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O método clínico - 3

EDITORIAL

O método clínico – 3

Manoel Tosta Berlinck

Durante o século XIX ocorreram dois eventos na medicina que tiveram ampla repercussão sobre a psiquiatria e método clínico.

O primeiro foi a consolidação da anatomia, permitindo que medicina passasse ser regida pelo par conceitual normal-patológico determinado pela lesão de órgão. Como observa Estellita-Lins (2007) em "Visibilidade na clínica psicanalítica: epistemo-lógicas partir do Princípio Broussais", interna não deve entendida algo sempre existiu e opera modo consolidado, demarcado normalizador.

Com o nascimento dessa clínica, a doença passa habitar espaço e espessura do corpo (Foucault, 1977, p. 141-3). Ela não provém mais de fora, pois doravante deve ser buscada em seu interior tomando irritações inflamações como modelo (Canguilhem, 1978, 33-6). Este novo campo conceitual podia pensado pela medicina nosográfica século XVIII, contudo tornou-se uma poderosa alavanca para as ciências médicas nos séculos XIX XX.

O fundamento da medicina interna situa-se na lesão anátomo-patológica, que referenda um privilégio do visível onde a experimentação científica poderá ancorar-se. Inicialmente, medicina experimental tratava exclusivamente de alterações morfológicas ou estruturais, mas com o decorrer do tempo lógica da lesão passou compreender perfurações funcionais moleculares que podem ser sutis efêmeras.

A clínica ganha então seu sentido pleno, de inclinar-se sobre o enfermo para auscultar, tocar, percutir, cheirar, palpar, pressionar, observar, olhar, mas sobretudo traduzir estes signos, verdadeira linguagem da natureza, em recortes visíveis desenhados no corpo que adoece. exame físico cada clínico realiza sua prática cotidiana consiste um processo prospecção pratica uma investigação sensorial fenômenos específicos. Seria pertinente perguntar estatuto escrita ou leitura praticada pela semiologia médica, parece admitir hermenêutica onde texto original encontra-se redigido anátomo-patológica. Examinar paciente implica passar anamnese ao e aos exames complementares, mantendo a patologia indutiva dedutivamente assentada horizonte. Embora doença, anormalidade não possuam sempre mesmo sentido, como demonstra Canguilhem, qualquer é capaz informar positivamente condição anormal enquanto particularidade do vivente doente.

A visibilidade representa também um modo peculiar de síntese. Verifica-se, desse modo, que o regime do visível se opõe doravante àquilo permanece invisível. pode ser visto depende saber correlato. Aqui reconhece, com alguma facilidade, a tradicional prevalência sentido da visão na estrutura sintética conhecimento vigora desde antigüidade grega até século XVIII. conjunto dos sinais colhidos pelos órgãos sentidos, onde deve incluir privilegiado, fica subordinado ao campo lesão opera como princípio organização.

Toda a positividade efetiva sobre qual medicina pôde constituir-se repousa neste privilégio do visível, que legitima seu caráter experimental. O espaço, enquanto espaço corpo, reencontra sua vocação de imagem – esquematismo, imaginação e imaginário –, sendo exatamente em função desta incorporação será possível falar lesão uma maneira multifacetada definitiva.

Desde o nascimento da clínica descrito até aqui, voltou-se a suspeitar, de modo mais convicto que nunca, espírito – seja alma ou psique deveria depender diretamente um órgão: cérebro. próprio termo "doença nervosa" caracterizava doença mental na aurora do século XX indica expectativa uma localização patológica precisa e evidente. medicina dos nervosos teve, contudo, enorme dificuldade em estender lógica lesão aos seus domínios. Como resultado dessa dificuldade, seja, âmbito patológico sine materiae, surge a psicopatologia como um discurso narrativo a respeito das doenças mentais, sem lesão, apesar insistentes tentativas médicas.

Os médicos que se dedicaram às doenças mentais, inicialmente denominados de alienistas por viverem em asilos e, mais tarde, psiquiatras, constituem um caso particular da medicina clínica, afasta, cada vez mais, graças aos avanços observação e detecção sinais anátomo-patológicos.

Aos alienistas, e posteriormente aos psiquiatras, restaram três possíveis explicações para as doenças sem lesão de órgão: 1) a indisciplina, que resultou no tratamento disciplinar suas variantes (o moral, o magnetismo hipnose, contenção); 2) degenerescência ou degeneração ambiente cultural; 3) restou, também, recurso da narrativa clínica, acabou por se constituir numa rica psicopatologia.

Foucault tratou dessas questões em "O poder psiquiátrico" e outros trechos de sua vasta obra.

A degenerescência ou degeneração possui uma curiosa trajetória, que tem início com Morel e Magnam, passa pelo racismo animal, avança no humano termina nazismo renasce, agora, a genômica psiquiátrica.

Octavio Domont de Serpa Júnior (1998), em >Mal-estar na natureza, examina com grande acuidade e profundidade a teoria da degenerescência e sua longa trajetória posterior, na medicina. Segundo esse autor, desde o princípio a teoria da degenerescência era compreendida por Morel como o avesso necessário da noção de progresso, entendido como a marcha contínua e necessária que leva da ignorância para o conhecimento, da barbárie para a civilização. E na medida em que era percebida como o correlato negativo da civilização, a degenerescência ocupou um lugar privilegiado no imaginário social da época. Discurso científico, portanto com sólidas aspirações de verdade, pretendia fornecer a compreensibilidade das transformações pelas quais passavam as cidades e suas crescentes populações de trabalhadores. Estes, que entregavam suas vidas às fábricas, minas e estradas de ferro, submetidos a regime de trabalho desumano, e que se acotovelavam em moradias de condições miseráveis e insalubres no coração das grandes metrópoles, eram percebidos como encarnando o próprio mal, manifestado no consumo excessivo de álcool, na violência e na criminalidade, na prostituição e na devassidão. Enfim, a degenerescência é o nicho que recebe todas as figuras do desvio, além do louco, o criminoso, a prostituta, o beberrão, o violento, o neurastênico, até chegar ao genial e desequilibrado artista criador.

Recentemente, certos psicanalistas introduziram "a contemporaneidade", palavra-ônibus que se multiplica em títulos de artigos e livros, numa evidente jogada mercadológica, para tratarem de uma "nova" degenerescência: o mal-estar na contemporaneidade.

A versão "progressista" da degenerescência – eugenia –, por sua vez, vai ser elaborada nos Estados Unidos e é magistralmente descrita Edwin Black (2003) em A guerra contra os fracos. A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior.

A eugenia é um vasto programa de esterilização de homens e mulheres considerados inadequados para viverem num mundo onde reina o progresso. Trata-se, em última instância, de um vasto programa de eliminação dos considerados fracos para o mundo do progresso.

Em meio a esses procedimentos clínicos que visam contenção, disciplina e esterilização dos loucos, medicina do final século XVIII XIX elaborou um vasto painel narrativo sobre loucura muito contribui para compreensão dessa produção humana. esse longo rico dá-se o nome de psicopatologia.

A psicopatologia clássica contribui, de forma decisiva, para aquilo que pode ser denominado "a revolução freudiana". Mas isso só motivo um outro texto.

  • Black, E. A guerra contra os fracos A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior. São Paulo: A Girafa, 2003.
  • Canguilhem, G. The normal and the pathological. New York: Zone Books, 1991.
  • _____.Escritos sobre a medicina Trad. de Vera Avellar Ribeiro. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005.
  • Estellita-Lins, C. E. Visibilidade na clínica psicanalítica: epistemológicas a partir do Princípio de Broussais. Pulsional Revista de Psicanálise, ano XX, n. 189, p. 27-42, mar.2007
  • Foucault, M. O nascimento da clínica Trad. de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1994.
  • _____.O poder psiquiátrico Trad. de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
  • Serpa Júnior, O. D. Mal-estar na natureza Belo Horizonte: Te Corá, 1998.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Jul 2008
  • Data do Fascículo
    Jun 2008
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