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O Esboço de psiquiatria forense de Franco da Rocha

El Esbozo de Psiquiatría Forense de Franco da Rocha

Outline of Forensic Psychiatry, by Franco da Rocha

L'Esquisse de Psychiatrie Légale de Franco da Rocha

Resumos

O artigo apresenta o livro Esboço de Psiquiatria Forense (1904) de Francisco Franco da Rocha (1864-1933). A obra é uma das primeiras publicações psiquiátricas brasileiras dedicadas à psiquiatria forense e apresenta uma extensa classificação das moléstias mentais proposta pelo próprio autor, com base nas classificações de Teixeira Brandão, Shüle e Krafft-Ebing, e ilustrada com exemplos de sua experiência clínica no Hospício do Juqueri, dirigido por Franco da Rocha de 1898 a 1923. O autor tem como perspectiva teórica o organicismo difuso, próprio dos adeptos da teoria da degeneração, e defende a necessidade do psiquiatra zelar pela defesa da sociedade frente aos alienados perigosos, enquanto perito na esfera jurídica.

Psiquiatria forense; psicopatologia; degeneração; defesa social; Franco da Rocha; Hospício do Juqueri


El articulo presenta el libro Esbozo de Psiquiatría Forense (1904) de Francisco Franco da Rocha (1864-1933). La obra es una de las primeras publicaciones psiquiátricas brasileñas dedicadas a la psiquiatría forense y presenta una extensa clasificación de las molestias mentales propuesta por el propio autor, con base en las clasificaciones de Teixeira Brandão, Shüle e Krafft-Ebing, e ilustrada con ejemplos de su experiencia clínica en el hospicio do Juqueri, dirigido por Franco da Rocha de 1898 a 1923. El autor tiene como perspectiva teórica el organicismo difuso, propio de los adeptos de la teoría de la degeneración, y defiende la necesidad de que el psiquiatra cele por la defensa de la sociedad frente a los alienados peligrosos en tanto perito en la esfera jurídica.

Psiquiatría forense; psicopatología; degeneración; defensa social; Franco da Rocha; Hospicio do Juqueri


This article discusses the book entitled Esboço de Psiquiatria Forense [Outline of Forensic Psychiatry] (1904), by Francisco Franco da Rocha (1864-1933). This book was one of the earliest Brazilian psychiatric publications dedicated to forensic psychiatry, and presents an extensive classification of mental diseases as proposed by the author himself, based on the classifications of Teixeira Brandão, Schüle and Krafft-Ebing. The book was illustrated with examples from Franco da Rocha's personal clinical experience at the Juqueri Asylum, directed by him from 1898 to 1923 and which now bears his name. His theoretical perspective is a diffuse organicism proper to believers in the theory of degeneration. As an expert in legal matters, he posited the need for psychiatrists to care for the defense of society against dangerous mentally alienated persons.

Forensic psychiatry; psychopathology; degeneration; social defense; Franco da Rocha; Juqueri Asylum


Cet article présente le livre Esquisse de Psychiatrie Légale (1904) par Francisco Franco da Rocha (1864-1933). L'oeuvre est une des premières publications psychiatriques brésiliennes dédiées à la psychiatrie légale. Ce livre présente une longue classification des maladies mentales proposée par l'auteur, qui prend pour base les classifications de Teixeira Brandão, Schüle et Krafft-Ebing et les illustres avec de nombreux exemples provenant de son expérience clinique à l'Hospice de Juqueri, sous sa direction de 1898 à 1923. L'auteur adopte la perspective théorique de l'organicisme diffus, propre des partisans de la théorie de la dégénération, et défend la théorie selon laquelle le psychiatre devrait défendre la société des aliénés dangereux en tant qu'expert du domaine juridique.

Psychiatrie légale; psychopathologie; dégénération; défense sociale; Franco da Rocha; Hospice de Juqueri


HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA

ARTIGO

O Esboço de psiquiatria forense de Franco da Rocha

El Esbozo de Psiquiatría Forense de Franco da Rocha

L'Esquisse de Psychiatrie Légale de Franco da Rocha

Outline of Forensic Psychiatry, by Franco da Rocha

Francis Moraes de Almeida

RESUMO

O artigo apresenta o livro Esboço de Psiquiatria Forense (1904) de Francisco Franco da Rocha (1864-1933). A obra é uma das primeiras publicações psiquiátricas brasileiras dedicadas à psiquiatria forense e apresenta uma extensa classificação das moléstias mentais proposta pelo próprio autor, com base nas classificações de Teixeira Brandão, Shüle e Krafft-Ebing, e ilustrada com exemplos de sua experiência clínica no Hospício do Juqueri, dirigido por Franco da Rocha de 1898 a 1923. O autor tem como perspectiva teórica o organicismo difuso, próprio dos adeptos da teoria da degeneração, e defende a necessidade do psiquiatra zelar pela defesa da sociedade frente aos alienados perigosos, enquanto perito na esfera jurídica.

Palavras-chave: Psiquiatria forense, psicopatologia, degeneração, defesa social, Franco da Rocha, Hospício do Juqueri

RESUMEN

El articulo presenta el libro Esbozo de Psiquiatría Forense (1904) de Francisco Franco da Rocha (1864-1933). La obra es una de las primeras publicaciones psiquiátricas brasileñas dedicadas a la psiquiatría forense y presenta una extensa clasificación de las molestias mentales propuesta por el propio autor, con base en las clasificaciones de Teixeira Brandão, Shüle e Krafft-Ebing, e ilustrada con ejemplos de su experiencia clínica en el hospicio do Juqueri, dirigido por Franco da Rocha de 1898 a 1923. El autor tiene como perspectiva teórica el organicismo difuso, propio de los adeptos de la teoría de la degeneración, y defiende la necesidad de que el psiquiatra cele por la defensa de la sociedad frente a los alienados peligrosos en tanto perito en la esfera jurídica.

Palabras claves: Psiquiatría forense, psicopatología, degeneración, defensa social, Franco da Rocha, Hospicio do Juqueri

RÉSUMÉ

Cet article présente le livre Esquisse de Psychiatrie Légale (1904) par Francisco Franco da Rocha (1864-1933). L'oeuvre est une des premières publications psychiatriques brésiliennes dédiées à la psychiatrie légale. Ce livre présente une longue classification des maladies mentales proposée par l'auteur, qui prend pour base les classifications de Teixeira Brandão, Schüle et Krafft-Ebing et les illustres avec de nombreux exemples provenant de son expérience clinique à l'Hospice de Juqueri, sous sa direction de 1898 à 1923. L'auteur adopte la perspective théorique de l'organicisme diffus, propre des partisans de la théorie de la dégénération, et défend la théorie selon laquelle le psychiatre devrait défendre la société des aliénés dangereux en tant qu'expert du domaine juridique.

Mots clés: Psychiatrie légale, psychopathologie, dégénération, défense sociale, Franco da Rocha, Hospice de Juqueri

ABSTRACT

This article discusses the book entitled Esboço de Psiquiatria Forense [Outline of Forensic Psychiatry] (1904), by Francisco Franco da Rocha (1864-1933). This book was one of the earliest Brazilian psychiatric publications dedicated to forensic psychiatry, and presents an extensive classification of mental diseases as proposed by the author himself, based on the classifications of Teixeira Brandão, Schüle and Krafft-Ebing. The book was illustrated with examples from Franco da Rocha's personal clinical experience at the Juqueri Asylum, directed by him from 1898 to 1923 and which now bears his name. His theoretical perspective is a diffuse organicism proper to believers in the theory of degeneration. As an expert in legal matters, he posited the need for psychiatrists to care for the defense of society against dangerous mentally alienated persons.

Key words: Forensic psychiatry, psychopathology, degeneration, social defense, Franco da Rocha, Juqueri Asylum

Francisco Franco da Rocha (1864-1933), natural do interior de São Paulo, realizou sua formação na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, sendo aluno de João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921) e adepto da corrente francesa de psiquiatria, que à época predominava no país. Após concluir sua formação, Franco da Rocha volta a São Paulo e, em 1893, é nomeado para compor o corpo médico do Hospício de Alienados deste estado. A partir de então, passa a reivindicar, junto aos dirigentes estaduais, a criação de um novo hospício, projetado segundo os modernos critérios da psiquiatria, opondo-se veementemente à proposta leiga de descentralização da assistência aos alienados que então tramitava no governo (Pereira, 2003, p. 155). Sua proposta vence e, em 1895, começa a ser construída nova instituição e, no ano seguinte, é nomeado diretor clínico do Hospício de Alienados de São Paulo (Cunha, 1986, p. 63-5). Em 1898 é inaugurado o novo hospício, que nos anos seguintes passa a se chamar Hospício de Juquery, sendo dirigido por Franco da Rocha desde sua fundação até 1923 (Pacheco e Silva, 1945).

Esta seção "História da Psiquiatria" aborda o livro Esboço de psiquiatria forense, publicado por Franco da Rocha em 1904,1 1 A data de publicação da obra consta como 1904, contudo, no pequeno prefácio intitulado "Advertência", Franco da Rocha assina "São Paulo, Janeiro de 1905", o que parece indicar que o livro foi publicado em 1905. Neste artigo, optou-se por manter a data referida na folha de rosto do livro. do qual foram selecionados três fragmentos: as páginas iniciais da introdução; a seção do terceiro capítulo, que trata da imputabilidade criminal; e as páginas iniciais da segunda parte do livro, nas quais o autor apresenta sinteticamente a sua classificação das moléstias mentais. As páginas seguintes têm como objetivo mostrar, panoramicamente, os principais elementos da obra, detendo-se em alguns tópicos relevantes para a contextualização dos fragmentos adiante apresentados.

Franco da Rocha adverte seu leitor, desde as primeiras páginas do livro, que não escreveu a obra para especialistas. Seu alvo são aqueles que possuem pouca familiaridade com a matéria da psiquiatria forense e, quando confrontados com questões referentes à capacidade ou responsabilidade penal de um indivíduo, carecem de um guia geral. Para ser coerente com este objetivo, o autor emprega uma linguagem simples, evitando as longas passagens em língua estrangeira e o abundante uso de termos técnicos sem definição explícita na própria obra, comuns em escritos dos intelectuais brasileiros à época. Sua opção de escrita é avessa à síntese, ao longo das 480 páginas do livro, ele descreve, analiticamente, todas as causas etiológicas, classes sintomatológicas e classificações psicopatológicas, utilizando casos clínicos à guisa de exemplo.

Já na introdução da obra o autor realiza uma referência de cunho etnopsiquiátrico que merece destaque. Segundo ele, o perito deve considerar o meio social ao examinar um paciente sobre o qual recai a suspeita de loucura a fim de evitar diagnósticos equivocados. Franco da Rocha afirma que as camadas que compõem a sociedade são representadas pelas três fases da evolução mental da humanidade, definidas por Comte:2 2 Em um de seus mais famosos escritos, conhecido como Opúsculo Fundamental, Comte definiu esta "lei dos três estados": "Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos está necessariamente sujeito, em sua marcha, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o metafísico ou abstrato, e, enfim, o científico ou positivo" (Comte, 1822, p. 82). uma maioria teológica (termo que ele alterna com "fetichista" em seu texto); um grupo intermediário na fase metafísica; e uma minoria na fase positiva. Além disso, na loucura nota-se uma tendência do regresso da mentalidade do paciente ao estado teológico (Franco da Rocha, 1904, p. 3), o que explicaria o predomínio de tal conteúdo nos delírios dos pacientes internados, como ele explica adiante no livro.

Observe-se que esta influência positivista de Franco da Rocha não era decorrente de anacronismo, pois Comte ainda gozava de popularidade no meio intelectual brasileiro da virada do século. No mesmo ano em que foi publicado Esboço de psiquiatria forense, o Rio de Janeiro foi palco do incidente conhecido como Revolta da Vacina, movimento popular motivado pela instauração da obrigatoriedade da vacina contra a varíola e que contou com o apoio de militares positivistas, opositores do governo de Rodrigues Alves, e defensores do argumento que a teoria microbiana das doenças, defendida por Pasteur, era falsa porque contradizia a doutrina de Comte sobre a patologia (Carvalho, 1987, p. 123). Os psiquiatras com influência comtiana não se mostravam tão sectários como os intelectuais militares3 3 Teixeira Brandão, um francófilo indiscutível e simpatizante das teorias de Comte, foi o relator do projeto de lei que instituiu a vacinação obrigatória em 1904 (Teixeira, 2001, p. 58). e, embora não numerosos, ainda podiam ser encontrados, nas décadas seguintes, em outros Estados do Brasil.4 4 Em 1925, no discurso de inauguração do Manicômio Judiciário do Rio Grande do Sul, o psiquiatra Jacintho Godoy resume da seguinte forma o progresso da psiquiatria até sua época: "A psiquiatria não escapou à lei dos três estados, religioso, metafísico e positivo. No estado religioso, completamente divorciado da medicina, o alienado considerado como um possesso do demônio é encarcerado nas prisões. A reforma de Pinel inaugura o período metafísico e a psiquiatria ingressa no domínio propriamente médico, mas o caráter essencialmente filantrópico da reforma desse grande homem explica as tendências puramente filosóficas e psicológicas desse estado. É com Morel que começa o estado positivo, verdadeiramente científico, em que a noção da etiologia tóxica ou infecciosa serve de base a uma classificação nosológica" (Godoy, 1955, p. 72).

A primeira parte do trabalho (que ocupa as primeiras duzentas páginas) está dividida em três capítulos: 1º noções de etiologia; 2º sintomatologia geral; 3º perícia psiquiátrica. No capítulo sobre a "Etiologia geral", Franco da Rocha classifica as "causas da loucura" como cerebrais e extracerebrais, segundo ele: "Às causas cerebrais, inerentes ao órgão psíquico, por serem indeterminadas em relação aos elementos anatômicos, dá-se o nome de predisposição; em grau mais avançado, revelando-se por sinais mais evidentes – degeneração" (Franco da Rocha, 1904, p. 21; grifos nossos). Já as causas extracerebrais consistem em: intoxicações, infecções, moléstias da nutrição, traumatismo, afecções diversas no organismo, fora do cérebro, fases fisiológicas da vida e causas de ordem moral: emoções fortes ou contágio psíquico (sugestão).

Em sua descrição das causas cerebrais da loucura, Franco da Rocha evidencia sua inclinação pela corrente francesa de psiquiatria, especialmente pelos desdobramentos da "teoria da degeneração"5 5 Do francês dégénérescence, optou-se neste trabalho pela tradução "degeneração", endossada por Carrara (1987, p. 81) e todos os médicos brasileiros que se identificam com a teoria de Morel, uma vez que se trata de um termo mais compreensível e não há maiores problemas em seu emprego que justificassem o uso do termo "degenerescência", como tradução direta do francês, opção de tradução adotada por Pessotti (1999, p. 83). de Morel (1857), na versão elaborada por Magnan.6 6 Segundo Franco da Rocha: "(...) a classificação dos degenerados de Magnan é a mais aceitável por ser a mais sugestiva. Ela tem como base a gravidade do grau degenerativo. Do idiota ao degenerado superior, isto é, ao desequilibrado que possui algumas faculdades mentais brilhantes, vai uma série vastíssima de tipos, passando pelo imbecil e o débil de espírito, sem divisão nítida entre si, mas por transição quase insensível" (1904, p. 42-3). Franco da Rocha não foi um mero copista dos franceses, procurou adaptar seus conceitos ao contexto clínico com o qual se deparava no Brasil. Enquanto para Magnan os predispostos e os degenerados eram classes completamente distintas, para Franco da Rocha os predispostos apresentavam uma "tara cerebral" que os inclinava com tal intensidade à loucura que não era possível distingui-los dos propriamente degenerados; ambos constituíam uma só classe (Engel, 2001, p. 139). Por meio deste uso dos conceitos de predisposição e das múltiplas formas de alienação com etiologia cerebral, era possível explicar o aumento dos casos de loucura observado durante a virada do século.

Franco da Rocha herdou de seu mestre, Teixeira Brandão, a concepção esquiroliana de que a loucura era um mal da civilização (Teixeira, 2005, p. 60), a partir disto, explicava que o crescente número de internos nos manicômios estaria sendo recrutado entre os predispostos, que acabavam sucumbindo à loucura sob as pressões da civilização quando não eram diagnosticados em tempo e adequadamente tratados. A despeito das críticas dirigidas à categoria de degeneração, e à própria corrente francesa representada por Franco da Rocha, a preocupação com os "predispostos" era compartilhada por psiquiatras de inspiração kraepeliniana como Juliano Moreira (1873-1933) que, apesar de suas reservas, ainda admitia a degeneração como fator etiológico de moléstias mentais.7 7 Em artigo sobre a paranóia, publicado no mesmo ano , Juliano Moreira e Afrânio Peixoto explicitam suas críticas ao extremo generalismo com o qual o termo degeneração vinha sendo aplicado: "Esta doutrina da degeneração, desde que se apresentou a Morel, e veio nos tempos recentes a se assenhorar da psiquiatria, não encontrou ainda senão submissões irrefletidas, que se vão sucessivamente imitando, porque é mais fácil pensar com os outros do que observar consigo mesmo. Longe de nós, seja dito logo, negar-lhe a verdade incontestável: ela existe, ela é profunda, a ela se deve grande parte de nossas misérias. Mas não é menos verdade que muito se tem abusado de sua fama, exagerando capitalmente a sua ação" (Moreira e Peixoto, 2001, p. 137). Anos mais tarde, Peixoto iria se referir em termos bem menos lisonjeiros à relevância do diagnóstico de degeneração para a psiquiatria: "(...) nas ciências, como nas casas, é mister um canto escuro onde se depositem, provisoriamente, coisas que não conseguem colocar devidamente por outros departamentos" (Peixoto, 1914, p. 77-8). Seus desdobramentos constituíram as principais justificativas para o movimento pela higiene mental conduzido por diversos médicos a partir da década de 1920 (Portocarrero, 2002, p. 88).

No capítulo dedicado à "Sintomatologia em geral", Franco da Rocha assume que as divisões sintomatológicas que propõe são meramente artificiais e não indicam tipos puros, apenas predominância de manifestação do sintoma. Segundo ele, há duas séries de fenômenos desta ordem: alterações funcionais e alterações orgânicas. As alterações funcionais relativas à atividade são duas: excitação e depressão. Além destas, há as alterações funcionais elementares: psíquicas (alucinações e ilusões; perturbações da memória; concepções delirantes; perturbações afetivas, dos instintos ou dos atos) e físicas (alterações nervosas gerais e alterações da vida vegetativa). As alterações orgânicas são mais variadas: anomalias orgânicas e evolução; estigmas de degeneração (físicos e psíquicos); lesões de desorganização, lesões senis etc. (Franco da Rocha, 1904, p. 54-5).

O capítulo seguinte, dedicado ao "Exame Médico", é aquele no qual o autor trata mais diretamente do tema que intitula o livro, visando descrever como proceder para dar conta das duas principais questões da psiquiatria forense: questões de capacidade mental e questões de responsabilidade criminal do paciente (ibid., p. 125). Franco da Rocha apresenta um modelo de questionário para anamnese, bem como descreve todos os elementos dos exames físico e psíquico que devem estar presentes em um laudo pericial, empregando laudos de sua própria autoria e de colegas ilustres (como Raimundo Nina-Rodrigues), como exemplo. Embora o Esboço de psiquiatria forense seja o primeiro livro de um médico brasileiro a empregar em seu título a expressão "psiquiatria forense", não se deve considerar o autor como um precursor desta disciplina no Brasil e nem parece ser esta a sua pretensão. Como fica evidente no segundo fragmento selecionado, o autor busca apenas guiar o eventual perito na matéria criminal da psiquiatria forense nos meandros da crítica ao Código Penal então vigente.8 8 Os dois principais objetos de crítica no Código Penal de 1890 haviam sido herdados do Código Criminal do Império do Brasil de 1830: a definição da responsabilidade criminal com base na noção de "livre arbítrio" e a ausência de instituições específicas para os alienados criminosos.

Desde a primeira legislação criminal brasileira, o Código Criminal do Império do Brasil (1830), não estava previsto9 9 A imputabilidade penal era definida pelo seguinte artigo deste Código: "Art 10: ... não se julgarão criminosos: §1º Os menores de quatorze anos; § 2º Os loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos e neles cometerem o crime; §3º Os que cometerem crimes violentados por força ou medo irresistíveis; §4º Os que cometerem crimes casualmente, no exercício ou pratica de qualquer ato ilícito, feito com atenção ordinária" (apud Barreto, 2003, p. 13; grifos nossos). nenhum tratamento especial para os "loucos de todo gênero" que houvessem cometido crimes, eles poderiam tanto ser recolhidos às instituições a eles reservadas quanto a seus lares, cabendo a decisão exclusivamente ao juiz.10 10 . Tobias Barreto, em comentário ao artigo 12º deste Código feito em 1886, diz: "'Os loucos que tiverem cometido crimes, serão recolhidos ás casas para eles destinadas, ou entregues ás suas famílias, conforme ao juiz parecer mais conveniente' e não, como devia ser, conforme os médicos decidirem" (Barreto, 1884, p. 62). Tobias Barreto foi um dos primeiros juristas brasileiros a defender a necessidade da perícia médica para a aferição da responsabilidade penal no Brasil, ressaltando a importância dos pareceres de "médicos de justiça" para legitimar as decisões judiciais quanto à imputabilidade penal (ibid., p. 63).

Apesar das duras críticas sofridas pelo princípio do livre arbítrio e a idéia de responsabilidade moral por parte de Tobias Barreto e dos posteriores adeptos da Nova Escola Penal, defensores da idéia de responsabilidade social (Castro, 1913, p. 13-4), a definição de imputabilidade do Código Penal de 1890 mantinha a mesma orientação clássica da legislação anterior.11 11 A imputabilidade penal e o destino dos inimputáveis eram definidos pelos seguintes artigos do Código Penal de 1890: "Art 27. Não são criminosos: §3º os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação; §4º os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime. Art 29. Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim o exigir para a segurança do público." Segundo os adeptos da Nova Escola Penal havia uma confusão entre as categorias de "imputabilidade" e "responsabilidade" do modo como elas foram definidas no Código Penal de 1890. Para estes autores, a inexistência da imputabilidade, ou seja, da atribuição de um ato a alguém em função de loucura ou inconsciência (o exemplo mais recorrente neste caso era o alcoolismo crônico) não implicava a inexistência de responsabilidade por parte do agente, por mais que a ação não lhe fosse imputada (Peres e Nery Filho, 2002, p. 339). Para os adeptos da Nova Escola, penalmente não existe "responsabilidade moral", apenas "responsabilidade social", ou seja, apesar da inocência moral do autor de um ato criminoso que não possa ser a ele imputado, a sociedade tem o direito de se proteger dele (Castro, 1913, p. 34-5). Nas passagens do fragmento adiante selecionado, fica explícita a orientação de Franco da Rocha pela preeminência da defesa social ante os alienados considerados perigosos (Franco da Rocha, 1904, p. 179-80).

Franco da Rocha herdou esta orientação de seu mentor, Teixeira Brandão, segundo o qual a definição legal da alienação não podia ser baseada na responsabilidade moral, bem como não deveria caber ao juiz, mas sim a um perito médico, arbitrar sobre o destino do alienado, tanto em se tratando de matéria legal quanto civil (Peres e Nery Filho, 2002, p. 338). Foi pela atuação de Teixeira Brandão como legislador que, pelo Decreto 1132 de 1903, foi aprovado o Regulamento de Assistência a Alienados do Distrito Federal. Somente então foram previstas legalmente tanto a obrigatoriedade da realização de perícia médica para internação em manicômios quanto a necessidade da criação de alas especiais para os loucos criminosos nos asilos para alienados existentes (Carrara, 1987, p. 49). Contudo, embora as críticas à legislação fossem em grande parte convergentes, não havia unanimidade entre os próprios médicos quanto ao destino dos alienados criminosos.

No Rio de Janeiro, o psiquiatra Márcio Nery, professor na Faculdade de Medicina, como Teixeira Brandão, entendia "crime" e "loucura" como conceitos mutuamente excludentes. Conforme a definição do Código Penal de 1890, um louco jamais poderia cometer crime, posto que era inimputável por não possuir "livre arbítrio", desta forma todo e qualquer alienado, mesmo que perigoso, deveria ser considerado exclusivamente como um paciente a ser tratado, não como um prisioneiro (Antunes, 1999, p. 98). Já em São Paulo, Franco da Rocha considerava um erro inadmissível o emprego da noção metafísica de "livre arbítrio", avessa à boa ciência, por um médico. Para ele, os alienados que houvessem cometido crimes deveriam ser classificados como "perigosos" ou "não perigosos", devendo permanecer os últimos em ala separada dos demais, mas nas dependências do asilo para alienados.12 12 Segundo a descrição de Antunes (1999, p. 100-101), a opinião de Franco da Rocha quanto ao destino dos loucos criminosos, muda subitamente quando ele assume a direção do recém-criado Hospício de Juquery, em 1903, e se vê obrigado a encaminhar "quatro criminosos" de "uma argúcia incrível e tenacidade inabalável" para uma penitenciária, dada à inexistência de manicômios judiciários no país e devido aos transtornos institucionais que estes pacientes estavam lhe causando (p. 100). A partir de então, Franco da Rocha vai assumir a necessidade da incorporação do conceito de "defesa social" na psiquiatria – baseado não na "responsabilidade moral" (sustentada sobre o conceito de "livre arbítrio") dos alienados criminosos, mas sim em sua "responsabilidade social" – no grau de sua "temibilidade".

Em suma, foi a Lei de Alienados, de 1903, que definiu a assistência aos alienados mentais como um problema tanto de saúde pública quanto de segurança, pois considerava um perigo para o público um "louco" vagando livremente,13 13 O Código de 1890 já previa em seu artigo 378 que constituía uma contravenção de perigo comum: "Conservar soltos, ou guardados sem cautela, animais bravios, perigosos, ou suspeitos de hidrofobia (...); Deixar vagar loucos confiados à sua guarda, ou, quando evadidos de seu poder, não avisar à autoridade competente, para os fazer recolher; Receber em casa particular, sem aviso prévio à autoridade, ou sem autorização legal, pessoas afetadas de alienação mental" (Soares, 1910, 746 – grifos nossos). A idéia de que o "louco" era perigoso, ao menos tanto quanto um animal feroz solto, já estava explícita no Código de 1890, bem como na Lei de Alienados, de 1903, a qual já define em seu artigo 1º: "O indivíduo que por doença mental, congênita ou adquirida, comprometer a ordem pública ou a segurança das pessoas, será recolhido a um estabelecimento de alienados" (Decreto 1132 de 1903 – Lei de Alienados). corriqueiro no Brasil até meados do século XIX, como aponta a pesquisa de Engel (2001). Contudo, nas classificações psiquiátricas da época existiam diversas categorias de fronteiriços:14 14 A categoria dos fronteiriços compreende, sinteticamente: os diferentes "degenerados" segundo a psiquiatria francesa do século XIX inspirada em Morel e continuada por Magnan e Legran; os "loucos morais" ou "loucos parciais", conforme a corrente britânica de psiquiatria liderada por Henry Maudsley; as "personalidades psicopáticas" de acordo com a classificação de Emil Kraepelin, introduzida no Brasil por Juliano Moreira. "degenerados", "personalidades psicopáticas", "loucos morais", que não eram propriamente classificáveis como "alienados" e, portanto, dificilmente seriam considerados inimputáveis por eventuais crimes cometidos. Esta ambigüidade e a importância dos estados fronteiriços motivaram Franco da Rocha, em boa parte de Esboço de psiquiatria forense, à exposição de sua classificação das alienações mentais.

Franco da Rocha utiliza a classificação das moléstias mentais proposta por Teixeira Brandão, embora a modifique com base em sua experiência clínica nessa obra de 1904. O último capítulo é dedicado à exposição das moléstias mentais, eivado por numerosos casos clínicos observados pelo próprio autor, por laudos periciais e por escritos dos próprios pacientes que, segundo ele, são exemplos vivos dos quadros sintomatológicos.

Deve-se destacar que tanto Teixeira Brandão quanto Franco da Rocha seguiam a linhagem organicista da psiquiatria francesa, afastando-se do mentalismo que a havia dominado até o advento de Morel.15 15 Recomenda-se ao leitor consultar o terceiro Fragmento adiante selecionado, antes de seguir na leitura. Um dos principais inspiradores da classificação proposta por Franco da Rocha é Krafft-Ebing, para o qual, seguindo a proposta de Morel, toda alienação mental decorre de uma lesão no órgão cerebral, sendo esta, muitas vezes, de ordem hereditária (Krafft-Ebing, 1897, p. 339).

Um dos principais critérios para a classificação das psicoses empregados por Krafft-Ebing foi a distinção entre aquelas que afetavam um cérebro são (psiconeuroses) e as que afetavam um cérebro com taras hereditárias (degenerações psíquicas). A fronteira entre ambos os grupos não era fixa, segundo Krafft-Ebing; um cérebro sadio poderia contrair uma "constituição degenerada" devido a um trauma craniano ou excessos (alcoólicos, sexuais etc), fazendo com que uma psicose de origem ocasional, fosse revertida em estigma de degeneração psíquica (ibid., p. 441). Desta forma, nota-se que foi Krafft-Ebing a fonte na qual Franco da Rocha baseou-se para ampliar a abrangência do conceito de predisposição, conforme anteriormente indicado, bem como para o enfoque organicista que ele compartilhava com Teixeira Brandão.

Trata-se de um organicismo difuso, no qual o interesse primordial não está em localizar a região cerebral lesionada, mas sim em classificar consistentemente as alienações mentais com base em uma divisão principal: 1ª classe – as moléstias mentais encontradas em cérebros completamente desenvolvidos (em maior ou menor grau); 2ª classe – as moléstias mentais encontradas em cérebros de desenvolvimento anormal ou interrompido.

A divisão etiológica entre predispostos e degenerados parece corresponder a esta grande divisão entre a primeira e a segunda classe de moléstias mentais definidas por Franco da Rocha. Merece destaque o cuidado no emprego dos termos por parte do autor,16 16 A definição dos termos é exposta num trecho do primeiro fragmento: "Às expressões perturbação e anomalia correspondem respectivamente as expressões temporária e perpétua, como também os estados patológico e teratológico. Por temporária se deve entender tanto a perturbação de alguns momentos como a de muitos meses" (Franco da Rocha, 1904, p. 2). as moléstias nos dois primeiros grupos são designadas como "perturbações", sendo patologias curáveis, segundo a definição proposta pelo próprio autor. Ao chegar ao terceiro grupo da primeira classe, o autor não o define como "perturbação" ou "anomalia", indicando que se trata de um grupo transitório, no qual há elementos de predisposição, sem que se possa identificar uma degeneração plenamente caracterizada. A segunda classe corresponde às moléstias dos cérebros francamente degenerados e, segundo a definição do próprio autor, tratam de anomalias mais próximas do domínio teratológico do que propriamente patológico.

Por fim, quanto ao prognóstico – uma das principais indagações do juiz ao perito forense, seja em matéria cível ou criminal – Franco da Rocha (1904) é de uma prudência lacônica:

Mais que nas outras, nas moléstias mentais o prognóstico é muito arriscado. Não se deve perder de vista a infinidade de intercorrências que desviam a marcha da moléstia. Conhecido mesmo que seja o diagnóstico, não está, por esse fato, resolvido o prognóstico. Para evitar decepções e dissabores, toda a prudência ainda é pouca. Dado o caso de moléstia tida por incurável, ainda assim manda a prudência prever a hipótese de uma remissão com aspecto de cura. (p. 460)

Preocupado em sustentar sua atuação clínica na moderna ciência psiquiátrica, conhecedor dos mais atuais autores de seu tempo, e após 15 anos de experiência clínica, o autor dedicou pouquíssimo espaço ao prognóstico das doenças mentais. Havia poucos tratamentos para as moléstias mentais e sua eficácia era, no mais das vezes, duvidosa. Apesar de seu laconismo, o autor indicava que a mania, a lipemania e as confusões mentais (especialmente quando em manifestações agudas) eram as moléstias mentais que gozavam de melhor prognóstico, constatação corroborada por Júlio de Mattos (1856-1922), psiquiatra português seu contemporâneo (Mattos, 1923, p. 160-3). No que tange às demais moléstias mentais, o autor se inclinava pela defesa da sociedade (e do próprio alienado) quando havia dúvidas sobre seu prognóstico favorável, o que era o caso da quase totalidade das moléstias da segunda classe, de caráter constitutivo, portanto, crônicas.17 17 Quanto a isso, Franco da Rocha (1904) afirmava: "Em patologia mental, a expressão moléstia crônica é sinônima de incurável; não se refere ao tempo de duração da moléstia a expressão – aguda -, mas sim ao desenvolvimento rápido e simultâneo dos sintomas principais da enfermidade, tomando esta um caráter tumultuoso, embora dure ela um ano ou mais" (p. 467).

Feita esta apresentação do livro e de alguns aspectos da vida profissional, das influências teóricas e do contexto legal da publicação, espera-se que os fragmentos adiante selecionados permitam ao leitor ter uma idéia mais precisa desta obra que constitui um dos mais completos compêndios de psiquiatria de um autor brasileiro no início do século XX.

Versão inicial recebida em janeiro de 2008

Versão aprovada para publicação em fevereiro de 2008

Francis Moraes de Almeida

Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria; psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria (Santa Maria, RS, Brasil); mestre em sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre, RS, Brasil); doutorando em sociologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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  • Pessotti, Isaias. Os nomes da loucura São Paulo: Ed 34, 1999.
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  • 1
    A data de publicação da obra consta como 1904, contudo, no pequeno prefácio intitulado "Advertência", Franco da Rocha assina "São Paulo, Janeiro de 1905", o que parece indicar que o livro foi publicado em 1905. Neste artigo, optou-se por manter a data referida na folha de rosto do livro.
  • 2
    Em um de seus mais famosos escritos, conhecido como Opúsculo Fundamental, Comte definiu esta "lei dos três estados": "Pela própria natureza do espírito humano, cada ramo de nossos conhecimentos está necessariamente sujeito, em sua marcha, a passar sucessivamente por três estados teóricos diferentes: o estado teológico ou fictício, o metafísico ou abstrato, e, enfim, o científico ou positivo" (Comte, 1822, p. 82).
  • 3
    Teixeira Brandão, um francófilo indiscutível e simpatizante das teorias de Comte, foi o relator do projeto de lei que instituiu a vacinação obrigatória em 1904 (Teixeira, 2001, p. 58).
  • 4
    Em 1925, no discurso de inauguração do Manicômio Judiciário do Rio Grande do Sul, o psiquiatra Jacintho Godoy resume da seguinte forma o progresso da psiquiatria até sua época: "A psiquiatria não escapou à lei dos três estados, religioso, metafísico e positivo. No estado religioso, completamente divorciado da medicina, o alienado considerado como um possesso do demônio é encarcerado nas prisões. A reforma de Pinel inaugura o período metafísico e a psiquiatria ingressa no domínio propriamente médico, mas o caráter essencialmente filantrópico da reforma desse grande homem explica as tendências puramente filosóficas e psicológicas desse estado. É com Morel que começa o estado positivo, verdadeiramente científico, em que a noção da etiologia tóxica ou infecciosa serve de base a uma classificação nosológica" (Godoy, 1955, p. 72).
  • 5
    Do francês
    dégénérescence, optou-se neste trabalho pela tradução "degeneração", endossada por Carrara (1987, p. 81) e todos os médicos brasileiros que se identificam com a teoria de Morel, uma vez que se trata de um termo mais compreensível e não há maiores problemas em seu emprego que justificassem o uso do termo "degenerescência", como tradução direta do francês, opção de tradução adotada por Pessotti (1999, p. 83).
  • 6
    Segundo Franco da Rocha: "(...) a classificação dos degenerados de Magnan é a mais aceitável por ser a mais sugestiva. Ela tem como base a gravidade do grau degenerativo. Do idiota ao degenerado superior, isto é, ao desequilibrado que possui algumas faculdades mentais brilhantes, vai uma série vastíssima de tipos, passando pelo imbecil e o débil de espírito, sem divisão nítida entre si, mas por transição quase insensível" (1904, p. 42-3).
  • 7
    Em artigo sobre a paranóia, publicado no mesmo ano
    , Juliano Moreira e Afrânio Peixoto explicitam suas críticas ao extremo generalismo com o qual o termo degeneração vinha sendo aplicado: "Esta doutrina da degeneração, desde que se apresentou a Morel, e veio nos tempos recentes a se assenhorar da psiquiatria, não encontrou ainda senão submissões irrefletidas, que se vão sucessivamente imitando, porque é mais fácil pensar com os outros do que observar consigo mesmo. Longe de nós, seja dito logo, negar-lhe a verdade incontestável: ela existe, ela é profunda, a ela se deve grande parte de nossas misérias. Mas não é menos verdade que muito se tem abusado de sua fama, exagerando capitalmente a sua ação" (Moreira e Peixoto, 2001, p. 137). Anos mais tarde, Peixoto iria se referir em termos bem menos lisonjeiros à relevância do diagnóstico de degeneração para a psiquiatria: "(...) nas ciências, como nas casas, é mister um canto escuro onde se depositem, provisoriamente, coisas que não conseguem colocar devidamente por outros departamentos" (Peixoto, 1914, p. 77-8).
  • 8
    Os dois principais objetos de crítica no
    Código Penal de 1890 haviam sido herdados do
    Código Criminal do Império do Brasil de 1830: a definição da responsabilidade criminal com base na noção de "livre arbítrio" e a ausência de instituições específicas para os alienados criminosos.
  • 9
    A imputabilidade penal era definida pelo seguinte artigo deste Código:
    "Art 10: ... não se julgarão criminosos:
    §1º Os menores de quatorze anos;
    § 2º Os loucos de todo gênero, salvo se tiverem lúcidos intervalos e neles cometerem o crime;
    §3º Os que cometerem crimes violentados por força ou medo irresistíveis;
    §4º Os que cometerem crimes casualmente, no exercício ou pratica de qualquer ato ilícito, feito com atenção ordinária" (apud Barreto, 2003, p. 13; grifos nossos).
  • 10
    . Tobias Barreto, em comentário ao artigo 12º deste Código feito em 1886, diz: "'Os loucos que tiverem cometido crimes, serão recolhidos ás casas para eles destinadas, ou entregues ás suas famílias,
    conforme ao juiz parecer mais conveniente' e não, como devia ser,
    conforme os médicos decidirem" (Barreto, 1884, p. 62). Tobias Barreto foi um dos primeiros juristas brasileiros a defender a necessidade da perícia médica para a aferição da responsabilidade penal no Brasil, ressaltando a importância dos pareceres de "médicos de justiça" para legitimar as decisões judiciais quanto à imputabilidade penal (ibid., p. 63).
  • 11
    A imputabilidade penal e o destino dos inimputáveis eram definidos pelos seguintes artigos do Código Penal de 1890:
    "Art 27. Não são criminosos:
    §3º os que, por imbecilidade nativa, ou enfraquecimento senil, forem absolutamente incapazes de imputação;
    §4º os que se acharem em estado de completa privação de sentidos e de inteligência no ato de cometer o crime.
    Art 29. Os indivíduos isentos de culpabilidade em resultado de afecção mental serão entregues às suas famílias, ou recolhidos a hospitais de alienados, se o seu estado mental assim o exigir para a segurança do público."
  • 12
    Segundo a descrição de Antunes (1999, p. 100-101), a opinião de Franco da Rocha quanto ao destino dos loucos criminosos, muda subitamente quando ele assume a direção do recém-criado Hospício de Juquery, em 1903, e se vê obrigado a encaminhar "quatro criminosos" de "uma argúcia incrível e tenacidade inabalável" para uma penitenciária, dada à inexistência de manicômios judiciários no país e devido aos transtornos institucionais que estes pacientes estavam lhe causando (p. 100). A partir de então, Franco da Rocha vai assumir a necessidade da incorporação do conceito de "defesa social" na psiquiatria – baseado não na "responsabilidade moral" (sustentada sobre o conceito de "livre arbítrio") dos alienados criminosos, mas sim em sua "responsabilidade social" – no grau de sua "temibilidade".
  • 13
    O Código de 1890 já previa em seu artigo 378 que constituía uma contravenção de perigo comum: "Conservar soltos, ou guardados sem cautela, animais bravios, perigosos, ou suspeitos de hidrofobia (...);
    Deixar vagar loucos confiados à sua guarda, ou, quando evadidos de seu poder, não avisar à autoridade competente, para os fazer recolher; Receber em casa particular, sem aviso prévio à autoridade, ou sem autorização legal, pessoas afetadas de alienação mental" (Soares, 1910, 746 – grifos nossos). A idéia de que o "louco" era perigoso, ao menos tanto quanto um animal feroz solto, já estava explícita no Código de 1890, bem como na Lei de Alienados, de 1903, a qual já define em seu artigo 1º: "O indivíduo que por doença mental, congênita ou adquirida, comprometer a ordem pública ou a segurança das pessoas, será recolhido a um estabelecimento de alienados" (Decreto 1132 de 1903 – Lei de Alienados).
  • 14
    A categoria dos fronteiriços compreende, sinteticamente: os diferentes "degenerados" segundo a psiquiatria francesa do século XIX inspirada em Morel e continuada por Magnan e Legran; os "loucos morais" ou "loucos parciais", conforme a corrente britânica de psiquiatria liderada por Henry Maudsley; as "personalidades psicopáticas" de acordo com a classificação de Emil Kraepelin, introduzida no Brasil por Juliano Moreira.
  • 15
    Recomenda-se ao leitor consultar o terceiro Fragmento adiante selecionado, antes de seguir na leitura.
  • 16
    A definição dos termos é exposta num trecho do primeiro fragmento: "Às expressões
    perturbação e
    anomalia correspondem respectivamente as expressões
    temporária e
    perpétua, como também os estados
    patológico e
    teratológico. Por temporária se deve entender tanto a perturbação de alguns momentos como a de muitos meses" (Franco da Rocha, 1904, p. 2).
  • 17
    Quanto a isso, Franco da Rocha (1904) afirmava: "Em patologia mental, a expressão
    moléstia crônica é sinônima de incurável; não se refere ao tempo de duração da moléstia a expressão –
    aguda -, mas sim ao desenvolvimento rápido e simultâneo dos sintomas principais da enfermidade, tomando esta um caráter tumultuoso, embora dure ela um ano ou mais" (p. 467).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Mar 2008

    Histórico

    • Aceito
      Fev 2008
    • Recebido
      Jan 2008
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