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Olhas-me sou: a TV a serviço do eu

Look at me I am: TV at the service of the ego

Regarde-moi, je suis: la TV au service du moi

Mire-me soy: la TV a servicio del yo

Resumos

Partindo da noção de Estádio do Espelho em Lacan, este trabalho de investigação sobre a TV Pinel - TV comunitária realizada no Instituto Phillipe Pinel, do Rio de Janeiro - tem como objetivo demonstrar os efeitos da imagem videográfica sobre a constituição do eu em pacientes psiquiátricos, na sua maioria psicóticos.

Estádio do espelho; olhar do Outro; TV Pinel; identificação imaginária


The aim of this article, based on Lacan's concept of the mirror stage, is to investigate the effect of video images on the constitution of the ego in psychiatric patients, most of whom are psychotics. The study was undertaken at the Instituto Phillipe Pinel, in Rio de Janeiro, where TV Pinel - a community television station - is broadcast.

Mirror stage; gaze of the Other; TV Pinel; imaginary identification


À partir de la notion de Stade du Miroir chez Lacan, ce travail de recherche sur la TV Pinel - TV communautaire réalisé à l'Institut Phillipe Pinel, de Rio de Janeiro - a l'objectif de démontrer les effets de l'image vidéo sur la constitution du moi de patients psychiatriques, dont la plupart est psychotique.

Stade du mirroir; regard de l'Autre; TV Pinel; identification imaginaire


A partir de la noción Estadio del Espejo en Lacan, esta investigación sobre la TV Pinel - TV comunitaria realizada en el Instituto Phillipe Pinel de Río de Janeiro - tiene como objetivo demostrar los efectos de la imagen videográfica sobre la constitución del yo en pacientes psiquiátricos, en su mayoría psicóticos.

Estadio del espejo; mirada del Otro; TV Pinel; identificación imaginaria


SAÚDE MENTAL

ARTIGO

Olhas-me sou: a TV a serviço do eu* * O presente trabalho originou-se de nossa dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – área de concentração em Psicologia Social. A dissertação, intitulada Olhas-me sou: investigação dos efeitos da imagem videográfica na constituição do eu em pacientes psiquiátricos a partir de uma experiência em vídeo comunitário, foi defendida e aprovada em 2000.

Mire-me soy: la TV a servicio del yo

Regarde-moi, je suis: la TV au service du moi

Look at me I am: TV at the service of the ego

Musso Garcia Greco; Jeferson Machado Pinto

ARTIGO

Partindo da noção de Estádio do Espelho em Lacan, este trabalho de investigação sobre a TV Pinel – TV comunitária realizada no Instituto Phillipe Pinel, do Rio de Janeiro – tem como objetivo demonstrar os efeitos da imagem videográfica sobre a constituição do eu em pacientes psiquiátricos, na sua maioria psicóticos.

Palavras-chave: Estádio do espelho, olhar do Outro, TV Pinel, identificação imaginária

RESUMEN

A partir de la noción Estadio del Espejo en Lacan, esta investigación sobre la TV Pinel – TV comunitaria realizada en el Instituto Phillipe Pinel de Río de Janeiro – tiene como objetivo demostrar los efectos de la imagen videográfica sobre la constitución del yo en pacientes psiquiátricos, en su mayoría psicóticos.

Palabras clave: Estadio del espejo, mirada del Otro, TV Pinel, identificación imaginaria

RÉSUMÉ

À partir de la notion de Stade du Miroir chez Lacan, ce travail de recherche sur la TV Pinel – TV communautaire réalisé à l'Institut Phillipe Pinel, de Rio de Janeiro – a l'objectif de démontrer les effets de l'image vidéo sur la constitution du moi de patients psychiatriques, dont la plupart est psychotique.

Mots clès: Stade du mirroir, regard de l'Autre, TV Pinel, identification imaginaire

ABSTRACT

The aim of this article, based on Lacan's concept of the mirror stage, is to investigate the effect of video images on the constitution of the ego in psychiatric patients, most of whom are psychotics. The study was undertaken at the Instituto Phillipe Pinel, in Rio de Janeiro, where TV Pinel – a community television station – is broadcast.

Key words: Mirror stage, gaze of the Other, TV Pinel, imaginary identification

cantam

os ouvidos feridos a mudança

queremos com a boca desviar-nos

da crueldade

porque a fala é a mesma

olhas-me sou

quem nas mais diversas recebesse

o novo corpo

(Gastão Cruz, 1984)

A TV como olhar do Outro

Nosso tempo é o da "ubiqüidade da informação, desmaterialização dos suportes, evolução dos veículos, convocação sobre a tela de todas as coisas". Um tempo encurtado com a supressão das distâncias, "videosfera fluida e nômade, em trânsito e de passagem, inteiramente indexada aos valores de fluxo – de capitais, sons, notícias, imagens", onde uma imperativa rapidez de circulação "liquidifica as consistências, alisa as particularidades". Civilização da imagem, regida pelo visual, pela simulação e pela performance. Humanidade inundada pelo dilúvio das imagens pré-fabricadas. Era das telepresenças, "do mínimo de diversidade em um máximo de espaço" (Debray, 1993, p. 270), da desterritorialização, da fluidificação, da mundialização, da decolagem dos sentidos, da eterna levitação do olhar...

Quanto mais se desenvolvem os instrumentos de mediação cognitiva da nossa era, mais eles têm a tendência a apresentar a realidade como algo fake, uma realidade mais plástica e complacente, mais francamente "para-real". Sem fazer coro às teorias sobre a "perda da realidade" em decorrência da saturação das imagens induzida pela presença cada vez mais central da mídia na paisagem urbana – uma vez que entendemos que a constituição da realidade é uma produção simbólica de homens históricos – não há como ignorar o papel da mídia – principalmente o da televisão – na produção de imagens que não cessam de nos modelar, de nos transformar, de nos produzir e de multiplicar suas funções estéticas, econômicas, ideológicas e sociais.

O eu, por sua vez – pela sua própria constituição narcísica –, parece sempre predisposto a esse amoldamento, a esse funcionamento especular e auto-referente que a televisão lhe propõe. Se, como afirma Lacan (1998), com sua teoria do Estádio do espelho, a imagem é o que vem para forjar o eu, este, entretanto, desconhece que é imagem e está sempre à espera de encontrar, nas imagens das coisas visíveis, sua própria imagem, sua unidade de indivíduo. É um eu-que-vê, portanto, buscando suplência imaginária da falta do sujeito. Segundo Násio (1995), "... o eu não percebe indistintamente uma imagem qualquer, mas seleciona apenas aquelas em que se reconhece" (p. 117). Esse eu-que-prevê, que espera aquilo que vai ver sem surpresas, está, em razão disso, à mercê do olhar. O olhar não nasce do eu, mas o surpreende, pela fascinação, com o que Násio (ibid.) identifica – em uma imagem muito oportuna quando falamos da televisão – como "um foco de luz vibrante proveniente da tela refletora do Outro" (p. 18). Um clarão que nem se vê, mas que cega, que dissolve o eu, e que cria a necessidade de novas identificações subjetivas.

Nosso trabalho de pesquisa acadêmica começa desse ponto – da observação dos efeitos da mídia sobre a subjetividade, principalmente em sua proposta de um eu "sob medida" para o sistema produtivo contemporâneo, como se percebe nos procedimentos publicitários – para deduzir a importância do Outro – mais especificamente do olhar do Outro – na constituição do eu espectatorial e investigar os efeitos desse processo em outro contexto, nas TVs comunitárias.

O estádio do espelho, em Lacan, é um suporte teórico importante para evidenciar a função de espelho da TV, de matriz de mecanismos identificatórios, de importante produtor de imaginários sociais – que constituem "pontos de referência no vasto sistema simbólico que qualquer coletividade produz e através do qual (...) ela se percebe, divide e elabora os seus próprios objetivos" (Baczko, 1985, p. 308-309), designando a sua identidade e elaborando uma representação de si – e, conseqüentemente, a principal construtora da realidade social na contemporaneidade.

TV Pinel: os eus na ilha de edição

O Núcleo de Vídeo do Instituto Philippe Pinel sempre esteve atento a seu papel de articulador comunicacional dentro da instituição, um hospital psiquiátrico público no Rio de Janeiro, e tinha planos de implantação de uma TV comunitária, com a participação de técnicos, funcionários e pacientes do hospital, "com fins terapêuticos, de expressão artística e como instrumento de difusão das idéias em torno da Reforma Psiquiátrica" (Araújo, 1996, p. 3). Assim, surgiu a TV Pinel no Instituto, em 1996, com a proposta de construção de "uma nova imagem da loucura" (p. 5), como "um exercício de criatividade para seus participantes" (ibid.) e como um projeto de "sensibilização da sociedade em relação ao movimento de luta antimanicomial" (ibid.).

Para tanto, operam a partir dos pressupostos das TVs comunitárias. Uma TV comunitária pode ser definida (Greco, 2006) como uma intervenção comunicacional sobre determinado grupo social considerado excluído, pela mídia, dos mecanismos de produção de informações de seu interesse e/ou em busca de experimentar uma proposta de produção televisiva não massiva, realizada dentro da singularidade do grupo envolvido na experimentação, pautando-se por duas premissas básicas: uma proposta de interatividade e um favorecimento da auto-imagem.

Uma vez escolhida a TV comunitária que abordaríamos em nossa pesquisa, em tudo identificada aos objetivos de oposição à modelagem do eu denunciada nos mecanismos dos veículos de comunicação de massas, restou-nos interrogar sua eficácia na contribuição para a constituição de sujeitos, para além dos meros consumidores bem adaptados visados pela mídia. Para estabelecer essa relação entre a produção interativa de imagens videográficas, a construção da auto-imagem comunitária e a manifestação de efeito-sujeito em um projeto de TV comunitária, decidimos:

1) Investigar os efeitos produzidos pelo processo de construção de imagens televisivas na TV comunitária sobre a auto-imagem dos sujeitos diretamente envolvidos;

2) investigar os efeitos dessa produção sobre a imagem desses sujeitos vista pela comunidade não diretamente envolvida no processo;

3) comparar os elementos característicos da linguagem e formato adotados nos programas da TV comunitária com estruturas equivalentes na rede broadcast e com a publicidade;

4) detectar elementos da linguagem dos programas de TV que devam sua originalidade às características peculiares da estrutura psíquica dos membros da comunidade envolvida (clientela psiquiátrica) e pesquisar seus efeitos sobre os telespectadores;

5) identificar, no discurso veiculado pelos programas e diretamente com as pessoas envolvidas no processo, a presença de palavras de ordem da causa antimanicomial, estereótipos romantizados da loucura etc.;

6) distinguir atitudes de identificação imaginária, de identificação simbólica, de indiferença ou de franca oposição à idéia de exposição pública da própria imagem no discurso dos membros da comunidade mais envolvidos no projeto;

7) investigar nos programas a oferta de uma identificação coletiva, comunitária, em detrimento de convites a manifestações de singularidades.

"Tirando a pedra": a metodologia utilizada na pesquisa

Como método privilegiado para descortinar novos horizontes de conhecimento, a partir da exploração intensa de um único caso – a TV Pinel –, optamos pelo estudo de caso, que é uma das principais modalidades de análise das Ciências Sociais (Becker, 1994), e nosso principal instrumento de coleta de dados foi a entrevista, considerada (Gil, 1991) como "a técnica por excelência na investigação social" (p. 113), comparável ao tubo de ensaio para a Química e ao microscópio para a Microbiologia.

As entrevistas foram analisadas a partir da noção psicanalítica de leitura, tomada no sentido de ler o significante na sua literalidade, e não pelo viés da compreensão, ou seja, buscamos identificar o significante-mestre que comanda a cadeia discursiva, para evidenciar seu conteúdo latente. Partindo dessa premissa, as entrevistas foram submetidas a uma análise em que: a) foram identificados os temas principais; b) foram construídas as principais categorias de análise (1. a imagem da loucura; 2. o poder da imagem televisiva; 3. a militância; e 4. os efeitos individuais e coletivos da TV Pinel); e c) foi analisado, em algumas entrevistas de pacientes psiquiátricos que participam da TV Pinel, o processo de enunciação, com vistas a detectar efeitos imaginários e simbólicos do projeto sobre esses sujeitos.

Entendemos que a pesquisa científica, por si só acarreta uma redução do mundo empírico, ao constituir seu objeto de estudo e formular, via registro do simbólico, uma rede de conceitos para exercer efeitos sobre o real. Por isso, procuramos enriquecer nosso material de pesquisa utilizando mais de uma técnica de coleta de dados, por meio de uma triangulação entre: 1) as entrevistas (com membros da comunidade hospitalar envolvidos diretamente no projeto, membros não diretamente envolvidos – técnicos e familiares de pacientes –, e profissionais de Comunicação que participam do projeto ou que cobriram eventos envolvendo a TV Pinel; o roteiro de identificação das 15 entrevistas visava a situar os entrevistados quanto a uma participação política ativa na sua comunidade, e em relação ao nosso objeto de pesquisa, a televisão; o roteiro que serviu de base para as entrevistas contemplava, basicamente, dois eixos de investigação, a saber: impressões sobre o experimento TV Pinel e a relação imagem/subjetividade); 2) a pesquisa de documentos (no hospital, nos jornais da cidade etc.); e 3) a pesquisa de fitas de vídeo (avaliação do formato, dos cuidados estéticos presentes, do conteúdo dos blocos etc., nos programas da TV Pinel, de outras TVs comunitárias, do Canal Saúde, da rede comercial de televisão etc. A análise dos documentos e fitas de vídeo, de maneira similar àquela das entrevistas, concentrou-se na escuta de seu processo de enunciação, o que nos permitiu detectar a prevalência de dois importantes discursos: o discurso militante e o discurso publicitário).

A particularidade do lugar do psicanalista, na coleta do material das entrevistas, dos textos e dos vídeos elencados, está justamente em sustentar "o questionamento, a abertura, o enigma" dos sujeitos, sem se identificar com qualquer mestria ou ideal existente na civilização (Laurent, 2007). Conseqüentemente, a interpretação do material pesquisado, com vistas a uma teorização sobre o objeto de estudo, valeu-se daquilo que qualificamos como "método freudiano da inquietação" (Pinto, 2001, p. 80), no qual o trabalho do pesquisador é "movido pelas lacunas e o texto funciona como um analista, para que o pesquisador se defronte com suas próprias resistências em ouvir relatos. Ao ser incitado pelas lacunas do texto a fazer perguntas, ele constata que é nelas, nas perguntas, que está a verdade. A verdade está na questão, e não na resposta" (ibid.). A verdade, nessa concepção, é algo que já está ali, sob a fala do agente do discurso, bastando, para desnudá-la, que o pesquisador crie recursos e métodos para "tirar a pedra", como ensina o escritor José Saramago (1998), em seu poema Mais psicanálise:

Tirada a pedra, a luz do dia mostra

o côncavo

de terra que a mantinha

Por outro lado, cumpre registrar que a quase inexistência de uma bibliografia específica sobre o tema escolhido e a caracterização da TV Pinel como um território de atuação social e terapêutica ainda em construção, levou-nos, em alguns momentos, a utilizar inusitados cruzamentos transdisciplinares de autores, como forma de dar um corpo teórico (incipiente) à análise psicológica do fenômeno das TVs comunitárias. Mais uma vez, estivemos coerentes com o método psicanalítico que, longe da possibilidade de se enquadrar a um protocolo técnico, encoraja a produção da exceção, "a originalidade do cenário por meio do qual a singularidade se manifesta" (Laurent, 2007, p. 217-218).

Sou a criatura do que vejo1 1 "Me vejo no que vejo/Como olhar em meus olhos/Com um olho mais límpido/Me olha no que olho,/É minha criação/Isto o que vejo/Perceber é conceber/Águas do pensamento/Sou a criatura do que vejo..." – tradução de Haroldo de Campos (Paz, 1995).

Aparecer na televisão significa, na atualidade, inserir-se na esfera pública, ou seja, aparecer no mundo, no campo do que é visível e compartilhado socialmente. A TV Pinel, atenta à correlação entre o aparecimento no espaço público e a determinação da identidade, ocupou seu lugar na mídia e produziu movimentos identificatórios importantes entre seus participantes.

A análise de entrevistas realizadas com os membros da TV Pinel apontou inicialmente para a importância do aparecimento no espaço público, que é situado pelos entrevistados como algo mais importante do que qualquer reconhecimento na vida privada, no que diz respeito à possibilidade de reverberação daquilo que é próprio do sujeito, tanto para "os outros" (os vizinhos, os parentes, as autoridades etc.) quanto para quem ocupa para ele a posição de um Outro ("a TV", "o Jornal", "o Mundo da fama", "a Sociedade" etc.). É inequívoca a percepção da ampliação da potência da própria imagem, quando se acessa um instrumento de construção de visibilidade como a TV, bem como as conseqüências imediatas da disseminação dessa imagem promovidas pela mídia.

A TV comunitária pode funcionar, tal como a TV comercial, como um mágico e reluzente espelho para determinada população. Isso é importante do ponto de vista de uma ação política e terapêutica quando este "circuito visual" – ver-se e a seus pares fazendo-se ver – faz parte de um projeto de construção coletiva e interativa de uma imagem pública mais potente, bem como de uma auto-imagem mais positiva. Na experiência em questão, os efeitos dessa intervenção na valorização da auto-imagem de seus participantes, bem como o diferencial de uma ação comunitária, quando esta utiliza a televisão, são evidentes.

Na TV Pinel, podemos detectar uma demanda de aceitação social do louco e, considerando que o louco existe exatamente pela negatividade de sua inserção social, tomá-la como uma demanda de abertura no campo do Outro, de modo a criar para ele condições de uma localização social positiva. Sua dupla militância política – movimento de Vídeo Popular e movimento de Luta Antimanicomial – pode ser vista como uma postura ativa de requisição, de reivindicação de um olhar diferente do Outro. Para tanto, o ideal de mudança social elege a exclusão social como objeto de enfrentamento.

Se a militância – qualquer militância – tem como razão de existir a necessidade de promover ações de reconhecimento da legitimidade de determinadas mudanças de posição da sociedade em relação a questões ideológicas precisas, ou, como afirmamos em linguagem psicanalítica, tem como propósito uma retificação do Outro social, é importante situarmos esse Outro como isto diante do qual nos fazemos reconhecer. Qual é, afinal, o Outro que serve de referência à TV Pinel? Para quem se dirige sua fala? Que reconhecimento espera sua equipe? Procurando respostas para essas questões, detectamos – nos programas que produzem, em entrevistas que fizemos e em suas produções teóricas – a mesma construção de "imagens positivas" em oposição à idéia de uma "sociedade excludente e injusta com os doentes mentais" que já observávamos no material de divulgação de outros projetos antimanicomiais.

Essa construção discursiva aponta para uma concepção rígida do Outro. Há um preconceito em relação à sociedade que propõe uma imagem mais "amável" do louco, para que este conquiste um olhar mais benevolente. Ocorre, no entanto, que sociedade não é uma entidade localizada fisicamente, personificada em uma única expressão. Os militantes parecem saber o que o Outro (nomeado aqui como "A Sociedade") quer, e respondem ao possível temor que a loucura desperta com a fabricação de uma imagem de docilidade e adaptação. Sem desconhecer os dados históricos reais que sustentam essa instituição de um Outro intolerante, podemos afirmar que a TV Pinel – em consonância com a maioria dos projetos militantes – está aprisionada a uma concepção do Outro que lhe reserva o lugar de um objeto que o completa, como na situação fantasmática. O que está por trás de cada quadro da TV Pinel, o tempo todo, como uma representação recalcada, é algo da seguinte ordem: o louco é diferente de nós, não tem condições de estar no meio de nós, é agressivo, seu lugar é fora. Por isso, tal qual no sintoma, o recalcado retorna, e os programas, repetida e repetitivamente, afirmam o exato contrário. "Vocês acham que eu sou assim?", parecem perguntar. "Então eu vou te mostrar que não sou" (e não: "então vou te mostrar como sou").

Encontramos na fala e nos textos da equipe da TV Pinel o projeto de uma "desmistificação da imagem da loucura", partindo da idéia de que há um engano da sociedade em relação ao dito louco que precisa ser mostrado, para que seja desfeito. No caso, os pacientes psiquiátricos demonstram sua possibilidade de inserção social, interagindo com o público em entrevistas, interpretando personagens, dando depoimentos acerca de seu processo de reabilitação etc.

Com a TV Pinel, temos uma recontextualização do louco como objeto de um olhar – diferente da exibição pública da loucura no século XVIII, configurada em espetáculos nos quais os loucos eram monstros, e da perscrutação de fenômenos do olhar médico, após o advento do asilo, no século seguinte: trata-se agora de mostrá-lo como um igual. Nem monstro alienígena, nem pedra de Roseta. No lugar de um Outro, externo e estranho, um outro: semelhante; que possa encontrar no olhar do espectador um assentimento, um encontro de imagens que, como no espelho, produza uma identificação.

Reconhecemos na TV Pinel uma ação fortemente voltada para a construção imaginária de identidade para seus usuários mais imediatos – os pacientes da instituição psiquiátrica que abriga o projeto – e para a intervenção no lugar que estes ocupam no imaginário social. Essa ação só é possível graças à posição de militância do grupo que coordena o projeto que, sem ser clínica, produz efeitos terapêuticos evidentes. Diríamos, inclusive, que há fortes indícios de que o ideal, em uma versão simbólica e enlaçadora – que sustente a estabilidade de suas identificações imaginárias, inclusive a permanência da ilusão do eu –, não esteja impresso do lado dos pacientes, mas que esteja sendo sustentado pelos coordenadores e pela equipe técnica do projeto. Assim como a maquinaria televisiva funciona como prótese que permite a circulação no registro simbólico com mais recursos de interação, com um intervalo fundamental entre a emissão e a recepção das falas e imagens dos pacientes psicóticos, o ideal de mudança francamente assumido e as palavras de ordem da Luta Antimanicomial ditas com mestria podem fazer as vezes de um "Ideal de eu emprestado", que nodula a psicose.2 2 Temos reservas quanto às conseqüências do incremento das fantasias dos indivíduos neuróticos, quando expostos ao potencial de amor que a câmera promete e quase nunca cumpre. A clínica registra uma grande dificuldade de manejo da proliferação imaginária desenvolvida sob transferência, que podemos transpor, sem maiores problemas, para a situação da TV Pinel, uma vez que esta não é apenas uma "produtora" ou "transmissora" de vídeos, mas, fundamentalmente, um recurso dentro das propostas de tratamento na instituição.

Essa dimensão basicamente imaginária que encontramos na TV Pinel descarta uma eventual hipótese maniqueísta de uma "TV a serviço do sujeito", pelo lado das TVs comunitárias, em oposição à "TV a serviço do eu", mero espelho das identificações consumistas localizada na TV comercial. O que constatamos é que, tanto a TV comunitária quanto a TV broadcast, apesar de objetivos opostos, operam com a perspectiva imaginária do eu.

Enquanto os olhos pastam pela relva eletrônica, podem-se produzir efeitos de sujeito, mesmo que estes não tenham sido programados, porque o sujeito é isso que responde à surpresa do significante, ao engatamento com seu objeto-causa-de-desejo (ou causa-de-delírio). Mas como mensurá-los, fora do setting analítico? Seguramente, o tempo dessa pesquisa acadêmica foi insuficiente para percorrer a trilha dessa questão...

Por outro lado – e com uma expectativa menos ambiciosa – tudo indica que, numa TV cujo reservatório de imagens especulares é significativo, principalmente por ter sido montado por seus usuários mais diretos, a imagem, como aquilo que veste de ideais o que falta, tem seu reinado terapêutico assegurado. A televisão não escapa do domínio do significante, e não dispensa um discurso que possa manter enfocada a imagem, estando assim em condições de envolver o real de forma protetora para indivíduos para quem ter um corpo ou um eu é um privilégio difícil de alcançar; no caso, os psicóticos.

Como pudemos perceber, a fragilidade em termos da auto-imagem coloca os participantes psicóticos da TV Pinel em situações de risco, quando intimados a circular pelos labirintos especulares da mídia. No fio dessa navalha, caminham os condutores do projeto, sem desconhecer que tanto o sucesso quanto a desilusão podem levar ao naufrágio psíquico, que a palavra que cura também mata, que o mesmo imaginário que sustenta uma identidade pode liquidá-la...

Não há como abrir mão do ideal numa TV que pretende "mudar a imagem da loucura". Um ideal, para estar à altura de sua pretensão, deve unir, motivar, envolver a massa em torno de uma universalidade, de uma totalidade consonante, de uma quimera. É aí, que se constitui ou se reconstitui o eu. Entretanto, um alerta é importante: a projeção desse ideal para o futuro do sujeito pode ser a condição para que esse eu não se pulverize, como as imagens que se dissolvem na chuva de linhas de varredura da TV.

Agradecimentos: À equipe da TV Pinel

Versão inicial recebida em março de 2008

Versão aprovada para publicação em maio de 2008

Musso Garcia Greco

Psiquiatra; psicanalista; membro-aderente da Escola Brasileira de Psicanálise; especialista em Saúde Mental pela Escola de Saúde Pública de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG, Brasil); mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG, Brasil); doutorando em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG, Brasil).

Rua dos Dominicanos, 165/204 – Serra

30210-480 Belo Horizonte, MG, Brasil

e-mail: mussogreco@ig.com.br

Jeferson Machado Pinto

Psicanalista; psicólogo graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG, Brasil); doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo – USP (São Paulo, SP, Brasil); pós-doutorado em Psicanálise pela Universidade de São Paulo – USP; professor associado do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais (Belo Horizonte, MG, Brasil).

Av. Antônio Carlos, 6627 – Pampulha

31270-901 Belo Horizonte, MG, Brasil

e-mail: jefpinto@uai.com.br

  • Araújo, D. TV Pinel: relato da experiência e algumas questões para reflexão. Rio de Janeiro: Instituto Philippe Pinel, 1996 (mimeo).
  • Baczko, B. Imaginação social. In: Enciclopédia Einaudi Lisboa: Imprensa Nacional, 1985. v. 5.
  • Becker, H. Métodos de pesquisa em Ciências Sociais 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1994.
  • Cruz, G. Cantam. Apud: Mello e Castro, E. Projecto: Poesia temas portugueses. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984. p. 183-184.
  • Debray, R. Vida e morte da imagem Trad. Guilherme Teixeira. Petrópolis: Vozes, 1993.
  • Gil, A.C. Métodos e técnicas de pesquisa social São Paulo: Atlas, 1991.
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  • *
    O presente trabalho originou-se de nossa dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais – área de concentração em Psicologia Social. A dissertação, intitulada
    Olhas-me sou: investigação dos efeitos da imagem videográfica na constituição do eu em pacientes psiquiátricos a partir de uma experiência em vídeo comunitário, foi defendida e aprovada em 2000.
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    "Me vejo no que vejo/Como olhar em meus olhos/Com um olho mais límpido/Me olha no que olho,/É minha criação/Isto o que vejo/Perceber é conceber/Águas do pensamento/Sou a criatura do que vejo..." – tradução de Haroldo de Campos (Paz, 1995).
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    Temos reservas quanto às conseqüências do incremento das fantasias dos indivíduos neuróticos, quando expostos ao potencial de amor que a câmera promete e quase nunca cumpre. A clínica registra uma grande dificuldade de manejo da proliferação imaginária desenvolvida sob transferência, que podemos transpor, sem maiores problemas, para a situação da TV Pinel, uma vez que esta não é apenas uma "produtora" ou "transmissora" de vídeos, mas, fundamentalmente, um recurso dentro das propostas de tratamento na instituição.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008

    Histórico

    • Aceito
      Mar 2008
    • Recebido
      Mar 2008
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