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Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) sobre políticas de cuidado

Aluízio Lopes de Brito Psychological Practices Assessment System (SAPP) on care policies

Sistema de Evaluación de Prácticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) sobre políticas de cuidado

Resumo

O objetivo do presente manuscrito é caracterizar e descrever os fluxos do Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP), dispositivo instituído no âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia e regulamentado pelo Conselho Federal de Psicologia através da Resolução CFP nº 15, de 18 de agosto de 2023. O SAPP surge da necessidade premente de orientação e qualificação profissionais frente às práticas emergentes que produzem o saber/ fazer da psicologia. Nesse sentido, trata-se de processo que busca orientar, qualificar e fazer conhecer práticas que sejam compatíveis ou não com o exercício profissional em psicologia. Com o trabalho realizado no SAPP serão produzidos pareceres que contribuirão minimamente para o conhecimento das fronteiras que delimitam os campos da psicologia e, por excelência, conheceremos melhor nossas próprias formas de atuação. Através da consideração do trinômio teoria-prática-ética, o CFP espera com o SAPP abrir diálogos com grupos, práticas e saberes fronteiriços e constantemente relegados pela psicologia hegemônica. Para tanto, parte do pressuposto de que os saberes e fazeres destas populações podem refinar as teorias psicológicas e fazer a psicologia avançar como ciência e profissão.

Palavras-chave:
Conselho Federal de Psicologia; Práticas psicológicas; Avaliação

Abstract

This manuscript aims to characterize and describe the flows of the Aluízio Lopes de Brito Psychological Practices Assessment System (SAPP), an instrument established within the framework of the Psychology Council System and regulated by the Federal Council of Psychology (CFP) with Resolution CFP No. 15, of August 18, 2023. The SAPP arises from the pressing need for professional guidance and qualification in the face of emerging practices that shape the knowledge/practice of psychology. In this sense, it is a process that seeks to guide, qualify, and make known practices that are compatible or not with the professional practice of psychology. The work carried out in the SAPP will produce opinions that will contribute minimally to the understanding of the boundaries that delimit the fields of psychology and, by excellence, we will better understand our own modes of operation. Considering the trinity of theory-practice-ethics, the CFP hopes with the SAPP to open dialogues with groups, practices, and knowledge that are in the borders and are constantly relegated by hegemonic psychology. To this end, it assumes that the knowledge and practices of these populations can refine psychological theories and advance psychology as a science and profession.

Keywords:
Federal Council of Psychology; Psychological practices; Evaluation

Resumen

El objetivo de este manuscrito es caracterizar y describir los flujos del Sistema de Evaluación de Prácticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP), un dispositivo establecido en el marco del Sistema de Consejos de Psicología y regulado por el Consejo Federal de Psicología a través de la Resolución CFP n.º 15, con fecha del 18 de agosto de 2023. El SAPP surge de la necesidad apremiante de orientación y calificación profesional frente a las prácticas emergentes que configuran el conocimiento y las habilidades de la psicología. En este sentido, es un proceso que busca orientar, calificar y dar a conocer prácticas que sean compatibles o no con el ejercicio profesional de la psicología. El trabajo realizado en el SAPP generará opiniones que contribuirán mínimamente a la comprensión de los límites que delimitan los campos de la psicología y, por excelencia, comprender mejor nuestras propias formas de actuación. A través de la consideración de la tríada teoría-práctica-ética, el CFP espera que con el SAPP puede llevar a cabo el diálogo con grupos, prácticas y conocimientos fronterizos y constantemente pasados por alto por la psicología hegemónica. Con este fin, se asume que los conocimientos y prácticas de estas poblaciones pueden refinar las teorías psicológicas y hacer avanzar la psicología como ciencia y profesión.

Palabras clave:
Consejo Federal de Psicología; Prácticas psicológicas; Evaluación

A psicologia é um dos saberes/fazeres que mais cresce em todo o planeta. Curso de grande procura nos processos seletivos de ingresso a partir dos anos 1990, vivenciou, também, grande aumento de demandas para o trabalho em psicologia nas duas primeiras décadas dos anos 2000. Esses fatores, em conjunto com a grande expansão do número de cursos de graduação em psicologia, levaram o Sistema Conselhos de Psicologia a ser hoje o maior grupo organizado de profissionais em psicologia no mundo, com mais de 440 mil profissionais com registro profissional ativo.

Pelas informações do último Censo da Psicologia brasileira (CFP, 2022Conselho Federal de Psicologia. (2022). Resolução CFP nº 18, de 11 de agosto de 2022. Cria o Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito e estabelece diretrizes para o seu funcionamento.), cerca de 15% das/os profissionais em psicologia utilizam, em seus cotidianos de trabalho, práticas associadas às chamadas “Práticas Integrativas e Complementares (PICs)”, não reconhecidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Ou seja, cerca de 60 mil profissionais em psicologia declararam fazer uso de práticas que, em grande parte, não são legitimadas pelo campo. Seguramente, o número de profissionais neste caso é maior que o apresentado, pois as fronteiras entre a psicologia e muitas outras práticas não são facilmente visualizadas. Um dos destaques destes desafios está na possibilidade de qualificarmos o exercício profissional em psicologia por meio de estudos e pesquisas de práticas psicológicas e não psicológicas que se situam em zonas fronteiriças do que, acadêmica e tradicionalmente, seja considerado como ciência e profissão em psicologia.

A sociologia utiliza o conceito de “trabalho de fronteira” para descrever como as disciplinas científicas consolidaram-se em torno de normas e objetos de estudo compartilhados. No centro deste processo está a codificação de compromissos ideológicos e melhores práticas que marcam os limites do que conta como pertencente a uma determinada disciplina e o que está fora dela (Grzanka & Cole, 2021Grzanka, P. R., & Cole, E. R. (2021). An argument for bad psychology: Disciplinary disruption, public engagement, and social transformation. American Psychologist, 76(8), 1334-1345. https://doi.org/10.1037/amp0000853
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). Na perspectiva de Gieryn (1983Gieryn, T. (1983). Boundary-work and the demarcation of science from non-science: Strains and interests in professional ideologies of scientists. American Sociological Review, 48(6), 781-795. https://doi.org/10.2307/2095325
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), o trabalho de fronteira é essencial para a aquisição de autoridade intelectual e a acumulação de poder social e influência. O trabalho de fronteira em psicologia tem sido bem documentado, especialmente quando se refere a controvérsias científicas públicas (Cassidy, 2006Cassidy, A. (2006). Evolutionary psychology as public science and boundary work. Public Understanding of Science, 15(2), 175-205. https://doi.org/10.1177/0963662506059260
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), mas o trabalho de fronteira também pode assumir a forma de práticas cotidianas, incluindo o trabalho dos cientistas. Neste tipo de trabalho de fronteira, valores particulares tornam-se legitimados e universalizados, com a função de distinguir o que é bom e o que é mau (Grzanka & Cole, 2021Grzanka, P. R., & Cole, E. R. (2021). An argument for bad psychology: Disciplinary disruption, public engagement, and social transformation. American Psychologist, 76(8), 1334-1345. https://doi.org/10.1037/amp0000853
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).

Vários estudos (Barbosa et al., 2001Barbosa, M. A., Fonseca, A. P. M., Bachion, M. M., Souza, J. T., Faria, R. M., Oliveira, L. M. A. C., & Andraus, L. M. S. (2001). Terapias alternativas de saúde x alopatia: tendências entre acadêmicos de medicina. Revista Eletrônica de Enfermagem, 3(2). https://doi.org/10.5216/ree.v3i2.718
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; Carozzi, 1999Carozzi, M. J. (Org.). (1999). A nova era no Mercosul. Vozes.; Luz, 1993Luz, M. (1993). Racionalidades médicas: Medicina tradicional chinesa. IMS; Uerj., 1997Luz, M. (1997). Cultura contemporânea e medicinas alternativas: Novos paradigmas em saúde no fim do século XX. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 7(1),13-43. https://doi.org/10.1590/S0103-73311997000100002
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; Montero, 1985Montero, P. (1985). Da doença à desordem: A magia na umbanda. Graal. ; Neves, 1984Neves, D. P. (1984). As “curas milagrosas” e a idealização da ordem social. UFF.; Tavares, 1998Tavares, F. R G. (1998). Os terapeutas alternativos nos anos 90: Uma nova profissão. Antropolítica, 4, 63-83. , 1999Tavares, F. R G. (1999). Ascensão e profissionalização da terapêutica alternativa no Rio de Janeiro (anos 80-90). Physis: Revista de Saúde Coletiva , 9(2), 75-98. https://doi.org/10.1590/S0103-73311999000200005
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) apontaram as relações quase sempre tensionadas entre os saberes científicos hegemônicos modernos e as práticas comumente chamadas emergentes, alternativas, não-convencionais, holísticas, corporais ou integrativas.

Outros estudos (Gauer, Souza, Dal Molin & Gomes, 1997Gauer, G., Souza, M. L., Dal Molin, F., & Gomes, W. B. (1997). Terapias alternativas: Uma questão contemporânea em psicologia. Psicologia Ciência e profissão, 17(2), 21-32. https://doi.org/10.1590/S1414-98931997000200004
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; Tavares, 2003; Tourinho & Carvalho, 1995Tourinho, E. Z., & Carvalho, M. B. N. (1995). As fronteiras entre a Psicologia e as práticas alternativas: algumas considerações (pp. 81-110). In Conselho Federal de Psicologia (Org.), Psicologia no Brasil: Direções epistemológicas (pp. 81-110). Conselho Federal de Psicologia.) apresentam as relações entre as terapias da nova era com a psicologia. Tavares (2003) fala dos tensionamentos com as tentativas de regulação das terapias alternativas no âmbito da psicologia:

Um dos espaços sociais em que essa disputa tem sido mais acirrada é o da delimitação das fronteiras entre o campo das práticas psicológicas: os terapeutas alternativos (psicólogos ou não) têm reivindicado a legitimidade social de uma diversidade de técnicas e práticas a partir da sua inscrição no vasto campo das práticas psi (p. 84).

Historicamente, ocorreram posicionamentos distintos do Conselho Federal de Psicologia (CFP) em relação a estas práticas. Do rechaço direto a determinadas práticas (psicológicas ou não) em que as fronteiras beiravam saberes religiosos, esotéricos, alternativos, emergentes, culturais, regionais, místicos dos mais diversos, às tentativas de estabelecer diálogos com algumas delas. Quem não se lembra das chamadas terapias alternativas e uma série de controvérsias com o Sistema Conselhos ao longo, principalmente, da década de 1990?

Observam-se ao longo do tempo movimentos diversos, intensos e, na maior parte das vezes, conflituosos, de delimitação de fronteiras entre quais práticas são compatíveis com o exercício profissional em psicologia e quais práticas não são consideradas compatíveis. Para Tavares (2003), o contato entre as esferas terapêuticas contemporâneas e os limites e fronteiras das competências do campo psicológico (poroso por natureza), parece indicar a necessidade de negociações e arranjos parciais e provisórios dos alcances destas fronteiras.

Coelho (1993Coelho, A. R. (1993). [Sem título]. Jornal do Psicólogo, (45), 9.) apresenta três posturas distintas do CFP ao longo dos tempos no que se refere às terapias alternativas: a “ortodoxa”, que centra a validação de práticas exclusivamente a partir de parâmetros epistemológicos racionais; a “holística”, foco maior na ética e menor na epistemologia; a “problematizadora”, que faz uso das fronteiras e margens para reconhecer que o “alternativo” possui fronteiras que são boas indicadoras para a problematização do próprio saber psicológico.

É somente a partir de 1993 que, na perspectiva de Tavares (2003), o CFP modifica sua postura em relação às práticas alternativas, reconhecendo a pouca eficácia da postura denunciativa, direcionando o debate para os efeitos das práticas no exercício profissional da categoria. Por outro lado, teóricos críticos há muito notaram como algumas práticas, consideradas “boas” privilegiam abordagens teóricas e metodológicas que se alinham ao status quo (Gierny, 1983). Tal postura, além de restringir a inovação, negligencia os saberes e fazeres de populações marginalizadas. Nesse sentido, torna-se um desafio e uma urgência fazer justiça a estas práticas marginalizadas, assumindo a defesa de uma psicologia científica e democrática, baseada na coerência do nexo entre ontologia, epistemologia, ética e prática.

Alinhado com tal perspectiva, no final dos anos 1970, verifica-se que o CFP se aproxima de terapias e práticas que não fazem parte do núcleo mais solidificado do exercício profissional quando aprova a Resolução CFP nº 4/1979, que dispõe sobre divulgação e emprego profissional da psicodança, da musicoterapia, da expressão corporal, equivalentes, enquanto métodos e técnicas psicológicas. E nos anos 1990, há resoluções do CFP que apontam para movimentos e tentativas de delimitação das margens e das fronteiras. Essas resoluções se configuram em posicionamento restritivo/denunciativo por parte dos conselhos de classe, amplamente calcado em princípios epistemológicos costumeiramente associados a certa racionalidade hegemônica na ciência, por exemplo, as resoluções de números 16/1994Conselho Federal de Psicologia. (1994). Resolução CFP nº 16, de 3 de dezembro de 1994. dispõe sobre a publicidade associada às práticas alternativas., 29/1995Conselho Federal de Psicologia. (1995). Resolução CFP nº 29, de 16 de dezembro de 1995. Altera a resolução CFP nº 16/1994 que dispõe sobre a publicidade associada às práticas alternativas., 10/1997Conselho Federal de Psicologia. (1997). Resolução CFP nº 10, de 20 de outubro de 1997. Estabelece critérios para divulgação, a publicidade e o exercício profissional do psicólogo, associados à práticas que não estejam de acordo com os critérios científicos estabelecidos no campo a psicologia. e 11/1997Conselho Federal de Psicologia. (1997). Resolução CFP nº 11, de 20 de outubro de 1997. Dispõe sobre a realização de pesquisas com métodos e técnicas não reconhecidas pela psicologia..

Debates sobre novos paradigmas científicos ganham espaço na psicologia, como pode-se observar no questionamento de Mendonça Filho (1997Mendonça Filho, J. B. (1997). Saberes alternativos: Emergência de uma prática ou de uma denúncia? Jornal do Psicólogo , (58), 5.) sobre a hegemonia da cientificidade psicológica ao tipificar como antiético tudo que escapa de certa racionalidade científica. Argumenta que a psicologia é solo fértil para a germinação de saberes “alternativos”, visto suas fissuras no campo epistemológico e a ausência de uma ética que dê conta de uma ciência hegemônica que não abarca a subjetividade.

Nesta linha, reconhecemos há tempos a diversidade constitutiva da dimensão epistêmica dos saberes psicológicos. Certa sensação de que esta questão hoje, do que é ciência na psicologia ou do que não é ciência, se tornou uma discussão que revela mais os jogos e exercícios de poder (que irão garantir verbas de pesquisas para determinados grupos e não para outros, vagas em institutos e departamentos, questões mercantis das mais diversas ordens etc) do que uma discussão orientada para o campo da própria construção do conhecimento e suas vicissitudes filosóficas. Não que se deva abandonar a epistemologia, mas conjunta e articulada a ela outras dimensões do conhecimento são fundamentais, como seus aspectos éticos e políticos.

As dificuldades na delimitação destas fronteiras entre o que é psicologia e o que não é já é complexa para nós profissionais, quanto mais para a sociedade em geral. Apontamos três questões identificadas no contexto atual que indicam a necessidade de organização da atuação do Sistema Conselhos nesse campo: (1) temos observado fenômeno crescente de pessoas que já exercem determinadas práticas alheias ao campo e que ingressam na graduação em psicologia visando legitimar tais práticas; (2) muitas demandas que chegam nas Comissões de Orientação e Fiscalização dos Conselhos Regionais de Psicologia solicitando informações sobre o que é minimamente seguro em torno de nossos fazeres e práticas; (3) nos preocupa a qualidade da formação com a expansão dos cursos de graduação e o número de profissionais registrados a cada novo ano e os poucos e escassos sistemas de avaliação da qualidade da formação que temos atualmente, principalmente dos desmontes presenciados nos últimos anos.

Assim, um dos desafios é: como podemos, de forma coletiva e organizada, produzir espaços de diálogos, orientações e qualificações profissionais frente às práticas que produzem nosso saber/fazer? Principalmente práticas fronteiriças e das margens. Pensando nessas questões todas (e sem pretensões de respondê-las de forma cabal), orientados à qualificação da formação e do exercício profissional e cumprindo o caráter autárquico de proteção à cidadania, o Sistema Conselhos de Psicologia aprovou, inicialmente, por meio da Resolução CFP nº 11 de 18 de agosto de 2022, o Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP). Trata-se de sistema dinâmico, tanto que o SAPP já avançou em sua constituição com nova resolução, a Resolução CFP nº 15, de 18 de agosto de 2023Conselho Federal de Psicologia. (2023). Resolução CFP nº 15, de 17 de agosto de 2023. Estabelece diretrizes para o funcionamento do Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas Aluízio Lopes de Brito (SAPP) e revoga a Resolução CFP nº 18/2022 e a nº 03/2023..

O objetivo do SAPP, por meio desta função pública do CFP, é avaliar a compatibilidade de práticas (psicológicas ou não) no âmbito do exercício profissional da Psicologia. Trata-se de processo que busca orientar, qualificar e fazer conhecer práticas que sejam compatíveis ou não com o exercício profissional em psicologia. Com o trabalho realizado no SAPP serão produzidos pareceres que contribuirão minimamente para conhecer nossas fronteiras e, por excelência, conhecer melhor nossas próprias formas de atuação. Em suma, faz parte de certa política de cuidado e abertura de diálogo com práticas consideradas, historicamente, marginalizadas, às margens, na periferia.

O SAPP é resultado de um debate longo e complexo realizado pelo CFP nos últimos anos. O desafio de produzir um sistema com tamanha complexidade e ineditismo sugere que todo o sistema Conselhos de Psicologia necessita estar aberto e a posto, implicado em potencializar seu desenvolvimento e funcionamento de maneira que seja sempre uma estrutura em movimento, viva e antenada com os anseios da nossa categoria e da sociedade. Era assim que pensava um dos grandes idealizadores desse sistema, o psicólogo paraibano Aluizio Lopes de Brito, que nos últimos anos de sua vida trabalhou intensamente para que a ideia do SAPP finalmente ganhasse forma, estrutura e funcionamento. Graças à sua insistência e teimosia, o Sistema de Avaliação de Práticas Psicológicas é uma realidade e nada mais justo que carregue o nome daquele que o gestou.

O SAPP: Estrutura e Funcionamento

Esta política de cuidado não pode, sob qualquer hipótese, reduzir o SAPP a um sistema de “caça às bruxas”, com ética e lógica policialesca, em que se retira de cena todas as práticas não balizadas pela ciência hegemônica, assim como é política autodestrutiva transformar o SAPP em espécie de selo de qualidade, ISO 9000 do CFP, para balizar o que se pode ou o que não se pode em relação ao exercício profissional. Esta política de cuidado e abertura ao diálogo somente pode ser disparada pelos próprios profissionais que exercem as práticas, caso contrário, corremos o risco de fechar diálogos. Imaginem uma prática sendo apresentada ao SAPP por profissionais que não a exercitem ou não concordem com ela. Seria impossível conhecer a própria prática e avançar no diálogo. Há um problema ético aí, sem dúvida. Desta forma, somente poderão submeter práticas para análise do SAPP, grupos auto-organizados ou entidades que possuam personalidade jurídica constituída há pelo menos 1 (um) ano e vinculação com a prática a ser avaliada. Grupos auto-organizados são definidos como grupos sem constituição jurídica formalizada, mas que possuem formas de organização que agregam pessoas com objetivos comuns, de forma cooperativa, com autonomia e independência nas tomadas de decisões sobre suas práticas. Entidades com personalidade jurídica são as associações juridicamente constituídas e que possuem inscrição no Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ).

Realizar a submissão de uma proposta por pessoa física cria condições para retirar de cena a historicidade e a coletividade de uma prática. Não há sentido avaliar a compatibilidade de uma prática individual. A opção por grupos auto-organizados se dá porque boa parte das práticas coletivas são realizadas por grupos informais. Existem, também, entidades já constituídas por registro jurídico coletivo que desenvolvem práticas diversas que podem ser fruto de diálogo com a psicologia.

Ao apresentarem uma proposta, os grupos auto-organizados ou as entidades com personalidade jurídica devem se atentar e explicitar alguns itens centrais para a compreensão da prática. Primeiro, é necessário apresentar o embasamento teórico-metodológico-técnico da prática. Neste item, é fundamental apresentar os fundamentos, história, objetivos, principais autoras/es, princípios, metodologias, técnicas e procedimentos utilizados nas práticas. A apresentação de referenciais em que a prática se baseia é bastante importante.

O contexto em que a prática é desenvolvida, levando-se em consideração sua história, geografia, arquitetura, mapas, formas e possibilidades de mobilidades, ambiente, natureza, meio urbano, rural etc. Além do contexto, que populações estariam envolvidas, comunidades, grupos, organizações, instituições? Quem são estas pessoas, corpos, etnias, raças, gêneros, orientações sexuais, idades, características especiais desta população, famílias, etc. Os territórios envolvidos possuem que características? É importante descrever os campos econômicos, ambientais, sociais, culturais, políticos, geográficos etc. São territórios ocupados por populações em condições de vulnerabilidade? Por povos da terra, tradicionais, quilombolas, indígenas, das águas, das matas? Que hábitos, culturas, valores estão presentes nestes territórios? Que modalidades de saberes estão presentes nas relações que os marcam: populares, espirituais, religiosos? É, também, importante marcar a diversidade constitutiva dos territórios em que a prática está presente.

Mais do que as dimensões epistêmicas e contextuais, os aspectos éticos envolvidos e os vínculos da prática com os direitos humanos. Aqui a relação com o código de ética profissional em psicologia (CFP, 2005) é fundamental, embora não se reduza a ele. Assim, a ideia é articular também com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (Organização das Nações Unidas [ONU], 1948Organização das Nações Unidas. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. https://www.unicef.org/ brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos
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). A leitura para as dimensões éticas e dos direitos humanos é pragmática: a que e a quem serve esta prática? Ela acolhe, cuida, protege? Ou produz violências, processos de exclusão, exposições?

Por fim, é necessário fazer a apresentação dos modos como avaliam os resultados da prática, os efeitos que pretende produzir, estudos e pesquisas já realizados que a avaliem, além das possíveis restrições para a efetivação da prática.

Com base nesse conjunto de informações, serão produzidos pareceres durante o processo de avaliação, que resultarão na definição se a prática é compatível com o exercício profissional da psicologia, se é incompatível, ou se a avaliação é inconclusiva e carece de mais informações para a finalização do processo. Todo o processo de inscrição de práticas é realizado de forma online no site do SAPP: https://sapp.cfp.org.br/. Ao inserir a prática com toda a riqueza de detalhes no sistema, é iniciada sua avaliação.

Nos resultados da avaliação da compatibilidade da prática com o exercício profissional, ela pode ser tipificada como totalmente compatível ou compatível com restrições. As restrições podem ser indicadas pelas/os próprias/os praticantes ou pelas/os avaliadores no sistema. Por exemplo, uma prática compatível com o exercício profissional mas com a restrição de ser aplicada em crianças, ou restrita a um determinado território ou população.

Para cada avaliação são produzidos três pareceres independentes, a partir da lista de avaliadoras/es ad hoc e um parecer conclusivo do colegiado do SAPP, homologado ou não pela plenária do CFP.

O processo de avaliação conta com a colaboração de um grupo de avaliadores(as) ad hoc selecionados por meio de edital de chamada pública do Conselho Federal de Psicologia (Edital CFP nº 3/2023). Este grupo possui um duplo perfil. É necessário que tenhamos profissionais com boa experiência no exercício profissional (mínimo de 10 anos de experiência comprovada), mas também, pesquisadoras/es doutoras/ es com experiências em pesquisa. Este grupo ficará por, no máximo, três anos, e será renovado com a próxima plenária do CFP, quando serão definidos novos critérios para o próximo edital de escolha.

Esta seleção inclui a análise dos currículos das/ os candidatas/os e das informações constantes do formulário eletrônico disponibilizado, a ser preenchido no momento da inscrição. São analisadas a formação e atuação profissional em psicologia e em áreas limítrofes; publicações produção intelectual; o domínio de métodos, e técnicas de investigação e intervenção em psicologia.

A gestão do SAPP é realizada por um colegiado que contará com a composição de 1 (um/a) membro/a conselheiro/a da plenária do Conselho Federal de Psicologia e 4 (quatro) membros/as indicados/as por esta plenária, tendo como critério de indicação sólidos conhecimentos em ética e legislação profissional da Psicologia.

O que se pretende com o SAPP?

Espera-se que o SAPP seja dispositivo de orientação, qualificação e indução na produção de conhecimento em relação às práticas que envolvem a psicologia. Que se assuma como política de cuidados em relação aos saberes/fazeres da psicologia. Não é objetivo do SAPP a adoção de uma postura policialesca, proibicionista em sua essência, mas sim a orientação, a formação e a defesa de uma psicologia plural, científica, ética e coadunada com os direitos humanos.

Considerações Finais

Os fazeres psicológicos, em sua grande maioria, têm se baseado em práticas concordantes com o positivismo. Desta forma, a psicologia sistematicamente tem negligenciado, enquanto ciência e profissão, construtos, operadores teóricos e práticas produzidas por populações marginalizadas sob o argumento de que se tratam de teorias e práticas não científicas, antiéticas e inócuas. O risco de assumir tal postura é perpetuar as desigualdades, uma vez que se parte de uma falsa universalidade que não atende às populações não majoritárias, expulsando-as dos limites abarcados pela própria psicologia.

O CFP parte do pressuposto de que os saberes e fazeres destas populações podem refinar as teorias psicológicas e fazer a psicologia avançar como ciência e profissão. Salienta-se que tal postura em nada rompe com a exigência da articulação entre ontologia, epistemologia, ética e prática. Nas tradições críticas, busca-se fazer justiça a grupos marginalizados e oprimidos, sendo esta a base de uma ciência democrática.

O SAPP se propõe, enquanto ferramenta de orientação do fazer psicológico, a avaliar a compatibilidade de práticas, psicológicas ou não. Simultaneamente, o CFP busca, por meio deste dispositivo, fazer justiça na e por meio do trinômio teoria-prática-ética, justiça com e para grupos marginalizados e oprimidos que têm constantemente sido relegados pela psicologia tradicional. Esta nega a cientificidade destas produções, com base em universalidades que restringem os limites da própria psicologia, negando a realidade da nossa sociedade, a história, a cultura, ou seja, os aspectos poderosos e constituintes da subjetividade humana, enfraquecendo a psicologia enquanto ciência e profissão.

De acordo com Teo (2021Teo, T. (2021). History and systems of critical psychology. In W. E. Pickren (Ed.), Oxford Encyclopedia of the History of Modern Psychology. Oxford University Press. https://doi.org/10.1093/acrefore/9780190236557.013.663
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), assumir os pressupostos de uma psicologia crítica significa aprender sobre sua história, seus saberes e seus fazeres, ao mesmo tempo em que se considera uma variedade de ciências humanas. Significa visar uma práxis que não apenas identifique a opressão e o poder no status quo, mas que também considere as opções coletivas para derrubar condições que prejudicam as pessoas e sua vida mental.

Abre-se, portanto, a possibilidade de importante diálogo com práticas e tradições populares, tradicionalmente situadas às margens dos paradigmas científicos modernos.

Referências

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  • Carozzi, M. J. (Org.). (1999). A nova era no Mercosul. Vozes.
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  • Conselho Federal de Psicologia. (1994). Resolução CFP nº 16, de 3 de dezembro de 1994. dispõe sobre a publicidade associada às práticas alternativas.
  • Conselho Federal de Psicologia. (1995). Resolução CFP nº 29, de 16 de dezembro de 1995. Altera a resolução CFP nº 16/1994 que dispõe sobre a publicidade associada às práticas alternativas.
  • Conselho Federal de Psicologia. (1997). Resolução CFP nº 10, de 20 de outubro de 1997. Estabelece critérios para divulgação, a publicidade e o exercício profissional do psicólogo, associados à práticas que não estejam de acordo com os critérios científicos estabelecidos no campo a psicologia.
  • Conselho Federal de Psicologia. (1997). Resolução CFP nº 11, de 20 de outubro de 1997. Dispõe sobre a realização de pesquisas com métodos e técnicas não reconhecidas pela psicologia.
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    24 Set 2023
  • Aceito
    25 Set 2023
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