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Do príncipe triste ao rei médico de almas

Resumos

Este artigo investiga a função do relato do rei português Dom Duarte (1391-1438) sobre sua experiência pessoal com a tristeza na obra Leal Conselheiro. Conclui-se que o recurso ao argumento autobiográfico confere confiabilidade ao discurso consolatório, ao mesmo tempo em que indica a importância da análise da própria dor na constituição de sua medicina da alma.

Medicina da alma; consolação; tristeza; dor; Dom Duarte


Le but de ce travail est d'investiguer le rôle du récit de l'expérience personnelle de la tristesse du roi portugais Dom Duarte (1391-1438) dans son œuvre Le conseiller loyal [Leal Conselheiro]. Nous concluons que l'argument autobiographique fait preuve de la fiabilité du discours consolateur en même temps que cela dit de l'importance de l'analyse de sa propre douleur dans la constitution de sa médecine de l'âme.

Médecine de l'âme; consolation; tristesse; douleur; Dom Duarte


Este artículo investiga la función del relato del rey portugués Don Duarte (1391-1438) sobre su experiencia personal con la tristeza en la obra Leal Conselheiro. Se concluye que el recurso al argumento autobiográfico confiere confiabilidad al discurso de consuelo y al mismo tiempo indica la importancia del análisis del dolor propio en la constitución de su medicina del alma.

Medicina del alma; consuelo; tristeza; dolor; Don Duarte


This article investigates the function of the Portuguese King Duarte's (1391-1438) own experience with sadness in his work Leal Conselheiro (Loyal Counselor). The autobiographical description makes the discourse of consolation more reliable and indicates the importance of his self-analysis in his medicine of the soul.

Medicine of the soul; consolation; sadness; pain; King Duarte


ARTIGO

Do príncipe triste ao rei médico de almas* * Pesquisa realizada com apoio da Fapesp.

Paulo José Carvalho da Silva

RESUMO

Este artigo investiga a função do relato do rei português Dom Duarte (1391-1438) sobre sua experiência pessoal com a tristeza na obra Leal Conselheiro. Conclui-se que o recurso ao argumento autobiográfico confere confiabilidade ao discurso consolatório, ao mesmo tempo em que indica a importância da análise da própria dor na constituição de sua medicina da alma.

Palavras-chave: Medicina da alma, consolação, tristeza, dor, Dom Duarte

RESUMEN

Este artículo investiga la función del relato del rey portugués Don Duarte (1391-1438) sobre su experiencia personal con la tristeza en la obra Leal Conselheiro. Se concluye que el recurso al argumento autobiográfico confiere confiabilidad al discurso de consuelo y al mismo tiempo indica la importancia del análisis del dolor propio en la constitución de su medicina del alma.

Palabras claves: Medicina del alma, consuelo, tristeza, dolor, Don Duarte

RÉSUMÉ

Le but de ce travail est d'investiguer le rôle du récit de l'expérience personnelle de la tristesse du roi portugais Dom Duarte (1391-1438) dans son œuvre Le conseiller loyal [Leal Conselheiro]. Nous concluons que l'argument autobiographique fait preuve de la fiabilité du discours consolateur en même temps que cela dit de l'importance de l'analyse de sa propre douleur dans la constitution de sa médecine de l'âme.

Mots clés: Médecine de l'âme, consolation, tristesse, douleur, Dom Duarte

ABSTRACT

This article investigates the function of the Portuguese King Duarte's (1391-1438) own experience with sadness in his work Leal Conselheiro (Loyal Counselor). The autobiographical description makes the discourse of consolation more reliable and indicates the importance of his self-analysis in his medicine of the soul.

Key words: Medicine of the soul, consolation, sadness, pain, King Duarte

Um dos mais antigos modos de tratamento psicológico é a consolação, isto é, a ação de consolar, animar ou confortar alguém que sofre, por meio da palavra escrita ou de uma conversa (Jackson, 1999). Desde a Antigüidade, os tratados, manuais e cartas escritos por consoladores célebres mostram que essa arte misturava consolação e aconselhamento.

A função de consolador representava uma constituinte fundamental do filósofo enquanto médico de almas (Jackson, 1999). Os termos da consolação dependiam da escola filosófica a qual pertencia o consolador. Entretanto, os argumentos mais comuns convergiam para o apelo à razão no domínio das emoções ou paixões da alma. Estava em jogo na arte persuasiva da consolação um exercício pedagógico, mas seu funcionamento dependeria, em última instância, de uma decisão pessoal de como utilizar a ocasião do presente para racionalmente superar a paixão e dar continuidade à vida, sem sofrer demasiadamente pelas perdas do passado, nem temer as futuras dores e os golpes da fortuna.1 1 . Um exemplo dessa antiga prática de intervenção psicológica é o Consolação a Márcia ( Ad Marciam de Consolatione), escrita pelo homem político e pensador latino Sêneca, publicada recentemente na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (Sêneca, 2007). Trata-se de carta pública endereçada a uma nobre romana que perdera um filho e que divulga preceitos fundamentais da ética estóica renovada a fim de abreviar o luto prolongado, temperar os sofrimentos e refrear a paixão pela morte por meio da qual Márcia poderia adoecer moralmente (Silva, 2007).

McClure (1991) observa que a literatura dos séculos XIV e XV revitalizou a produção de manuais de consolação nos contextos retórico, filosófico, social e religioso. Ele menciona a produção de uma literatura de autoconsolação, como é o caso das obras De remediis e Secretum,do humanista Francesco Petrarca (1304-1374). O poeta italiano utilizou-se da arte da retórica como meio de cura para os males da alma e reformatou um gênero antigo ao colocar os problemas do indivíduo no centro das suas reflexões.

De modo geral, uma das características fundamentais da arte de consolar praticada nos primórdios da modernidade era a ênfase na vivência pessoal, o que conferia maior profundidade, legitimidade e popularidade ao gênero (McClure, 1991). Além disso, a idéia da decisão pessoal no processo de consolação era ainda mais enfatizada pelos consoladores daquele período.

Um exemplo particular dessa longa tradição é justamente a obra do décimo primeiro rei português Dom Duarte I (1391-1438), o Leal Conselheiro. Em Portugal do século XV, a ruptura com o pensamento medieval advogada pelos humanistas italianos não havia sido estabelecida, mas já se praticava uma nova maneira de pensar o tratamento das dores da alma, sem, com isso, abandonar o modo medieval de entender o homem.

Novidade para a época, o Leal Conselheiro foi concebido para ser lido, não em voz alta para grande auditório, mas individualmente, em ambiente de recolhimento. O objetivo do mesmo era instruir a nobreza sobre um modo de conduta que se baseava, por um lado, na experiência do autor enquanto monarca cristão e, por outro, em leituras de fontes clássicas que começavam a circular e receber traduções e comentários na Península Ibérica do início do século XV (Castro, 1998, p. 2). Conjetura-se que o livro tenha sido escrito nos últimos três anos de vida do soberano, que desapareceu na peste de 1438. Ele pode ter sido finalizado ainda sob o impacto da morte do irmão do rei, o príncipe Fernando, em cativeiro após tentativa malsucedida de conquistar Tanger, em 1437.

Na realidade, Dom Duarte (1998) afirma que o escreveu para atender ao pedido de sua esposa, a rainha Dona Leonor de Aragão (1402-1455) que, segundo ele, desejava um tratado sobre o bom regimento das consciências e vontades. O seu tratado caracteriza-se por uma reflexão biográfica organizada de modo a servir de exemplo para o leitor. Como ele mesmo afirma: "E a Nosso Senhor Deos em grande mercee terria, se, de minha vida, feitos e dictos, muitos filhassem proveitosa ensinança e nunca o contrario" (p. 8).

O fato de o tratado ser baseado essencialmente na experiência pessoal do autor serve de argumento para a sua confiabilidade. Desde os consoladores antigos, há uma tensão entre o individual e o universal na apresentação dos tópicos da consolação. Com Dom Duarte isso se intensifica e o relato de sua experiência funciona justamente como argumento de que se trata de uma prática, e não apenas de especulação teórica, e que essa prática tem resultados comprovados. Todo conselheiro deve dar provas morais de que há algo que o autoriza a ocupar esse lugar. Normalmente, trata-se de um sábio experimentado, homem já com idade e experiência de vida o suficiente para atestar a validade dos princípios éticos que ele defende, apesar de demonstrar também certa modéstia e prudência. Nesse caso, é o próprio soberano do reino que se coloca nessa posição.

Dom Duarte também explica que, por se tratar do governo das paixões e outras forças da alma, portanto, da prática do hábito virtuoso, faz-se necessário escrever a partir da experiência ou, em suas palavras, do que "sinto e vejo na maneira de nosso viver, que per studo de livros nem ensino de leterados" (p. 9).

Ele insiste que conhecer a experiência do outro, ou seja, saber como o outro se sentiu, o que ele padeceu e como recobrou a saúde é muito reconfortante. Isso sobretudo no caso da tristeza, pois o triste crê que outros jamais sofreram tanto e que seu estado é irreversível. Considera particularmente consolador saber que alguém de "grande stado" e de grande estima tenha sofrido de uma grave tristeza e encontrado a cura.

Vale lembrar que, naquela época, acreditava-se que o monarca ocupava, para o reino, a mesma posição que a alma representa para o corpo, em uma analogia com o lugar de Deus em relação ao universo. Esse tipo de comparação não era apenas efeito retórico. Pelo contrário, servia de comprovação do caráter natural do reino como forma política. Entre outras obras medievais, o De regno,de Tomás de Aquino (1225-1274), afirma que, no regime monárquico, em analogia ao corpo humano, o rei desempenhava a função de cabeça ou coração de seu povo.2 2 . Sobre o padrão orgânico como norma de interpretação das instituições no pensamento da Idade Média, ver o estudo clássico de E.H. Kantorowicz, Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval, 1998. Haveria, então, nessa perspectiva, alguém melhor para consolar e aconselhar?

Por seu caráter autobiográfico e analítico, o Leal Conselheiro consiste em uma fonte singular para o estudo da história da psicopatologia e mesmo do desenvolvimento psicológico. Ele descreve, discute e analisa o sofrimento humano e suas conseqüências na formação do caráter, a partir de sua visão pessoal e por meio do arcabouço teórico da tradição filosófica da consolação, inclusive, de autores como Sêneca (4a.C-65) e João Cassiano (360/365-435), além da psicologia aristotélico-tomista. O pensamento médico de Avicena (980-1037) também é uma referência importante para suas reflexões sobre a saúde física e mental.

Assim, a obra desse rei médico de almas pode ser relevante para o estudo das idéias do passado sobre as diferentes manifestações psicopatológicas. Dom Duarte tomou o cuidado de diferenciar tristeza, nojo, pesar, desprazer, aborrecimento e saudade. Apesar de distintos, todos esses afetos estariam relacionados em grau de intensidade, gravidade e duração, do mais incômodo e contínuo ao mais suave e efêmero.

Mesmo o afeto da tristeza teria diferentes causas. Ela pode ser, principalmente, gerada do medo da morte, desonra, dor ou padecimento espiritual e corporal. E também da "sanha" não vingada; de um desejo não realizado; do "nojo" sentido com uma perda, prisão ou enfermidade; da doença do humor melancólico; de conversas com outras pessoas tristes ou mesmo da desesperança de levar uma vida alegre.

Para todas as causas, o remédio sugerido é a fé, mas não somente, como se pode verificar no relato de sua própria tristeza.

O príncipe triste

Dom Duarte (1998) afirma ter sofrido, por mais de três anos, da tristeza atribuída à doença do humor melancólico. Ele propõe, então, contar a história de seu padecimento: o começo, o desenvolvimento e a sua cura.

Quando tinha 22 anos, por ordem do pai, assumiu encargos de soberano, o que o obrigava a uma rotina de trabalho confinada ao gabinete e ao trato de assuntos de corte ao longo do dia até a noite. Como ele mesmo diz, não tinha tempo para suas atividades favoritas, a cavalaria: "Monte, caça mui pouco usava" (p. 74).3 3 . Não é sem razão que o Leal Conselheiro seria, posteriormente, publicado conjuntamente a seu manual de cavalaria, o Livro de ensinança a bem cavalgar toda sela.

Tal vida lhe gerou grande desgosto. No começo, até acreditou que desapareceria, mas a tristeza só aumentou, durando vários meses. Na ocasião de uma visita do pai, passou também a sentir dor em uma perna: "E por esto a tristeza, que de tanto tempo em mim se criava, mais se dobrou. E uu dia me deu grande sentimento em ua perna, e me fez tal door com queentura, que me pos em grande alteraçom" (p. 75).

Curou-se, logo, dessa dor na perna, mas começou a sentir um medo da morte que fez diminuir o seu prazer de viver na medida em que aumentou mais ainda sua tristeza. Nessa fase, nada confortava seu mal do corpo e da alma, nem mesmo os médicos, confessores ou amigos.

Dom Duarte relata, então, que decidiu entregar-se à vontade divina e manter-se fiel à moral autorizada pela Igreja. O que significava aceitar os acidentes da vida e não ceder ao desejo de alívio prometido por gozos não autorizados pela religião. Ele afirma que recusou o conselho médico de tomar vinhos fortes ou manter relações sexuais, o que era, de fato, recomendado aos melancólicos.4 4 . Dom Duarte retoma dois tópicos fundamentais da antiga arte da consolação. Reforça a idéia segundo a qual a dor deve ser vencida pela vontade e o preceito da aceitação do destino, em seu caso, entendido como desígnio divino.

Nesse período, sofreu também a perda de sua mãe, que morreu de "pestelencia". Na realidade, relata que velou pela mãe, e devido ao grande sentimento, perdeu seu receio pessoal, dedicando-se à mãe, em suas palavras: "como se tal door nom sentisse". Segundo Dom Duarte (1998), foi esse o início de sua recuperação: "E aquesto foi o começo de minha cura, porque sentindo ela, leixei de sentir a mim. E veerque alguu spaço fora leixado do dicto cuidado, recreceo-me por algua sperança, que viiria a perfeito curamento" (p. 76).

A partir daquela experiência, ganhou esperança, mas ainda sofreu "com a dicta doença" por mais três anos, melhorando pouco a pouco, porém, sem ainda ser capaz de sentir prazer livremente como antes fazia. Do mesmo modo que algumas pessoas perdem o gosto pela comida e depois o recobram, ele relata ter perdido e reavido o prazer. Sem o intermédio dos médicos ou outro expediente, ele venceu a tristeza.

Aliás, salienta que se tornou ainda mais saudável do que antes. Já que muitos se desesperam e acabam até mesmo se matando, conta sua experiência para inspirar a esperança: "Por ende eu entendo que muitos no que sobr'esto tenho scripto, e adiante screvo, ainda que per fundamento desvairados sintom a tristeza, devem, com a graça de Deos, haver esforço, conselho e avisamento, com grande parte de boa esperança" (p. 77).

Como ele mesmo afirma, o que foi decisivo para a superação daquele estado d'alma, iniciado com a obrigação de desempenhar uma atividade contra vontade, foi justamente ter se dedicado a uma outra atividade com a qual pôde envolver-se: os cuidados com sua mãe nos tempos duros da peste. Parece ser o amor o afeto que fez a diferença. O que ele não analisa, mas indica, é que a sua tristeza foi gerada na relação com o pai e dissolvida na relação com a mãe.

Em comparação, avalia que o regime alimentício, conforme mandavam os médicos, ajudou pouco. A fim de reequilibrar o corpo destemperado, ele menciona a correção do regime de sono e moderação na bebida. Usava também de "pirulas comuus", mas adverte para prudência no emprego das purgas, sangrias e vômitos.

Entretanto, admite o efeito benéfico de algumas prescrições tradicionais para o alívio da tristeza. Escreve que encontrava melhora em atividades de monta e caça, bem como na companhia de bons e sábios amigos e com a leitura de livros virtuosos. Também evitava estar ocioso: "E sempre achei, mui proveitosa, boa ocupaçom de honestos e razoados trabalhos do corpo e do entender pera taes sentidos e a ociosidade muito contraria" (p. 80).

Ele insiste na importância da fé para vencer com paciência as tristezas. As virtudes mostram-se fundamentais: prudência, justiça, temperança e fortaleza. Mas, por mais moralizante que seja seu discurso, está também embasado em uma análise das paixões da alma e seus efeitos no corpo.

Na cura da tristeza, há um duplo trabalho a ser realizado: um da ordem da vontade e outro da razão. A tristeza estaria relacionada à lembrança e existiriam dois tipos de lembranças, uma do coração, que normalmente é passageira, e outra da cabeça, que pode acabar por fazer com que a tristeza seja sentida enquanto durar a dita lembrança. É justamente para operar na razão que servem os "boos avisamentos".

Há ainda uma outra "maneira da tristeza" muito mais forte. Essa tira o sono e o apetite, traz dor ao coração, grandes temores e amofinação. É um sentimento muito perigoso, que pode até mesmo levar ao suicídio ou morte natural, por falta de alimento e de descanso, e devido às dores geradas. Pode ainda levar à loucura. A causa pode ser uma grande desventura, males e perdas, além de fantasias desconcertadas.

Nesse caso, Dom Duarte afirma não conhecer outro remédio senão a fé e os sacramentos, o que acompanha a resolução de uma vida virtuosa. Também recomenda não ficar sozinho, procurando a companhia de pessoas discretas e devotas para ajudarem a suportar tal estado, afastando-se o máximo possível das coisas passadas, presentes ou futuras nas quais a tristeza pode ter seu fundamento. Convém, igualmente, respeitar o regime prescrito pela medicina.

Dom Duarte examina, em detalhe, como o enfadamento pode causar tristeza. Em primeiro lugar, conforme sua própria experiência pessoal, salienta o risco de trabalhar muito em algo que não agrada. Também se refere ao cansaço, falta de tempo para descanso, enfermidade corporal, pesar ou outro sentimento desagradável desencadeado pela vontade desordenada.

Embora aposte na função da comunicação de sua experiência, recomenda que cada pessoa investigue as causas específicas da sua tristeza, o que permitiria buscar o remédio apropriado: "E parece-me seer necessario, ainda que o nome seja geeral, cada uu conhecer, quando tal sentir, donde lhe vem e saber-lhe buscar com a graça do Senhor, dereitos remedios. E para mim em geeral achei estes" (p. 88).

Se o enfadamento vem do desprazer, convém buscar, evidentemente, seu contrário em alguma atividade prazerosa. Algum descanso também é bom remédio, assim como ler, escrever, falar e gozar de boa companhia, conforme os gostos pessoais. O amor conjugal também é recomendado: "que boa, sages, bem parecente e graciosa molher, com que homem seja casado, e se muito amem é grande remedio contra a tristeza e enfadamento" (p. 90). Se a causa do enfadamento for alguma enfermidade, vale a lembrança de que a tristeza passará com a cura da mesma.

De modo geral, para a cura da tristeza, são necessários três poderes: governar o corpo, o sentir, e o entender e a razão. Para o corpo, há o bom regime de vida: "E pera esto é de saber que o poderio de crescer e governar requere com, bever, dormir e, lançando fora toda sobegidõe daquelo em que se sostem, de se ja manteer o corpo em saude, e necessario lhe convem trabalho e folgança" (p. 92).

Para o domínio do sensível, há o prazer: "E o sentir demanda cousas ligeiras de passar com prazer, com toda deleitaçom da voontade, sem reguardando seer bem feito segundo razom e lei do Senhor Deos" (p. 92).

Para a razão e o entendimento, há a ação, de preferência uma atividade deliberada e edificante: "E o do entender requere bem fazer com folgança em cuidar de compoer em obra, e em obrando, e des que o tem feito, nembrandolhes que o fez, seendo obra em si boa e bem feita, ou lhe pareça que é tal, ainda que o nom seja" (p. 92).

Por essa razão, não é correto apenas agir no corpo, na correção dos humores, por meio das purgas e sangrias. Como há três poderes que podem estar implicados, essa ação seria limitada a apenas um deles, sendo que nem sempre é onde está a causa: "E a tristeza nom é sempre dali, mas vem da mingua de nom dar, a cada uu destes poderes, o que bem requere, cas e mal deseja, nom lhe é outorgar mas, com discreçom e boo conselho, vos trabalhae enquanto poderdes de conhecerdes vossos desfalecimentos" (p. 93).

Como mandava a tradição, a conversa é, de fato, um meio privilegiado de consolação. Mas não qualquer conversa. O consolador deve ser um amigo verdadeiro, com provas morais de poder ocupar tal posição, isto é, alguém que se encontra em boas condições para tanto, ou por já ter vivido a experiência e tê-la superado ou por sempre ter conseguido manter-se saudável.

O rei médico de almas

Uma interpretação segura da experiência relatada de superação da condição triste é justamente a do acento na fé. Afinal, Dom Duarte era um rei católico e a estabilidade da fé católica em seu reino dependia também de seu exemplo e conselho. Alenta-se, inclusive, que a fé teria, de fato, um valor, no mínimo, de motor para o processo terapêutico, estando diretamente relacionada à motivação e à esperança de cura (David-Peyre, 1980).

Entretanto, ao ler o relato de Dom Duarte é possível também pensar que se trata, além de uma experiência de superação de um estado d'alma, da descrição de uma dupla passagem. Em primeiro lugar, da passagem para a idade adulta, que implica abdicar do tempo livre para os muitos prazeres e assumir responsabilidades, muitas vezes, incompatíveis com os desejos próprios. Dom Duarte preferia a montaria ao gabinete do palácio. Ao se ver forçado a ocupar o lugar de responsabilidade, adoece. Somente após longo processo de aceitação de sua nova condição, supera sua tristeza, reequilibra seu corpo e sua alma, apruma-se e assume a pesada coroa que lhe era destinada.

A segunda passagem é a do enfermo ao médico de almas. Vários autores que se dedicaram à escrita sobre a melancolia e a tristeza o fizeram a partir de sua própria experiência. É justamente a tese defendida por Crignon-De Oliveira (2006) a propósito dos ingleses Robert Burton (1577-1640), autor do célebre Anatomia da melancolia, e de Anthony Ashley Cooper, conde de Shaftesbury (1671-1713). Ambos teriam produzido influentes obras sobre a melancolia tomando-a como o motor da escrita. A grande armadilha é que há uma dificuldade inerente a essa mesma empreitada. O fato de praticar o exame de si mesmo era considerado, ao mesmo tempo, um sintoma da melancolia, que atrai o indivíduo para dentro de si, e que, quando excessiva, leva ao embotamento e ao desinteresse pelo mundo e pela própria vida. Por outro lado, essa prática era também considerada o único remédio para o controle das fantasias e da imaginação sombria, que, conforme os seguidores da escola hipocrática, eram sinais de melancolia, junto com a tristeza e o medo.

Ao se comparar os casos desses melancólicos escritores ingleses ao do rei português, nota-se, mais uma vez, que a longa e diversificada tradição da medicina da alma solicitava uma delicada dinâmica entre o olhar ao interior e uma preocupação com o contexto social, um cuidado de si e do outro. Não foi apenas a reconquista da alegria que neutralizou a tristeza de Dom Duarte, conforme rezava a tradição médica do contrário cura contrário. Como já mencionado, em primeiro lugar, foi uma dor maior do que a que já sentia, a dor da perda da mãe.

Viver a tristeza não basta para fazer de alguém um médico de almas. Dedicar-se à reflexão sobre seus males parece ter sido, com efeito, muito importante no caso de Dom Duarte. Provavelmente, se tivesse simplesmente aceito os conselhos dos médicos teria até aliviado seus sintomas, mas não teria se tornado um conselheiro. Analisar as causas de sua tristeza o encaminhou para a constituição de sua autoria. Enfim, por que outra razão um rei escreveria uma análise sobre as dores da alma?

Não é novidade que se pode fazer um bom uso dos estados depressivos. Mas, retomando a questão de Fédida (2001) se é possível, como que por encantamento, reencontrar o desejo de viver, de sonhar e de agir, podemos pensar que o Leal Conselheiro, até certa medida, parece dizer que sim, mas responde que não. Não, porque se trata mais de experiência, elaboração e decisão.

É necessário, numa aproximação de dois tempos e discursos que apresentam tanto semelhanças como diferenças, fazer uma distinção importante. O papel do psicanalista e o do consolador não coincidem exatamente. Em alguns casos, o psicanalista até oferece algum conforto consolador. Mas seria um desastre para a condução de um tratamento dito psicanalítico se o psicanalista apenas aconselhasse e consolasse, ou ainda viver a ilusão de que pode fazê-lo como se fosse a cabeça do paciente, ou melhor, seu rei, no estilo medieval. Mesmo Dom Duarte admitiu que cada um deve procurar em si mesmo as causas de sua própria tristeza.

Ora, não é somente a ação de aconselhar que tem um limite; a de psicanalisar também encontra os seus. Além disso, em ambas é preciso dois, é preciso um encontro. No fundo, como já mostrava a antiga medicina da alma, para que esse encontro seja feliz, a decisão última é daquele que sofre, mas ainda deseja ir além da dor.

Versão inicial recebida em outubro de 2007

Versão aprovada para publicação em novembro de 2007

Paulo José Carvalho da Silva

Professor doutor do PEPG em História da Ciência, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (São Paulo, SP, Brasil)

Rua Marquês de Paranaguá, 111

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Fone: (11) 3124-7209 (11) 9248-9202

e-mail: paulojcs@hotmail.com

  • Castro, M. H. L. Introdução e notas. In: Dom Duarte. Leal Conselheiro Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998.
  • Crignon-de Oliveira, C. De la mélancolie à l'enthousiasme. Robert Burton (1577-1640) et Anthony Ashley Cooper, comte de Shaftesbury (1671-1713). Paris: Honoré Champion Éditeur, 2006.
  • David-Peyre, Y. Neurasthenie et croyance chez D. Duarte de Portugal. Arquivos do Centro Cultural Português Paris: Fundação Calouste Gulbenkian, 1980. p. 521-40.
  • Dom Duarte, Leal Conselheiro Edição crítica, introdução e notas de M. H. L. Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998.
  • Fédida, P. Des bienfaits de la dépression Éloge de la psychothérapie. Paris: Odile Jacob, 2001.
  • Jackson, S. W. Care of Psyche A History of Psychological Healing. New Haven/ London: Yale University Press, 1999.
  • Kantorowicz, E. H. Os dois corpos do rei Um estudo sobre teologia política medieval. Tradução C.K. Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
  • McClure, G. W. Sorrow and Consolation in Italian Humanism. Princeton: Princeton University Press, 1991.
  • Sêneca. Consolação a Márcia. Tradução M. Seincman. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental,São Paulo, v. X, n. 1, p. 156-81, mar.2007.
  • Silva, P. J. C. O ideal da consolação e a paixão pela morte. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. X, n. 1, p. 146-54, mar.2007.
  • Tomás de Aquino. Du Royaume Tradução M. M. Coltier. s.l.: Egeoff, 1946.
  • 1
    . Um exemplo dessa antiga prática de intervenção psicológica é o
    Consolação a Márcia (
    Ad Marciam de Consolatione), escrita pelo homem político e pensador latino Sêneca, publicada recentemente na
    Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental (Sêneca, 2007). Trata-se de carta pública endereçada a uma nobre romana que perdera um filho e que divulga preceitos fundamentais da ética estóica renovada a fim de abreviar o luto prolongado, temperar os sofrimentos e refrear a paixão pela morte por meio da qual Márcia poderia adoecer moralmente (Silva, 2007).
  • 2
    . Sobre o padrão orgânico como norma de interpretação das instituições no pensamento da Idade Média, ver o estudo clássico de E.H. Kantorowicz,
    Os dois corpos do rei. Um estudo sobre teologia política medieval, 1998.
  • 3
    . Não é sem razão que o
    Leal Conselheiro seria, posteriormente, publicado conjuntamente a seu manual de cavalaria, o
    Livro de ensinança a bem cavalgar toda sela.
  • 4
    . Dom Duarte retoma dois tópicos fundamentais da antiga arte da consolação. Reforça a idéia segundo a qual a dor deve ser vencida pela vontade e o preceito da aceitação do destino, em seu caso, entendido como desígnio divino.
  • *
    Pesquisa realizada com apoio da Fapesp.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Recebido
      Out 2007
    • Aceito
      Nov 2007
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