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História de alguns melancólicos que tiveram estranhas imaginações

MEDICINA DA ALMA

ENSAIO

História de alguns melancólicos que tiveram estranhas imaginações* * Sétimo capítulo do Discours de la conservation de la vue, des maladies melancholiques, des catarrhes, & de la vieillesse. Paris: Jamet Mettayer, 1597, p. 137-141. Tradução de Paulo José Carvalho da Silva.

André Du Laurens

Eu já descrevi amplamente os acidentes que acompanham os verdadeiros melancólicos e investiguei as causas de todas as suas variedades. É necessário neste capítulo, para o deleite do leitor, propor alguns exemplos de melancólicos que tiveram as mais bizarras e loucas imaginações. Alguns tomarei emprestado dos gregos, árabes e latinos e outros que eu mesmo vi.

Galeno, no terceiro livro do Dos lugares afetados, conta três ou quatro casos notáveis. Houve um melancólico que pensava ter se tornado um vaso, e pedia a todos que vinham vê-lo que não se aproximassem muito, por medo que o quebrassem. Outro imaginava ter se tornado um galo, cantava como um galo, batia seus braços como os galos batem suas asas. Outro melancólico queixava-se de uma pena extrema, maior que a de Atlas, pois o céu podia tombar sobre ele.

Aécio menciona um melancólico que acreditava não ter a cabeça e dizia a todos que o haviam decepado por causa de suas tiranias. Ele foi curado por meio de um artifício sutil de um médico, chamado Filodemo, que colocou uma espécie de capacete de ferro bem pesado sobre sua cabeça, levando-o a admitir que tinha dor de cabeça diante dos assistentes que, então, lhe disseram: o senhor tem, portanto, uma cabeça; o que o liberou de sua falsa imaginação.

Alexandre de Trales escreve ter visto uma mulher que acreditava ter devorado uma serpente. Ele a curou fazendo-a vomitar e colocando uma serpente de verdade na bacia. Eu li que um jovem estudante foi surpreendido por uma estranha imaginação. Ele se pôs a fantasiar que seu nariz havia crescido e alongado tanto que ele não ousava se mexer do lugar, de modo que ele pudesse chocar-se com algum lugar: tanto mais tentavam dissuadi-lo, mais ele se obstinava. Enfim, o médico pegou um grande pedaço de carne e dizendo que iria tratar o menino, fez um pequeno corte em seu nariz e fingiu ter extraído aquele pedaço de carne, fazendo-o crer que havia cortado seu grande nariz.

Um sábio, ao ver um crocodilo, foi tomado por tamanho pavor que esqueceu tudo o que sabia e ficou com a permanente impressão de que havia perdido um braço e uma perna. Viu-se vários melancólicos que acreditavam estarem mortos e se recusavam a se alimentar. Os médicos usaram dos seguintes artifícios para fazê-los comer: eles fizeram alguns assistentes deitarem-se próximo aos enfermos e os instruíram para fingirem-se de mortos, mas comerem a comida que lhes era colocada em suas bocas. Por meio dessa astúcia, persuadiram os melancólicos que os mortos comem tanto quanto os vivos.

Viu-se, não faz muito tempo, um melancólico que se dizia o mais miserável do mundo porque ele não era nada. Havia um grande senhor que pensava ser de vidro, mas essa era a única imaginação perturbada que ele apresentava, pois discorria maravilhosamente bem sobre todas as outras coisas. Ele ficava normalmente sentado e tinha prazer em receber a visita de seus amigos, entretanto pedia para que não se aproximassem dele.

(...) Areteu, no primeiro livro das doenças crônicas, afirma ter visto um melancólico que pensava ser de tijolos e se recusava a beber qualquer líquido, temendo desmanchar-se. Outro pensava ter os pés de vidro e não ousava caminhar com medo de quebrá-los. Um padeiro pensava ser de manteiga e não podia aproximar-se do fogo ou de seu forno, tamanho seu medo de derreter.

A mais engraçada imaginação que eu já li é de um nobre de Siena que resolveu nunca mais urinar, preferindo morrer, porque ele imaginava que se urinasse toda a cidade se inundaria. Mesmo os médicos dizendo que nem o corpo dele, nem os corpos de mais cem mil pessoas seriam capazes de molhar sequer uma simples casa da cidade, não conseguiram desviá-lo dessa louca imaginação. Enfim, considerando sua obstinação e o perigo para sua vida, encontraram uma engraçada invenção. Eles colocaram fogo numa casa próxima, fizeram tocar todos os sinos da cidade, pediram aos assistentes que gritassem "fogo", "fogo", e a outros que pedissem socorro. Ao nobre enfermo disseram que o único modo de salvar a cidade seria se ele urinasse imediatamente para apagar o incêndio. O pobre melancólico, que se continha por medo de prejudicar a cidade, crendo-a em perigo, urinou até esvaziar sua bexiga e foi dessa forma salvo.

No que diz respeito aos que se crêem reis, imperadores, papas e cardinais, essas são loucuras comuns. Eu preferi relatar os casos mais raros.

Eis o que é da melancolia que toma o cérebro, que é causada por uma condição fria e seca, sem matéria, ou com matéria. Ela segue, algumas vezes, as enfermidades quentes do cérebro, como o frenesi e as febres ardentes, quando o rosto se torna vermelho. Avicena observa que os gagos, os que possuem os olhos agitados e as veias amplas, são mais sujeitos à melancolia. Finalmente, a tristeza, o medo, as profundas meditações, o uso de carnes pesadas e melancólicas causam freqüentemente essa enfermidade.

André Du Laurens (1558-1609)

Importante médico francês, ocupou os cargos de primeiro médico do rei Henri IV e de chanceler da Universidade de Montpellier.

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    Sétimo capítulo do
    Discours de la conservation de la vue, des maladies melancholiques, des catarrhes, & de la vieillesse. Paris: Jamet Mettayer, 1597, p. 137-141. Tradução de Paulo José Carvalho da Silva.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jul 2008
    • Data do Fascículo
      Jun 2008
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