhecido e que contenham marcadores identitários que não os coloquem em condições de privilégios, possuem corpos precários. Nesse sentido, foram expostos, desde muito cedo, a situações que envolvem violência social.

Várias vezes me senti menos homem desempregado e meu moleque com fome é muito fácil vir aqui me criticar a sociedade me criou agora manda me matar me condenar e morrer na prisão virar notícia de televisão seria diferente se eu fosse mauricinho criado a Sustagem e leite Ninho colégio particular depois faculdade não, não é essa minha realidade (MV Bill, 1999MV Bill. (1999). Soldado do morro [Música]. Em Traficando informação. Zâmbia.).

O campo de possibilidades de como existir no mundo não é o mesmo para todos. Butler (2013Butler, J. (2013). Problemas de gênero: Feminismo e subversão de identidade (R. Aguiar, Trad., 6a ed.) Civilização Brasileira.) usa o conceito de violência normativa para sinalizar um processo que não é apenas exercido sobre os sujeitos, mas está presente no próprio processo de formação das subjetividades, e é entendida como uma violência primária. Diante dessa constituição de subjetividade que já está atravessada pela violência, articulada ao arranjo social de vulnerabilidades em que estão inseridos e aos agravos decorrentes das poucas oportunidades de trabalho e educação de qualidade, as estratégias de sobrevivência produzidas por esses jovens podem ser também violentas, seja para disputar um reconhecimento através da possibilidade de consumo, seja pela necessidade de permanecer em instituições.

As exclusões desses sujeitos não se produzem apenas pela vulnerabilização do corpo e por sua exposição à morte, mas também pela “restrição da potência de vida dos sujeitos e pela restrição das diferentes formas de ser e habitar a contemporaneidade” (Reis, Guareschi, Hüning, & Azambuja, 2014Reis, C., Guareschi, N. M. F., Hüning, S. M., & Azambuja, M. A. (2014). A produção do conhecimento sobre risco e vulnerabilidade social como sustentação das práticas em políticas públicas. Estudos de Psicologia (Campinas), 31(4), 583-593. https://doi.org/10.1590/0103-166X2014000400012
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, p. 591). Afinal, “uma maneira de desumanizar uma pessoa ou um grupo é negar-lhes a realidade de suas experiências” (Collins, 2015Collins, P. H. (2015). Em direção a uma nova visão: Raça, classe e gênero como categorias de análise e conexão. In R. Moreno (Org.), Reflexões e práticas de transformação feminista (pp. 13-42). SOF., p. 26).

Não conseguimos oferecer a Joaquim e a tantos outros as condições necessárias para a sustentação da vida. A morte desses meninos negros escancara a necropolítica. “Apesar de nosso cansaço e do nosso não mais aguentar, o possível ainda não foi esgotado por inteiro” (Fonseca, 2017Fonseca, T. M. G. (2017). O destino não pode esperar: Apontamentos sobre a inelutável improrrogabilidade. Polis e Psique , 7(1), 6-24. https://doi.org/10.22456/2238-152X.71844
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, p. 21). A guerra está posta, e é por isso que escrevemos: buscamos aliadas e aliados.

Uauá, como raramente se chama a um vagalume, recebe esse nome por também ser um caso raro. Há alguns anos no acolhimento institucional, entre idas e vindas à casa da mãe, quando Uauá vislumbra a possibilidade de voltar para a vila, um tiro de bala perdida acerta seu corpo. É verdade que ele não acendeu por algum tempo. Mas acontece que, entre os muitos motivos pelos quais esses seres piscam, Uauá estava faminto de vida. Era preciso aprender a girar as rodas que agora o movimentavam. Com fisioterapia e cuidados, depois de se mudar para uma instituição que melhor pudesse atender suas necessidades, pousa em livros e apostilas, aprende outro jeito de voar. Ele entrou para a universidade federal. Como outros, não foi possível sair da instituição aos 18 anos, precisou permanecer por mais tempo. Tempo para estreitar laços familiares, para pensar em si, para criar mapas de existência. Uauá, ao piscar, nos inspira a vida.

Para muitas e muitos, impera a impossibilidade de sair do acolhimento institucional aos 18 anos. Alguns recorrem judicialmente ao seu direito de proteção, conseguindo estender o tempo de permanência nas instituições. Determinados serviços de acolhimento, em que isso acontece com maior frequência, destinam uma casa para as e os jovens que atingiram a maioridade, mas permanecem sob tutela do Estado. Geralmente, quando apresentam necessidades especiais, vão para casas especializadas, como aconteceu com Uauá, outras, vão para repúblicas, em que podem permanecer até os 21 anos.

Todavia, a lógica de funcionamento das instituições segue muito parecida, com regras, horários rígidos e pouca independência. É preciso investir nas vidas para que possam ser desinstitucionalizadas, respeitando suas singularidades. Do contrário, alimenta-se uma lógica muito presente: das casas de acolhimento para repúblicas, Centro de Atendimento Socioeducativo, unidades de internação…

Nas reportagens divulgadas pela mídia sobre a história de vida de Uauá, traça-se uma narrativa de superação, mostrando sua trajetória como um exemplo a ser seguido. Esse movimento corrobora discussões realizadas em outra pesquisa, na qual, através da análise de reportagens sobre inclusão veiculadas pelo jornal Zero Hora, percebemos que a incitação à inclusão acontecia em duas vertentes: uma demonstrando os méritos do sujeito incluído, através de sua dedicação e persistência; outra através da construção de atitudes de solidariedade e responsabilização individual (Hillesheim & Cappellari, 2019Hillesheim, B.; Cappellari, A. (2019). Os corpos da inclusão: mídia e relações com a diferença. Revista Educação Especial, v. 32, pp. 1-17. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial . Acesso em: 1 jul. 2019. DOI: http://dx.doi.org/10.5902/1984686X.
https://periodicos.ufsm.br/educacaoespec...
). Desse modo, a trajetória de Uauá é apresentada como um “caso de sucesso”, conquistado através de seu esforço e dedicação.

Entretanto, ao trazer a narrativa para a pesquisa, não se trata de apontar a existência de uma certa meritocracia. Pelo contrário, Uauá, ao acessar a universidade, apesar de tudo, nos mostra a importância, nesse momento, do seu encontro com as políticas públicas. A possibilidade de permanecer em uma instituição após a maioridade garantiu que recebesse os cuidados necessários, como fisioterapia, consultas médicas, exames, acesso a cadeira de rodas motorizada etc. Pode propiciar, também, um desligamento institucional mais organizado e sensível.

Considerações Finais

A pesquisa, tanto bibliográfica quanto de campo, evidencia que as práticas de cuidado voltadas para a preparação gradual para o desligamento por maioridade ainda não estão instituídas, o que significa que os processos para acompanhamento de egressos também são raros. A fragilidade das redes e interlocuções entre as diferentes políticas públicas agravam esses hiatos, produzindo desencontros com essas e esses jovens justamente em um momento de transição importante em suas trajetórias. Há desencontros, inclusive, quando os sujeitos estão esgotados da tutela e da violência exercida pelo Estado e evadem dos serviços, mesmo que isso implique a maximização da precariedade de suas vidas. Ainda, existem desencontros produzidos e acentuados pela estrutura racista do Estado brasileiro e pelos discursos meritocráticos.

Em todos os momentos, “o tirano, o padre, os tomadores de almas, têm necessidade de nos persuadir que a vida é dura e pesada” (Deleuze & Parnet, 1998Deleuze, G., & Parnet, C. (1998). Diálogos (E. A. Ribeiro, Trad.). Escuta., p. 50). E é mesmo. No entanto, a vida não se reduz a isso. Nos espantamos ao perceber o que podem alguns corpos vagalumes: negam-se ao futuro profético, recusam-se a habitar lugares oferecidos, confrontando as malhas do poder.

Também existem encontros sensíveis entre jovens e políticas públicas, permeados de cuidado, proteção e investimento na vida. Há profissionais ocupadas e preocupadas em como a vida seguirá após a saída. Existem cuidadoras fortalecendo vínculos, reclamando que jovens aprendam a cozinhar e tenham espaço no mercado de trabalho. São encontros encharcados de delicadeza, que fazem proliferar os modos de saídas de instituições. Encontros que fazem cintilar as políticas.

Neste artigo, escolhemos três biografemas para a produção de visibilidades que pretendíamos: os embates entre vida e morte no campo do acolhimento institucional. Somos vidas precárias. No entanto, aquelas vidas que se encontram em arranjos sociais específicos podem ter sua precariedade maximizada (Butler, 2018aButler, J. (2018a). Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? (S. T. N. Lamarão & A. M. Cunha, Trads.; 5a ed.). Civilização Brasileira.). Enquanto operadoras das políticas públicas, sejam elas de saúde, assistência social, educação ou segurança, e sabidas das estratégias necropolíticas de governo, cabe a nós as trapacearmos. Tal como as meninas e os meninos vagalumes que dançam nos espaços de pouca luminosidade, mas criam fendas, brechas e, ao acender, insurgem. Acender, portanto, enquanto aparição que impeça o desvio do olhar. Acender: reivindicar o direito à vida.

Esse convite à trapaça das políticas públicas é um chamamento à invenção de estratégias de cuidado e investimento que implodam as molduras que sufocam e espremem a vida. É preciso esburacar a lógica de controle e produção de morte, negando-nos a oferta de cuidados colonizadores. Para isso, portanto, propomos uma fricção entre a potência artística e as políticas públicas. Reivindicamos poéticas públicas. Que a estética se alastre pelas veias estreitas que dificultam a oxigenação da vida. Poética política que produza sensibilidades, estremecendo a casa, o corpo e os olhos.

“No devir-inseto, é um pio doloroso que arrasta a voz e embaralha a ressonância das palavras” (Deleuze & Guattari, 2017Deleuze, G., & Guattari, F. (2017). Kafka: Por uma literatura menor (C. V. Silva, Trad.). Autêntica., p. 28). No devir-vagalume, são luzes que atingem olhos desavisados e apontam para um escuro habitado. Os autores citados nos apresentam o devir animal, inspirados na obra de Kafka, como movimento que ultrapassa limiares, um campo de intensidades e vibrações. Usar daquilo que se é, dos órgãos que se possui, para outrar. Há política nos devires-animais. Manifestam “grupos minoritários, ou oprimidos, ou proibidos, ou revoltados, ou sempre na borda das instituições reconhecidas, mais secretos, ainda por serem extrínsecos, em suma anômicos” (Deleuze & Guattari, 1995Deleuze, G., & Guattari, F. (1995). Mil Platôs: Capitalismo e esquizofrenia (A. L. Oliveira, A. Guerra Neto, & C. P. Costa, Trads.). Editora 34., p. 31). Fazer no escuro e do escuro zona de intensidade. Fazer-se ver. Contagiar a outros com o devir-vagalume. Estar em combate para viver apesar de tudo.

Para finalizar, aberturas: a poética necessita insurgir contra a produção de morte, a fim de que os modos de sair das instituições não se esgotem. Que sejam múltiplos, contudo, potentes. Essa pesquisa não restitui o já acontecido, sabemos, mas deseja o intempestivo: “agir contra o tempo, e assim sobre o tempo, em favor de um tempo por vir” (Hartmann & Fonseca, 2010Hartmann, S., & Fonseca, T. M. G. (2010). Escrever uma vida: Biografia e acontecimento. Aletheia, (33), 84-94., p. 90). Para outros possíveis, precisamos prestar atenção aos escuros do nosso tempo. Adentrar o escuro, abrir os olhos e enxergar vagalumes.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Mar 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    27 Out 2020
  • Aceito
    10 Maio 2021
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