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Da maneira que fui doente do humor menencorico e d'el guareci

ENSAIO

Da maneira que fui doente do humor menencorico e d'el guareci* * Este texto corresponde ao capítulo XIX de Leal Conselheiro, de Dom Duarte. Edição crítica, introdução e notas de M. H. L. Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998. Recomenda-se ler em voz alta para facilitar a compreensão.

DOM DUARTE (1391-1438)

Por quanto sei que muitos forom, som, e ao diante seram tocados deste pecado de tristeza que procede da voontade desconcertada, que ao presente chamam, em os mais dos casos, doença do humor manencorico, do qual dizem os fisicos que vem de muitas maneiras per fundamentos e sentidos desvairados, mais de tres anos continuados fui d'el muito sentido, e per special mercee de Nosso Senhor Deos houve perfeita saude. Com a teençom que primeiro screvi, de alguus desta breve e simprez leitura filharem proveitosa ensinança e avisamento, prepus de vos screver o começo, perseguimento e cura que d'el houve, por tal que minha speriencia a outros seja exempro. Ca nom é pequeno conforto e remedio aos que som desto tocados saberem como os outros sentirom o que eles padecem, e houverom comprida saude, porque uu dos seus principais sentimentos é pensarem que outrem jamais nunca tal sentio que fosse tornado o seu boo stado em que antes era.

E por em esta desesperança é ua grande parte de seu sentimento, da qual por o que screvo razoadamente se devem tirar e tambem filham grande conforto, pensando que outros de grande stado e que som teudos em razoada stima forom desto sentidos, porque nom se desprezam tanto a si medês por receberem tal pensamento com tanto padecimento de tristeza, quando pensam que taes pessoas já tal passarom, porque este desprezo, que cada uu de si ha, é um grande aazo de sua tristeza, o qual tirado, e havida qualquer parte de boa sperança, logo começa d'haver saude e se faz muito desposto pera receber per a graça do Senhor Deos perfeita cura.

Quando eu era de XXII annos, el Rei meu senhor e padre, comprido de minhas virtudes, cuja alma Deos haja, despoendo-se pera filhar a cidade de Cepta, mandou-me que tevesse cárrego do conselho, justiça e da fazenda que em sa corte se trautava, porque tanto haveria de trabalhar nos feitos que perteenciam pera sua ida, que d'outros sem grande necessidade se nom entendia curar. Eu, nom consiirando minha nova idade e pouco saber, com dereita obediencia, como per mercee de Deos sempre em todo lhe guardei, e desi por grande voontade que havia de se proceder per o dicto feito, recebi sem outro reguardo todolos dictos cárregos, aos quaes me pus assi fora de boa descliçom, que na primeira quareesma que logo veeo, fazia tal vida:

Os mais dos dias bem cedo era levantado e, missas ouvidas, era na rolaçom ataa meo dia, ou acerca, e viinha comer. E, sobre mesa, dava odiencias per boo spaço. E retraia-me aa camera, e logo aas duas horas pos meo dia, os do conselho e veedores da fazenda erom commigo. E aturava com eles ataa IX horas da noite. E des que partiom com os oficiaes de minha casa estava ataa XI horas. Monte, caça mui pouco usava. E o paaço do dicto senhor vesitava poucas vezes, e aquelas por veer o que el fazia e de mim lhe dar conta.

Esta vida continuei ataa Pascoa, quabrando tanto minha voontade, que já nom sentia alguu prazer me chegar ao coraçom, daquele sentido que ante fazia. E pensava que aquelo da mudança da idade me viinha e que assi era comuu a todos. Porem delo me nom curava, mes tanto me carregou que filhei por grande pena nom poder no coraçom sentir alguu dereito sentimento de boa folgança. E com esto a tristeza me começou a crecer, nom com certo fundamento, mes de qualquer cousa que aazo se desse, ou d'alguas fantezias sem razom. E quanto mais aos cuidados me dava, tanto com maiores sentidos me seguia, nom podendo entender que dali me viinha, porque eu trabalhava em aqueles cárregos por as razões suso dictas tam de boa mente, que nom podia pensar que mal me vehesse por obrar no que me prazia, e tam contente era de o fazer.

Em aquesta pena vivi acerca de dez meses, a tempos e mais e menos. E porque o dicto Rei, meu senhor, se veo acerca da cidade de Lixboa, onde tal pestelença era, que poucos dias passavom que me nom falassem em pessoas conhecidas que de tramas adoeciam e morriam. E por esto a tristeza, que de tanto tempo em mim se creava, mais se dobrou. E uu dia me deu grande sentimento em ua perna, e me fez tal door com queentura, que me pos em grande alteraçom. E fui logo remediado, que per graça de Nosso Senhor em breve spaço recobrei saude, mas filhei uu tam rijo pensamento com receo de morte, que nom soomente temi aquela, mes a que todos scusar nom podemos, pensando na breveza da vida presente. E aquel pensamento entrou em meu coraçom, que per seis meses uu pequeno spaço nunca o d'el pude afastar, tirando-me todo prazer e acrecentando-me a maior tristeza segundo meu juizo que haver podia. Este me trazia tantas novas penas que seria largo d'escrever e comparar nom as poderia porque todalas doores pera esta me pareceria saude, da qual nom havia sperança de guarecer.

E, se com fe e conciencia me queria confortar, per o demudamento da tristeza muito era torvado, assi que atodo mal da alma e do corpo me derribava. E por tal temor se pode bem dizer o dicto de Gatom: "Quem teme a morte, perde quanto vive". E em outro logar: "Quem teme a morte, perde o prazer da vida." E de feito, não houvera conselho, remedio nem esforço que me valera, segundo entendo, porque com fisicos, confessores e amigos falava, e nom prestava cousa. Ca dos remedios, das curas, nom sentia vantagem. E confortos recebia tam poucos como aquel que, per enfermidade mortal dos fisacos desperado, recebe das palavras que lhe dizem ou que per justiça é julgado que logo moira, ca nom menos aquel temor, segundo entendia, era pera mim sempre lembrado e sentido.

Mes a graça do Senhor Deos e de Nossa Senhora Santa Maria me outorgou conhecimento que era infirmidade e tentaçom do immigo todo cuidado errado que me viinha. E determinei nom sair em cousa fora da pratica de meu viver que eu havia por boa e assi sabia, mercees ao Senhor, que per dignos d'outoridade era aprovada. E se morte, vida, saude ou enfermidade me vehesse, naquela quis que me achasse. Em esta teençom fui assi forte, que os conselhos d'alguus fisicos que me diziam que bevesse vinho pouco auguado, dormisse com molher, e leixasse grandes cuidados, todos desprezei, havendo toda minha sperança em no Senhor e sua mui Santa Madre. Esto per parte da razom e da fe solamente, ca o sentido e desejo do coraçom todo era derribado a mal fazer.

Em esta grande doença durei o tempo suso scripto calando-me com ela porque a poucos e pessoas certas d'outoridade falava. E de fora em toda minha maneira de viver fazia pequena mudança, nem mostramento do que sentia.

E estando em tal estado, a mui virtuosa Rainha, minha senhora e madre que Deos haja, de pestelencia se finou, do que eu filhei assi grande sentimento que perdi todo receo: a ela, em sa infirmidade, sempre me cheguei e a servi, sem alguu empacho, como se tal door nom sentisse. E aquesto foi começo de minha cura, por que sentindo ela, leixei de sentir a mim. E veer que alguu spaço fora leixado do dicto cuidado, recreceo-me por algua sperança, que viiria a perfeito curamento. E filhei mais ua maginaçom mui proveitosa, ca pensei que Nosso Senhor me dava tanta pena em peu coraçom por fazer emmenda de meus pecados e falicimentos, que milhor pera mim era sofrer aquela com paciencia e virtuosa maneira, ca recebe-la na outra vida ou naquesta per desonra, aleijamento ou taes perdas, que bem emendar nunca se podem, e perdas que daquel mal, como fosse são, per mercee do Senhor Deos cousa nom me ficaria.

E aqueste pensamento me deu esforço a pelejar com tal cuidado, como faria contra qualquer cousa contraira, ou tentaçom que me vehesse. E desto filhei grande esforço com paciencia e boa sperança, que som tres cousas pera tal caso muito necessarias. Porem depois aturei com a dicta doença acerca de tres annos, nom tam aficado, mas cada vez melhorando, nunca porem sentindo uu soo plazer chegar ao coraçom livremente como ante fazia. E, acabado o dicto tempo, per special mercee de Nosso Senhor Deos, eu houve acertamento d'estar por spaço de doos meses fora d'aficamentos, e em boa desposiçom de saude, e com boas folganças, sem filhar cada uu daqueles conselhos dos fisicos, nem outras meezinhas; subitamente senti chegar ao coraçom como devia, e parecia-me que daquela guisa que, per cadarrom, homem perde o dereito gosto das viandas e depois cobra, que assi perdera e recorara o dicto sentido das folganças e prazer.

E dali avante eu fui assi perfeitamente são como se de tal sentimento nunca fora tocado. E ao presente, graças a Deos, eu me tenho em geeral por mais ledo que era ante que da dicta infirmidade fosse sentido. Esto por nom filhar aquel prazer assi rijo em alguas cousas como fazem os da nova idade, ca bem penso que desque passa, tal nom se filha, mes por grande custume as cousas contrairas, que muitas vezes me davam grande torvaçom, com seguro e repousado coraçom as passo. E assi, consiirando o bem d'avantagem que sinto desta temperança e forteleza, me tenho na conta suso scripta, o que vos screvo por acrecentar aos da tristeza geeral tentados boa sperança, que muito lhes falece, a qual é fundamento de sua cura e saude. E per esta guisa muitos adoecem de tristeza que sempre reina em seus corações, e por nom poderem sofrer e desperarem de saude, se matom ou se vão a perder onde nunca parecem. Uus por perdas que houveram, cousas de vergonça que lhes aconteceo, nojo ou medo que sobejo e continuadamente sentem.

Por ende eu entendo que muitos no que sobr'esto tenho scripto, e adiante screvo, ainda que per fundamento desvairados sintom a tristeza, devem, com a graça de Deos, haver sforço, conselho e avisamento, com grande parte de boa sperança.

DOM DUARTE (1391-1438)

Décimo primeiro rei português, autor também do Livro de ensinança a bem cavalgar toda sela.

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    Este texto corresponde ao capítulo XIX de
    Leal Conselheiro, de Dom Duarte. Edição crítica, introdução e notas de M. H. L. Castro. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1998. Recomenda-se ler em voz alta para facilitar a compreensão.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Mar 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 2007
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