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Editorial

EDITORIAL

Emmanuel Zagury Tourinho

O sistema de pós-graduação em Psicologia no Brasil está construído sobre uma base de produção de conhecimento - ao mesmo tempo diversificada internamente e diferenciada - do que se passa em algumas outras áreas de conhecimento. O convite para escrever este Editorial pareceu-me uma boa oportunidade para comentar brevemente certas características dessa base e algumas de suas implicações.

Em várias subáreas e temáticas encontradas no campo da psicologia, como "processos básicos", "avaliação psicológica", "desenvolvimento cognitivo" e "comportamento social", a investigação pode se desenvolver sob condições planejadas e instituídas especificamente para esse fim. Laboratórios, equipamentos, apoio técnico e mesmo participantes voluntários tornam-se disponíveis para os estudos, executados segundo um cronograma em larga medida sob controle do pesquisador. Não se trata de afirmar que a pesquisa naquelas subáreas ou temas sempre acontecem sob as condições mencionadas, mas de indicar que essa é uma possibilidade concreta e freqüente.

Em muitas outras, como "saúde mental", "organizações e trabalho", "psicologia escolar" e "intervenções clínicas" é a realidade social ou institucional que mais freqüentemente define as condições para o desenvolvimento da pesquisa, impondo uma configuração material e social sobre a qual o pesquisador raramente tem controle e da qual precisa dar conta teórica e metodologicamente. Novamente, as subáreas e temáticas referidas apenas mais provavelmente ilustram tais condições.

Não são apenas a infra-estrutura material e o contexto social em que as investigações se desenvolvem que distinguem substancialmente a base sobre a qual se organizam os esforços de pesquisa e formação pós-graduada em psicologia. As funções que a atividade dos grupos de pesquisa assume em cada contexto conferem à área contornos únicos. Em certos cenários de produção de conhecimento e formação de pesquisadores em psicologia, a atuação dos grupos não tem (e, freqüentemente, não pode ter) apenas as funções primárias para as quais se constitui o sistema de pós-graduação, quais sejam, de produção de conhecimento e de formação de quadros competentes para a produção de conhecimento e para a inovação tecnológica. Objetivos extensionistas, prestação de serviços, formação de quadros profissionais e contribuição para a formulação e efetivação de políticas públicas estão presentes e acabam por implicar funções e encargos adicionais. Em outras palavras, a base de produção de conhecimento e formação pós-graduada em psicologia freqüentemente é tal que significa, entre outros, a interação com dinâmicas institucionais não acadêmicas, desafios metodológicos originais, realizações mais diversificadas e um volume possivelmente maior de trabalho. Talvez seja mais apropriado dizer que toda base de produção científica em psicologia, em graus variados, é afetada por esse cenário, como em um continuum que vai da situação típica da pesquisa básica em laboratório aos programas mais bem sucedidos de integração da investigação com a intervenção social e institucional (a propósito, grande parte da pesquisa contemporânea sobre processos de aprendizagem é realizada em instituições educacionais; enquanto isso, inúmeros estudos sobre processos psicossociais estão sendo desenvolvidos em ambientes acadêmicos de pesquisa). As implicações dessas configurações são as mais variadas.

Uma primeira implicação é que a avaliação da pós-graduação em psicologia precisa avançar na direção da apreciação de suas diversas realizações. Isso não significa reduzir as exigências com respeito à produção intelectual e à formação de Mestres e Doutores, pois os Programas de Pós-Graduação continuam obrigados a cumprir as funções básicas previstas para o sistema e que justificam o enorme investimento público nele realizado. Mas é necessário agregar uma aferição mais elaborada de seu impacto social. Desde a Avaliação Trienal de 2007, a Ficha de Avaliação dos Programas de Pós-Graduação utilizada pela CAPES inclui o quesito "Inserção Social". Há, portanto, um espaço institucional por parte da CAPES para que a área avance na avaliação de todas as suas realizações. O maior reconhecimento das realizações relacionadas à inserção social, por outro lado, dependerá largamente da capacidade de a área mostrar-se preparada para avaliá-las criteriosamente.

É importante reconhecer, em outra direção, que a inserção social só constitui um resultado da pós-graduação quando associada a programas de produção de conhecimento e de formação de pesquisadores, o que parece óbvio, mas pode ser difícil de ser percebido ou considerado para quem está imerso em uma realidade com demandas impositivas em várias direções. O desenvolvimento de um programa em saúde mental para jovens infratores em uma comunidade de periferia, ou a aplicação de um procedimento de treino de discriminação de variações na taxa glicêmica para pacientes diabéticos, inquestionavelmente, têm uma enorme relevância social, mas, por si mesmos, não representam a principal contribuição que um Programa da Pós-Graduação pode dar àquelas populações e, principalmente, não representam a contribuição que apenas Programas de Pesquisa e Pós-Graduação podem oferecer àquelas populações. O que se espera dos últimos é que se voltem para aquelas realidades apropriando-se do conhecimento mais avançado disponível e que gerem conhecimento novo sobre os modos mais efetivos de lidar com os problemas ali encontrados. Isso só será possível se a inserção social estiver articulada às funções primárias para as quais o sistema de pós-graduação foi constituído. Fora disso, podemos ter trabalhos de indiscutível relevância social, mas que não representam a contribuição do sistema de pós-graduação (e possivelmente poderiam ser realizados sem o investimento elevado da sociedade nesse sistema) e, por si mesmos, não qualificam um Programa de Pós-Graduação.

A avaliação da pesquisa e da pós-graduação no Brasil, como em muitos outros países, é fortemente regulada por modelos de aferição da produtividade fundamentados e compatíveis com um tipo de base de produção de conhecimento encontrado principalmente nas chamadas hard sciences. Para as ciências humanas, e para a psicologia em particular, esses modelos não são suficientes (o que é diferente de dizer que não são relevantes), pelo fato de que a base sobre a qual as últimas se organizam confere outras dimensões às atividades regulares de investigação e formação. Mas as implicações dessa realidade diferenciada ainda estão por ser examinadas em todas as suas dimensões e implicações. Também está por ser examinado o papel das publicações científicas e acadêmicas em psicologia, incluindo esta Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, nesse cenário. Apontei acima a necessidade de a inserção social ser avaliada nas suas conexões com a investigação e a formação, mas este é apenas um aspecto da questão e para o qual ainda estamos dando os primeiros passos. Fica aqui um convite para uma discussão mais aprofundada da questão.

Belém, 1 de agosto de 2008

Emmanuel Zagury Tourinho

Emmanuel Zagury Tourinho

Doutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo - USP (São Paulo, SP, Brasil); Professor Titular da Universidade Federal do Pará - UFPA (Belém, PA, Brasil), com atuação no Curso de Graduação em Psicologia e no Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento; coordena o Grupo de Pesquisas em Análise do Comportamento: História, Conceitos e Aplicações; é Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq e atualmente exerce a função de Coordenador da Área de Psicologia na CAPES.

Av. Governador José Malcher, 1716/1502 - Nazaré

66060-230 Belém, PA, Brasil

e-mail: eztourinho@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Set 2008
  • Data do Fascículo
    Set 2008
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