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O Cuidado em Saúde Promovido pelas Religiões Afro-Brasileiras

Health Care Promoted by Afro-Brazilian Religions

El Cuidado en Salud Promovido por las Religiones Afrobrasileñas

Resumo

No decorrer da história, sempre foram infindáveis os casos em que os sujeitos recorriam a centros espíritas ou terreiros de religiões de matrizes africanas em decorrência de problemas como doenças, desempregos ou amores mal resolvidos, com o objetivo de saná-los. Por conta disso, este artigo visa apresentar os resultados da pesquisa relacionados ao objetivo de mapear os processos de cuidado em saúde ofertados em três terreiros de umbanda de uma cidade do litoral piauiense. Para isso, utilizamos o referencial da Análise Institucional “no papel”. Os participantes foram três líderes de terreiros e os respectivos praticantes/consulentes dos seus estabelecimentos religiosos. Identificamos perspectivas de cuidado que se contrapunham às racionalidades biomédicas, positivistas e cartesianas, e faziam referência ao uso de plantas medicinais, ao recebimento de rezas e passes e à consulta oracular. A partir desses resultados, podemos perceber ser cada vez mais necessário, portanto, que os povos de terreiros protagonizem a construção, implementação e avaliação das políticas públicas que lhe sejam específicas.

Palavras-Chave:
Religiões de Terreiros; Umbanda; Cuidado em Saúde

Abstract

In history, there have always been endless cases of people turning to spiritual centers or terreiros of religions of African matrices due to problems such as illnesses, unemployment, or unresolved love affairs. Therefore, this article aims to present the research results related to the objective of mapping the health care processes offered in three Umbanda terreiros of a city on the Piauí Coast. For this, we use the Institutional Analysis reference “on Paper.” The participants were three leaders of terreiros and the respective practitioners/consultants of their religious establishments. We identified perspectives of care that contrasted with biomedical, positivist, and Cartesian rationalities and referred to the use of medicinal plants, the prescript of prayers and passes, and oracular consultation. From these results, we can see that it is increasingly necessary, therefore, that the peoples of the terreiros lead the construction, implementation, and evaluation of public policies that are specific to them.

Keywords:
Religions of Terreiros; Umbanda; Health Care

Resumen

A lo largo de la historia, siempre hubo casos en los cuales las personas buscan en los centros espíritas o terreros de religiones africanas la cura para sus problemas, como enfermedades, desempleo o amoríos mal resueltos. Por este motivo, este artículo pretende presentar los resultados de la investigación con el objetivo de mapear los procesos de cuidado en salud ofrecidos en tres terreros de umbanda de una ciudad del litoral de Piauí (Brasil). Para ello, se utiliza el referencial del Análisis Institucional “en el Papel”. Los participantes fueron tres líderes de terreros y los respectivos practicantes / consultivos de los establecimientos religiosos que los mismos conducían. Se identificaron perspectivas de cuidado que se contraponían a las racionalidades biomédicas, positivistas y cartesianas, y hacían referencia al uso de plantas medicinales, al recibimiento de rezos y pases y a la consulta oracular. Los resultados permiten concluir que es cada vez más necesario que los pueblos de terreros sean agentes protagónicos de la construcción, implementación y evaluación de las políticas públicas destinadas específicamente para ellos.

Palabras Clave:
Religiones de Terreros; Umbanda; Cuidado de la Salud

Introdução

Este artigo, recorte da pesquisa de mestrado Nos batuques dos quintais: as interfaces do cuidado em saúde entre religiões de terreiros e equipes de Saúde da Família, ambiciona discorrer sobre as práticas de cuidado em saúde ofertadas por três terreiros de umbanda localizados numa cidade do litoral piauiense, os quais direcionam suas atividades a seus praticantes, consulentes e à comunidade de forma geral.

Nesse sentido, a primeira problematização que fazemos diz respeito à afirmação de que, apesar de o Brasil ser constituído majoritariamente por fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana - segundo o Censo Demográfico de 2010 do Instituto de Geografia e Estatística (IBGE, 2010Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2010). Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. IBGE.), 64,63% da população brasileira pertencem à religião católica -, sempre foram infindáveis os casos em que os sujeitos recorriam a centros espíritas ou terreiros de religiões de matriz africana em decorrência de questões como doenças, desempregos ou amores mal resolvidos (Rohde, 2009Rohde, B. F. (2009). Umbanda, uma religião que não nasceu: breves considerações sobre uma tendência dominante na interpretação do universo umbandista. Revista de Estudos da Religião, 77-96. http://www.pucsp.br/rever/rv1_2009/t_rohde.htm
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). Sem dúvida, não podemos esquecer as tradições e crenças dos ancestrais que transversalizam os modos de subjetivação desses fiéis.

As práticas de cuidado em saúde promovidas por esses estabelecimentos sagrados historicamente estiveram atravessadas por questões envolvendo, entre outros aspectos (Mello, 2013Mello, M. L., & Oliveira, S. S. (2013). Saúde, religião e cultura: um diálogo a partir das práticas afro-brasileiras.Saúde & Sociedade, 22(4), 1024-1035. https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000400006.
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): a valorização das crenças populares; o uso de ervas e plantas em chás, banhos, infusões e defumação e o uso da palavra; a utilização de terapias manuais e espirituais; a crença na sabedoria e no poder curativo dos orixás e demais divindades do panteão africano e das culturas afro-indígenas, tais como caboclos, boiadeiros, índios e mestras nativos.

Diante da procura de atendimento de sujeitos de diferentes classes sociais, as religiões de terreiros, mantendo as tradições de povos originários, acabam ofertando práticas de cuidado a quem a elas se dirige em busca de auxílio para suas queixas físicas, psicológicas, mentais e espirituais ou para aconselhamento e orientação espiritual em seus empreendimentos afetivos, intelectuais, políticos e empresariais.

Tendo em vista esses aspectos e tudo que gira em torno dessa racionalidade médica tradicional, neste artigo, apresentamos os desdobramentos dos analisadores que emergiram de um dos objetivos da pesquisa, a saber: mapear os processos de cuidado em saúde promovidos pelas religiões de matriz africana, mais especificamente no que concerne à umbanda, direcionados aos seus praticantes, consulentes e à comunidade de forma geral.

De modo geral, os analisadores que emergem da produção de sentidos e narrativas dessa busca guardam explicações singulares para muitos dos acontecimentos que nos circundam, entre eles o sofrimento ético-político de determinada parcela da população. Esse sofrimento, expressão de dor mediada pelas injustiças sociais (Sawaia, 2008Sawaia, B. (2008). As artimanhas da exclusão: análise psicossocial e ética da desigualdade social. Vozes.), é tão evidente que, mesmo nos afetando e mesmo nós fazendo parte dessa população, acabamos como pesquisadores por querer encontrar o que está por trás da razão dos sujeitos que procuram o cuidado em saúde promovido pelas religiões de matriz africana. Não obstante, o papel do pesquisador, de acordo com o pensamento filosófico de Foucault, é

fazer ver o que vemos; não é descobrir verdades ocultas, mas tornar visível o que já está visível, ou seja, fazer aparecer o que está tão perto, o que é tão imediato, o que está tão intimamente ligado a nós mesmos que exatamente por isso não o percebemos (Foucault, citado por Artières, 2004Artières, P. (2004). Dizer a atualidade: o trabalho de diagnóstico em Michel Foucalt. In F. Gros (Org.), Foucault: a coragem da verdade (pp. 15-37). Parábola., p. 15).

Nessa perspectiva, constatamos, durante a pesquisa, que o uso da palavra pelos guias se assemelha, de certo modo, à função intelectual do analista ou do filósofo clínico, fazendo ver e falar a comunidade de terreiro e o inconsciente colonizado do consulente (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. N-1 Edições.). Assemelha-se também ao trabalho espiritual e de cuidado em saúde dos terapeutas de Alexandria, no primeiro século de nossa era, que usavam a leitura da palavra sagrada com a intenção de libertar e não de matar, “culpabilizar, adoecer e manipular os outros” (Leloup, 2007Leloup, J-Y. (2007). Uma arte de cuidar: estilo alexandrino. Vozes., p. 22), tal qual vem acontecendo, ultimamente, no Brasil, dada a exacerbação da intolerância político-religiosa, e tal qual acontece há anos na Europa e no Oriente Médio.

No que se refere aos modos de subjetivação e ao agenciamento coletivo do desejo de cuidar por meio da palavra de guias que se manifestam em médiuns adeptos, sacerdotes e sacerdotisas, coexistem modos de singularização do cuidado por parte desses terapeutas enquanto porta-vozes de guias, já que estão sob o efeito da mediunidade. Também, às vezes, quando não estão espiritualmente trabalhando, esses mesmos médiuns adeptos, sacerdotes e sacerdotisas podem expressar modos segmentados de subjetivação, pensamentos rígidos e normativos, cheios de juízo de valor moral.

Para problematizar essa situação, pensamos com Alexandre Cumino (2017Cumino, A. (2017). O sacerdote de umbanda: mestre, discípulo e liderança. Madras.), cientista da religião, médium e sacerdote de umbanda sagrada; assim, dizemos que o agenciamento segmentado de uma prática discursiva pode estar relacionado ao modo de subjetivação capitalístico (Rolnik, 2018Rolnik, S. (2018). Esferas da insurreição: notas para uma vida não cafetinada. N-1 Edições.) “de quem acabou se tornando católico-umbandista ou espírita--umbandista”, pois sujeitos que “não abandonaram o moralismo e a doutrina de suas antigas religiões, não conseguem mudar o modelo de religião e sacerdócio que foi criado em suas mentes” (Cumino, 2017, p. 33Cumino, A. (2017). O sacerdote de umbanda: mestre, discípulo e liderança. Madras.), contrariando os ensinamentos dos guias em torno de “uma ética para consigo” e da necessidade de “equilíbrio emocional, humildade e maturidade, o que pode e deve ser trabalhado ao longo dos anos” (Cumino, 2017, p. 41Cumino, A. (2017). O sacerdote de umbanda: mestre, discípulo e liderança. Madras.).

Independentemente do ato de fazer uso das práticas de cuidado em saúde nos terreiros ter a ver ou não com a perda de confiança no saber médico e na racionalidade científica pós-moderna, afirmamos que essas práticas complementares e alternativas, em sua cosmologia, estão relacionadas a sistemas complexos e fazem parte de terapêuticas tradicionais, terapêuticas populares, xamânicas, ligadas às tradições “afro-indígenas” e a “sistemas médicos orientais, como a medicina ayurvédica e a tradicional chinesa” (Nascimento, Barros, Nogueira, & Luz, 2013Nascimento, M. C., Barros, N. F., Nogueira, M. I., & Luz, M. T. (2013). A categoria racionalidade médica e uma nova epistemologia em saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 18(12), 3595-3604. https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001200016
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, p. 3597).

Para os adeptos das religiões afro-indígenas, que têm a liberdade de ir e vir, e de “transitar nos diversos espaços de saúde”, a escolha do “terreiro enquanto espaço de acolhimento e resolutividade para os processos de equilíbrio em prol da saúde” (França, Queiroz, & Bezerra, 2016França, M. M. L., Queiroz, S. B., & Bezerra, W. C. (2016). Saúde dos povos de terreiro, práticas de cuidado e terapia ocupacional: um diálogo possível? Cadernos de Terapia Ocupacional, 24(1), 105-116. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0583
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, p. 105) pode estar ou não vinculada à cosmologia ecumênica, holística e ecológica. Sem dúvida, essa escolha também é efeito de resistência à racionalidade médica de profissionais de saúde e ao seu desconhecimento das diretrizes “da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, com enfoque nos povos de terreiro” (França et al., 2016, p. 111França, M. M. L., Queiroz, S. B., & Bezerra, W. C. (2016). Saúde dos povos de terreiro, práticas de cuidado e terapia ocupacional: um diálogo possível? Cadernos de Terapia Ocupacional, 24(1), 105-116. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0583
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), bem como ao “distanciamento do espaço do terreiro, evidenciado pelo fato de os profissionais das Unidades de Saúde da Família (USF) nunca terem realizado uma ação no terreiro, mesmo estando no mesmo território” (França et al., 2016, p. 112França, M. M. L., Queiroz, S. B., & Bezerra, W. C. (2016). Saúde dos povos de terreiro, práticas de cuidado e terapia ocupacional: um diálogo possível? Cadernos de Terapia Ocupacional, 24(1), 105-116. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0583
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), como concluíram França e colaboradores (2016França, M. M. L., Queiroz, S. B., & Bezerra, W. C. (2016). Saúde dos povos de terreiro, práticas de cuidado e terapia ocupacional: um diálogo possível? Cadernos de Terapia Ocupacional, 24(1), 105-116. http://dx.doi.org/10.4322/0104-4931.ctoAO0583
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), a partir de uma pesquisa sobre práticas de cuidado em saúde dos povos de terreiro, realizada na cidade de Maceió (AL).

Para os consulentes, as principais justificativas para o uso dessas práticas são as seguintes: a persistência das enfermidades após alguns espaços de cura já terem sido solicitados, especialmente os convencionalmente estabelecidos, como hospitais ou unidades de saúde; a necessidade (espiritual) de algumas pessoas serem iniciadas nos cultos de matrizes africanas, de forma que, nestes casos, as doenças seriam um sinal das divindades; e a busca dos sujeitos por sentido nas suas existências, que estariam atravessadas por problemas surgidos nos âmbitos da saúde, família, escola ou trabalho (Silveira, 2014Silveira, H. A. A. (2014). Tradições de matriz africana e saúde: o cuidar nos terreiros. Identidade!, 19(2), 75-88. http://periodicos.est.edu.br/index.php/identidade/article/view/2346
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).

Nesse sentido, no campo da psicologia, a referida investigação contribuiu para pensar em uma formação que dialogue com as ancestralidades, com os saberes e práticas populares e com as religiões de matriz africana, apostando na necessidade de não somente ofertar práticas de cuidado a essas populações, mas também convidá-las a compartilhar seus conhecimentos e a ocupar cargos representativos de políticas públicas que lhe são específicas.

Percurso metodológico

Como matriz de investigação e estratégia de produção e análise das informações, adotamos o referencial da Análise Institucional de René Lourau e Georges Lapassade, mais especificamente em uma perspectiva “no papel”. Essa premissa institucionalista guarda como principal característica o fato de se constituir como um método de conhecimento indutivo em que se objetiva uma análise econômica, política, funcional, estrutural e estruturo-funcional dos processos sociais que nos circundam (Lourau, 1995Lourau, R. (1995). A análise institucional (M. Ferreira, Trad.). Vozes.).

De modo geral, esse tipo de análise se inspira em intervenções e pesquisas no campo, tendo um relativo destaque pela possibilidade de agregar materiais, elucidações teóricas, além de maneiras de avaliação e de critérios de validade (Lourau, 1995Lourau, R. (1995). A análise institucional (M. Ferreira, Trad.). Vozes.).

Para alcançarmos nosso objetivo de pesquisa, utilizamos os seguintes instrumentais: entrevistas semiestruturadas com três líderes de centros religiosos umbandistas. Para nomear os referidos condutores dos terreiros em questão, utilizamos os seguintes nomes fictícios: Ashanti, Mmaabo e Azekel1 1 Todos os sujeitos a que essa pesquisa fizer referência estão sendo apresentados por nomes fictícios. ; observação participante das cerimônias religiosas em que as casas espirituais conduzidas por esses sujeitos ofertavam espaços de cura, cuidado em saúde, aconselhamento e orientação espiritual à população de forma geral; e conversas informais com os praticantes e consulentes dos respectivos espaços sagrados.

Tabela 1
Atendimentos em saúde nos terreiros investigados.

De modo geral, as regiões em que se encontravam as casas espirituais investigadas guardavam algumas semelhanças entre si. A primeira delas diz respeito ao fato de os bairros estarem localizados em regiões consideradas antigas da cidade: enquanto dois deles tiveram suas origens nos arredores de um leprosário, o outro surgiu em virtude de um programa de distribuição de casas populares realizado pelo então governador do estado.

Além disso, outras características apresentadas por esses espaços eram as seguintes: altos níveis de violência urbana; péssimas condições de infraestrutura, tais como calçamentos quebrados, algumas ruas de areia e uma ínfima quantidade de postes com iluminação pública; e dificuldade no acesso às essas regiões, principalmente em virtude dos poucos transportes públicos que faziam rotas até os respectivos bairros, problemática esta que se confunde com uma situação crônica que atravessa a própria cidade em estudo.

A pesquisa teve como cenário de práticas de cuidado em saúde três casas espirituais da umbanda de uma cidade do Piauí, estado que tem, só na capital, 432 terreiros e mais de 105 na Planície Litorânea, de acordo com a Renafro-Saúde/Nordeste (comunicação oral)2 2 Doté Thiago, representante da Renafro-Saúde/Nordeste. . No que concerne à caracterização dos espaços religiosos pesquisados, é importante ressaltarmos que duas das casas espirituais eram conduzidas por mulheres (Ashanti e Mmaabo). Ambas eram negras, tinham aproximadamente 60 anos de idade e realizavam suas atividades espirituais em salões construídos nos quintais das suas próprias residências. Ao contrário delas, o terceiro centro religioso era conduzido por um homem de aproximadamente 45 anos de idade (Azekel) e tinha como característica principal o fato de funcionar em um espaço alugado exclusivamente reservado para essa função.

É válido ressaltarmos que durante nossa peregrinação obedecemos às normas e procedimentos éticos relativos às pesquisas envolvendo seres humanos, em acordo com as Resoluções nº 466/2012 e nº 510/2016, ambas do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Destacamos também que a presente investigação foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), da Universidade Federal do Piauí (UFPI), Campus Ministro Petrônio Portela, e obteve parecer favorável para sua execução sob o CAAE nº 79267617.7.0000.5214.

Resultados e discussões

Entre os principais ensinamentos proferidos pelas doutrinas religiosas de matriz africana, talvez um dos mais importantes seja o de recepcionar os visitantes em seus momentos de dor, adoecimento ou desamparo, oferecendo a esses sujeitos, nessas circunstâncias, trocas afetivas, produção de conhecimento, promoção da saúde, prevenção de doenças e agravos e renovação das tradições milenares (Silva, Fernandez, & Sacardo, 2017Silva, R. A., Fernandez, J. C. A., & Sacardo, D. P. (2017). Para uma “ecologia de saberes” em saúde: um convite dos terreiros ao diálogo. Interface (Botucatu), 21(63), 921-931. https://doi.org/10.1590/1807-57622016.0180
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).

Em uma pesquisa realizada por Estélio Gomberg, em Aracaju (SE), a partir de uma etnografia de encontros terapêuticos em um terreiro de candomblé, o Ilê Axé Opô Oxogum Ladê, ele ressalta que angústias, sofrimentos e infortúnios caracterizam as circunstâncias dos consulentes que buscam, por meio da função terapêutica desse sistema religioso, tornar a vida mais compreensível e passível de ser suportada. De tal modo que a intencionalidade e a interação entre consultor e consulente, no encontro mediado pelos guias, possibilitam “uma cosmovisão própria do universo em que ambos possam construir um modelo que dê suporte para o enfrentamento da realidade” (Geertz, citado por Gomberg, 2011, p. 116Gomberg, E. Hospital de orixás: encontros terapêuticos em um terreiro de candomblé. Edufba, 2011.).

Também mapeamos encontros entre consulentes e consultores na umbanda e a análise que apresentamos está marcada por essa mesma concepção da cogestão do cuidado em saúde nos terreiros. Como ilustração, podemos fazer referência a alguns discursos proferidos pela sacerdotisa de um dos terreiros de matriz africana que investigamos durante nossa jornada. Estamos falando da mãe de santo Ashanti, mais especificamente das situações em que ela discorreu sobre temáticas relacionadas ao cuidado em saúde, como, por exemplo, a importância de tais práticas, bem como da figura do líder religioso durante esse processo terapêutico:

O meu conhecimento da Umbanda não é só você saber canto, ponto, roupas luxuosas e achar que é umbandista. Umbandista tem que cuidar.Tem que zelar pelo irmão, tem que alimentar aquele que não tem, porque nunca vai faltar na sua casa, jamais. . . . Como hoje eu já tenho 46 anos de terreiro e hoje eu sei como é uma cura, hoje eu sei como é rezar em alguém, hoje eu sei como cuidar de uma pessoa e fazer ele sentir bem, feliz, isso eu sei, o que é o carinho, um amor, o que é você chegar e chorar e dizer: “Eu fui abandonado porque eu sou gay”; “Eu fui abandonado porque eu sou sapatão”; “[Eu fui abandonado] porque eu sou isso, eu gosto de mulher”; “Eu gosto de homem”; “Você não me quer na sua casa? Me dê um abraço?”; “Dou”. Então, esse é cuidar, pra mim é isso (Ashanti).

A partir dessas narrativas da mãe de santo Ashanti, é possível percebermos que as doutrinas religiosas de matrizes africanas podem ser consideradas como territórios que abrigam conhecimentos e práticas ancestrais, atendendo a diferentes grupos que procuram por auxílio para questões das nossas existências, tais como desentendimentos familiares e amorosos. Além do que trazem as narrativas acima, tais territórios sagrados também constantemente se deparam, no cotidiano das suas práticas de cuidado em saúde, com desempregos, problemas financeiros ou adoecimentos de ordem física, psicológica ou espiritual (Lages, 2012Lages, S. R. C. (2012). Saúde da população negra: a religiosidade afro-brasileira e a saúde pública. Psicologia Argumento, 30(69), 401-410.). Ao analisarmos tais narrativas de Ashanti a partir dos analisadores que marcam suas práticas discursivas, constatamos o que afirma Cumino (2017Cumino, A. (2017). O sacerdote de umbanda: mestre, discípulo e liderança. Madras.):

A Umbanda não prega o celibato nem a abstenção dos prazeres deste mundo. Não pregamos a mortificação do corpo em detrimento da alma . . . Falamos muito sobre a verdade, “viver sua verdade”, mas nem sempre fica claro para quem lê ou ouve o que isso quer dizer. “Viver sua verdade” quer dizer que seus sentimentos, pensamentos, palavras e ações estão todos em uma mesma direção. Essa é uma ética para consigo mesmo, e a única forma de saber qual é sua verdade é vive-la (pp. 31-32).

A partir de uma ética do cuidado em saúde, os estabelecimentos sagrados investigados acabam se tornando espaços em que sujeitos historicamente marginalizados e excluídos socialmente, como os homossexuais, por exemplo, encontram guarida, conforto e acolhimento, já que majoritariamente tais estabelecimentos sagrados funcionam por meio de uma lógica hospitaleira, ou seja, assim como em albergues de beira de estrada, esses locais sagrados recebem a todos indistintamente, contanto que os hóspedes, durante as cerimônias e os atendimentos, se comportem conforme as regras pré-estabelecidas pelo grupo.

Segundo o pai de santo Azekel, o intuito final desses processos de cura e cuidado dentro da umbanda seria promover a autonomia dos sujeitos, fazendo com que eles passassem a cuidar de si próprios. Em seu discurso, nos relatou que, enquanto algumas pessoas em apenas uma conversa/orientação já se encontram em condições de trilharem seus caminhos sozinhas, outras precisam de uma maior ajuda e suporte por meio de um número maior de sessões e terapêuticas. Contudo, mesmo no primeiro caso, quando apenas um atendimento já se mostra suficiente, ainda assim as pessoas são convidadas a retornarem em outras ocasiões, nem que seja para assumir funções no interior dos rituais do referido centro espírita umbandista. Um elemento importante de se trazer à discussão é que, no referido terreiro, o ritual é individual, diferentemente do que acontece regularmente em terreiros de umbanda, onde o consulente participa e acompanha toda a atividade religiosa.

A partir disso, podemos, então, recorrer ao que Foucault (1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade 3: o cuidado de si (M. T. C. Albuquerque, Trad.). Graal.) disserta como sendo a “cultura de si”. Para o filósofo em questão, se, nas sociedades gregas, a cidadania se constituía em praça pública pela arte da oratória, com o apogeu do mundo helenístico ou romano, houve um enfraquecimento do quadro político e social, fazendo com que questões concernentes à ordem privada das existências passassem a ganhar mais destaque na sociedade.

De forma geral, essa cultura de si se caracteriza principalmente pelos seguintes aspectos, a saber: (i) valor demasiado atribuído aos indivíduos perante a sociedade; (ii) destaque para vida privada, isto é, para relações familiares, atividades domésticas e interesses patrimoniais; e (iii) transformação de si próprio em objeto de conhecimento e campo de ação para transformar-se, corrigir-se, purificar-se e conseguir a própria salvação (Foucault, 1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade 3: o cuidado de si (M. T. C. Albuquerque, Trad.). Graal.).

Nesse contexto, a premissa segundo a qual os indivíduos deveriam ocupar-se consigo mesmos antes de assumirem qualquer outro papel social passa a ser um imperativo presente em diversas doutrinas e ensinamentos (Foucault, 1985Foucault, M. (1985). História da sexualidade 3: o cuidado de si (M. T. C. Albuquerque, Trad.). Graal.), como é o caso das religiões de matriz africana e mais especificamente da umbanda. Nesse sentido, conseguimos identificar tênues limites que separam os sujeitos que buscam por cuidado daqueles que oferecem ajuda, aconselhamento, orientação, suporte ou cura para questões que afligem nossas existências.

Em determinados momentos, um indivíduo pode estar na posição de consulente, contudo, à medida que suas angústias não o incomodam mais, este pode assumir a posição de cuidador, seja desenvolvendo sua mediunidade, seja por outros meios, como, por exemplo, recepcionando as pessoas que chegam ao recinto em dias de atendimentos, ensinando os princípios e doutrinas da religião antes das consultas propriamente ditas com as entidades e assim por diante.

Mas, afinal, quais as tessituras do cuidado em saúde nos terreiros, mais especificamente no que se refere à umbanda? A partir da análise do conteúdo das entrevistas semiestruturadas e das observações participantes realizadas, foi possível identificarmos alguns aspectos que podem vir a caracterizá-las: consultas com as divindades espirituais; utilização medicinal de ervas e plantas por meio de chás, banhos ou infusões; e adoção de terapias espirituais, como, por exemplo, passes, defumações, limpezas espirituais e afastamento dos obsessores, também conhecidos como espíritos malignos.

Como exemplo, podemos apresentar situações e discursos com os quais nos deparamos durante nossa trajetória de pesquisa, mais especificamente nos centros espíritas das três lideranças religiosas supracitadas anteriormente. No primeiro caso, isso se mostrou visível a partir de uma narrativa proferida pela condutora da casa:

O cuidado que eu tenho aqui com o povo é cura, porque eu sou mais curandeira. Chega reza de quebranto3 3 Na cultura popular, o quebranto, também conhecido como olho-gordo ou mau-olhado, seria considerado como o efeito maléfico que a atitude de algumas pessoas produz sobre outras. ou reza de espinhela caída ou reza de peito aberto4 4 Segundo a tradição popular, a espinhela é um osso pequeno, flexível, parecendo um nervo, que se encontra no meio do peito, entre o coração e o estômago, e que pode envergar para dentro. Desse modo, a espinhela caída, também conhecida como lumbago ou peito aberto, seria a designação popular de uma doença caracterizada por forte dor na boca do estômago, nas costas e pernas, além de um cansaço anormal que acomete o indivíduo, ao submeter-se a esforço físico. , né? A pessoa se arrebenta, a gente pega o peito aberto: Ah! Eu tô sentindo uma dor no peito. Aí eu vou . . . eu rezo. Então, isso é cuidar de alguém. Entendeu? É cuidar. Às vezes eu vou num médico, o médico passa um remédio. Poxa, eu não me senti bem. Aquele . . . o médico me deu um remédio, me passou um remédio, mas eu não me curei. Então, eu vou na . . . no mato, invoco um preto-velho5 5 De modo geral, uma das principais características da umbanda diz respeito a sua capacidade de agregar em suas cerimônias e rituais, setores sociais historicamente excluídos, como é o caso dos negros, indígenas, marinheiros, baianos, baianas, boiadeiros, prostitutas, ciganos e crianças moradoras de rua, por meio da ascensão destes sujeitos à condição de entidades espirituais. Especificamente, os pretos velhos são divindades que simbolizam os escravizados e, mais do que isso, seu poder de resistência (tanto física quanto cultural) diante da opressão e diáspora sofrida (Dias & Bairrão, 2011). , né? Ai ele chega, ensina qual a erva que eu tenho que fazer o remédio, aí eu vou lá na mata e vejo. Às vezes eu tenho plantado no quintal, aí vou lá e faço a garrafada, entendeu? Faço o chá. Aí dá para pessoa e aquela pessoa se cura, porque aquele problema não era para o da Medicina, e sim para a Medicina Espiritual (Ashanti).

Nesse cenário religioso, o corpo é considerado como uma morada sagrada, já que as divindades cultuadas, como caboclos, pretos-velhos, boiadeiros ou pombas-gira, necessitam dos médiuns para se manifestarem e trazer suas mensagens aos seres humanos encarnados. Por conta disso, os corpos têm destaque especial nas terapêuticas umbandistas, seja por meio de banhos, chás, infusões, limpezas espirituais ou recebimento de passes (Barbosa & Bairrão, 2008Barbosa, M. K., & Bairrão, J. F. M. H. (2008). Análise do movimento em rituais umbandistas. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 24(2), 225-233. http://doi.org/10.1590/S0102-37722008000200013
http://doi.org/10.1590/S0102-37722008000...
).

De forma geral, portanto, podemos afirmar que nos estabelecimentos sagrados de matriz africana e afro-indígenas, na maioria das vezes, são ofertados vários procedimentos objetivando promover autonomia e reequilíbrio energético aos sujeitos e às coletividades. No candomblé, são ofertados jogos de búzios; ebós; bori; iniciações (estes ritos incluem ervas, folhas, banhos, amacis). Na umbanda, já são ofertados uso de folhas, ervas e raízes; benzeduras; beberagens; aconselhamento; iniciações, entre outros (Silva, 2007Silva, J. M. (2007). Religiões e saúde: a experiência da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Saúde & Sociedade , 16(2), 171-177. https://doi.org/10.1590/S0104-12902007000200017
https://doi.org/10.1590/S0104-1290200700...
).

Nesse sentido, podemos perceber que as práticas de cuidado em saúde umbandistas trabalham com racionalidades que destoam das inteligibilidades hegemonicamente instituídas no interior da sociedade ocidental racional e científica, majoritariamente consideradas fragmentárias, descontextualizadas, tecnicistas, medicalizantes e psicologizantes. Ao contrário desse saber médico científico pós-moderno, tais cosmologias se caracterizam principalmente pela ancestralidade, pelo forte contato com a natureza e tudo que advém dela, pela valorização do corpo nas cerimônias e terapêuticas religiosas, e assim por diante.

No centro religioso conduzido pela mãe de santo Mmaabo, também foi possível visualizarmos, principalmente por nossas observações durante os atendimentos ofertados à comunidade, a promoção do cuidado em saúde por meio de banhos, chás, infusões, passes, limpezas espirituais, defumações, consultas à Preta Velha (Vovó Catarina de Angola), atendimentos com cartomantes, adeptas da religião, e orientações com a condutora da casa. No que concerne ao uso de plantas medicinais, isso se mostrou visível de modo explícito em diversas circunstâncias, como, por exemplo, na situação que narramos a seguir.

Uma consulente do terreiro de Mmaabo, Chimamanda, conversava com sua amiga Azinza sobre uma sinusite crônica aparentemente incurável já que nenhum remédio que ingerira até então fora capaz de solucionar sua enfermidade. Azinza, então, aconselhou à amiga que buscasse uma reza com a mãe de santo do recinto (Mmaabo) e pedisse para que esta, quando estivesse incorporada pela divindade da preta velha, indicasse alguma sugestão de remédio da mata, em razão de, segundo a própria, a medicina caseira ser mais eficaz do que a de farmácia.

Por fim, além do conselho de que conversasse com a mãe de santo, Azinza também acabou ensinando a receita de um remédio que havia aprendido com uma amiga, mas nunca colocou em prática: todos os dias, pela manhã, Chimamanda deveria lavar o cabelo com eucalipto e, pela noite, tomar um chá originário da mesma erva. Ela deveria fazer isso diariamente por aproximadamente seis meses até que, finalmente, a sinusite (e não apenas a secreção) fosse expelida. Ao final da conversa, Chimamanda disse que seguiria o conselho da amiga, tanto no que diz respeito a usar o remédio em questão como em falar com a mãe de santo da casa.

A partir desse discurso, podemos perceber a importância do poder curativo dos elementos provindos da natureza, mais especificamente da flora, nas práticas populares em saúde. Apesar de, na narrativa em questão, a indicação dos remédios populares não ter tido qualquer interferência dos terreiros ou das lideranças religiosas, acreditamos que esse diálogo sinaliza e representa uma ética de cuidado muito presente nas religiões de matriz africana.

Durante muito tempo, as plantas medicinais foram utilizadas como principal recurso terapêutico nas ofertas de cuidado em saúde direcionadas aos sujeitos e às coletividades. De modo geral, elas podem ser compreendidas como todas aquelas secas e frescas, podendo ser utilizadas principalmente na preparação de chás caseiros, banhos, lambedores ou garrafadas (Badke, Budó, Silva, & Ressel, 2011Badke, M. R., Budó, M. L. D., Silva, F. M., & Ressel, L. B. (2011). Plantas medicinais: o saber sustentado na prática do cotidiano popular. Escola Ana Nery, 15(1), 132-139. http://doi.org/10.1590/S1414-81452011000100019
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).

Nesse cenário, quando a Organização Mundial de Saúde (OMS) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) promoveram a Conferência Internacional sobre Atenção Primária em Saúde na cidade de Alma-Ata, uma das questões propostas durante os encontros foi a recomendação para que fossem formuladas políticas e regulamentações nacionais referentes tanto à utilização de remédios tradicionais de eficácia comprovada como também à necessidade de se incorporar os detentores dos conhecimentos tradicionais às atividades promovidas pela Atenção Primária em Saúde (APS) (Brasil, 2016Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica. (2016). Política e Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Ministério da Saúde.).

No contexto brasileiro, a partir dessas recomendações e de alguns marcos legais nacionais como a Constituição Federal (CF), de 1988, e as Leis Complementares nº 8.080/1990 e nº 8.142/1990, assim como em decorrência do potencial do nosso país para desenvolvimento do setor de plantas medicinais e fitoterápicos e da necessidade de inserção do desenvolvimento sustentável na formulação e implementação de políticas públicas, o governo federal instituiu, no ano de 2007, o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, implementado com o objetivo de promover a preservação dos conhecimentos tradicionais e garantir o acesso da população ao uso sustentável da biodiversidade brasileira (Brasil, 2016Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Assistência Farmacêutica. (2016). Política e Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Ministério da Saúde.).

Além dessa, outra modalidade de cuidado em saúde promovido no interior desses estabelecimentos sagrados diz respeito ao trabalho que algumas mulheres, médiuns e adeptas da religião, desenvolvem como cartomantes, seja por meio do tarô ou mesmo por meio da leitura de cartas.

Numa das tardes em que estivemos no centro religioso de Mmaabo, algumas consulentes/adeptas discorreram em maiores detalhes sobre o assunto. Uma delas (Zarina) estava conversando com outras amigas sobre o seu dom de ler cartas, afirmando que até aquele momento os seus clientes haviam saído satisfeitos das consultas. Em seguida, uma das consulentes que ali estava (Baderinwa) compartilhou conosco que havia sido atendida por uma cartomante e que até aquele momento apenas uma previsão havia se concretizado, enquanto as outras, não.

A cartomante que estava conosco, então, explicou que ler as cartas era como assistir a uma previsão do tempo: algumas coisas podiam acontecer, outras não, mas era esperado que tais eventos se concretizassem. Após isso, Baina, uma mulher de meia idade, negra, praticante da umbanda, aparentemente de origem humilde e moradora de um bairro próximo ao terreiro, acabou se juntando a nossa conversa e resolveu compartilhar uma experiência sobre o assunto.

Segundo Baina, uma de suas sobrinhas, que morava em cidade próxima, era vidente e também trabalhava como cartomante. De acordo com ela, as previsões dela sempre se concretizavam. Para confirmar sua afirmação, ela contou de uma consulta que teve com a sobrinha e de como os eventos haviam se sucedido após o referido dia.

Ao depararmos com o trabalho das cartomantes no que diz respeito à previsão do que possivelmente acontecerá no futuro, podemos perceber que as práticas adivinhatórias estão presentes nas sociedades africanas desde os tempos mais remotos (Bastide & Verger, 2002Bastide, R., & Verger, P. (2002). Contribuição ao estudo da adivinhação em Salvador (Bahia). In A. Luhning (Org.), Verger-Bastide: Dimensões de uma amizade (R. Janowitzer, Trad., pp. 193-221). Bertrand Brasil.), fazendo parte de praticamente todos os sistemas religiosos tradicionais, desde os primeiros xamãs, passando pelos gregos, hebreus, romanos, druidas e africanos. Entretanto, ao contrário do que aconteceu na Grécia Antiga com o Oráculo de Delfos, não é possível identificarmos uma única mitologia que explique as origens de tais práticas, assim como também é extremamente raro que encontremos cerimônias religiosas em que esses rituais se processem de modos extremamente semelhantes.

Apesar disso, é possível fazermos uma sistematização. De acordo com Bastide e Verger (2002Bastide, R., & Verger, P. (2002). Contribuição ao estudo da adivinhação em Salvador (Bahia). In A. Luhning (Org.), Verger-Bastide: Dimensões de uma amizade (R. Janowitzer, Trad., pp. 193-221). Bertrand Brasil.), nas sociedades africanas existem dois grandes processos de adivinhação: a de Ifá e a de Exu (ou Elegba). A primeira delas, bastante comum em terreiros de candomblé, é privativa dos babalaôs ou adivinhos, sacerdotes responsáveis por aconselhar as demais lideranças religiosas na escolha da data das cerimônias e nas ofertas sacrificiais, além de desempenhar o papel de iniciador no culto pessoal de Ifá, chamado de Opelé Ifá.

Outro elemento importante de destacarmos no que se refere ao trabalho desenvolvido pelas cartomantes diz respeito ao fato de que, quando alguém recorre aos serviços dessas figuras, seja para jogar tarôs, búzios ou baralhos, geralmente esses sujeitos estão vivenciando situações consideradas como problemáticas em suas existências, como amores, mortes ou doenças, e, por conta disso, não conseguem encontrar soluções concretas e efetivas para superar tamanhas adversidades. De modo geral, esses procedimentos terapêuticos objetivam a transformação pessoal de quem solicita um presságio do futuro (Saavedra & Berenzon, 2013Saavedra, N., & Berezon, S. (2013). Placer, transformación y tratamiento: uso de las medicinas alternativas para problemas emocionales en la Ciudad de México. Saúde & Sociedade , 22(2), 530-541. https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000200022
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). Além dos modos de cuidado anteriormente supracitados, as lideranças religiosas ainda ofertavam outros dois tipos de cuidado. Um no que se refere ao trabalho como parteira realizado pela mãe de santo Ashanti. E o outro realizado às tradicionais consultas com os guias espirituais.

No que se refere ao primeiro aspecto, podemos afirmar que, durante nossas conversas, soubemos que Ashanti já havia participado de um evento promovido pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), realizado na cidade de Brasília (DF). Durante a ocasião, a mãe de santo Ashanti teve a oportunidade de compartilhar com profissionais da saúde a sua experiência como parteira, tendo inclusive ganhado um prêmio do referido órgão por conta do trabalho que vinha realizado na referida função. Segundo Ashanti, vários médicos ficaram impressionados com o conhecimento que ela tinha sobre questões relacionadas a gravidez, parto e puerpério. Apesar de sabermos que o conhecimento tradicional das parteiras não tem relação com as práticas tradicionais de matriz africana, segundo Ashanti, o conhecimento de como ela deveria agir durante o parto pertencia, na verdade, a seus guias e eles apenas usavam o corpo dela, já que, segundo a mãe de santo Ashanti, ela era analfabeta, portanto, nunca havia pisado em uma escola na vida.

De modo geral, as parteiras são mulheres que, considerando a omissão do poder público, principalmente em determinadas localidades das regiões Norte e Nordeste, diante da ineficiência dos serviços de saúde na prestação de serviços públicos de qualidade, ajudam outras mulheres durante o momento da gravidez, seja endireitando a barriga, colocando a criança no lugar ou mesmo assistindo às gestantes na hora do parto (Pereira, 2016Pereira, M. S. (2016). Associação das parteiras tradicionais do Maranhão: relato da assistência ao parto. Saúde & Sociedade , 25(3), 589-601. https://doi.org/10.1590/S0104-129020162542
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).

De forma geral, elas são respeitadas nas comunidades em que residem por causa do trabalho que desempenham, estando presentes com uma força maior em regiões da zona rural ou em bairros periféricos da cidade, majoritariamente caracterizados pelo descaso do poder público que se instala nesses territórios, principalmente pelo acesso reduzido que suas respectivas populações historicamente tiveram com relação à saúde, assistência, educação, segurança, transporte público, moradia e lazer (Pereira, 2016Pereira, M. S. (2016). Associação das parteiras tradicionais do Maranhão: relato da assistência ao parto. Saúde & Sociedade , 25(3), 589-601. https://doi.org/10.1590/S0104-129020162542
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).

Enquanto as parteiras da zona rural muito frequentemente se organizam ao redor de pequenas comunidades, formando uma rede de ajuda mútua, onde cada indivíduo auxilia os seus semelhantes nos momentos de desamparo, de forma que a moeda de troca é a obrigação e não o dinheiro, na zona urbana, por outro lado, há em torno dessas figuras uma organização maior do que provavelmente existe no âmbito das ruralidades.

Outro elemento importante de ser elencado diz respeito ao fardo que muitos sacerdotes e sacerdotisas carregam consigo ao descobrirem que têm uma mediunidade não desenvolvida, principalmente em decorrência do fato de que, no cenário atual, muitas vezes essas pessoas se encontram residindo em comunidades que, constantemente, não concordam e não compreendem práticas religiosas oriundas das ancestralidades indígena e africana.

As personagens desse estudo, tanto Ashanti como Mmaabo, quando crianças, sofreram exclusão e perseguições por conta da expressão da mediunidade, que chegava a ser confundida com esquizofrenia. Somente quando encontraram acolhimento por parte dos guias em terreiros e começaram a trabalhar, superaram o estigma da loura e aprenderam a lidar com as manifestações mediúnicas.

Tais experiências contribuíram para que elas conseguissem perceber quando os consulentes estão necessitando de cuidados médicos alopáticos. Durante as rezas, em dois terreiros, observamos que é comum chegarem alguns consulentes com ideação suicida; às vezes, mulheres, entre 20 e 60 anos. Em geral, durante o próprio acolhimento terapêutico umbandista, elas falam do desejo de tirar a própria vida e perguntam se é possível cometer suicídio com um lençol. De parte dos sacerdotes e sacerdotisas, condutores e condutoras do espaço sagrado, e também de parte de quem trabalha e cuida durante a reza, vem a orientação voltada para os bons encontros nos quais as consulentes encontravam ou encontrarão gosto e o prazer de gozar a vida; e mesmo quando não percebem que há sintomas de depressão nem situação de crise, perguntam pelos “casacas brancas”, referindo-se aos médicos, a psicólogos e psiquiatras da rede de atenção psicossocial.

Outro elemento de discussão diz respeito à importância dos guias nas terapêuticas umbandistas. De modo geral, tais divindades são muito mais do que simples figuras religiosas a serem celebradas em cerimônias e rituais: elas se manifestam em nosso mundo, produzindo práticas de cuidado em saúde, acolhendo os indivíduos que se encontram em aflição e interagindo com os seus filhos (adeptos e consulentes). Durante nossa jornada investigativa, nos deparamos com práticas de cuidado em saúde promovidas pelos espíritos dos Pretos Velhos (Vovó Catarina de Angola e São Cipriano), das pombas-gira (Maria Padilha) e dos boiadeiros (Pai Légua e Dona Teresa).

Nesse ponto das discussões, aos olhos mais desavisados, talvez surja a seguinte indagação: “Existem diferenças na promoção do cuidado em saúde quando se cultuam distintos orixás em cada terreiro?”. Não precisamos pensar muito para respondermos “sim”: a depender da divindade cultuada, os motivos que justificam a presença dos consulentes nos terreiros podem variar consideravelmente.

Por exemplo, as pombas-gira são bastante procuradas em casos relacionados a problemas amorosos e sexuais, tais como namoros, casamentos, disfunções sexuais ou traições, enquanto os caboclos e pretos velhos se mostram mais úteis em problemas de saúde, profissionais, de relacionamento interpessoal ou espirituais, situações nas quais precisamos dos conhecimentos dos espíritos dos indígenas e dos africanos escravizados. Entretanto, isso não significa que cada uma dessas divindades não possa ser procurada em decorrência de outras justificativas.

De acordo com Azekel, no caso do terreiro que ele conduz, as motivações que fazem com que os consulentes busquem por ajuda podem ser divididas em dois tipos: o primeiro composto por sujeitos considerados desenganados, ou seja, já haviam procurado por toda espécie de serviço médico, psicológico ou psiquiátrico, de modo que nada havia surtido efeito; e um segundo grupo composto pelas pessoas supostamente sem rumo na vida, caracterizadas por procurarem os espaços religiosos de matriz africana em decorrência de angústias ocasionadas por questões envolvendo situações como relacionamentos, depressão, tentativas de suicídios, dentre outras questões.

Assim como no centro espírita conduzido por Azekel, quando estivemos na casa de Mmaabo, também conseguimos identificar que, em determinados casos, as práticas de cuidado em saúde umbandistas eram representadas como um último sinal de esperança a ser testado após todas as terapêuticas hegemônicas terem se revelado falhas.

Para exemplificar essa assertiva, podemos mencionar dois exemplos que presenciamos durante nosso mergulho no território: o primeiro caso era de um garoto de dez anos de idade que possuía alguma enfermidade até então desconhecida pelos médicos e imperceptível nos exames laboratoriais; o segundo evento era o de uma mulher que misteriosamente havia acordado sem poder andar e que, assim como a criança, também passou por vários especialistas da saúde, porém, nenhum conseguiu elucidar o que havia acontecido.

Cada um a sua maneira terminou se deparando com o terreiro de Mmaabo e, por lá, coincidentemente ou não, descobriram que suas condições de existência na realidade poderiam ser explicadas por causa de questões de ordem espiritual, como mediunidade não desenvolvida, no primeiro caso, e, no segundo, um trabalho espiritual de magia negra realizado com intuito de prejudicá-la.

A partir disso, é possível atestarmos que as principais razões que, na maioria das vezes, justificam os indivíduos buscarem por terapêuticas que se contraponham aos modelos hegemônicos, como é o caso das doutrinas religiosas de matriz africana, geralmente estão relacionadas a problemas de ordem física, sensações de tristeza, estresse ou ansiedade, problemas financeiros, conflitos familiares, insegurança ou nervosismo (Saavedra & Berezon, 2013Saavedra, N., & Berezon, S. (2013). Placer, transformación y tratamiento: uso de las medicinas alternativas para problemas emocionales en la Ciudad de México. Saúde & Sociedade , 22(2), 530-541. https://doi.org/10.1590/S0104-12902013000200022
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).

Segundo um levantamento realizado na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, e em São Luís, no Maranhão, os problemas de saúde mais frequentes entre os consulentes dos estabelecimentos religiosos de matriz africana dizem respeito a dores de cabeça, desmaios, depressão, problemas de visão e na pele, taquicardia, hipertensão, amnésia, febre reumática, convulsões, alcoolismo, insônia e doenças dos nervos e na barriga (Silva, 2007Silva, J. M. (2007). Religiões e saúde: a experiência da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde. Saúde & Sociedade , 16(2), 171-177. https://doi.org/10.1590/S0104-12902007000200017
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).

Desse modo, podemos perceber que os terreiros das religiões de matriz africana são estabelecimentos em que historicamente os sujeitos recorrem quando buscam por alguma espécie de ajuda, esteja ela relacionada a problemas físicos, emocionais, familiares, amorosos ou espirituais. Algumas vezes, estes estabelecimentos sagrados aparecem para a população em geral como uma última opção de cuidado em saúde, momento no qual todas as outras ofertas disponíveis se revelaram como falhas. Em outras circunstâncias, surgem como uma possibilidade para resolver problemáticas que afligem nossas existências, tais como desentendimentos, desempregos, problemas relacionados ao dinheiro, desconfianças ou traições. Nos últimos anos, entretanto, tem-se assistido a um movimento de ocupação desse espaço pelas igrejas neopentecostais, inclusive utilizando expedientes dos terreiros, como águas, flores e objetos ungidos.

Outro elemento importante diz respeito ao fato de que, à medida que mergulhavam com mais profundidade no contexto dos centros espíritas que frequentavam, os consulentes construíam redes de solidariedade e companheirismo entre as pessoas (adeptas e consulentes) que habitavam o respectivo território sagrado. Nesse sentido, resgatamos o pensamento de Hannah Arendt (citada por Gomes & Júnior, 2007Gomes, L. G. N., & Júnior, N. S. (2007). Experimentação política da amizade: alteridade e solidariedade nas classes populares. Psicologia: Teoria e Pesquisa , 23(2), 149-158. https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000200005.
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), quando esta disserta sobre o estabelecimento de vínculos comprometidos e solidários entre amigos, possibilitando momentos de acolhida, crescimento pessoal e movimentos maiores de união, força, apoio e engajamento entre os semelhantes.

De acordo com essa premissa, o cuidado que se instaura por meio desses laços de amizade possibilita, inclusive, que se rompa com a lógica da exploração econômica capitalística e se estabeleçam espaços de solidariedade entre amigos, em que estes se ajudam nos momentos de desamparo, mas também compartilham alegrias nas circunstâncias de felicidade (Gomes & Júnior, 2007Gomes, L. G. N., & Júnior, N. S. (2007). Experimentação política da amizade: alteridade e solidariedade nas classes populares. Psicologia: Teoria e Pesquisa , 23(2), 149-158. https://doi.org/10.1590/S0102-37722007000200005.
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).

Durante as consultas no terreiro de Mmaabo, essa assertiva era bastante perceptível. À medida que se familiarizavam com a casa, muitas das consulentes construíam relações de proximidade entre si, de forma que se nas primeiras consultas, muitas das vezes, as pessoas chegavam caladas e tímidas, conforme os dias transcorriam, os sujeitos que ali estavam começavam a se enturmar, passando a conversar sobre as mais variadas questões, tais como relacionamentos familiares e amorosos, finanças, festas, locomoção pela cidade, violência ou religião. Algumas das mulheres que por lá estavam inclusive tinham o contato telefônico de outras consulentes, assim como também emprestavam velas caso alguém se esquecesse de levar.

Por conta dessas compreensões construídas ao redor da umbanda, para muitos sujeitos, o cuidado em saúde, também promovido nos estabelecimentos hegemônicos do campo sanitário, passa a ganhar novos contornos quando é ofertado nos terreiros. Talvez seja por conta desse fato que, durante nossa jornada, recorrentemente escutávamos sentenças como: “vou mais ao terreiro do que ao posto de saúde”; “me sinto melhor indo ao terreiro do que em casa”; “comecei indo para as consultas, aos poucos fiquei amigo das pessoas e hoje não imagino minha vida sem elas”.

Entretanto, o fato de os adeptos e consulentes procurarem os estabelecimentos da umbanda quando se encontram em alguma situação de angústia ou adoecimento físico, psicológico ou espiritual, não significa que eles não se dirijam aos serviços de saúde em determinados casos. Como ilustração, podemos citar duas situações narradas por frequentadoras do terreiro de Mmaabo.

Na primeira, temos a história de uma mulher que havia caído enquanto tomava banho, por conta disso, apareceu no terreiro com uma mancha rocha no ombro. As outras pessoas que por ali estavam sugeriram que ela procurasse um posto de saúde mais próximo e solicitasse marcar um exame de raios X. Alguns outros sujeitos davam indicações de possíveis analgésicos que ela poderia ingerir para aliviar a dor que sentia. Além disso, também podemos mencionar a história de uma amiga de Mmaabo, também umbandista, que havia chegado bastante animada no terreiro porque acabara de sair de uma consulta médica e ficara sabendo que o nódulo em seu seio não se tratava de câncer de mama.

Nesses casos, por se tratar de problemáticas reconhecidamente orgânicas, as divindades aconselhariam a procura por parte dos consulentes de alternativas de cuidado em saúde, geralmente associadas ao sistema hegemônico, como, por exemplo, unidades de saúde da família. Entretanto, mesmo nessas circunstâncias, o tratamento espiritual não deveria ser abandonado, pois, para os Orixás, ambas as terapêuticas seriam complementares e deveriam funcionar conjuntamente (Mello & Oliveira, 2013Mello, M. L. (2013). Práticas terapêuticas populares e religiosidade afro-brasileira em terreiros no Rio de Janeiro: um diálogo possível entre saúde e antropologia [Tese de doutorado, Fundação Oswaldo Cruz, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca]. https://bvssp.icict.fiocruz.br/lildbi/docsonline/get.php?id=3662
https://bvssp.icict.fiocruz.br/lildbi/do...
).

A partir das discussões estabelecidas até então, alguns questionamentos podem ser levantados: ainda estaríamos dissertando sobre povos originários e sobre suas consequentes práticas tradicionais de cuidado em saúde, ao considerar que, além de os terreiros estarem localizados na zona urbana, os seus adeptos e consulentes não moram em suas redondezas, como acontecia em tempos remotos, mas sim em outros distintos pontos da cidade? Ou tais situações provocariam (des) territorializações tão intensas a tal ponto de descaracterizar essas populações de seu marco identitário?

Para analisarmos tais indagações com relativa cautela precisamos recorrer ao pensamento do educador Paulo Freire sobre cidadania e do filósofo Peter Pal Pelbart sobre comum. No primeiro caso, o autor considera que uma pessoa ser considerada como cidadã, e, portanto, pertencente a determinado território, não significa que ela deva ser originária dessa mesma localidade. Em vez disso, trata-se muito mais de concebermos a cidadania como uma construção política, em que os interesses de determinados sujeitos estariam em jogo (Freire, 2004Freire, P. (2004). Pedagogia da tolerância. Editora Unesp.).

Desse modo, também poderiam ser considerados como cidadãos dos territórios investigados as pessoas que, por exemplo, moravam em outros bairros da cidade ou em municípios vizinhos e que semanalmente iam aos terreiros, compartilhando com os demais fiéis e consulentes doutrinas, afetos, desejos e um vínculo com aquele território que elas costumeiramente habitavam, mas nos quais não residiam. Para Pelbart (2008Pelbart, P. P. (2008). Elementos para uma cartografia da grupalidade. In F. Saadi & S. Garcia (Orgs.), Próximo ato: questões da teatralidade contemporânea (pp. 33-37). Itaú Cultural.), pensar em comunidades seria discorrer sobre heterogeneidade, pluralidade e distância, já que, segundo o autor, o desejo de fusão unitária pode levar a “exclusões sucessivas daqueles que não respondem a essa pureza, até desembocar no suicídio coletivo” (p. 6).

Desse modo, de acordo essa perspectiva ético-estético-política, por mais que muitos dos adeptos e consulentes residam em pontos distintos da cidade, tendo consequentemente modos de vida também divergentes entre si, quando estão no terreiro, estes sujeitos compartilham uma ideia de comum por meio dos conhecimentos e das tradições que lhes são ancestrais.

Considerações finais

Em nosso ponto de vista, continuam sendo, portanto, pertencentes aos povos e comunidades tradicionais. A questão que se revela como importante diante desse cenário diz respeito a como pensarmos os modos de vida de tais atores sociais no âmbito dos espaços urbanos e não apenas no contexto das ruralidades, como a literatura da área hegemonicamente aponta.

Nesse cenário, ao discorrermos sobre as práticas de cuidado em saúde de três terreiros de umbanda de uma cidade do litoral piauiense, acreditamos que contribuímos para pensarmos nas conformações urbanas de tais populações, já que, apesar de não compartilharem o mesmo território físico, costumes ou superstições, quando adentram os terreiros, compartilham, dentre outras questões, perspectivas de cuidado em saúde que se contrapõem às racionalidades biomédicas, positivistas e cartesianas, fazendo referência, muitas das vezes, a terapêuticas de uso de plantas medicinais em chás, banhos e infusões; recebimento de rezas e passes; consultas com cartomantes e com as divindades espirituais, tais como pretos velhos, boiadeiros e pombas-gira.

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  • 1
    Todos os sujeitos a que essa pesquisa fizer referência estão sendo apresentados por nomes fictícios.
  • 2
    Doté Thiago, representante da Renafro-Saúde/Nordeste.
  • 3
    Na cultura popular, o quebranto, também conhecido como olho-gordo ou mau-olhado, seria considerado como o efeito maléfico que a atitude de algumas pessoas produz sobre outras.
  • 4
    Segundo a tradição popular, a espinhela é um osso pequeno, flexível, parecendo um nervo, que se encontra no meio do peito, entre o coração e o estômago, e que pode envergar para dentro. Desse modo, a espinhela caída, também conhecida como lumbago ou peito aberto, seria a designação popular de uma doença caracterizada por forte dor na boca do estômago, nas costas e pernas, além de um cansaço anormal que acomete o indivíduo, ao submeter-se a esforço físico.
  • 5
    De modo geral, uma das principais características da umbanda diz respeito a sua capacidade de agregar em suas cerimônias e rituais, setores sociais historicamente excluídos, como é o caso dos negros, indígenas, marinheiros, baianos, baianas, boiadeiros, prostitutas, ciganos e crianças moradoras de rua, por meio da ascensão destes sujeitos à condição de entidades espirituais. Especificamente, os pretos velhos são divindades que simbolizam os escravizados e, mais do que isso, seu poder de resistência (tanto física quanto cultural) diante da opressão e diáspora sofrida (Dias & Bairrão, 2011Dias, R. N., & Bairrão, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorandum, 20, 145-176. https://periodicos.ufmg.br/index.php/memorandum/article/view/6629
    https://periodicos.ufmg.br/index.php/mem...
    ).
  • Fonte de financiamento:

    Esse trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (Capes) - Código de Financiamento 001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Abr 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    17 Abr 2019
  • Aceito
    18 Ago 2020
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