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Escola sem Partido e Conservadorismo Moral: Instrumentalização da Religião, Sexualidade e Gênero

School Without Party and Moral Conservatism: the Instrumentalization of Religion, Sexuality and Gender

Escuela sin Partido y Conservadurismo Moral: la Instrumentalización de la Religión, Sexualidad y Género

Resumo

Este artigo tem por objetivo identificar e discutir alguns estratagemas psicológicos utilizados por movimentos conservadores e autoritários recentemente difundidos no Brasil - em especial, pelo Movimento Escola sem Partido -, em relação a temas como sexualidade e gênero, que atualmente foram incluídos como essenciais à formação escolar. Com esse propósito, empenhamo-nos em compreender a perspectiva cultural em que se apoiam e o modo como a articulam, ideologicamente, para inviabilizar o debate sobre eles. A partir da análise dos Projetos de Lei 246/2019 e 1859/2015, identificamos estratégias conservadoras que, autoritariamente, deslegitimam sua inclusão na formação escolar. Dentre elas, pareceu-nos urgente investigar a instrumentalização da religião, pois favorece a subordinação da crença religiosa, sobretudo associada ao conservadorismo moral imbricado na tradição cristã brasileira, ao discurso político autoritário. Assim como os movimentos fascistas que, nos Estados Unidos da década de 1930, reivindicavam um ordenamento autoritário e opressor da sociedade por meio do apelo a conteúdos religiosos instrumentalizados para esse fim, atualmente, o discurso religioso também é utilizado como forma de suscitar adesão ao conservadorismo social e político e de justificar preconceitos arraigados. Constatamos que a instrumentalização da religião é uma forma de justificar a permanência de valores conservadores na escola e na sociedade, bem como de reiterar o modelo de família heterossexual monogâmica e a ordem patriarcal. Por meio de estratagemas como esses, os movimentos conservadores e autoritários, articulados em função da negação da diversidade sexual e de gênero, impedem que a escola se constitua como espaço democrático e diverso.

Palavras-chave:
Escola; Religião; Conservadorismo; Sexualidade; Gênero

Abstract

This paper identifies and discusses the psychological ploys employed by recent conservative and authoritarian movements in Brazil, particularly the School without Party movement, against topics like sexuality and gender, which are currently included as essential to school education. To do so, we sought to understand their cultural basis and how they are ideologically articulated to prevent school debate around these topics. By analyzing Bills 246/2019 and 1859/2015, we identified some conservative strategies that authoritatively delegitimize their inclusion in school education. Chief among them is the instrumentalization of religion, since it favors subordinating religious belief, mainly associated with traditional Christian moral conservatism, to authoritarian political discourse. Similar to the fascist movements in the 1930s United States that claimed an authoritarian and oppressive ordering of society by appealing to religious content, religious speech is currently instrumentalized to encourage social and political conservatism adherence and to justify deep-seated prejudices. Religion instrumentalization is used to justify upholding conservative values at school and in society, as well as to reiterate the monogamous heterosexual family model and patriarchy. Through such ploys, authoritarian and conservative movements, articulated around denying sexual and gender diversity, prevent the school from becoming a democratic and diverse environment.

Keywords:
School; Religion; Conservatism; Sexuality; Gender

Resumen

Este artículo tiene por objetivo identificar y discutir algunas de las estratagemas psicológicas que utilizan los movimientos conservadores y autoritarios, difundidas recientemente en Brasil, en particular por el Movimiento Escuela sin Partido, con relación a temas como sexualidad y género, que actualmente se incluyeron en la formación escolar. Con este propósito, se pretende comprender la base cultural en la que se han apoyado y cómo la articulan ideológicamente para hacer inviable el debate sobre ellas. A partir de análisis de los Proyectos de Ley 246/2019 y 1859/2015, se identificaron estrategias conservadoras que, autoritariamente, deslegitiman la inclusión de estos temas en la formación escolar. Entre ellas, parece urgente analizar la instrumentalización de la religión, porque favorece la subordinación de la creencia religiosa al discurso político autoritario, sobre todo asociada al conservadurismo moral presente en las vertientes del cristianismo brasileño. Al igual que los movimientos fascistas en los Estados Unidos en los años 1930 que reivindicaban una planificación autoritaria de la sociedad mediante un llamado a contenidos religiosos instrumentalizados, actualmente se utiliza el discurso religioso como forma de promover la adhesión al conservadurismo social y político y de justificar los prejuicios. Se constata que la instrumentalización de la religión es un modo de justificar la permanencia de valores conservadores en la escuela, así como de confirmar el modelo de familia heterosexual monógama y el orden patriarcal. Estos estratagemas que son utilizados por los movimientos conservadores y autoritarios, articulados en función de la negación de la diversidad sexual y de género, impiden que la escuela sea democrática y diversa.

Palabras clave:
Escuela; Religión; Conservadurismo; Sexualidad; Género

Parece não haver dúvidas de que noções e valores típicos ou diretamente derivados do cristianismo foram acionados em prol da perspectiva conservadora que sustenta o programa do movimento Escola sem Partido. A exemplo do que ocorre com outras investidas conservadoras e autoritárias, esse movimento parece aparelhar valores morais religiosos de modo a subordiná-los a interesses alheios à própria religião, porém alinhados a perspectivas políticas antidemocráticas.

O movimento Escola sem Partido foi formalizado em 2014 pelo advogado Miguel Nagib e, atualmente, dispõe de um website com conteúdo, informações, anteprojetos de lei elaborados por integrantes do movimento e orientações para a efetivação dos seus objetivos no país (Movimento Escola sem Partido, 2019Movimento Escola sem partido. (2019). http://www.programaescolasempartido.org
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).

Em 2016, foi apresentado no Senado Federal o Projeto de Lei nº 193, de 03 de maio de 2016Projeto de Lei nº 193, de 3 de maio de 2016. (2016, 3 de maio). Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o “Programa Escola sem Partido”. Senado Federal. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125666.
https://www25.senado.leg.br/web/atividad...
, de autoria do senador Magno Pereira Malta, o primeiro projeto de lei do movimento a nível federal, o qual visava incluir o projeto da Escola sem Partido entre as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Entretanto, no ano de 2019, depois de sofrer resistência de profissionais da educação e importante derrota política, esse projeto foi retirado de tramitação. Na Câmara dos Deputados foram apresentados outros projetos: nº 7.180, de 24 de fevereiro de 2014; nº 867, de 23 de março de 2015; e, mais recentemente, o nº 246, de 21 de fevereiro de 2019. Esses projetos encontram-se em tramitação em conjunto.

O site do Movimento Escola sem Partido disponibiliza anteprojetos de lei, notícias relacionadas ao que nomeia como doutrinação em sala de aula, e instruções para maior alcance no cenário político, apresentando como justificativa a suposição infundada de que um número crescente de professores utiliza a sala de aula como lugar de propaganda partidária e de disseminação de suas preferências e convicções políticas, sendo, segundo esse entendimento, necessário que o Movimento se expanda e combata veementemente essa “ameaça ideológica” (Movimento Escola sem Partido, 2019Movimento Escola sem partido. (2019). http://www.programaescolasempartido.org
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).

Diante da complexidade de elementos que podem derivar de uma análise minuciosa desses projetos, empenhamo-nos em analisar alguns conteúdos que se relacionam com questões ligadas à sexualidade e ao debate sobre gênero. Para a análise, os materiais selecionados foram os Projetos de Lei nº 246/2019, 867/2015, 7180/14, propostos por integrantes do Movimento Escola sem Partido, e o Projeto de Lei nº 1859/2015, que, embora não seja diretamente vinculado ao movimento, versa especificamente sobre gênero na escola, configurando explícita consonância com seus objetivos.

A partir desta análise, buscamos compreender os estratagemas psicológicos utilizados pelos movimentos conservadores e como se apropriam de conteúdos religiosos para rechaçar a diversidade sexual e de gênero, contrapondo-se, com isso, a uma educação para a emancipação e para a democracia.

Instrumentalização da religião como suporte para a ofensiva conservadora na educação

Apesar da forma explícita com que processa a subordinação de elementos religiosos a uma orientação política conservadora a respeito do debate educacional, conferindo-lhe um matiz francamente autoritário, o discurso de movimentos como o Escola sem Partido compreende aspectos complexos que escapam à observação superficial e requerem pesquisa e reflexão. Dentre eles, o conservadorismo moral de inspiração cristã se destaca por remontar a uma tradição que, conforme desvelado por Weber (1904/2001Weber, M. (2001). A ética protestante e o espírito do capitalismo (V. E. Alves, trad.). Centauro. (Trabalho original publicado em 1904)), representou a imbricação do ascetismo protestante com o espírito do capitalismo. Weber argumentou que o protestantismo, sobretudo o puritano, ofereceria, por meio do autocontrole reservado, a base moral para um duplo movimento de valorização da laboriosidade racionalmente planejada, condizente com o acúmulo de riquezas, e de rejeição dos prazeres mundanos, os quais resultariam no consumo desenfreado: “Esse ascetismo secular do protestantismo... opunha-se, assim, poderosamente, ao espontâneo usufruir de riquezas, e restringira o consumo, especialmente o consumo do luxo” (Weber, 1904/2001Weber, M. (2001). A ética protestante e o espírito do capitalismo (V. E. Alves, trad.). Centauro. (Trabalho original publicado em 1904), p. 136). Como resultado, paradoxalmente, houve a legitimação moral da acumulação de bens, supostamente desejada por Deus.

Por considerarmos relevante essa interconexão entre a constituição moral do indivíduo burguês, engendrada pela ética protestante, e o arraigamento cultural do espírito capitalista, concordamos com o entendimento expressado por Weber (1904/2001Weber, M. (2001). A ética protestante e o espírito do capitalismo (V. E. Alves, trad.). Centauro. (Trabalho original publicado em 1904)) de que a relação entre religião e política permeia a história da humanidade de um modo complexo e inevidente; por conseguinte, também é relevante para o entendimento dos atuais movimentos sociais que se posicionam moralmente sobre os objetivos da educação.

Tomando esse contexto contraditório como base das relações entre religião e política, delimitamos como objeto deste ensaio a imbricação entre a perspectiva educacional proposta pelo movimento Escola sem Partido e o conservadorismo professado tanto por religiosos quanto por movimentos autoritários cujo apelo à instrumentalização da religião consubstancia o rechaço ao debate sobre gênero e sexualidade na escola. Com o objetivo principal de identificar e discutir os estratagemas psicológicos utilizados por esses movimentos conservadores e autoritários recentemente difundidos no Brasil, intencionamos também discutir o quanto essa forma de apropriação do discurso cristão, em grande medida já dissociado de seus interesses e fundamentos clássicos - neutralizado, nas palavras de Horkheimer e Adorno (1947/2006Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (2006). Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Zahar. (Obra original publicada em 1947)) - diferencia-se da antiga imbricação da ética protestante com o espírito do capitalismo e consolida-se, assim como aquela, em uma poderosa ideologia, porém, nesse caso, não estruturada na racionalização do mundo, mas no apelo a moções instintuais que favorecem o ajustamento a ele.

Nesse sentido, os acontecimentos políticos transcorridos no Brasil recentemente, sobretudo relacionados à ascensão de Bolsonaro à presidência do país, instigaram-nos a indagar o estranho apoio de grupos religiosos, em especial, cristãos pentecostais, a esse projeto de governo caracterizado por uma política econômica alinhada com os interesses predatórios do grande capital e por um modo de condução política repleto de elementos antidemocráticos que, no limite, poderiam ser interpretados como anticristãos. Em consonância com o fervor dos grupos que o apoiaram - uma minoria respaldada por aproximadamente um terço do eleitorado brasileiro (Datafolha, 2020Datafolha. (2020, 15 e 16 de março). Avaliação dos governantes na pandemia. Folha de S.Paulo - Instituto de pesquisas Datafolha. http://media.folha.uol.com.br/datafolha/2021/03/17/avbondmei6879812ac6be2a83138f6379ef5711cd.pdf
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) -, o governo Bolsonaro associou estratégias de comunicação populistas a pautas morais conservadoras e a posições políticas autoritárias. Defendeu perspectivas tipicamente fascistas, como a concentração de poder nas mãos das forças armadas e uma política econômica contrária à manutenção da responsabilidade do Estado a respeito da manutenção da vida e redução das desigualdades extremas. Promoveu ações favoráveis ao definhamento da legislação trabalhista e à degradação dos serviços públicos e, sob a rubrica da austeridade neoliberal, protagonizou um conjunto de reformas - previdência social, trabalhista e fiscal - que fez retroagir direitos sociais adquiridos.

Embora tanto a atitude indiferente de Bolsonaro diante da catástrofe mundial da pandemia de covid-19, que até janeiro de 2022 resultou na morte de mais de 620 mil brasileiros (Valente, 2022Valente, J. (2022, 10 de janeiro). Número de mortos pela covid-19 no Brasil passa de 620 mil. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-01/numero-de-mortos-pela-covid-19-no-brasil-passa-de-620-mil.
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), quanto a sua obsessão por facilitar o acesso à posse e ao porte de armas de fogo de grande letalidade tenham sido considerados imorais e, inclusive, contrários aos valores cristãos (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, 2020Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. (2020, 22 de julho). Carta ao povo de Deus. CRB Nacional. https://crbnacional.org.br/carta-ao-povo-de-deus/
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; Melito, 2020Melito, L. (2020, 27 de junho). Em “Carta ao Povo de Deus”, 152 bispos criticam “incapacidade” de Jair Bolsonaro. Brasil de Fato. https://www.brasildefato.com.br/2020/07/27/em-carta-ao-povo-de-deus-152-bispos-criticam-incapacidade-de-jair-bolsonaro
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), o ex-presidente Jair Bolsonaro manteve o apoio de parte dos cristãos brasileiros, sobretudo dos evangélicos pentecostais e neopentecostais que alavancaram a sua campanha. Mariano e Gerardi (2019Mariano, R., & Gerardi, D. A. (2019). Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores. Revista USP, (120), 61-76. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76
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) e Qualalou (2019Qualalou, L. (2019). Los evangélicos e el Hermano Bolsonaro. Nueva Sociedad, 280, 68-77.) reconstituíram o processo por meio do qual o apoio de religiosos ao seu programa de governo se consolidou em consonância com o que ocorreu em outros países da América Latina.

Se o apoio de lideranças e de grupos religiosos ao governo Bolsonaro denota apoio às tendências fascistas nele presentes, essa questão tem grande relevância, pois não apenas contradiz a tradição racionalista do protestantismo histórico, do qual parte significativa dessas denominações religiosas derivaram, mas também remete à relação anteriormente estabelecida entre religião e fascismo observada na Alemanha nazista e presente nas tendências fascistas nos Estados Unidos nas décadas de 1930 e 1940, respectivamente estudadas por Adorno nas análises dos discursos radiofônicos do pastor Martin Luther Thomas (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)) e, a partir entrevistas coletadas para o estudo da relação entre ideologia e personalidade, no estudo realizado em colaboração com Levinson, Sanford e Frenkel-Bruwsik: Estudos sobre a personalidade autoritária (Adorno, 1950/2019Adorno, T. W. (2019). Alguns aspectos da ideologia religiosa revelados no material das entrevistas. In T. W. Adorno, Estudos sobre a personalidade autoritária (V. H. F. Costa, F. L. T. Corrêa & C. H. Pissardo, trads., pp. 483-514). Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1950)). Embora na Alemanha nazista a religião tenha sido pouco apropriada pela ideologia vigente, os movimentos políticos de caráter fascista nos Estados Unidos do início do século XX manifestaram grande afinidade com movimentos religiosos, sobretudo com versões renovadas do cristianismo, marcadas pela intensidade emocional e fé fervorosa, tal como se observa em seitas neopentecostais.

Nessas duas importantes pesquisas sobre o fascismo - sobre as técnicas psicológicas de persuasão utilizadas por oradores religiosos e sobre a personalidade autoritária -, Adorno (1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943); 1950/2019Adorno, T. W. (2019). Alguns aspectos da ideologia religiosa revelados no material das entrevistas. In T. W. Adorno, Estudos sobre a personalidade autoritária (V. H. F. Costa, F. L. T. Corrêa & C. H. Pissardo, trads., pp. 483-514). Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1950)) revelou que o discurso e os dispositivos religiosos foram apropriados para fins alheios à própria religião; convertidos em um meio para disseminar a propaganda fascista e persuadir os crentes quanto a perspectivas morais conservadoras e repressivas, justificando, por esta via, a adesão irracional à ideologia fascista. A religião neutralizada tornou-se instrumento de manipulação. Adorno (1943/2009)Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943) observou que seus elementos podem ser associados ao discurso totalitário, sendo cinicamente utilizados para fins políticos; assim, a subordinação da religião a interesses fascistas e sua subsequente perversão em instrumento de propaganda de ódio não é um fenômeno específico do tempo atual.

Na sua versão contemporânea, aparentemente espontânea e isenta de qualquer tipo de racionalidade, opera uma racionalidade instrumental que, cinicamente, favorece o apelo planejado a necessidades psicológicas: uma racionalidade que, reduzida ao mecanismo subjetivo e à técnica, se volta para a dominação e, por isso, trai o propósito principal da razão crítica, que é a emancipação humana (Horkheimer & Adorno, 1947/2006Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (2006). Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Zahar. (Obra original publicada em 1947)). Essa organização “racional” das estratégias utilizadas por oradores fascistas compreende a articulação de técnicas da propaganda com componentes dos modernos discursos religiosos que se aproximam de perspectivas totalitárias, como se observa no Brasil. A esse respeito, apoiando-se em elementos teóricos de Adorno e de outros pensadores da teoria crítica da sociedade, Silva (2002Silva, P. F. (2002). O neopentecostalismo e a ideologia da racionalidade tecnológica: a instrumentalização da religião [Dissertação de mestrado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.) ressaltou o aparente paradoxo representado pelo controle “racional” da irracionalidade que é suscitada pelos movimentos religiosos de massa no Brasil, sobretudo pelo neopentecostalismo. Dentre outros aspectos, destacou a relação entre a regressão psicológica e a racionalidade disseminada entre cristãos fervorosos, o uso cínico da racionalidade tecnológica com o intuito de manipular a crença das massas em prol da adaptação cega à realidade social ameaçadora e a manifestação do desejo de ocupar posições confortáveis na injusta hierarquia social.

Conforme salientaram Mariano e Gerardi (2019Mariano, R., & Gerardi, D. A. (2019). Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores. Revista USP, (120), 61-76. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76
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), o apoio de evangélicos a programas de governo autoritários no Brasil e na América Latina, nos últimos anos, amparou-se na tradição cristã protestante antipluralista e altamente conservadora, a qual se concentrava “na família, na defesa da autoridade masculina e do criacionismo, na contenção da sexualidade, da autonomia e dos direitos das mulheres, na oposição radical às demandas feministas... ao aborto, à homossexualidade, à educação sexual nas escolas” (p. 65). Além disso, contrariamente ao apolitismo político-partidário que perdurou nesse meio até a década de 1970, lideranças dessa tradição religiosa têm efetuado intensa incursão no universo político por meio de candidaturas e do apoio a representantes desses valores conservadores (Prandi & Santos, 2017Prandi, R, & Santos, R. W. (2017). Quem tem medo da bancada evangélica? Posições sobre moralidade e política no eleitorado brasileiro, no Congresso Nacional e na Frente Parlamentar Evangélica. Tempo Social, 29(2), 187-214. https://doi.org/10.11606/0103-2070.ts.2017.110052
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). Mariano e Gerardi (2019Mariano, R., & Gerardi, D. A. (2019). Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores. Revista USP, (120), 61-76. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76
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) destacaram também que, entre os apoiadores de Bolsonaro, podem ser realçadas a identificação com uma oposição moral e política a um inimigo comum: “o inimigo petista e os perigos que lhe atribuíam: implantar o comunismo, perseguir os cristãos, abolir o direito dos pais de educar os filhos, reorientar a sexualidade das crianças, destruir a família” (Mariano & Gerardi, 2019Mariano, R., & Gerardi, D. A. (2019). Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores. Revista USP, (120), 61-76. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76
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, p. 69).

A defesa enfática desses valores morais conservadores aproximou lideranças políticas, muitas vezes cinicamente interessadas no poder de mobilização dos temas religiosos, a uma massa de seguidores em potencial, pessoas religiosas intensamente vinculadas a seus grupos de referência e suscetíveis às orientações e ao direcionamento de seus líderes religiosos, em muitos casos também políticos. Suas disposições psicológicas são condizentes com a psicologia de massas (Freud, 1927/2014Freud, S. (2014). O futuro de uma ilusão. In S. Freud, Obras completas: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929) (P. C. Souza, trad., Vol. 17, pp. 232-301). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927)), o que compreende uma psicodinâmica suscetível à influência racionalmente planejada das cínicas lideranças que comumente manipulam esses fiéis em função de objetivos alheios à experiência religiosa (Silva, 2002Silva, P. F. (2002). O neopentecostalismo e a ideologia da racionalidade tecnológica: a instrumentalização da religião [Dissertação de mestrado não publicada]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.). No Brasil, o recente apoio a Bolsonaro ocorreu, no meio evangélico, sobretudo em razão da identificação de pessoas sensíveis ao discurso religioso com o apelo político a questões de segurança e proteção (necessidades psíquicas pouco elaboradas), que foram absorvidas e ressignificadas por meio da baliza fornecida pelos valores morais conservadores, contrários à inclusão dos temas sexualidade e gênero nas escolas, que poderiam aumentar a insegurança em relação a essa complexa dimensão do psiquismo. Com sublinharam Mariano e Gerardi (2019Mariano, R., & Gerardi, D. A. (2019). Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores. Revista USP, (120), 61-76. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76
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), a partir dos debates em torno do Plano Nacional de Educação, em 2014, “deputados evangélicos irromperam a propor projetos de lei para implantar o programa Escola sem Partido contra a suposta doutrinação marxista e comunista e de ‘ideologia de gênero’ nas escolas” (p. 70).

Entretanto, tendo em vista a força adquirida por esses argumentos conservadores em relação à educação, observar o modo como os grupos religiosos se posicionam em relação a eles possibilita compreender como ocorre a relação entre a instrumentalização da religião e o estabelecimento de tendências fascistas. Horkheimer e Adorno (1947/2006Horkheimer, M., & Adorno, T. W. (2006). Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Zahar. (Obra original publicada em 1947)) haviam observado algo semelhante em relação à religião que, durante o nazismo, forneceu parte do conteúdo inconsciente presente na perseguição aos judeus: “A religião foi integrada como patrimônio cultural, mas não abolida. A aliança entre o esclarecimento e a dominação impediu que sua parte de verdade tivesse acesso à consciência e conservou suas formas reificadas” (p. 146).

Para o desenvolvimento da análise a respeito do poder de influência dessas formas reificadas, a seguir, analisaremos o avanço das políticas públicas de educação referentes à inserção dos temas gênero e sexualidade na escola nas últimas décadas, bem como os obstáculos colocados por tendências totalitárias para o prosseguimento dessas políticas públicas. Para isso, debruçamo-nos sobre os projetos de lei encaminhados pelo Movimento Escola sem Partido - 867/2015, 7180/14 e 246/2019 - e sobre o Projeto de Lei nº 1859/2015, que versa especificamente sobre gênero, analisando os estratagemas ali presentes e como se articulam a conteúdos religiosos. Por fim, como prosseguimento da análise dessas tendências totalitárias, analisaremos algumas das ideias reiteradas nas políticas interna e externa do governo Bolsonaro, as quais se opõem à inclusão dos temas gênero e sexualidade na escola.

Políticas públicas de educação relacionadas à sexualidade e gênero: avanços e recuos

Demandas ligadas aos temas gênero e sexualidade, protagonizadas por movimentos sociais, têm se tornado objeto de acirradas disputas, tanto na esfera formal da defesa dos direitos humanos quanto em relação à representatividade política desses movimentos, também têm se consagrado como tema de inúmeros estudos acadêmicos. Essas demandas são sustentadas especialmente pelos movimentos e grupos em defesa dos direitos das mulheres e das pessoas LGBTQIAP+ e encontram obstáculos imensuráveis no campo político, sobretudo por parte dos movimentos conservadores e de seus representantes, assim como por parte de seus defensores na esfera cultural.

Com o avanço das discussões políticas a respeito dos direitos sexuais e reprodutivos, os debates sobre sexualidade avançaram para além do aspecto biológico, permitindo compreender a educação sexual como uma importante prática aliada à saúde física e mental. A contribuição política mais clara para esse entendimento partiu dos documentos elaborados em conferências internacionais - a exemplo das que ocorreram no Cairo e em Pequim na década de 1990 -, por meio das quais se definiu o conceito de direitos sexuais e reprodutivos como Direitos Humanos. A partir disso, a responsabilidade dos Estados em facilitar o acesso a informações sobre saúde sexual e reprodutiva por meio de políticas públicas foi enfatizada junto à necessidade de desenvolver ações de planejamento familiar, de acesso a métodos contraceptivos, serviços obstétricos e educação sexual:

Tais mudanças impactaram a educação de jovens e adolescentes. Reconheceu-se que a sexualidade é constitutiva dos sujeitos desde a infância e, portanto, a escola foi considerada local privilegiado para projetos e políticas que garantam os direitos sexuais e reprodutivos de seus alunos no âmbito da educação. (Furlanetto et al., 2018Furlanetto, M. F., Lauermann, F., Costa, C. B., & Marin, A. H. (2018). Educação sexual em escolas brasileiras: Revisão sistemática da literatura. Cadernos de Pesquisa, 48(168), 550-571. https://doi.org/10.1590/198053145084
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, p. 532-533)

Foi a partir da década de 1990 que surgiram, no país, diversas políticas educacionais relacionadas à sexualidade, prevenção às IST e Aids, promoção da saúde e garantia de direitos sexuais e reprodutivos. Para esse intento, contribuíram a elaboração e divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em 1998, e anos depois, o Plano Nacional de Políticas para as mulheres e o Programa Brasil sem Homofobia, ambos de 2004, como também o Programa Gênero e Diversidade na escola, em 2008.

Embora não tenham tido peso de lei, os PCN foram norteadores das atividades desenvolvidas no âmbito escolar. Um dos cadernos dos PCN traz como temática a orientação sexual, ao considerar que o tema deve estar presente em todos os níveis de ensino, disciplinas e atividades escolares, já que é parte inerente da formação. O caderno sobre orientação sexual compreende três subtemas norteadores: o corpo como matriz da sexualidade, as relações de gênero e a prevenção às IST e Aids, sendo objetivo dos PCN “contribuir para que os alunos possam desenvolver e exercer sua sexualidade com prazer e responsabilidade” (Brasil, 1998Brasil. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos de ensino fundamental. Secretaria de Educação Fundamental. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro102.pdf
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
, p. 87).

Considera-se, nesse documento, que a vivência da sexualidade se articula ao exercício da cidadania, à medida que uma educação que contempla esse tema permite trabalhar o respeito por si mesmo e pelo outro e busca garantir direitos básicos, como o direito à saúde e à informação. Assim, os PCN visam integrar esses temas de maneira transversal no currículo e nas atividades escolares, de maneira que sejam contemplados por diversas áreas (Brasil, 1998Brasil. (1998). Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos de ensino fundamental. Secretaria de Educação Fundamental. http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro102.pdf
http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pd...
). Cabe compreender que os PCN partem do entendimento de que é preciso assegurar os direitos sexuais e reprodutivos, considerando o adolescente como protagonista, capaz de decidir e de acessar serviços de saúde.

Por outro lado, o Movimento Escola sem Partido - que, como vimos, desponta a partir de 2014, dedicando-se num “objetivo grandioso” para reformular a educação brasileira - apresenta uma contrapartida ao que propuseram, em outro momento, documentos como os PCN. Afinal, é importante observar que o Projeto de Lei nº 7180/14, proposto pelo Movimento Escola sem Partido, busca, no inciso XIII, proibir a transversalidade de conteúdos como religião, moral e sexualidade (Projeto de Lei nº 7180, 2014Projeto de Lei nº 7180 de 2014. (2014). Altera o Artigo 3° da Lei 9.394 de 1996 que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1230836&filename=PL+7180/2014
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
), numa clara oposição ao legado deixado pela publicação dos PCN - que demarcaram a possibilidade inédita de se abordar o tema sexualidade na escola - de maneira a impedir sua execução e viabilidade. Com isso, elementos centrais para a formação cultural e do caráter são, para esse movimento, interditados e em vez de serem elevados à consciência como objeto de reflexão - como sugeriu Adorno (1965/1995)Adorno, T. W (1995). Tabus acerca do magistério. In T. W. Adorno, Educação e Emancipação (W. L. Maar, trad., pp. 97-117). Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1965) em relação à necessidade de que a escola tome consciência dos tabus que a permeiam - tornam-se pontos enrijecidos e sujeitos à acomodação a normas morais.

Marcon, Prudêncio e Gesser (2016Marcon, A. N., Prudêncio, L. E. V., & Gesser, M. (2016). Políticas públicas relacionadas à diversidade sexual na escola. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 291-301.) analisaram a produção bibliográfica sobre diversidade sexual na escola a partir do período de publicação dos PCN, em 1998, e perceberam um grande avanço nas políticas governamentais voltadas às garantias dos direitos sexuais e reprodutivos, pois essas políticas tomavam a escola como importante instituição nessa empreitada. Como parte desse avanço, ainda em 2008, foi publicado pelo Ministério da Educação, em especial pela Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), o Caderno Gênero e Diversidade na Escola: Formação de Professoras/es em Gênero, Sexualidade, Orientação Sexual e Relações Étnico-Raciais (Brasil, 2008Brasil. (2008). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade [SECAD]. Ministério da Educação. http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf
http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/...
). Esse caderno foi produzido como parte de um curso de formação continuada de professores nessas temáticas, oferecido por universidades na modalidade à distância e com alguns módulos presenciais1 1 Pode-se compreender o Programa Gênero e diversidade na escola como orientado pela necessidade de formação de professores nas temáticas de gênero, desigualdade de gênero, orientação sexual e questões étnico-raciais, numa tentativa de superação de preconceitos e trabalho da diversidade humana com os docentes (Brasil, 2008). . Também o Projeto Escola sem Homofobia, cuja finalidade foi degradada pelos grupos conservadores, dentre os quais os evangélicos, que o apelidaram como Kit Gay, apresentou papel relevante na tentativa de introduzir o debate sobre diversidade sexual na escola. O programa buscava trazer essa discussão à escola, bem como discutir a igualdade de gênero, a identidade de gênero e a orientação sexual. Entretanto, devido à pressão feita em 2011 por deputados alinhados à direita conservadora, em especial aqueles ligados a igrejas evangélicas, a divulgação do material desse programa chegou a ser vetada. Isso demonstra o que Ferreira (2016Ferreira, G. G. (2016). Conservadorismo, fortalecimento da extrema-direita e a agenda da diversidade sexual e de gênero no Brasil contemporâneo. Lutas sociais, 20(2), 166-178.) nomeou como uma predominância da pauta conservadora nos últimos anos, o que fez com que até mesmo um governo de caráter progressista, como o da presidenta Dilma Roussef, suspendesse a pauta da diversidade sexual em favor da governabilidade.

Marcon, Prudêncio e Gesser (2016Marcon, A. N., Prudêncio, L. E. V., & Gesser, M. (2016). Políticas públicas relacionadas à diversidade sexual na escola. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 291-301.) ressaltam, ainda, que existe uma distância imensa entre o que propõem as políticas que visam incluir o debate sobre sexualidade, diversidade sexual e gênero e a real efetividade de sua implementação, já que a maior parte dos estudos aponta a presença de desigualdades de gênero e de heteronormatividade na escola. A partir de ampla revisão de artigos que abordam o alcance das políticas públicas relacionadas à diversidade na escola, Marcon, Prudêncio e Gesser (2016Marcon, A. N., Prudêncio, L. E. V., & Gesser, M. (2016). Políticas públicas relacionadas à diversidade sexual na escola. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 291-301.) mencionam que muitos professores tinham dificuldade no trabalho com o tema, seja por crenças pessoais, por falta de conhecimento sobre a sexualidade ou por desconhecimento das diretrizes adotadas pelo Estado, naquele momento, no combate às discriminações sexuais e de gênero.

Do mesmo modo, Furlanetto et al. (2018Furlanetto, M. F., Lauermann, F., Costa, C. B., & Marin, A. H. (2018). Educação sexual em escolas brasileiras: Revisão sistemática da literatura. Cadernos de Pesquisa, 48(168), 550-571. https://doi.org/10.1590/198053145084
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) apontam que, mesmo passadas duas décadas da publicação dos PCN, a realização de um projeto transversal com a temática da sexualidade enfrenta muitas dificuldades. As autoras realizaram uma ampla revisão bibliográfica de estudos empíricos nacionais sobre educação sexual, publicados entre 2010 e 2016, e apontaram que, na maioria das situações, trabalhos de educação sexual têm sido realizados por profissionais externos ao quadro escolar2 2 No geral, são experiências realizadas por profissionais de Enfermagem, Medicina e Psicologia; e nos casos realizados dentro da escola, são feitas por professores de Ciências e de Biologia (Furlanetto et al., 2018). , de modo que grande parte dessas intervenções trazia temas ligados à saúde sexual e reprodutiva, com foco nas informações de prática preventiva. Embora os documentos oficiais indiquem a necessidade de trabalhar a sexualidade sob um aporte histórico e social, abordando inclusive os papéis de gênero, os professores não têm acessado esses documentos e nem têm recebido a capacitação e o apoio necessários para isso.

Pode-se compreender que a ausência de formação no campo da sexualidade pode dificultar o estabelecimento de abordagens e métodos, podendo levar a práticas repressivas, punitivistas e discriminatórias (Furlanetto et al., 2018Furlanetto, M. F., Lauermann, F., Costa, C. B., & Marin, A. H. (2018). Educação sexual em escolas brasileiras: Revisão sistemática da literatura. Cadernos de Pesquisa, 48(168), 550-571. https://doi.org/10.1590/198053145084
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). O estudo de Nardi e Quartiero (2011, citado por Marcon, Prudêncio, & Gesser, 2016Marcon, A. N., Prudêncio, L. E. V., & Gesser, M. (2016). Políticas públicas relacionadas à diversidade sexual na escola. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 291-301.) analisou a implantação de políticas públicas relacionadas à diversidade sexual no espaço escolar. Seus resultados apontam que professores compreendiam o discurso jurídico de direitos humanos e de direitos sexuais, mas suas práticas permaneciam norteadas pela heteronormatividade, de tal modo que as diferenças eram compreendidas como carência ou desvio e a prática direcionava-se muitas vezes para a tolerância e não para a compreensão das diversidades. Já a pesquisa realizada por Gesser, Oltramari e Panisson (2015Gesser, M., Oltramari, L. C., & Panisson, G. (2015). Docência e concepções de sexualidade na educação básica. Psicologia & Sociedade, 27(3), 558-568. https://dx.doi.org/10.1590/1807-03102015v27n3p558
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), com professores do ensino fundamental, indica que poucos deles tinham conhecimento dos PCN e dos demais documentos norteadores desse debate. Além disso, os professores apresentavam um discurso preventivista da sexualidade, preocupado com gravidez e Aids, e algumas vezes articulado a posturas conservadoras morais e religiosas. Isso parece indicar o quanto tais práticas podem estar relacionadas ao modo como a educação sexual historicamente foi abordada no país: uma associação entre a abordagem médico-informativa e práticas de punição, alinhada a crenças religiosas (Furlanetto et al., 2018Furlanetto, M. F., Lauermann, F., Costa, C. B., & Marin, A. H. (2018). Educação sexual em escolas brasileiras: Revisão sistemática da literatura. Cadernos de Pesquisa, 48(168), 550-571. https://doi.org/10.1590/198053145084
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).

Os professores também mostravam preocupação com a fase de desenvolvimento que compreende a infância e a adolescência, com certo receio de que o tratamento dessas temáticas pudesse “incitar precocemente” determinadas fases da sexualidade. Desse modo, embora a produção de conhecimento relacionada à diversidade sexual na escola tenha avançado consideravelmente nos últimos anos na direção de uma educação que valoriza as diferenças, a realidade das escolas - tal como apontado na produção sobre o tema - encontra-se muito aquém do conhecimento disponível.

Em consonância com o que, conforme Adorno (1965/1995)Adorno, T. W (1995). Tabus acerca do magistério. In T. W. Adorno, Educação e Emancipação (W. L. Maar, trad., pp. 97-117). Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1965), poderíamos considerar expressão da dificuldade de elevar a sexualidade a objeto da consciência, portanto, de uma tendência a experimentá-la como um tabu, os discursos de professores, observados por Gesser, Oltramari & Panisson (2015Gesser, M., Oltramari, L. C., & Panisson, G. (2015). Docência e concepções de sexualidade na educação básica. Psicologia & Sociedade, 27(3), 558-568. https://dx.doi.org/10.1590/1807-03102015v27n3p558
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), evidenciam também, como os demais estudos mencionados, uma redução da sexualidade a aspectos biológicos - como reprodução, infecções e desenvolvimento -, dissociando-a das relações sociais e culturais que demarcam a expressão da sexualidade. Compreender a sexualidade como atributo biológico ou natural pode levar à negação do fato de que a escola e seus processos pedagógicos são produtores de normas de gênero e sexualidade.

Além de apontarem a ausência de conhecimento e de formação dos profissionais da educação sobre as temáticas gênero e sexualidade, as pesquisas revisadas demonstram a permanência de discursos e posições conservadores nessas instituições e na sociedade3 3 Marcon, Prudêncio e Gesser (2016) também citam trabalhos empíricos que verificaram a situação de professores que realizaram capacitação em questões ligadas à sexualidade, mas passaram por dificuldades no contexto escolar, com seus colegas de trabalho. Isso indica que muitos(as) professores(as) têm buscado informações e capacitação, mas enfrentam dificuldades e desafios para realizarem o debate sobre sexualidade e gênero, uma vez que muitas escolas continuam fortemente marcadas por valores conservadores. . Desse modo, podemos perceber o quanto os valores presentes nos projetos do Movimento Escola sem Partido parecem nutrir e reforçar o conservadorismo já existente na sociedade, dificultando ações voltadas ao debate sobre os direitos sexuais e reprodutivos. Do mesmo modo, deve-se compreender que a ofensiva conservadora que se expressa no Movimento Escola sem Partido também tem como mote a oposição ao avanço de políticas públicas de educação relacionadas ao reconhecimento da diversidade sexual e de gênero nas últimas décadas.

Essa tendência - imbricada nas reações de resistência às políticas públicas atentas às demandas de gênero e sexualidade - denota a força dos tabus que ainda medeiam a escola, impedindo-a de realizar a desbarbarização da humanidade. Este propósito que, para Adorno (1967/1995)Adorno, T. W. (1995). Educação após Auschwitz. In T. W. Adorno, Educação e emancipação (W. L. Maar, trad., pp. 119-138). Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1967), deveria ser o objetivo da escola, somente seria atingido mediante uma educação que reconhecesse a complexidade do psiquismo humano e dos processos por meio dos quais se pode chegar à formação cultural. Ao negligenciar as relações de dominação subjacentes à rígida disposição dos gêneros e negar a livre expressão da sexualidade que permeia o desenvolvimento humano caracterizado pela renúncia pulsional (Freud, 1930/2010Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) (P. C. Souza, trad., Vol. 18, pp. 13-122). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)), essa tendência conservadora mantém os padrões de repressão que há muito se mostraram intoleráveis para o psiquismo humano; o qual, assim, tende a se tornar cada vez mais ressentido com a cultura.

Os estratagemas do movimento Escola sem Partido e o conservadorismo moral

Uma questão não debatida por Marcon, Prudencio e Gesser (2006Marcon, A. N., Prudêncio, L. E. V., & Gesser, M. (2016). Políticas públicas relacionadas à diversidade sexual na escola. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 291-301.), mas importante para compreender a disparidade entre a prática pedagógica das escolas e as políticas públicas e formativas das últimas décadas é a disseminação de discursos religiosos na escola. Em vez de priorizar o esclarecimento e a formação cultural necessários para formação de indivíduos capazes de conviver com orientações que são diversas das suas, o que poderia resultar em uma contraposição à barbárie nazista outrora produzida pelo Terceiro Reich (Adorno, 1967/1995Adorno, T. W. (1995). Educação após Auschwitz. In T. W. Adorno, Educação e emancipação (W. L. Maar, trad., pp. 119-138). Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1967)), a educação exclusivamente orientada pelo interesse moral de famílias, educadores e políticos conservadores não pode promover a reflexão necessária, pois permanece presa à repetição dogmática de princípios alheios à realidade social e às suas contradições. A esse respeito, J. A. Sepulveda e D. Sepulveda (2016Sepulveda, J. A., & Sepulveda, D. (2016). O pensamento conservador e sua relação com práticas discriminatórias na educação: A importância da laicidade. Revista Teias, 17(47), 141-154.) consideram que o discurso religioso se encontra disseminado nas escolas, já que historicamente elas estiveram ligadas a instituições religiosas e, ainda hoje, carregam sua influência. Segundo eles, frente a supostas ameaças, o discurso conservador apela ao discurso religioso a fim de garantir a reprodução das relações existentes e, nesse sentido, os espaços institucionais reproduzem desigualdades historicamente engendradas.

Mesmo neutralizada em relação à crença em valores essenciais para a tradição judaico-cristã da qual derivou, a moderna religião instrumentalizada, hoje forte no Brasil e claramente vinculada a posições conservadoras, mantém sua força em relação a necessidades psicológicas muito arraigadas, historicamente mobilizadas por aquela tradição, como é o caso do sentimento de desamparo diante do mundo ameaçador, o qual, segundo Freud (1927/2014Freud, S. (2014). O futuro de uma ilusão. In S. Freud, Obras completas: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929) (P. C. Souza, trad., Vol. 17, pp. 232-301). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927)), remontaria à demanda infantil por proteção “paterna”, que pode ser transposta para a figura de Deus e encarnada por autoridades religiosas que se apresentam como seus representantes. Por meio da associação entre autoridade divina, desamparo e mediação institucional da igreja “engajada politicamente”, algumas tendências religiosas hoje predominantes, sobretudo o cristianismo neopentecostal e carismático, imiscuem-se na organização da vida e das instituições laicas, dentre as quais, a escola. Com isso, estendem sua oferta de proteção divina diante da realidade caótica e exigem como contrapartida a adoção de preceitos morais condizentes com uma posição política conservadora, que mantém o status quo e os modos de dominação existentes.

Esse é um aspecto importante do movimento Escola sem Partido e merece atenção. No inciso V do Art. 4° do Projeto de Lei 246/2019, há a afirmação de que “o professor respeitará o direito dos pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas convicções” (Projeto de Lei nº 246, 2019Projeto de Lei nº 246, de 21 de fevereiro de 2019. (2019, 21 de fevereiro). Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190752
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
). A mesma escrita, corrente em todos os projetos de lei do movimento, aparece no anexo intitulado “Deveres do Professor”, especificamente no item 5 do mesmo projeto de lei. Entretanto, se pensarmos na justificativa dessa questão nas páginas seguintes, nota-se que, nesse ponto, há uma incoerência, precisamente no item 5: “que a liberdade de ensinar não confere ao professor o direito de... dizer aos filhos dos outros o que é certo e o que é errado em matéria de religião e de moral”. Essa perspectiva parece se pautar no entendimento de que educar equivale a inculcar dogmas, e não a pensar autonomamente.

Não obstante esse direcionamento, no plano formal, permanece ambíguo o tipo de educação moral e religiosa preconizada no Projeto de Lei nº 246/2019. Indica, apenas, que essa educação seria atrelada às crenças dos pais; ocultando, com isso, sua orientação específica e contradições quanto à pergunta: como a escola ofereceria uma educação religiosa condizente aos valores dos pais se os alunos são provenientes de famílias que podem professar diferentes crenças religiosas? Essa incoerência fica ainda mais evidente na defesa da laicidade do ensino, pois o mesmo documento afirma que o Estado Laico “não pode usar o sistema de ensino para promover valores que sejam hostis à moralidade dessa ou daquela religião” (Projeto de Lei nº 246, 2019Projeto de Lei nº 246, de 21 de fevereiro de 2019. (2019, 21 de fevereiro). Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190752
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). A despeito dessas contradições, a neutralidade é formalmente afirmada:

permitir que o governo de turno ou seus agentes utilizem o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade é dar-lhes o direito de vilipendiar e destruir, indiretamente, a crença religiosa dos estudantes, o que ofende os artigos 5°, VI e 19, I, da Constituição Federal (Projeto de Lei nº 246, 2019Projeto de Lei nº 246, de 21 de fevereiro de 2019. (2019, 21 de fevereiro). Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2190752
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).

Contraditoriamente, o mesmo projeto afirma que a escola deve transmitir valores morais e religiosos da família, mas também que, em consonância com o Estado, deve ser laica. Em um giro que articula imprecisão lógica e intenção ideológica, a proposição jurídica do movimento Escola sem Partido emprega estratégias semelhantes às que foram desenvolvidas pelo fascismo americano da década de 1930, desveladas por Adorno (1943/2009)Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943) em seu estudo sobre as técnicas psicológicas de Martin Luther Thomas. No trecho citado, destaca-se o recurso ao estratagema da última hora - que consiste em falar de uma crise, uma situação problemática e urgente que demanda atuação rápida - que, neste caso, sugere haver uma ameaça iminente de que escolas estejam “destruindo a crença religiosa dos estudantes”. Esse aspecto demonstra a incoerência existente entre o que se dispõe nos artigos e na justificativa do mesmo projeto de lei, ofuscada pela ênfase na suposta ameaça de uma iminente destruição de valores. Se considerarmos sua evidente incoerência a respeito da laicidade, podemos constatar que não há o objetivo de apresentar argumentos lógicos e consistentes, mas o apelo a estratégias que remetem ao terror e à ameaça supostamente iminentes para, com isso, obter adesão a seus projetos e ideias. Encontramos uma reprodução das estratégias típicas da propaganda fascista, cuja lógica totalitária não pretende angariar seguidores por meio do discurso racional, mas, ao contrário, orienta-se psicologicamente, mobilizando em seus receptores processos irracionais e inconscientes a fim de suscitar adesão a seu discurso (Adorno, 1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1951)).

A incoerência a respeito da laicidade, presente no projeto de lei, espelha ainda processos culturais complexos. Embora o Estado brasileiro seja considerado laico, o processo de laicização no Ocidente nunca foi isento de conflitos. Ao longo da história, a Igreja Católica apostou no controle do Estado e da população a partir das instituições, especialmente da escola, por meio do ensino religioso. Isso, por sua vez, demonstra que a escola é local de disputa e de contradições, o que não se refere apenas ao ensino religioso, mas a toda prática pedagógica que pode estar impregnada quer por elementos confessionais que privilegiam alguma(s) religião(ões) e seus valores, quer por tentativas de reafirmação da laicidade4 4 Cunha (2013, citado por Sepulveda & Sepulveda, 2017) assinalou que, embora a escola, no país, historicamente tenha sido uma instituição de disseminação da crença católica, passou a ser local de disputa de diferentes igrejas e cleros que sustentam suas próprias narrativas, dentre as quais, os menos representados são os adeptos do espiritismo, das religiões afro-brasileiras e os que não são adeptos a nenhuma religião. No entanto, em uma concepção laica, diversa do que contraditoriamente propala o projeto do movimento Escola sem Partido, a religião poderia estar presente na escola, mas de modo transdisciplinar e crítico (Sepulveda & Sepulveda, 2017). .

Nesse sentido, embora alegue a liberdade de crença e de consciência, o movimento Escola sem Partido objetiva a disseminação de valores religiosos na escola, endossando-os e impedindo que venham a ser questionados. Para isso, vale-se de técnicas que suscitam a angústia e o medo. A afirmação de que professores atacam ou “vilipendiam” a crença e os valores morais e religiosos de estudantes e de suas famílias constitui uma combinação de estratégias que se assemelham ao estratagema denominado por Adorno (1943/2009)Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943) como fait accompli, que consiste em tratar algo como dado, indubitável, evitando qualquer questionamento por parte de quem recebe discursos que empregam ideias questionáveis. Quando professados por meio do recurso à instrumentalização da religião, esses estratagemas permitem, ainda, articular o flagrante dogmatismo religioso à estereotipia incutida na lógica formal. Na justificação de outro projeto de lei do Movimento Escola sem Partido, nº 867/2015, é possível notar a nítida combinação de dois dos estratagemas descritos por Adorno (1943/2009)Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943), os quais favorecem a projeção paranoica, a rigidez dogmática, o fatalismo e a desesperança: fait accompli e hora final:

Diante dessa realidade - conhecida por experiência direta de todos os que passaram pelo sistema de ensino nos últimos 20 ou 30 anos - entendemos que é necessário e urgente adotar medidas eficazes para prevenir a prática da doutrinação política e ideológica nas escolas, e a usurpação do direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções (Projeto de Lei nº 867, 2015Projeto de Lei nº 867, de 23 de março de 2015. (2015, 23 de março). Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, o “Programa Escola sem Partido”. Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=1050668
https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb...
).

Nota-se, então, que a questão religiosa consiste em um pano de fundo que desestimula questionamentos a respeito de valores cristalizados, servindo ao interesse do Movimento Escola sem Partido de perpetuar valores conservadores na escola e, com isso, fortalecer a base de recepção de seus conteúdos políticos autoritários. Algo semelhante fora percebido por Adorno (1943/2009)Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943) a respeito de Thomas. Ele empregava um discurso tipicamente religioso para seus ouvintes porque sabia que, com isso, mobilizaria uma atitude religiosa deles diante da autoridade da religião: a predisposição a aceitar ideias autoritárias quando apoiadas nessa autoridade5 5 Adorno (1943/2009) indicou que o agitador fascista selecionava os conteúdos religiosos que serviam a seus propósitos e descartava o restante. No caso de Thomas, o que ele conservara da ortodoxia religiosa era a condenação violenta do pecador e a ideia de que a diferença entre pecador e justo estaria estabelecida de uma vez por todas. Todos os traços reconciliadores da doutrina cristã, incluindo a ideia de caridade, eram omitidos, favorecendo a vazão dos elementos negativos, como a ideia de mal, castigo, difamação do intelecto, entre outros. .

Do mesmo modo, quando o movimento Escola sem Partido apela a valores religiosos e morais, conta com a disposição das pessoas, inclusive dos pais e professores, para aceitar discursos com essa tônica de defesa de valores conservadores, ampliando assim seu alcance social e condenando o tratamento de temas que poderiam, em algum momento, questionar os valores conservadores consolidados. Nesse sentido, os temas gênero e sexualidade têm sido condenados a priori, pois sua formulação já configura oposição ao conservadorismo político e social professado por esses movimentos. Desse modo, como Adorno (1943/2009)Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943) já indicava, o antiliberalismo religioso6 6 Nesse caso, o termo antiliberalismo é empregado por Adorno para caracterizar uma atitude contrária às liberdades individuais, sobretudo àquelas relacionadas à esfera moral, e não para se referir ao liberalismo político-filosófico. funciona psicologicamente como substituto do autoritarismo político que, muitas vezes, permanece subjacente a ele (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)). Em consonância com a contraditória relação dos fiéis com seus desejos sexuais, agressivos e, principalmente, egoístas reprimidos (Freud, 1907/2015Freud, S. (2015). Atos obsessivos e práticas religiosas. In S. Freud, Obras completas: O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (1906-1909) (P. C. Souza, trad., Vol. 8, pp. 300-313). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1907)), mais do que encobrir o conservadorismo político, econômico e social, o reiterado apelo a valores morais visa a, no discurso do movimento Escola sem partido, encobrir seu propósito não declarado: a intenção autoritária de ampliar seu poder político e cultural. Conforme Adorno (1951/2015Adorno, T. W. (2015). Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista. In T. W. Adorno, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 153-189). Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1951)) pôde enfatizar em relação aos discursos religiosos de cunho fascista, nos Estados Unidos das décadas de 1930 e 1940, a imprecisão relativa aos fins políticos desses discursos é inerente a eles, pois, ao ocultar esses objetivos, mesmo quando voltados à dominação, evita-se uma confrontação direta com seu sentido.

Gênero e sexualidade como problemas centrais para o movimento Escola sem Partido

Por meio de sua negação obsessiva, gênero e sexualidade foram delimitados pelo movimento Escola sem Partido como questões fundamentais; a ponto de o rechaço a eles converter-se na reafirmação incessante de que o ensino não poderá destoar da convicção de pais ou responsáveis a respeito desses temas. Tal rechaço é um impedimento a qualquer reflexão sobre os valores políticos, sociais e morais enraizados, o que inclui valores patriarcais, machistas e heteronormativos presentes na sociedade. Nesse sentido, o atrelamento da educação política, moral e religiosa às crenças dos pais impede que a escola tenha autonomia em relação a temas imprescindíveis para a formação, restringindo-se à reprodução do conservadorismo social, religioso e político.

A proibição explícita de questões ligadas à sexualidade e ao gênero está objetivada no Projeto de Lei nº 1859/2015. Embora não se trate de um PL proposto diretamente pelo movimento Escola sem Partido, não se poderia ignorar que ele parte de entendimento muito próximo a esse, sendo, entretanto, mais claro em sua intenção sobre o tema, como também visa alterar documentos normativos importantes com base em sua orientação. Em suma, seu Art. 2º intenciona incluir o seguinte parágrafo no Art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação: “A educação não desenvolverá políticas de ensino, nem adotará currículo escolar, disciplinas obrigatórias, ou mesmo de forma complementar ou facultativa, que tendam a aplicar a ideologia de gênero, o termo ‘gênero’ ou ‘orientação sexual’” (Projeto de Lei nº 1859, 2015Projeto de Lei nº 1859, de 2015. (2015). Acrescenta Parágrafo único ao Artigo 3º da Lei 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1346799&filename=PL+1859/2015
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). Esse Art. 2º do Projeto de Lei 1859/2015 dá continuidade ao disposto no Art. 1º do mesmo projeto quanto à “proibição da adoção de formas tendentes à aplicação da ideologia de gênero ou orientação sexual na educação”. Destaca-se que, em dois do total de três artigos contidos nesse PL, a “ideologia de gênero” é equiparada à orientação sexual, sem que nenhum desses termos tenha seu significado explicitado.

Uma das características de discursos totalitários também presente nessa proposição jurídica é a imprecisão quanto a conteúdos complexos que poderiam provocar a reflexão necessária e, quiçá, um posicionamento crítico. Com isso, a não explicitação das concepções de gênero e sexualidade adotadas é uma tática desse tipo de discurso, pois qualquer entendimento teórico deixaria um lastro de objetividade com o qual seria possível confrontar. Ao contrário, o caráter vago das afirmações dificulta a oposição e estabelece uma comunicação inconsciente com os receptores dessas mensagens (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)).

Muitos dos estratagemas empregados pelo movimento Escola sem Partido estão presentes também nesse projeto de lei. O estratagema da insinuação, nomeado por Adorno como se soubésseis, também aparece articulado com o caráter vago adotado nos discursos centrais. A insinuação planejada estimula todo tipo de especulação e aguça a persecutoriedade paranoide, como se pode observar na justificação desse PL, na qual há referência a artigos e livros considerados “ameaçadores”, desde Judith Butler, passando por Marx, Engels, Horkheimer e Firestone, até as convenções da Organização das Nações Unidas (ONU):

O que verdadeiramente está acontecendo é que o conceito de ‘gênero ’ [sic] está sendo utilizado para promover uma revolução cultural sexual de orientação neo-marxista com o objetivo de extinguir da textura social a instituição familiar.... Se esta submissão [da mulher pelo homem] é consequência da biologia, não há nada a que se fazer. Mas se ela é uma construção social, ou um gênero, então, a longo prazo, ela poderá ser modificada até chegar-se à uma completa igualdade onde não haverá mais possibilidade de opressão de gênero, mas também onde não haverá mais famílias, tanto as heterossexuais como demais famílias alternativas (Projeto de Lei nº 1859, 2015Projeto de Lei nº 1859, de 2015. (2015). Acrescenta Parágrafo único ao Artigo 3º da Lei 9.394/1996, Lei de Diretrizes e Bases da Educação. Câmara dos Deputados. https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1346799&filename=PL+1859/2015
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).

Nesse trecho, por meio do estratagema da insinuação, há superposição de ideias distintas como opressão de gênero e fim das famílias, sem nenhum rigor ou cuidado com o pensamento dos autores citados. Além disso, a manifestação de explícita indignação frente a algo supostamente escandaloso também se aproxima do estratagema roupas sujas, por meio do qual a persecutoriedade vincula-se a ilações que, independentemente de sua inconsistência ou falsidade, produz o efeito de espanto diante de uma suposta grande revelação, que gera algum prazer ao receptor (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)). O que mais importa nesse discurso é que, na revelação de algo escandaloso, possa suscitar indignação e adesão à defesa da família, que supostamente estaria sendo atacada. E a revelação de algo terrível é feito de modo exagerado, o que, numa análise detida desse estímulo, explicita mais uma vez a primazia não do conteúdo, mas do método e dos efeitos psicológicos que esse enunciado deve suscitar.

Há, além disso, há a superposição da ideia de superar a condição submissa da mulher, pauta dos movimentos feministas há décadas, à outra ideia, a da suposta extinção das famílias. Essa superposição pode ser compreendida com base no estratagema o voo de ideias (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)), em que afirmações são colocadas como premissa e conclusão, enquanto, na verdade, trata-se de associações e justaposições de ideias que não se relacionam. Nesse sentido, pode-se frisar que a justificativa desses projetos ignora a reflexão sobre os conteúdos e conceitos como gênero, desigualdade de gênero e divisão sexual do trabalho, mantendo-os apenas como um marco de referência útil para afirmar o entendimento estabelecido de antemão: a preponderância dos valores conservadores.

O que é introduzido no PL 1859/2015 e nos demais projetos propostos pelo movimento Escola sem Partido é um posicionamento claro de condenação de qualquer configuração familiar que não a patriarcal, bem como de toda sexualidade que não se encaixe no padrão heteronormativo. Não se trata apenas de não reconhecer outras configurações familiares e de identidade sexual e de gênero, mas do desejo de eliminar qualquer possibilidade de diferença e de autonomia dos sujeitos. Imbuídos da secular pretensão burguesa de impor sua própria educação política a todas as classes sociais e, ainda, ecoando o mesmo temor quanto à suposta “ameaça comunista” de destruição da família burguesa (Marx & Engels, 1848/2007Marx, K., & Engels, F. (2007). O manifesto comunista (A. Pina, trad.). Boitempo. (Trabalho original publicado em 1848)), esses PLs reduzem a discussão à afirmação cega do que é convencional. A falsa alternativa por eles formulada impede o pensamento crítico: ou existe a família patriarcal como conhecemos, com papeis claramente definidos entre os gêneros, implicando submissão da mulher ao homem, ou a família será “destruída”. A ideia de caos é acionada para a defesa de valores conservadores, que então demarcam a impossibilidade de autonomia dos sujeitos na construção de relações e na expressão da sexualidade.

Além disso, a autoridade religiosa favorece o acionamento do terror que, por sua vez, estimula a submissão e a aceitação de ideias repressivas. Como exemplo, pode-se mencionar que o termo ideologia de gênero apareceu em 1998 na Conferência Episcopal da Igreja Católica, no Peru, na qual foi publicado um extenso documento sobre o tema que claramente apela para o terror. No entendimento da Igreja Católica, representado na época pelo Papa João Paulo II, “a ideologia de gênero” colabora para o “enfraquecimento da família e do casamento”. Portanto, exatamente por remeter ao terror, esse termo de inspiração religiosa conservadora tem sido utilizado também como pauta eleitoral em diversos momentos, como nas eleições presidenciais de 2018, de modo que o termo tem se mostrado capaz de suscitar um verdadeiro pânico moral (Mariano, & Gerardi, 2019Mariano, R., & Gerardi, D. A. (2019). Eleições presidenciais na América Latina em 2018 e ativismo político de evangélicos conservadores. Revista USP, (120), 61-76. https://doi.org/10.11606/issn.2316-9036.v0i120p61-76
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; Qualalou, 2019Qualalou, L. (2019). Los evangélicos e el Hermano Bolsonaro. Nueva Sociedad, 280, 68-77.; Saldaña, 2018Saldaña, P. (2018, 23 de outubro). Alavancas de Bolsonaro, Escola sem Partido e gênero têm raízes ideológicas. Folha de S. Paulo.).

Desse modo, o apelo à religião é utilizado como técnica de manipulação para atrair pessoas que se sentem descontentes e desamparadas (Freud, 1927/2014Freud, S. (2014). O futuro de uma ilusão. In S. Freud, Obras completas: Inibição, sintoma e angústia, O futuro de uma ilusão e outros textos (1926-1929) (P. C. Souza, trad., Vol. 17, pp. 232-301). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1927); 1930/2010Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) (P. C. Souza, trad., Vol. 18, pp. 13-122). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)) para o seio de grupos religiosos que, a despeito do que declaram, têm claras pretensões políticas, e de grupos políticos que se apoiam cinicamente na autoridade religiosa, valendo-se da instrumentalização de seu conteúdo e da apropriação de sua autoridade, por meio da qual justificam o autoritarismo vivido na realidade e que, ademais, é almejado por suas lideranças.

Em consonância com esse processo, o PL 1859/2015 apela à autoridade religiosa para definir e condenar o conceito de gênero; o que consiste em utilizar a religião como fundamento discursivo moral da posição política do projeto:

A essência da questão foi muito bem exposta pelo Padre José Eduardo de Oliveira, professor de Teologia Moral, em uma entrevista concedida à agência Zenit e recentemente publicado em livro intitulado “Caindo no Conto de Gênero”: “Sintetizando em poucas palavras, a ideologia de gênero consiste no esvaziamento jurídico do conceito de homem e de mulher, e as consequências são as piores possíveis. Conferindo status jurídico à chamada “identidade de gênero” não há mais sentido falar em “homem” e “mulher”; falar-se-ia apenas de “gênero”, ou seja, a identidade que cada um criaria para si” (Projeto de Lei nº 1849, 2015, p. 11).

Associando a ideia de degeneração à confusão iminente, como fica claro nesse trecho do Projeto de Lei nº 1850/2015, utiliza-se mais uma vez do estratagema última hora. Revestido pelo poder concedido pela autoridade religiosa, estigmatiza como ameaçador e perigoso qualquer debate sobre sexualidade e gênero na escola. Junto à definição do que seria perigoso, instiga-se também o medo7 7 Nesse mesmo sentido, acionando o narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1930/2010), discursos conservadores como o da citação acima comentada empregam o estratagema ovelha e cervos (Adorno, 1943/2009), que consiste em retratar o out-group, ou seja, quem é adversário ou pensa diferente, como inimigo; de modo que o in-group, no caso os conservadores ou que assim se consideram, passam a ser percebidos (e a se perceberem) como portadores de atributos nobres e admiráveis. , afirmando, como fica claro nessa última citação, que o reconhecimento da homossexualidade, bem como a representatividade política de mulheres e pessoas LGBTQIAP+, levaria à ruptura das famílias e destruiria seus vínculos (Sepulveda & Sepulveda, 2009). Comprometido assim com o poder estabelecido, o movimento conservador preconiza o casamento heterossexual monogâmico e a família patriarcal como normas e, com isso, favorece a manutenção das hierarquias sociais, morais e políticas, reproduzindo relações hierárquicas e fomentando o preconceito e a exclusão.

Desse modo, ao buscarem impedir o debate escolar sobre assuntos tão importantes para a formação, como sexualidade e gênero, os movimentos conservadores criam uma atmosfera hostil a qualquer menção que se faça a eles; de modo que termos como sexualidade, educação sexual e gênero passam a suscitar temor. Com isso, esses movimentos adquirem um caráter totalitário, pois, à medida que não permitem discussões e possibilidades de elaborar as contradições, impõem a dominação absoluta e anulam a possibilidade de conviver com a diferença (Adorno, 1946/2015Adorno, T. W. (2015). Antisemitismo e propaganda fascista. In T. W. Adorno, Ensaios sobre psicologia social e psicanálise (V. Freitas, trad., pp. 137-152). Editora Unesp. (Trabalho original publicado em 1946)) e de experimentar a formação como um processo de identificação e de diferenciação, somente possível por meio do contato com as particularidades da diversidade humana. O conteúdo religioso, portanto, é associado a estratagemas e empregado como um meio para reafirmar valores conservadores morais e políticos, tomando a realidade existente e as relações de poder como únicas possíveis, de modo que as relações desiguais de gênero e os tabus sobre a sexualidade se perpetuem, dificultando a existência de espaços de discussão e formação.

Considerações finais

Ainda que os projetos de lei citados não tenham sido aprovados na esfera federal, o discurso do movimento Escola sem Partido, assim como o de outros movimentos também conservadores e autoritários, têm impactado significativamente o campo das políticas públicas de educação. Vide o Plano Nacional de Educação, de 2014, que em sua primeira versão pretendia promover a igualdade racial, de gênero e de orientação sexual, mas que, ao passar por ajustes em sua votação na Câmara e no Senado, sofreu a supressão desses propósitos (Reis & Eggert, 2017Reis, T., & Eggert, E. (2017) Ideologia de gênero: Uma falácia construída sobre os planos de educação brasileiros. Educação & Sociedade, 38(138), 9-26. https://doi.org/10.1590/es0101-73302017165522
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), uma vez que políticos conservadores vetaram qualquer menção a esses termos, acusando o Plano de reiterar a suposta “ideologia de gênero”. O que vem se observando, portanto, são ações de setores conservadores em defesa de sua perspectiva moral e política por meio da instrumentalização da religião, da difamação e da propagação de informações distorcidas, além do apelo a profundas necessidades psicológicas. Além disso, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC)Brasil. (2017). Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Ministério da Educação. http://basenacionalcomum.mec.gov.br/
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foi publicada em 2017 sem quaisquer referências à “identidade de gênero” e à “orientação sexual”, dado que movimentos conservadores impediram a menção a esses temas, que são essenciais na luta por equidade e representatividade.

Em levantamento da Federação Internacional do Planejamento Familiar, feito em 2015, no Brasil, México, Chile e Argentina, o Brasil despontou como um dos países que menos apresentava a educação sexual em seus currículos escolares. O estudo concluiu também existir forte presença da religião nesses países, de modo a afetar o desenvolvimento de políticas públicas relacionadas a contraceptivos (Levorato & Pereira, 2018Levorato, G. F., & Pereira, M. (2018, 7 de setembro). Brasil está atrás de vizinhos em educação sexual, aponta estudo. Portal Comunicare. https://www.portalcomunicare.com.br/brasil-esta-atras-de-vizinhos-em-educacao-sexual-aponta-estudo/
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). Em consonância com essa perspectiva, no ano de 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos promoveu uma campanha destinada a combater a gravidez na adolescência por meio da abstinência ou do adiamento das relações sexuais8 8 Com o investimento de 3,5 milhões de reais e o slogan “Tudo tem seu tempo, adolescência primeiro, gravidez depois” (“Governo lança campanha”, 2020), a campanha conjunta com o Ministério da Saúde estendeu-se por três meses nas redes sociais, televisão aberta e outdoors, estimulando, em consonância com antigos tabus sexuais (Adorno, 1965/1995), a condenação implícita das relações sexuais na adolescência. . Essa inflexão para o controle moral das questões de sexualidade e gênero revela que o fundamentalismo religioso está imbricado nas políticas públicas de modo a repelir a consciência acerca da necessidade de uma educação sexual que confira autonomia às pessoas e considere seus direitos sexuais e reprodutivos.

O conservadorismo moral que se incrusta atualmente na esfera das políticas públicas, como vimos, está em plena sintonia com o movimento Escola sem Partido e possui nítida afinidade com o que é expresso por grupos religiosos conservadores, configurando uma espécie de autoritarismo dos costumes; e reverte-se, ainda, em autoritarismo político à medida que cerceia as possibilidades de decisão e de escolha das pessoas. Ao reproduzir a lógica dos sistemas totalitários, essas tendências reduzem as pessoas a autômatos incapazes de tomar decisões e suscetíveis ao direcionamento externo, portanto, em tutelados.

Essa tendência regressiva se manifesta também na política externa brasileira. Em reuniões da ONU, a postura política brasileira relativa à educação sexual tem sido similar à de países como a Arábia Saudita. Nas discussões da ONU a respeito das medidas para banir a prática da mutilação genital feminina no mundo, o governo Bolsonaro relutou em propor o veto a qualquer menção à educação sexual e reprodutiva nesses documentos (Chade, 2020Chade, J. (2020, 15 de junho). Brasil leva religião à ONU e encaminha projetos que citam educação sexual. Uol. https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/07/15/evangelicos-dao-o-tom-da-postura-internacional-do-brasil.htm
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). Há consonância entre essa perspectiva relativa às questões internacionais e os posicionamentos internos desse governo, cuja elaboração passou por ministros e secretários evangélicos que, inclusive, se denominam como “fundamentalistas”9 9 De acordo com reportagem do Estado de Minas (“Governo lança campanha”, 2020), ao lançar a campanha, a Ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que a iniciativa “não nasceu de um insight de uma ministra fundamentalista” e que a pasta não defende a abstinência sexual como método contraceptivo exclusivo. Entretanto, o Ministério desse governo não apresentou outras propostas e ações num país que ainda apresenta uma das maiores taxas de gravidez na adolescência na América Latina (“Brasil tem gravidez”, 2018). No governo Bolsonaro, o Ministério da Educação e o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos foram coordenados por ministros declaradamente evangélicos. Além disso, o governo Bolsonaro, em dois anos, nomeou outros evangélicos para ministérios, além das nomeações de segundo escalão, sendo que Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é o mais ocupado por evangélicos (Cunha, 2019), demonstrando assim uma orientação política conservadora do governo, sobretudo no que toca à negação dos direitos sexuais e reprodutivos. e avessos às políticas internacionais sobre direitos sexuais e reprodutivos. Dentre eles, a secretária do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Angela Gandra, que possui circulação nos meios americanos mais conservadores, associou-se ao então secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, convalidando o entendimento de que direitos humanos devem ser revistos de acordo com enfoque específico que, segundo ele, seria proveniente de Deus (Chade, 2020Chade, J. (2020, 15 de junho). Brasil leva religião à ONU e encaminha projetos que citam educação sexual. Uol. https://noticias.uol.com.br/colunas/jamil-chade/2020/07/15/evangelicos-dao-o-tom-da-postura-internacional-do-brasil.htm
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).

Em posicionamentos como o de Gandra, observam-se traços específicos do autoritarismo político que se sustenta na religião, em especial, a intolerância e a exclusividade (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)). Além disso, é notória a habilidade do discurso político apoiado na religião em seduzir as pessoas de inclinações religiosas fundamentalistas e transformar a filiação religiosa em pertença a uma orientação política e em submissão a mesma. Assim, o autoritarismo presente nesses movimentos conservadores revela sua intenção subjacente de instituir uma ordem social e política mais repressiva e totalitária; e isso é o que fazem a partir da instauração de uma atmosfera agressiva, ao incentivar o denuncismo na escola e dificultar a existência de debates e diálogos essenciais à formação.

Nesse cenário pouco favorável à inclusão das temáticas gênero e diversidade sexual na escola, é importante - tal como pretendemos realizar neste artigo - desconstruir e explicitar os estratagemas dos discursos conservadores, como aqueles presentes nos projetos de lei analisados, e afirmar a urgência e importância de uma formação democrática. Uma formação como essa requer o esclarecimento das massas que têm sucumbido aos apelos tecnicamente bem planejados feitos por líderes cínicos que as manipulam em função de seus interesses motivados pela dominação. A instrumentalização abusiva da religião como base da manipulação da fé das massas, convertendo-a em meio de manipulação política, indica que, provavelmente, o mesmo objetivo subjacente perseguido pelos oradores religiosos de orientação fascista nos EUA do período que antecedeu a Segunda Guerra (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)) é também o objetivo dos líderes políticos religiosos que hoje, desprovidos de crença, incitam a crença cega como forma de promover a submissão a uma autoridade voltada à opressão brutal e sádica.

Referências

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  • Projeto de Lei nº 193, de 3 de maio de 2016. (2016, 3 de maio). Inclui entre as diretrizes e bases da educação nacional, de que trata a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, o “Programa Escola sem Partido”. Senado Federal. https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125666
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  • Weber, M. (2001). A ética protestante e o espírito do capitalismo (V. E. Alves, trad.). Centauro. (Trabalho original publicado em 1904)
  • 1
    Pode-se compreender o Programa Gênero e diversidade na escola como orientado pela necessidade de formação de professores nas temáticas de gênero, desigualdade de gênero, orientação sexual e questões étnico-raciais, numa tentativa de superação de preconceitos e trabalho da diversidade humana com os docentes (Brasil, 2008Brasil. (2008). Gênero e diversidade sexual na escola: reconhecer diferenças e superar preconceitos. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade [SECAD]. Ministério da Educação. http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/bib_cad4_gen_div_prec.pdf
    http://pronacampo.mec.gov.br/images/pdf/...
    ).
  • 2
    No geral, são experiências realizadas por profissionais de Enfermagem, Medicina e Psicologia; e nos casos realizados dentro da escola, são feitas por professores de Ciências e de Biologia (Furlanetto et al., 2018Furlanetto, M. F., Lauermann, F., Costa, C. B., & Marin, A. H. (2018). Educação sexual em escolas brasileiras: Revisão sistemática da literatura. Cadernos de Pesquisa, 48(168), 550-571. https://doi.org/10.1590/198053145084
    https://doi.org/10.1590/198053145084...
    ).
  • 3
    Marcon, Prudêncio e Gesser (2016Marcon, A. N., Prudêncio, L. E. V., & Gesser, M. (2016). Políticas públicas relacionadas à diversidade sexual na escola. Psicologia Escolar e Educacional, 20(2), 291-301.) também citam trabalhos empíricos que verificaram a situação de professores que realizaram capacitação em questões ligadas à sexualidade, mas passaram por dificuldades no contexto escolar, com seus colegas de trabalho. Isso indica que muitos(as) professores(as) têm buscado informações e capacitação, mas enfrentam dificuldades e desafios para realizarem o debate sobre sexualidade e gênero, uma vez que muitas escolas continuam fortemente marcadas por valores conservadores.
  • 4
    Cunha (2013, citado por Sepulveda & Sepulveda, 2017) assinalou que, embora a escola, no país, historicamente tenha sido uma instituição de disseminação da crença católica, passou a ser local de disputa de diferentes igrejas e cleros que sustentam suas próprias narrativas, dentre as quais, os menos representados são os adeptos do espiritismo, das religiões afro-brasileiras e os que não são adeptos a nenhuma religião. No entanto, em uma concepção laica, diversa do que contraditoriamente propala o projeto do movimento Escola sem Partido, a religião poderia estar presente na escola, mas de modo transdisciplinar e crítico (Sepulveda & Sepulveda, 2017).
  • 5
    Adorno (1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)) indicou que o agitador fascista selecionava os conteúdos religiosos que serviam a seus propósitos e descartava o restante. No caso de Thomas, o que ele conservara da ortodoxia religiosa era a condenação violenta do pecador e a ideia de que a diferença entre pecador e justo estaria estabelecida de uma vez por todas. Todos os traços reconciliadores da doutrina cristã, incluindo a ideia de caridade, eram omitidos, favorecendo a vazão dos elementos negativos, como a ideia de mal, castigo, difamação do intelecto, entre outros.
  • 6
    Nesse caso, o termo antiliberalismo é empregado por Adorno para caracterizar uma atitude contrária às liberdades individuais, sobretudo àquelas relacionadas à esfera moral, e não para se referir ao liberalismo político-filosófico.
  • 7
    Nesse mesmo sentido, acionando o narcisismo das pequenas diferenças (Freud, 1930/2010Freud, S. (2010). O mal-estar na civilização. In S. Freud, Obras completas: O mal-estar na civilização, Novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936) (P. C. Souza, trad., Vol. 18, pp. 13-122). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1930)), discursos conservadores como o da citação acima comentada empregam o estratagema ovelha e cervos (Adorno, 1943/2009Adorno, T. W. (2009). La técnica psicológica de las alocuciones radiofónicas de Martin Luther Thomas. In T. W. Adorno. Escritos sociológicos II. Primera Parte (A. G. Ruiz, trad., pp. 11-146). Akal. (Trabalho original publicado em 1943)), que consiste em retratar o out-group, ou seja, quem é adversário ou pensa diferente, como inimigo; de modo que o in-group, no caso os conservadores ou que assim se consideram, passam a ser percebidos (e a se perceberem) como portadores de atributos nobres e admiráveis.
  • 8
    Com o investimento de 3,5 milhões de reais e o slogan “Tudo tem seu tempo, adolescência primeiro, gravidez depois” (“Governo lança campanha”, 2020Governo lança campanha que prega abstinência sexual contra gravidez precoce. (2020, 3 de fevereiro). Jornal Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/02/03/interna_nacional,1119158/governo-lanca-campanha-prega-abstinencia-sexual-gravidez-precoce.shtml
    https://www.em.com.br/app/noticia/nacion...
    ), a campanha conjunta com o Ministério da Saúde estendeu-se por três meses nas redes sociais, televisão aberta e outdoors, estimulando, em consonância com antigos tabus sexuais (Adorno, 1965/1995Adorno, T. W (1995). Tabus acerca do magistério. In T. W. Adorno, Educação e Emancipação (W. L. Maar, trad., pp. 97-117). Paz e Terra. (Trabalho original publicado em 1965)), a condenação implícita das relações sexuais na adolescência.
  • 9
    De acordo com reportagem do Estado de Minas (“Governo lança campanha”, 2020Governo lança campanha que prega abstinência sexual contra gravidez precoce. (2020, 3 de fevereiro). Jornal Estado de Minas. https://www.em.com.br/app/noticia/nacional/2020/02/03/interna_nacional,1119158/governo-lanca-campanha-prega-abstinencia-sexual-gravidez-precoce.shtml
    https://www.em.com.br/app/noticia/nacion...
    ), ao lançar a campanha, a Ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, Damares Alves, afirmou que a iniciativa “não nasceu de um insight de uma ministra fundamentalista” e que a pasta não defende a abstinência sexual como método contraceptivo exclusivo. Entretanto, o Ministério desse governo não apresentou outras propostas e ações num país que ainda apresenta uma das maiores taxas de gravidez na adolescência na América Latina (“Brasil tem gravidez”, 2018Brasil tem gravidez na adolescência acima da média latino-americana, diz OMS. (2018, 1 de março). G1 Globo. https://g1.globo.com/bemestar/noticia/brasil-tem-gravidez-na-adolescencia-acima-da-media-latino-americana-diz-oms.ghtml
    https://g1.globo.com/bemestar/noticia/br...
    ). No governo Bolsonaro, o Ministério da Educação e o Ministério da Família, Mulher e Direitos Humanos foram coordenados por ministros declaradamente evangélicos. Além disso, o governo Bolsonaro, em dois anos, nomeou outros evangélicos para ministérios, além das nomeações de segundo escalão, sendo que Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos é o mais ocupado por evangélicos (Cunha, 2019Cunha, M. (2019, 9 de outubro). Evangélicos conservadores são, hoje, prioridade no governo Bolsonaro. Carta Capital. https://www.cartacapital.com.br/blogs/dialogos-da-fe/evangelicos-conservadores-sao-hoje-prioridade-no-governo-bolsonaro/
    https://www.cartacapital.com.br/blogs/di...
    ), demonstrando assim uma orientação política conservadora do governo, sobretudo no que toca à negação dos direitos sexuais e reprodutivos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2021
  • Aceito
    22 Jul 2022
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