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Identidade Profissional do Psicólogo Judiciário: Um Estudo sobre Configurações Identitárias

Forensic Psychologist´s Professional Identity: A Study about Identity Configurations

Identidad Profesional del Psicólogo Forense: Un Estudio sobre Configuraciones de Identidad

Resumo

Este estudo objetivou descrever a identidade profissional de psicólogos judiciários, partindo do cenário contemporâneo da Psicologia Jurídica brasileira, contexto que envolve crises e conflitos sobre a forma de responder a atribuições e demandas do campo legal. Pela perspectiva da sociologia das identidades profissionais de Claude Dubar, sustenta-se a hipótese de que a identidade profissional do psicólogo judiciário depende de estratégias de compatibilização entre o pertencimento à categoria e as atribuições legais e institucionais. Participaram 95 psicólogos do quadro ativo do Tribunal de Justiça de São Paulo, que responderam a um formulário online sobre a percepção de si e do campo de atuação. Os dados foram submetidos à análise de conteúdo. Os resultados indicam a saliência da avaliação psicológica e da interdisciplinaridade na identidade profissional, e as rupturas identitárias diante de práticas verificatórias. Tais achados apontam a necessidade de participação da categoria na construção de suas atribuições; e dificuldades para o exercício das funções por limitações à autonomia profissional.

Palavras-chave:
Identidade Profissional; Psicologia Jurídica; Psicologia Forense; Identidade Social

Abstract

This study aimed to describe the professional identity of forensic psychologists, considering Brazil’s Legal Psychology contemporary scenario which relates to a critical issues on how practitioners respond the demands of the legal system. Based on Claude Dubar’s sociology of professional identities, we support the hypothesis that forensic psychologists’ professional identity depends on strategies of compatibilization between belonging their reference group and the institutional attributions. There were 95 participants, all from the current staff of the Court of Justice of the state of São Paulo, who answered an online form. The data were subjected to content analysis. The results indicate a professional identity with noted salience on psychological assessment and interdisciplinarity, and the identity crises regarding verification practices. Such findings highlight the importance of practitioners taking part on the construction of their own tasks.

Keywords:
Professional Identity; Legal Psychology; Forensic Psychology; Social Identity

Resumen

Este estudio tuvo como objetivo describir la identidad profesional de los psicólogos forenses, considerando el escenario de la Psicología Jurídica brasileña, que se relaciona con una crisis sobre si estos profesionales responden a las demandas del sistema legal. Teniendo en cuenta la sociología de las identidades profesionales de Claude Dubar, sostenemos la hipótesis de que

la identidad profesional de los psicólogos forenses depende de estrategias de compatibilización entre la pertenencia a su grupo profesional y a instituciones. Participaron 95 psicólogos, quienes actuaban en el Tribunal de Justicia del Estado de São Paulo, a los cuales se aplicó un formulario en línea. Los datos se sometieron a análisis de contenido. Los resultados indican una identidad profesional saliente en cuanto a la evaluación psicológica y la interdisciplinariedad, pero también crisis de identidad en relación con las prácticas de verificación. Tales resultados señalan la importancia de que la categoría participe en la construcción de sus propias atribuciones.

Palabras clave:
Identidad Profesional, Psicología Jurídica; Psicología Forense, Identidad Social

Introdução

A Psicologia Jurídica, no Brasil, é considerada uma área de especialidade pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP) desde o ano 2000. Esse reconhecimento, mais que um marco situacional da Psicologia na interface com o Direito, a lei e a justiça, afirma a emergência de um campo do conhecimento psicológico, com desenvolvimento de práticas singulares, e que constitui uma possibilidade de responder a demandas específicas da sociedade. Muito embora as primeiras contribuições e aplicações sistematizadas da Psicologia na relação com o Direito tenham sido lançadas ainda na primeira metade do século XX por expoentes como Hugo Münsterberg (Schultz & Schultz, 2000Schultz, D. P., & Schultz, S. E. (2000). O legado do funcionalismo: A psicologia aplicada. In D. P. Schultz, & S. E. Schultz. História da psicologia moderna (11a ed., pp. 174-209). Cultrix.) e Emilio Mira y López, entre as décadas de 1940 e 1950, no Brasil (Brito, 1993Brito, L. M. T. (1993). Separando: Um estudo sobre a atuação do psicólogo nas varas de família (3a ed.). Relume Dumará.), a área só veio a se expandir entre as décadas de 1980 (Brigham, 1999Brigham, J. C. (1999). What is forensic psychology, anyway? Law and Human Behavior, 23, 273-298. https://doi.org/10.1023/A:1022304414537
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) e de 1990 (Brito, 2012Brito, L. M. T. (2012). Anotações sobre a psicologia jurídica. Psicologia: Ciência e Profissão, 32, 194-205. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500014
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). É, portanto, uma área relativamente nova que, embora não se restrinja ao exercício da profissão nos órgãos do Poder Judiciário1 1 O Poder Judiciário, no Brasil, é um dos três poderes da União, ladeado pelos poderes Executivo e Legislativo. Ao Judiciário, compete aplicar a lei e o Direito a demandas que lhe são dirigidas por meio de processos judiciais. (American Psychological Association [APA], 2013American Psychological Association. (2013). Specialty guidelines for forensic psychology. American Psychologist, 68(1), 7-19. https://doi.org/10.1037/a0029889
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; CFP, 2019Conselho Federal de Psicologia. (2019). Referências técnicas para atuação de psicólogas/os em varas de família. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. (2013). Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça. TJSP. https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=141174
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; Lago, Amato, Teixeira, Rovinski, & Bandeira, 2009Lago, V. M., Amato, P., Teixeira, P. A., Rovinski, S. L. R., & Bandeira, D. R. (2009). Um breve histórico da psicologia jurídica no Brasil e seus campos de atuação. Estudos de Psicologia (Campinas), 26(4), 483-491. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2009000400009
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), teve na entrada de psicólogos naquelas instituições um fato determinante para seu desenvolvimento.

Feitas tais considerações, este estudo objetivou descrever a construção da identidade profissional do psicólogo que atua no Poder Judiciário, cargo público em que costuma ser designado como psicólogo judiciário. Na sequência, serão desenvolvidos os seguintes núcleos temáticos a respeito do construto apontado: a identidade profissional do psicólogo e, especificamente, do psicólogo jurídico no contexto do Tribunal de Justiça; e as crises definicionais e identitárias associadas à construção dessa prática no Brasil.

No caso da Psicologia em interface com a Justiça no Brasil, o crescimento da área reflete inovações do campo legislativo e reformulações do papel do Estado com a redemocratização do país (Bernardi, 1999Bernardi, D. C. F. (1999). Histórico da inserção do profissional psicólogo no tribunal de justiça do estado de São Paulo. In L. M. T. Brito (Org.), Temas de psicologia jurídica (4a ed., pp. 103-131). Relume Dumará.), levando à entrada de psicólogos nos Tribunais de Justiça como auxiliares da prestação jurisdicional sob a previsão legal do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que obrigou o Poder Judiciário a compor equipes interprofissionais. A entrada do psicólogo no Judiciário, antes do marco legal do ECA, chegou a se dar por cessão de outros serviços públicos, desvios de função (Brito, 2012Brito, L. M. T. (2012). Anotações sobre a psicologia jurídica. Psicologia: Ciência e Profissão, 32, 194-205. https://doi.org/10.1590/S1414-98932012000500014
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) ou, ainda, por atividades voluntárias e contratações pontuais sem concurso público (Fávero, Melão, & Jorge, 2015Fávero, E. T., Melão, M. J. R., & Jorge, M. R. T. (2015). O serviço social e a psicologia no Judiciário: Construindo saberes, conquistando direitos. Cortez.).

A institucionalidade da Psicologia nas engrenagens da organização judiciária, no entanto, não se estabeleceu sem colisões e tensões entre a Psicologia e o Direito, sobretudo quanto ao conhecimento, às tarefas e ao papel dos psicólogos diante de demandas dos processos judiciais, e às especificidades da Psicologia. Comumente acionados para desenvolver avaliações psicológicas para fins de tomada de decisão jurídica (Rovinski, 2013Rovinski, S. L. R. (2013). Fundamentos da perícia psicológica forense. Vetor.), os serviços psicológicos naquele espaço foram se destacando com atividades de cunho probatório a ponto de a perícia psicológica ganhar centralidade na área e de a própria demanda por avaliações periciais ser interpretada como natural (Brito, 1999Brito, L. M. T. (1999). Rumos e rumores da Psicologia Jurídica. In A. M. Jacó-Vilela & D. Mancebo (Orgs.), Psicologia social: Abordagens sócio-históricas e desafios contemporâneos (pp. 221-233). EdUERJ.). Nessa perspectiva, alguns Tribunais de Justiça chegam inclusive a equacionar o trabalho do psicólogo em seus quadros à atividade pericial, como é o caso de São Paulo (Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo [CGJ-SP], 2013).

Se, por um lado, a Psicologia Jurídica no Brasil se consolidou, ao longo das três últimas décadas, como vetor de importante conhecimento sobre a subjetividade, o comportamento, e práticas sociais junto às instituições jurídicas, por outro, abriram-se espaços para questões sobre a finalidade e a natureza desse trabalho, com interrogações sobre a Psicologia como dispositivo de produção de verdade. Nesse sentido, Arantes (2013Arantes, E. M. M. (2013). Mediante quais práticas a psicologia e o direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar. In C. M. B. Coimbra, L. S. M. Ayres, & L. M. Nascimento (Orgs.), Pivetes: Encontros entre a psicologia e o judiciário (pp. 131-148). Juruá.) chama de “mal-estar” (p. 131) o estado de coisas vivido por psicólogos que atuam no Judiciário quanto a dúvidas sobre o beneficiário do serviço psicológico e sobre as condições de oferta de escuta psicológica nos processos judiciais. Em outro texto, a mesma autora questiona a imposição de demandas processuais exteriores às diretrizes do exercício profissional da Psicologia como uma forma de tutela da profissão, subjugando-a ao Direito (Arantes, 2019Arantes, E. M. M. (2019). Psicologia tutelada? Considerações sobre participação democrática e pauta da criança e do adolescente. In Conselho Federal de Psicologia (Org.), Discussões sobre depoimento especial no sistema conselhos de psicologia (pp. 38-56).) e sustentando a função verificatória do trabalho do psicólogo. Enquanto isso, autores como Brandão (2016Brandão, E. P. (2016). Uma leitura da genealogia dos poderes sobre a perícia psicológica e a crise atual na psicologia jurídica. In E. P. Brandão (Org.), Atualidades em psicologia jurídica (pp. 35-52). Nau.) e Moreira e Soares (2019Moreira, L. E., & Soares, L. C. E. C. (2019). Psicologia jurídica: Notas sobre um novo lobo mau da Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão , 39. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225555
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) vêm levantando questões afetas a uma possível descaracterização da profissão frente a demandas do campo jurídico.

Assim, é possível reconhecer cenário em que, de um lado, o trabalho dos psicólogos judiciários, no Brasil, já parece apropriado pelas organizações judiciárias, enquanto, de outro, ainda se observam impasses sobre como o psicólogo constrói seu modo de agir, seu papel profissional (o que esse profissional faz) e sua identidade profissional (como esse profissional internaliza o trabalho e configura, com base nele, um autoconceito). Tal panorama é complexificado pelo influxo de prescrições institucionais que também atribuem identidades, como a de perito, inquiridor, entrevistador, auxiliar da Justiça, técnico, analista judiciário, entre outras formas de apresentação da atuação profissional nesse campo.

Por essa acepção, a identidade não se apresenta como um dado natural, mas que emerge das relações. Bauman (2005Bauman, Z. (2005). Identidade: Entrevista a Benedetto Vecchi. Zahar.) afirma a identidade como um tema político que envolve disputas quanto ao que será reconhecido e ao que, inversamente, será excluído. Dessa forma, o “ser” envolve também uma definição de “não-ser” e, para o autor, é por meio dessa dicotomia que a sociedade e suas instituições sustentariam práticas de identidade pelas quais indivíduo e sociedade manteriam a ilusão da liberdade para se autodefinir, sendo justamente essa autoafirmação uma forma de prescrever quais identidades serão (ou não) reconhecidas.

De acordo com estudo de revisão da literatura de Ruvalcaba-Coyaso, Uribe Alvarado e Gutiérrez García (2011Ruvalcaba-Coyaso, J., Uribe Alvarado, I., & Gutiérrez García, R. (2011). Identidad e identidade profesional: Acercamiento conceptual e investigación contemporánea. CES Psicología, 4(2), 82-102. https://revistas.ces.edu.co/index.php/psicologia/article/view/1254
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), o temário da identidade se apoia em teorias biológicas e psicossociais (essa segunda categoria, para os autores, contempla as teorias sociológicas). As teorias biológicas explicam a identidade como parte do desenvolvimento humano, em geral ligada à personalidade ou outras instâncias internas, enquanto as teorias psicossociais e sociológicas propõem a identidade como resultado de processos inter e intragrupais (Ruvalcaba-Coyaso et al., 2011Ruvalcaba-Coyaso, J., Uribe Alvarado, I., & Gutiérrez García, R. (2011). Identidad e identidade profesional: Acercamiento conceptual e investigación contemporánea. CES Psicología, 4(2), 82-102. https://revistas.ces.edu.co/index.php/psicologia/article/view/1254
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). Sob essa perspectiva, a identidade pessoal seria constantemente reelaborada com movimentos de pertencimento a determinadas categorias sociais.

Pelo aspecto da socialização, pode-se pensar a identidade profissional como uma “síntese identificatória desenvolvida na contínua interação entre fatores internos e externos” (Ribeiro, 2011Ribeiro, M. A. (2011). Orientação profissional: Uma proposta de guia terminológico. In M. A. Ribeiro & L. L. Melo-Silva (Orgs.), Compêndio de orientação profissional e de carreira: Perspectivas históricas e enfoques teóricos clássicos e modernos (Vol. 1, pp. 23-66). Vetor., p. 39) mediada pelo contexto do trabalho e pelas interações do indivíduo. Assim, a identidade profissional, sendo antes de tudo social, decorre de transformações e reconfigurações no âmbito dos vínculos sociais. Dessa forma, pesquisas e teorizações sobre identidade profissional permitem localizar o construto associado à pertença e diferenciação a determinados grupos (Gondim, Luna, Souza, Sobral, & Lima, 2010Gondim, S. M. G., Luna, A. F., Souza, G. C., Sobral, L. C. S., & Lima, M. S. (2010). A identidade do psicólogo brasileiro. In A. V. B. Bastos & S. M. G. Gondim (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 223-247). Artmed.), aos processos de subjetivação do trabalho e da saúde mental do trabalhador (Dejours, 1999Dejours, C. (1999). Conferências brasileiras: Identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. Edições Fundap. ), e à autopercepção dos papéis ocupacionais ao longo da carreira, nas relações pessoa-trabalho (Mazer & Melo-Silva, 2010Mazer, S. M., & Melo-Silva, L. L. (2010). Identidade profissional do psicólogo: Uma revisão da produção científica no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão , 30(2), 276-295. https://doi.org/10.1590/S1414-98932010000200005
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). Tais concepções reconhecem a identidade profissional como elemento dinâmico, estruturado o suficiente para ser reconhecido, e flexível a ponto de existir em meio a adaptações e reconfigurações. Ou seja, “mesmo quando a identidade é percebida como estática, ela está sendo transformada à medida que o sujeito, através de suas ações, reatualiza sua identidade pressuposta” (Gondim et al., 2010Gondim, S. M. G., Luna, A. F., Souza, G. C., Sobral, L. C. S., & Lima, M. S. (2010). A identidade do psicólogo brasileiro. In A. V. B. Bastos & S. M. G. Gondim (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 223-247). Artmed.). Dessa forma, a identidade profissional se constrói dialeticamente, com “um processo de homogeneização (a pessoa se torna igual aos outros membros de um grupo) e um processo de heterogeneização (a pessoa se diferencia dos outros membros do grupo, com suas características individuais)” (Macêdo, 2019Macêdo, K. B. (2019). Identidade profissional. In P. F. Bendassolli & J. E. Borges-Andrade (Orgs.), Dicionário de psicologia do trabalho e das organizações (pp. 401-407). Artesã., p. 406), num jogo entre unificação intragrupo e diferenciação intergrupos quanto a um fazer especializado que representa, por fim, uma possibilidade de subjetivação (Ribeiro, 2011Ribeiro, M. A. (2011). Orientação profissional: Uma proposta de guia terminológico. In M. A. Ribeiro & L. L. Melo-Silva (Orgs.), Compêndio de orientação profissional e de carreira: Perspectivas históricas e enfoques teóricos clássicos e modernos (Vol. 1, pp. 23-66). Vetor.).

Gondim et al. (2010Gondim, S. M. G., Luna, A. F., Souza, G. C., Sobral, L. C. S., & Lima, M. S. (2010). A identidade do psicólogo brasileiro. In A. V. B. Bastos & S. M. G. Gondim (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 223-247). Artmed.) comentam que, no processo identitário do psicólogo, as expectativas sociais e individuais se entrecruzam em linhas de força que, eventualmente, competem entre si, opondo o que os psicólogos acreditam ser e o que a sociedade espera deles. Essa dicotomia é considerada na Sociologia das identidades sociais e profissionais de Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. Martins Fontes.), que rompe com qualquer tradição essencialista ou natural sobre identidade e propõe um modelo que compreende a história de desenvolvimento individual e os processos de socialização primária e secundária, englobando assim o tripé trabalho, emprego e formação em uma análise sociológica da identidade profissional que implica uma definição acerca de si mesmo que se constrói numa interface indivíduo-socialização.

Desse modo, a teoria dubariana propõe que as identidades profissionais sejam vistas sob a perspectiva de “dualidade social”: de um lado, admite-se uma identidade biográfica, com aspectos herdados culturalmente do grupo social (como a família, por exemplo) e decorrentes de atos de pertencimento, e, de outra ponta, uma identidade social, que recebe a incidência de instâncias simbólicas reguladoras (como de instituições, por exemplo) e associada a atos de atribuição. Para Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. Martins Fontes.), os atos de pertencimento compõem a autopercepção do trabalhador, ou quem ele acredita ser, enquanto os atos de atribuição falam da percepção do outro, prescreve atributos e uma definição exterior, ou seja, referem-se ao que dizem que o trabalhador é (ou o que dele se espera). Essa dualidade é meramente descritiva, sendo a identidade profissional configurada e reconfigurada por esses dois vértices constantemente. Sob a ótica dubariana, é justamente essa dualidade que permite acessar a ideia-chave para o estudo das identidades profissionais: as estratégias identitárias, que são as formas de o profissional reduzir as discrepâncias entre uma identidade-para-si, referente a como o indivíduo se vê, e uma identidade-para-o-outro, referente à forma como ele é visto. Assim, haveria um processo de negociação identitária na dualidade pertencimento-atribuição nos processos de socialização no trabalho.

A identidade profissional do psicólogo jurídico, em específico, tem sido objeto de poucas investigações. Enquanto os temas da Psicologia Jurídica e suas epistemologias contam com uma agenda de estudos e pesquisas, a identidade profissional do sujeito desses conhecimentos e práticas (ou seja, o próprio psicólogo) tem permanecido eclipsada. Pouco tem se desenvolvido relativamente à identidade profissional propriamente dita dos psicólogos na interface com a lei. Curtis e Day (2013Curtis, A., & Day, A. (2013). The impact of specialist training on professional identity, organisational membership, organisational commitment, and stress in correctional psychologists. Journal of Forensic Practice, 15(2), 130-140. https://doi.org/10.1108/14636641311322313
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) investigaram os efeitos da formação especializada na construção da identidade organizacional em 30 psicólogos australianos atuantes no sistema carcerário. Observaram que há uma “identidade forense”, fortemente associada a processos de socialização dentro das instituições em que atuam, proporcionando um engajamento com os objetivos organizacionais, adotando crenças e valores institucionais.

Gondim et al. (2010Gondim, S. M. G., Luna, A. F., Souza, G. C., Sobral, L. C. S., & Lima, M. S. (2010). A identidade do psicólogo brasileiro. In A. V. B. Bastos & S. M. G. Gondim (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 223-247). Artmed.) investigaram a identidade profissional de psicólogos brasileiros, de forma geral, independentemente da área de atuação. Por meio de questionário online, tiveram a participação de 591 psicólogos, que indicaram o grau de afinidade da Psicologia com grandes áreas do conhecimento. Posteriormente, entrevistaram onze participantes, levantando suas ideias centrais. Concluíram que psicólogos se associam à saúde e às ciências sociais e humanas como reflexo da responsabilidade social. A contraidentidade ficaria a cargo das ciências exatas, e mostraria um distanciamento de uma visão mecanicista do ofício. Apesar de terem encontrado indicadores de uma unicidade da identidade social do psicólogo, também observaram que essa identidade conta com um grau de fluidez, por ter a profissão se expandido em subáreas e pelas diferentes formas de colocação no mercado. Por isso, discutem a possibilidade de existirem “microidentidades” entre psicólogos, sem prejuízo ao pertencimento geral da categoria, mas com saliências diferentes para cada especialidade.

Hartman, Fergus e Reid (2016Hartman, L. I., Fergus, K. D., & Reid, D. W. (2016). Psychology´s gordian knot: Problems of identity and relevance. Canadian Psychology, 57(3), 149-159. doi: 10.1037/cap0000060
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) observam que os problemas de identidade do psicólogo foram criados pela própria categoria, passiva diante do que socialmente lhe é atribuído identitariamente. Por isso, recomendam uma melhor comunicação com a sociedade sobre o que faz e quem é o psicólogo. A proteção e o reconhecimento da identidade profissional relacionam-se ainda a padrões éticos da conduta profissional (Wagstaff & Quartiroli, 2020Wagstaff, C. R. D., & Quartiroli, A. (2020). Psychology and psychologists in search of na identity: What nad who are we, and why does it matter? Journal of Sport Psychology in Action, 11(4), 280-291. https://doi.org/10.1080/21520704.2020.1833124.
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), a comprometimento organizacional (Curtis & Day, 2013Curtis, A., & Day, A. (2013). The impact of specialist training on professional identity, organisational membership, organisational commitment, and stress in correctional psychologists. Journal of Forensic Practice, 15(2), 130-140. https://doi.org/10.1108/14636641311322313
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), à proteção da saúde mental do trabalhador (Dejours, 1999Dejours, C. (1999). Conferências brasileiras: Identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. Edições Fundap. ), e à adaptabilidade de carreira (Savickas, 1997Savickas, M. L. (1997). Career adaptability: An integrative construct for life-span, life-space theory. The Career Development Quaterly, 45(3), 247-259. https://doi.org/10.1002/j.2161-0045.1997.tb00469.x
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).

Esta investigação toma como questão central a identidade profissional do psicólogo com atuação no Poder Judiciário. Partindo de um referencial teórico que concebe os processos formadores da identidade profissional como afetos ao pertencimento a um grupo de referência e às prescrições sociais e institucionais, e levando em conta as interrogações sobre a prática pelas quais a Psicologia Jurídica tem sido interpelada nos últimos anos, pretende-se com esta investigação conhecer o processo de configuração identitária dos psicólogos judiciários. Sob o enquadramento teórico e contextual aqui desenhado, habilita-se como hipótese principal a de que os psicólogos judiciários se valem de estratégias identitárias para compatibilizar o pertencimento à categoria e o trabalho na interface com o Direito. Uma segunda hipótese é a de que a carreira do psicólogo judiciário salienta traços identitários específicos. Assim sendo, este estudo foi delineado com o objetivo de descrever a identidade profissional dos psicólogos judiciários de um Tribunal de Justiça, partindo do cenário contemporâneo da Psicologia Jurídica brasileira.

Método

Trata-se de uma pesquisa de desenho transversal, descritivo e exploratório, sob um recorte qualitativo e quantitativo, dadas a necessidade de representação simbólica do fenômeno estudado e a descrição numérica dos dados coletados. O universo de pesquisa compreendido por este estudo foi o dos psicólogos judiciários pertencentes ao quadro de servidores do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP), que, à época da coleta de dados, contava com 767 profissionais em seu quadro ativo. Junto àquela instituição, o profissional atende pela designação psicólogo judiciário, numa carreira exclusivamente pública, na qual desempenha “atividades no campo da psicologia jurídica” (TJSP, 2016Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. (2016, 23 de março). Portaria 9.277/2016. Diário da Justiça Eletrônico, (2.082), pp. 2-4., p. 3) e compõe equipes interdisciplinares. Participaram do estudo 95 psicólogos do TJSP, lotados em 40 dos 56 grupos de comarcas do estado de São Paulo.

Foi criado especificamente para este estudo um formulário eletrônico com dois questionários: um sociodemográfico e outro sobre o campo de atuação do psicólogo judiciário. As informações sociodemográficas incluem: idade, gênero, tempo de formado, titulação mais alta, tempo no TJSP e formação em Psicologia Jurídica. Por sua vez, o questionário sobre o campo de atuação aborda questões da formação, do trabalho e do emprego (Dubar, 2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. Martins Fontes.) dos participantes, além de sua realidade institucional. Ao todo, era composto por onze questões objetivas, sete questões discursivas e uma escala likert de 12 pontos, com opções de respostas pares.

Os dados quantificáveis foram tratados por estatística descritiva. Os dados qualitativos foram submetidos à Análise de Conteúdo (Bardin, 2016Bardin, L. (2016). Análise de conteúdo. Edições 70.), conjunto de técnicas de análise de comunicações que objetivam descrever (de forma enriquecida) e inferir (de forma controlada). Foi utilizado o software MAXQDA versão 2020 (release 20.4.0) para contagem de vocábulos, tratamento de unidades de registro e manejo das aglomerações temáticas.

A coleta de dados ocorreu entre 27 de agosto e 10 de setembro de 2020 e contou com o apoio institucional da Associação dos Assistentes Sociais e Psicólogos do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (AASPTJ-SP), instituição que congrega em seu quadro associativo 76% dos psicólogos judiciários, e que funcionou como parceira na pesquisa na aproximação aos participantes, disparando convite para responder ao formulário online para 507 e-mails. Sendo possível o compartilhamento, o instrumento não ficou restrito a associados. O apoio da AASPTJ-SP teve a função de controlar o risco de viés nas respostas pela desejabilidade social que poderia incidir nos dados se a pesquisa fosse executada de forma conexa ao órgão empregador dos participantes.

Toda a pesquisa atendeu a critérios e princípios éticos de investigações científicas com seres humanos, preconizadas pelo Conselho Nacional de Saúde, em tudo o que se aplicava. Enfatiza-se que os participantes responderam sobre o consentimento livre e esclarecido, validando o termo próprio para esse fim, que positivou garantias, como as do sigilo e restrições quanto a identificações. O presente estudo é parte de uma investigação maior, que contou com parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da universidade sede da pesquisa.

Resultados

Do total de participantes (N = 95), cuja descrição sumarizada encontra-se na Tabela 1, 88% identificam-se sob o gênero feminino e 60% têm até 45 anos de idade. Quanto ao tempo desde a graduação em Psicologia, 51% têm entre 16 e 30 anos, e 29% têm até 15 anos desde a obtenção dessa titulação. Os respondentes revelam investimento na formação, tendo 98% algum tipo de pós-graduação, sendo 54,7% em uma modalidade lato sensu e 43% em alguma formação stricto sensu. A maior parte (72,6%) não tinha formação em Psicologia Jurídica.

Tabela 1
Caracterização dos participantes (N = 95).

Quanto ao tempo de trabalho no TJSP, a amostra possibilitou contemplar os participantes em três categorias, também considerando Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. Martins Fontes.): (a) recém-ingressantes, com 24 psicólogos (25,2%) com 1 ou 2 anos completos de exercício e, consequentemente, dentro do estágio probatório; (b) um grupo intermediário, com aqueles que têm entre 3 anos completos e 15 anos incompletos no cargo (62,5%); e (c) aqueles que têm a partir de 16 anos na função (9,4%).

A congruência entre as expectativas em relação ao cargo e a realidade do exercício das funções de psicólogo judiciário consta na Tabela 2. De forma geral, essa congruência foi avaliada positivamente, relativa (n = 9) ou totalmente (n = 64), por 76,8% dos respondentes. Quando se consideram as respostas em relação ao tempo de atividade na instituição, esse índice se distribui diferencialmente: o grupo dos psicólogos judiciários entre 3 e 15 anos de atuação acompanha a média da amostra (com 47 avaliações positivas de um total de 64, frequência equivalente a 75,8%); enquanto isso, o grupo recém-ingressante no TJSP registra índices maiores de concordância, sendo as avaliações positivas (n = 21) sete vezes mais frequentes do que as negativas (n = 3). Este grupo também é o que mais respondeu que o cargo é “totalmente congruente” às expectativas que tinham da carreira (7 respostas, num conjunto de 24). Essa resposta, de forma inversa, fez-se ausente no grupo de maior antiguidade, e diminuta entre psicólogos do grupo intermediário (2 ocorrências em 62 participantes). No grupo com maior tempo na função, as respostas positivas (n = 5) e negativas (n = 4) quanto ao atendimento das expectativas se equilibraram.

Tabela 2
Distribuição das respostas quanto à congruência entre a expectativa anterior à investidura no cargo e a avaliação do exercício da função (N = 95).

Os participantes também avaliaram termos representativos do campo de atuação por meio de uma escala likert com alternativas em números pares, impossibilitando respostas neutras, mas garantindo a gradação. Tais termos se associam a ideias ou funções que podem ser depreendidas de definições do campo da Psicologia, do Código de Ética Profissional, e de legislações protetivas e organizativas do Poder Judiciário (Figura 1). São, portanto, admissíveis em alguma acepção da prática da Psicologia na interface com a Justiça. As respostas estão distribuídas na Figura 1 conforme sua concentração, numa escala de cinza, em que as duas gradações mais claras representam as respostas indicativas de menor correspondência e as duas gradações mais escuras, ao contrário, indicam maior concordância.

Figura 1
Distribuição da frequência de respostas (N = 95) entre a mínima e a máxima concordância com 12 itens descritivos do campo de atuação do psicólogo judiciário.

Observa-se que ações em interdisciplinaridade entre Psicologia e Serviço Social, a avaliação psicológica, a organização do trabalho em equipe, a relação interdisciplinar entre Psicologia e Direito, e o trabalho em rede de serviços de proteção foram as cinco expressões com maior concentração de respostas concordes (entre 98,9% e 92,6%). Para as atividades de constatação de violência, de auxílio à prestação jurisdicional, do acesso a direitos sociais, e Direitos Humanos, o predomínio de respostas positivas permaneceu (91,5% a 78,9%), mas esses itens passaram a contar com respostas indicativas de total dissenso.

Os itens avaliados com maior variabilidade foram os relativos à indicação de medidas legais, à produção de provas e à constatação de fatos. A sentença relacionada à prática de encaminhar as análises psicológicas como meio de influir nas formas jurídicas foi a que mais se mostrou equilibrada entre respostas negativas e positivas (43,1% e 56,8%, respectivamente). As únicas sentenças com predomínio de dissenso foram as relativas à produção de provas e à constatação de fatos (65,2% e 68,4%, respectivamente). Os participantes puderam se manifestar sobre atividades ou demandas de trabalho que interpretavam ou significavam como violadoras a sua autonomia profissional. Quanto a essa dimensão, 77 participantes (81%) reconheceram e relataram ao menos uma situação que configuraria esse tipo de interferência. Condicionada a uma resposta positiva, havia uma questão de resposta aberta, em que a atividade ou demanda poderia ser indicada ou descrita. Um único participante escolheu não indicar uma resposta. Esta e outras nove respostas foram excluídas por não se referirem ao trabalho. As respostas foram categorizadas levando em consideração as demandas, as atribuições prescritas, e as relações de trabalho (Tabela 3).

Tabela 3
Situações consideradas limitadoras da autonomia profissional (N = 77).

Assim, na primeira categoria, observa-se a prevalência do Depoimento Especial como atribuição funcional colidente com a autonomia profissional dos psicólogos judiciários. A seguir, e com uma dilatada diferença numérica, estão respostas associadas a atos processuais, como audiências sem prévia atuação no caso e determinação para busca e apreensão de crianças e adolescentes, que não é prescrição do cargo. As demais respostas envolvem a atuação em casos de alienação parental (quatro respostas), a produção de provas (três respostas), e ações administrativas, como elaboração de atas, por exemplo (três respostas).

Nas relações institucionais, há determinações que interferem na autonomia técnica dos psicólogos judiciários. É o que constitui a segunda categoria das respostas sobre intervenções do operador do direito na forma de agir do quadro técnico. As respostas abordam ingerências quanto a quem o psicólogo deve atender, por qual meio, com qual instrumento, se acompanhado (e por quem), somando 16 ocorrências. Situações em que se determina que o psicólogo indique expressamente as medidas legais se apresentaram em ao menos três respostas, mesmo número de respostas que mencionam as condições trabalho.

Discussão

Quando o ECA trouxe, em 1990, a obrigatoriedade para que os Tribunais de Justiça compusessem equipes interdisciplinares que funcionassem como auxiliares da ação jurisdicional dentro de um Sistema de Garantia de Direitos, o Brasil viu emergir um marco legal que não mais permitia que autoridades judiciárias que atuam com crianças, adolescentes e suas famílias tomassem decisões sem fundamentação. Muito embora a lei não indique expressamente, tais equipes são comumente compostas por psicólogos, como é o caso do Judiciário paulista, conjunto-universo desta pesquisa. A entrada de psicólogos no Sistema de Justiça foi decisiva para o desenvolvimento da Psicologia Jurídica no Brasil, até então muito associada a colaborações informais (Bernardi, 1999Bernardi, D. C. F. (1999). Histórico da inserção do profissional psicólogo no tribunal de justiça do estado de São Paulo. In L. M. T. Brito (Org.), Temas de psicologia jurídica (4a ed., pp. 103-131). Relume Dumará.) ou isoladas de profissionais em seus consultórios (Brito, 1993Brito, L. M. T. (1993). Separando: Um estudo sobre a atuação do psicólogo nas varas de família (3a ed.). Relume Dumará.). Como agente no interior da instituição judiciária, o psicólogo desenvolveu um novo campo ocupacional e expandiu uma especialidade. A carreira, assim, surgiu num momento histórico de redemocratização do país, e numa época em que a Psicologia passava, ela própria, por mudanças quanto a seu papel na sociedade, expandindo-se para além da lógica do ajustamento e se apresentando junto a políticas públicas. Tal contexto inspirava (e, de alguma forma, prometia) o movimento por duas necessidades do país: uma Justiça garantidora de plena cidadania, aberta aos conhecimentos científicos, e também uma Psicologia que, podendo falar de fenômenos psicológicos além-muros dos espaços clínicos tradicionais, era capaz de habitar mais serviços públicos e transitar por referenciais não naturalizadores do fenômeno psicológico. Ou seja, o advento do ECA e a expansão da Psicologia Jurídica brasileira, por vias diferentes, encontraram-se sob um mesmo empuxo social e institucional que orientava o Brasil a buscar um projeto em que o Estado, pela via da redemocratrização, deixaria de tutelar vidas para tutelar direitos.

Esse contexto situacional, institucional e histórico da Psicologia ajuda a compreender a identidade social do psicólogo (Gondim et al., 2010Gondim, S. M. G., Luna, A. F., Souza, G. C., Sobral, L. C. S., & Lima, M. S. (2010). A identidade do psicólogo brasileiro. In A. V. B. Bastos & S. M. G. Gondim (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 223-247). Artmed.) e permite sustentar aproximações e interrogações sobre a construção de sua identidade profissional e, de forma específica, do psicólogo que atua no Poder Judiciário. De alguma forma, dizer que o psicólogo agora faz parte do espaço sócio-ocupacional do Judiciário implica reconhecer que a instituição judiciária também é parte dos processos que o definem enquanto profissional. Desta forma, o psicólogo constrói sua identidade profissional, atuando em Psicologia Jurídica; assim como a identidade ocupacional, como servidor público; e a organizacional, como trabalhador do Poder Judiciário.

Da análise dos dados obtidos neste estudo, observa-se que o campo parece ter caminhado para algum grau de especialidade. Apesar de a formação em Psicologia Jurídica ainda constituir um “território desocupado” e “disperso” (Moreira & Soares, 2019Moreira, L. E., & Soares, L. C. E. C. (2019). Psicologia jurídica: Notas sobre um novo lobo mau da Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão , 39. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225555
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, p. 136), observa-se que o campo registra a participação de profissionais especializados nessa interface. Esse dado coaduna com advertências de Rovinski (2013Rovinski, S. L. R. (2013). Fundamentos da perícia psicológica forense. Vetor.) sobre o desenvolvimento de competências específicas para psicólogos neste campo. Pode-se observar, assim, que o campo jurídico exige expertise do psicólogo pela especificidade dos tópicos nessa interface com o aporte de temáticas que desafiam sua formação.

Os participantes avaliam positivamente o exercício de sua função em referência às expectativas que tinham a respeito do cargo antes da investidura nele. Essa avaliação é referida positiva em 76,8% de nossa amostra (67,3% de congruência parcial e 9,4% de congruência total), índice que permite hipotetizar que, de forma geral, o trabalho do psicólogo judiciário tem se apresentado como um projeto de carreira que pode ser sustentado ao longo do tempo. Por outro lado, a prevalência dessas respostas positivas tende a se diluir quando se consideram os participantes em etapas diferentes da carreira, diminuindo conforme aumenta a antiguidade no cargo. Frente a esse dado, pode-se pensar em possíveis efeitos da socialização profissional (ou seja, o conjunto de vivências na instituição) nesse tipo de avaliação, ficando as expectativas de outrora cada vez mais distantes da forma como se avalia a realidade fática atual. Esse recorte parece apoiar a análise de que a relação do psicólogo com seu próprio trabalho pode estar menos sujeita a sofrimentos, no sentido da dessubjetivação do trabalho referida por Dejours (1999Dejours, C. (1999). Conferências brasileiras: Identidade, reconhecimento e transgressão no trabalho. Edições Fundap. ), no início da carreira, pelo menor número de oportunidades de conflitos relativos ao reconhecimento do trabalho. Além disso, também parece possível associar a prevalência da discrepância da avaliação da congruência do cargo com as expectativas prévias à investidura no cargo entre os respondentes mais antigos a uma expansão identificável apenas nas últimas décadas da Psicologia em sua interface jurídica (Brigham, 1999Brigham, J. C. (1999). What is forensic psychology, anyway? Law and Human Behavior, 23, 273-298. https://doi.org/10.1023/A:1022304414537
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; Lago et al., 2009Lago, V. M., Amato, P., Teixeira, P. A., Rovinski, S. L. R., & Bandeira, D. R. (2009). Um breve histórico da psicologia jurídica no Brasil e seus campos de atuação. Estudos de Psicologia (Campinas), 26(4), 483-491. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2009000400009
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), que pode ter favorecido as gerações mais novas em termos da percepção do campo e de suas peculiaridades.

Quando chamados a avaliar o cargo com base nas atribuições institucionais do Judiciário e da Psicologia, os participantes apresentaram um padrão de consistente concordância com a maior parte das frases destacadas (Figura 1). Dos dados obtidos, foi possível depreender que, pelas cinco frases com as quais a amostra se mostrou concorde de forma hegemônica (com concordância maior que 92,6%), o campo psicojurídico parece bem distinguível em termos da organização teórica e conceitual do trabalho. Daquelas cinco frases, duas dizem respeito à interdisciplinaridade, e outras duas se relacionam à execução do trabalho (em equipes e junto a uma rede de serviços e políticas públicas setoriais). Pode-se depreender que a categoria já amadureceu a visão do trabalho à base das definições oficiais por organizações da Psicologia Jurídica como campo associado ao Direito, e em interlocução com outros serviços e áreas, superando a ideia de que a Psicologia Jurídica se define pela mera aplicação da Psicologia ao campo legal, mas que, em vez disso, já se apoia numa prática específica. Assim, a institucionalidade da atuação alcançada pela área pode ser uma explicação para a predominância das respostas concordantes, o que sugere que o psicólogo consegue construir no Judiciário uma atuação com características identificadas com a profissão, como interdisciplinaridade e intersetorialidade (Gondim et al., 2010Gondim, S. M. G., Luna, A. F., Souza, G. C., Sobral, L. C. S., & Lima, M. S. (2010). A identidade do psicólogo brasileiro. In A. V. B. Bastos & S. M. G. Gondim (Orgs.), O trabalho do psicólogo no Brasil (pp. 223-247). Artmed.).

A concentração de concordância com a frase “avaliação psicológica” confirma a permanência dessa atividade como a via principal de participação da Psicologia no espaço judiciário (Rovinski, 2013Rovinski, S. L. R. (2013). Fundamentos da perícia psicológica forense. Vetor.). Também é um dado que pode coadunar com os alertas lançados por Brandão (2016Brandão, E. P. (2016). Uma leitura da genealogia dos poderes sobre a perícia psicológica e a crise atual na psicologia jurídica. In E. P. Brandão (Org.), Atualidades em psicologia jurídica (pp. 35-52). Nau.) e Moreira e Soares (2019Moreira, L. E., & Soares, L. C. E. C. (2019). Psicologia jurídica: Notas sobre um novo lobo mau da Psicologia. Psicologia: Ciência e Profissão , 39. https://doi.org/10.1590/1982-3703003225555
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) sobre o quanto a atividade avaliativa, inscrita sob o signo pericial, indiretamente obstrui, por sua centralidade e pelo poder simbólico do juiz, outras formas de praticar Psicologia no Judiciário e, assim, assenta o perigo de restringir a área ao atendimento de “demandas instrumentalizantes” (Oliveira, Moreira, & Natividade, 2020Oliveira, R. G., Moreira, L. E., & Natividade, C. (2020). Saberes e fazeres da Psicologia Social no campo da Justiça e dos Direitos. In L. C. E. C. Soares & L. E. Moreira (Orgs.), Psicologia social na trama do(s) Direito(s) e da Justiça (pp. 21-44). Abrapso Editora., p. 40). Assim, a institucionalidade da perícia psicológica impõe impactante efeito gravitacional sobre a profissão e seus conceitos. As frases que vêm na sequência em termos de concordância, como “constatação de sinais de violência” e “auxílio na distribuição de justiça”, também somam a essa análise, pois, se lidas em conjunto, permitem vislumbrar que a avaliação psicológica a que os respondentes se referem não é a de um raciocínio psicológico inerente à atuação profissional em sentido amplo, mas de um processo avaliativo que pressupõe um serviço de busca de uma verdade de interesse legal. Esse panorama parece apontar para uma saliência da identidade profissional associada a um trabalho institucional eminentemente avaliativo, que sustenta o papel pericial.

O “acesso a direitos sociais básicos” e a defesa de “Direitos Humanos” foram frases avaliadas pela maior parte da amostra como concordes, mas contendo respostas negativas numa frequência mais significativa (21% e 9,4%, respectivamente). Tal resultado prenuncia divergências em relação à base principiológica do Código de Ética Profissional do Psicólogo: os valores da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a responsabilidade social do psicólogo (CFP, 2005Conselho Federal de Psicologia. (2005, 21 de julho). Resolução CFP nº 10/2005. Aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/codigo-de-etica-psicologia.pdf
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). Por tocarem a dispositivos interpretativos dos deveres da categoria, o índice de discordância a eles, embora relativamente diminuto, possui significância por indicar uma transigência com valores que deveriam organizar (e de alguma forma, definir) a profissão. Embora leituras ético-políticas sobre a Psicologia no Brasil possam ajudar na interpretação desse dado, para o presente estudo interessa o elemento identitário que ele revela. Nesse sentido, temos que a refração a preceitos profissionais pode ser entendida pelo que Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. Martins Fontes.) chama de transação subjetiva, ou seja, uma mudança do indivíduo como forma de negociar uma identidade de empresa, de forma tal que a instituição pode ser parte do que sustenta um autoconceito à revelia do que prescreve a própria profissão.

Os itens julgados com maior dispersão foram aqueles que podem ser categorizados como os mais relacionados à produção de verdades, ou seja, sobre a indicação de medidas legais nos processos judiciais, à produção de provas, e à verificação de fatos. A prática laudatória de insertar nas conclusões de um estudo psicológico a indicação da medida jurídica não é recomendada (CFP, 2019Conselho Federal de Psicologia. (2019). Referências técnicas para atuação de psicólogas/os em varas de família. Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo. (2013). Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça. TJSP. https://api.tjsp.jus.br/Handlers/Handler/FileFetch.ashx?codigo=141174
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), mas, aqui, os dados se mostraram variáveis, habilitando a hipótese de que a relação Psicologia-Direito ainda tem margens borradas. Já a produção de provas e a verificação de fatos foram as únicas expressões em que dissensos superavam as concordâncias, indicando uma rejeição a uma perspectiva policialesca e vigilante. Nesse sentido, resgatamos que a atividade probatória é uma demanda recorrente para psicólogos no Judiciário, que se liga historicamente à constituição da Psicologia Jurídica (Lago et al., 2009Lago, V. M., Amato, P., Teixeira, P. A., Rovinski, S. L. R., & Bandeira, D. R. (2009). Um breve histórico da psicologia jurídica no Brasil e seus campos de atuação. Estudos de Psicologia (Campinas), 26(4), 483-491. https://doi.org/10.1590/S0103-166X2009000400009
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) como um instrumento de busca pela verdade factual. Vê-se, assim, que a instrumentalização da Psicologia para servir como aparelho de verificação de fatos, embora goze de uma institucionalidade processual, pode representar menos a forma como esses psicólogos se veem no Judiciário, e mais o prisma pelo qual o Judiciário enxerga o psicólogo.

Temos, assim, um primeiro relance das condições organizacionais que geram o que Dubar (2005Dubar, C. (2005). A socialização: Construção das identidades sociais e profissionais. Martins Fontes.) nomeia identidade recusada, ou seja, atos de atribuição pelos quais a instituição impinge ao trabalhador não apenas determinadas funções e tarefas, mas um modo de ser e de agir, enquanto este, por fim, rejeita-o por não conseguir acomodá-lo em relação a sua formação individual, seja biográfica ou desenvolvimental, nem na identidade visada, que é aquela ligada a seus ideais profissionais. Para o autor, a identidade recusada pode implicar, no plano das profissões, uma transação objetiva, ou seja, ajustes em suas próprias crenças, valores e princípios, para privilegiar as relações de trabalho. Desse modo, ser um produtor de verdades é uma identidade que o Judiciário atribui e que o psicólogo tende a recusar, ainda que negocie uma configuração identitária que preveja investimentos em operações probatórias. Assim, dessa primeira aproximação ao estudo das identidades profissionais de psicólogos no Judiciário, encontramos no entorno do papel de produtor de verdades uma espécie de “batalha identitária” sobre quem é o psicólogo no Judiciário e sobre quem se espera que ele seja. Se, de um lado, o psicólogo judiciário se reconhece avaliador e técnico junto a uma rede de serviços, há colisões de sentido sobre a função verificatória dessa configuração identitária.

Essa questão ressurge quando se aborda o posicionamento dos participantes sobre a autonomia profissional, tendo 81% da amostra apontado ao menos uma demanda do (ou no) trabalho reconhecida como violadora de seu modo de agir. Como referido, a resposta mais recorrente quanto a esse ponto diz respeito ao chamado Depoimento Especial, instituído no Brasil por meio da Lei nº 13.431 (2017Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017. (2017, 4 de abril). Institui o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Presidência da República. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm
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) como procedimento de oitiva de criança e adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade judiciária, portanto, uma atividade jurisdicional a ser realizada em audiência sob a presidência do juiz. De acordo com a referida lei, o Depoimento Especial requer um profissional especializado que executa os procedimentos com a vítima por meio de protocolo de entrevista forense (Schaefer, Miele, & Rios, 2022Schaefer, L. S., Miele, A., & Rios, A. (2022). A entrevista forense com crianças vítimas de violência sexual no contexto da perícia criminal oficial. Cadernos Jurídicos, 21(63), 11-22. https://epm.tjsp.jus.br/Publicacoes/CadernoJuridico/88448
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) e transmite em tempo real sua narrativa para a sala de audiências, de onde a autoridade pode formular questões para o depoimento. Não se trata, portanto, de instrumento psicológico, mas de atribuição institucional que, assim, figura num panorama divisionista que opõe o pertencimento intragrupal do psicólogo a determinações processuais, o que parece explicar a considerável rejeição ao Depoimento Especial e também sua caracterização como invasor da autonomia profissional em 38,3% das respostas abertas. Se obliterada a condição de o psicólogo determinar sua própria forma de agir, pensar e se definir em termos de uma conduta profissional, prejudicam-se as possibilidades de “negociações identitárias”.

Além do Depoimento Especial, outras respostas giram em torno de deslocamentos para atribuições exteriores ao campo psicológico (como acompanhamento de busca e apreensão de crianças e adolescentes, e procedimentos administrativos como elaboração de atas). Tomando-se esse dado em conjunto com o anterior, pode-se hipotetizar que a ação do Judiciário sobre o trabalho do psicólogo é mais sentida quanto a ingerências em procedimentos e instrumentos de trabalho do que quanto à inclusão de tópicos específicos, como a alienação parental, pouco recorrente nas respostas da amostra deste estudo. Assim, os “atos de atribuição” do Judiciário parecem incidir mais sobre o que o psicólogo faz do que sobre seu saber, donde se poderia pensar que a natural hierarquia disciplinar na relação psicólogo-juiz tem sido confundida com uma espécie de hierarquia técnica, em que a ação do psicólogo é indevidamente colocada como objeto de determinação judicial.

Esse aspecto também se presentifica na segunda categoria, da interferência direta do operador do Direito sobre o trabalho do psicólogo, tendo uma parcela de respostas anotado determinações sobre a forma dos atendimentos e documentos psicológicos, desrespeitando as delimitações dos campos profissionais (Arantes, 2013Arantes, E. M. M. (2013). Mediante quais práticas a psicologia e o direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar. In C. M. B. Coimbra, L. S. M. Ayres, & L. M. Nascimento (Orgs.), Pivetes: Encontros entre a psicologia e o judiciário (pp. 131-148). Juruá.). Tais respostas permitem inferir que há demandas institucionais que intervêm sobre a identidade profissional e colocam o psicólogo não como um sujeito de conhecimento, mas um instrumento para um fim.

Conclusões

Da aproximação ao campo de atuação dos psicólogos judiciários em São Paulo, observa-se que o desenvolvimento da Psicologia na interface com a Justiça já legou o alicerce fundamental de que a profissão não se reduz a uma área do saber que meramente responde às perguntas de outra (no caso, o Direito). Em vez disso, ela pode partir de modelos conceituais próprios para pensar e agir na articulação entre a pessoa e a lei, e entre os saberes e fazeres de da Psicologia e do Direito.

É necessário, no entanto, que essa construção permita que a Psicologia Jurídica se reconheça em suas especificidades, sem perder de vista a necessidade de continuar a ser uma Psicologia. Esse parece ser um marco distintivo da última década, em que o mal-estar dos psicólogos que atuam na Justiça (Arantes, 2013Arantes, E. M. M. (2013). Mediante quais práticas a psicologia e o direito pretendem discutir a relação? Anotações sobre o mal-estar. In C. M. B. Coimbra, L. S. M. Ayres, & L. M. Nascimento (Orgs.), Pivetes: Encontros entre a psicologia e o judiciário (pp. 131-148). Juruá.) passou a ser sentido de forma mais pronunciada devido ao agenciamento da profissão pelas estruturas de poder. Observa-se que questões como o Depoimento Especial e as demais formas de controle que eventualmente induzem a Psicologia a produzir, afirmar e sustentar verdades (pretensamente) jurídicas sob uma leitura intimizadora dos problemas da sociedade acabam por ingerir em práticas dos psicólogos, gerando o risco de alienação de sua própria escuta e de suas possibilidades de cuidado e proteção de direitos, vetores de identidade dos psicólogos.

Dessa forma, conclui-se que no espaço proximal entre Psicologia e Direito, as possibilidades de colaboração da Psicologia implicam a necessidade de um desenho do cargo com atribuições e prescrições do trabalho que permitam ao psicólogo se reconhecer nelas, sem se desprender da identificação com seu grupo profissional. Nesse sentido, o diálogo entre a instituição e seus servidores se afigura como condição para o delineamento das atribuições institucionais e, consequentemente, da possibilidade de a Psicologia pertencer a si mesma, inclusive como condição ótima para poder compor com o Judiciário como seus profissionais de fato podem ser: técnicos e sujeitos de seu próprio conhecimento.

O percurso da presente investigação permite sustentar as hipóteses lançadas inicialmente de que o ambiente institucional do Judiciário não só oportuniza uma identidade profissional para o psicólogo naquela carreira específica como constitui contexto em que se empregam estratégias identitárias de aliar-se à avaliação psicológica e a interdisciplinaridade como formas de pertencimento à Psicologia e ao Judiciário, e de recusar atributos identitários que reduzam o trabalho à verificação de fatos ou à mera execução de atos processuais.

A presente pesquisa esbarra na limitação da amostra, que ficou restrita a um único Tribunal de Justiça, não sendo contemplativo de outras práticas institucionais e culturas organizacionais que poderiam produzir resultados diferentes com amostras de outras unidades da federação. Uma agenda de pesquisa é necessária para desenvolver aproximações ulteriores a esses achados em outros espaços institucionais da grande área da Psicologia Jurídica. Abordagens narrativas sobre o fenômeno objeto deste estudo também são desdobramentos necessários, visando a uma contribuição para o conhecimento na área, assim como para fornecer pistas para a formação de especialistas nesse domínio.

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  • 1
    O Poder Judiciário, no Brasil, é um dos três poderes da União, ladeado pelos poderes Executivo e Legislativo. Ao Judiciário, compete aplicar a lei e o Direito a demandas que lhe são dirigidas por meio de processos judiciais.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    05 Mar 2022
  • Aceito
    10 Abr 2023
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