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"Passes" e impasses: adolescência - drogas - lei

"Passes" et impasses: adolescence - drogues - loi

Salidas y sin salidas: adolescencia - drogas - ley

Teenagers, impasses, drugs, law

Resumos

Este trabalho problematiza os atos toxicomaníacos e delinqüenciais na adolescência e as intervenções clínicas e legais que ocorrem nestas situações. A ineficácia da injunção judicial e a não-adesão ao tratamento em saúde mental coloca um impasse: Que operações delimitam bordas e responsabilidades? A construção compartilhada de uma clínica ampliada para as interfaces da psicanálise e justiça permite repensar práticas voltadas à adolescência, cujo intenso trabalho psíquico visa a uma legitimação social.

Adolescência; lei; drogas; psicanálise


Ce travail se rapporte aux actes de toxicomanie et aux délits associés à l'adolescence. Il porte également sur les interventions cliniques et légales que ces conduites entraînent. L'inefficacité de l'injonction judiciaire et la non adhésion au type de traitement de santé mentale créent une impasse: Quelles sont les opérations qui délimitent les limites et la responsabilité? La construction en commun d'une clinique qui tient compte des interfaces de la psychanalyse et de la justice permet de repenser les pratiques adressées à l'adolescence, dont l'intense travail psychique vise la légitimation sociale.

Adolescence; loi; drogues; psychanalyse


Este trabajo problematiza los actos toxicomaníacos y delincuenciales en la adolescencia y las intervenciones clínicas y legales que ocurren en estas situaciones. La ineficacia del mandato judicial y la falta de adhesión al tratamiento en salud mental nos coloca una situación de difícil salida: ¿Qué operaciones delimitan bordes y responsabilidades? La construcción compartida de una clínica ampliada para las relaciones del psicoanálisis con la justicia permite repensar prácticas dirigidas a la adolescencia, cuyo intenso trabajo psíquico visa una legitimación social.

Adolescencia; ley; drogas; psicoanálisis


This paper discusses substance abuse and juvenil delinquency as related to the clinical and legal interventions that often occur in these situations. The inefficiency of court intervention and the failure of the adolescents themselves to adhere to mental health treatment programs have come to an impasse. What operations separate limits and responsibilities? The shared construction of a clinic that is amplified in its psychoanalytic and legal interfaces makes it possible to rethink actions aimed at adolescents where intensive psychological work is carried out for social legitimacy.

Adolescence; law; drugs; psychoanalysis


ARTIGOS

"Passes" e impasses: adolescência - drogas - lei* * Trabalho apresentado no 2º Rencontre Franco-Bresilienne de Psychanalyse et Droit L'enfant en danger, l'enfant dangereux: acte et enjeux actuals de responsabilité. Organizado pelo Ministère de la Santé et des Solidarités Français, Paris, outubro de 2005. Grupo de pesquisa: Grupo de Estudos Transdisciplinares sobre Violência e Criminalidade da UNISINOS.

Salidas y sin salidas: adolescencia - drogas - ley

"Passes" et impasses: adolescence - drogues - loi

Teenagers, impasses, drugs, law

Marta Conte; Ronaldo César Henn; Carmen Silveira de Oliveira; Maria Palma Wolff

RESUMO

Este trabalho problematiza os atos toxicomaníacos e delinqüenciais na adolescência e as intervenções clínicas e legais que ocorrem nestas situações. A ineficácia da injunção judicial e a não-adesão ao tratamento em saúde mental coloca um impasse: Que operações delimitam bordas e responsabilidades? A construção compartilhada de uma clínica ampliada para as interfaces da psicanálise e justiça permite repensar práticas voltadas à adolescência, cujo intenso trabalho psíquico visa a uma legitimação social.

Palavras-chave: Adolescência, lei, drogas, psicanálise

RESUMEN

Este trabajo problematiza los actos toxicomaníacos y delincuenciales en la adolescencia y las intervenciones clínicas y legales que ocurren en estas situaciones. La ineficacia del mandato judicial y la falta de adhesión al tratamiento en salud mental nos coloca una situación de difícil salida: ¿Qué operaciones delimitan bordes y responsabilidades? La construcción compartida de una clínica ampliada para las relaciones del psicoanálisis con la justicia permite repensar prácticas dirigidas a la adolescencia, cuyo intenso trabajo psíquico visa una legitimación social.

Palavras claves: Adolescencia, ley, drogas, psicoanálisis

RÉSUMÉ

Ce travail se rapporte aux actes de toxicomanie et aux délits associés à l'adolescence. Il porte également sur les interventions cliniques et légales que ces conduites entraînent. L'inefficacité de l'injonction judiciaire et la non adhésion au type de traitement de santé mentale créent une impasse: Quelles sont les opérations qui délimitent les limites et la responsabilité? La construction en commun d'une clinique qui tient compte des interfaces de la psychanalyse et de la justice permet de repenser les pratiques adressées à l'adolescence, dont l'intense travail psychique vise la légitimation sociale.

Mots clés: Adolescence, loi, drogues, psychanalyse

ABSTRACT

This paper discusses substance abuse and juvenil delinquency as related to the clinical and legal interventions that often occur in these situations. The inefficiency of court intervention and the failure of the adolescents themselves to adhere to mental health treatment programs have come to an impasse. What operations separate limits and responsibilities? The shared construction of a clinic that is amplified in its psychoanalytic and legal interfaces makes it possible to rethink actions aimed at adolescents where intensive psychological work is carried out for social legitimacy.

Key words: Adolescence, law, drugs, psychoanalysis

Este trabalho apresenta o tema da adolescência e sua relação com a lei, através de situações ligadas ao uso de drogas e delitos associados, desde a interface da psicanálise e justiça. Os autores compõem o Grupo de Estudos Transdisciplinares sobre a Violência da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), situada em São Leopoldo, Estado do Rio Grande do Sul/Brasil, que reúne pesquisadores das áreas de Psicologia, Comunicação Social e Serviço Social.

As vinhetas foram colhidas em dados de pesquisa com apenados, realizada pelo grupo de pesquisadores acima citado, em diálogos com profissionais que atuam na interface da saúde e da justiça e através de consulta documental. Acompanhou-se três instâncias do Judiciário: a Vara de Execuções de Penas e Medidas Alternativas (VEPMA)1 1 . Instância que acolhe processos julgados que indiquem penas alternativas (tratamento, prestação de serviços à comunidade ou limitação de fim de semana, entre outras). e a 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre e o Juizado Especial Criminal2 2 . Instância que acolhe delitos de menor potencial ofensivo, entre eles o porte e uso de drogas, brigas, ameaças, lesões corporais e maus-tratos, antes que constituir processo criminal. do Alto Petrópolis/Porto Alegre, assim como um serviço da rede de Saúde Mental, que recebem adolescentes encaminhados pela justiça.

No contexto brasileiro, a relação que o adolescente estabelece com as drogas e o delito precisa ser lida através de uma análise crítica de diferentes fatores, entre eles: o legal-ideológico, o imaginário social em torno do usuário e das drogas, as políticas públicas; e as concepções terapêuticas que permeiam a Saúde Mental.

Situa-se como principal impasse a dificuldade de engajamento transferencial dos toxicômanos nos serviços de Saúde Mental da rede de Saúde Pública, especialmente quando encaminhados pela justiça. Trata-se aqui de aprofundar alguns pontos que sustentam essa dificuldade.

As características das ocorrências que chegam ao Judiciário são diversas, constatamos desde fortuitos usos experimentais de drogas até situações graves e recorrentes, somadas ao uso intenso de drogas que resultam em danos psíquicos e sociais importantes. Frente a estes últimos, não raro, os profissionais da saúde e da justiça vivem uma inquietante estranheza, uma infamiliaridade, pois são situações que questionam o laço social ao mesmo tempo que o analítico, como formula Rassial (2000). Nesse contexto, os adolescentes se vêem jogados em uma errância sem passaporte para o simbólico.

Convém aqui retomar Mauss através de Lacan (1998) ao indicar que quando as estruturas sociais são reais, os atos serão simbólicos. Assim, consideramos que os atos toxicomaníacos e delinqüenciais na adolescência são altamente simbólicos. Esses atos portam em si uma significação simbólica de serem a única forma de ter acesso ao que conta para o sujeito, o que exigem um trabalho de deciframento (Melman, 1992).

O cenário

O cenário socioeconômico da população brasileira apresenta, especialmente para os adolescentes dos centros urbanos, uma realidade de extremas desigualdades. No Brasil, os adolescentes brasileiros correspondem a, aproximadamente, 15% da população do país. Nessa faixa etária há 3% a 4% de analfabetos, 66% estudam; 17,5% estudam e trabalham; 7,5% apenas trabalham e 9,0% não estudam nem trabalham. Essa população representa 46,4% do total das pessoas sem emprego. Quanto às principais causas de morte entre jovens, encontramos o homicídio, suicídio e acidentes fatais de trânsito. E pela primeira vez passa a crescer mais o número de mortes violentas no interior do país do que nas capitais e regiões metropolitanas, segundo Waiselfisz (2002).

O uso de álcool e outras drogas no Brasil tem grave impacto na Saúde Pública, prevalecendo a dependência do álcool na faixa etária de 18 a 24 anos; dos jovens compreendidos nesa faixa, 11,2% quiseram parar ou diminuir o consumo e 8,2% já passaram por algum tipo de tratamento. Na Região Sul, a dependência do álcool é 9,5% e da maconha é de 1,6% (Carlini et al., 2002).

Por outro lado, constata-se que o mercado da droga e suas formas de afirmação têm produzido um aumento significativo da violência urbana no Brasil e que a rede de tráfico entra nos vácuos do poder público. Nessa perspectiva, o delito, especialmente a venda de drogas, oferece-se para os adolescentes como trabalho não-formal, com inscrição em um ideal de conquista (remuneração e prestígio) e "remédio contra a miséria que o próprio sistema fabrica" (Jacques, 2001, p. 7). Ilustra-se a idéia dessas contradições através da obra de Hélio Oiticica, pintor e escultor, que inaugura o neoconcretismo nos anos 1960-1970. A obra Homenagem a Cara de Cavalo, de 1966, é uma instalação com uma grande foto em que Cara de Cavalo, seu amigo traficante, aparece morto de braços abertos, assassinado pela polícia. A frase que acompanha a instalação é "seja marginal, seja herói". O protesto do artista dá visibilidade à revolta do traficante contra a sociedade, ao criar seu mundo paralelo, suas regras, seus códigos e suas leis, a partir do que chama de uma revolução (Duarte, 1998).

Essa imagem permite uma reflexão sobre o paradoxo relativo a ações que visam uma tentativa de inscrição simbólica no laço social. Contudo, ao não se sustentarem, retornam ao real - lugar do herói morto. Pode-se fazer uma analogia com a posição ideal em que o adolescente é tomado em nossa sociedade, e seu horizonte mortífero no qual é jogado, constatado nas estatísticas em relação a homicídios, suicídios, acidentes (Waiselfisz, 2002), causas externas (Datasus/SIM/RS, 2005).

Oliveira (2001) analisa que o delito no contexto de uma adolescência "exacerbada" e fora-de-lugar é um atalho na via do reconhecimento e expressão de uma autonomia reativa, de auto-afirmação do tipo individualista, narcisista e, muitas vezes, predatória. Essa mesma adolescência, associada à incitação ao consumo, se vê tensionada entre a imensa oferta de bens a consumir e as precárias condições para sua aquisição.

Os vários aspectos citados estão ligados às conseqüências, nas últimas décadas, da implantação do modelo político-econômico neoliberal. A impunidade e a descrença na política perpassam o laço social. A insuficiência do Estado na função prioritária ligada à gestão de políticas sociais tem produzido desamparo, incremento (real e imaginário) de medo e ascensão nos índices de reincidência do ato infracional entre adolescentes (Oliveira, 2001).

Considera-se necessária, mas não suficiente, a construção das políticas públicas para a adolescência em torno do tema da inclusão social como acesso aos direitos básicos. Para dar conta das demandas subjetivas que estão associadas ao uso de drogas e a violência juvenil, além de políticas sociais articuladas, precisa-se endereçá-las a uma escuta clínica, desde uma posição diferente do que propõe a instância legal ou mesmo do que propõem as ações sobre a cidadania.

Problematizando a lei

Para trabalhar o horizonte ideológico que estruturou o modelo que embasa a Política Criminal de Drogas, dialoga-se com as contribuições da obra de Carvalho (1996). Historicamente, o Brasil optou pela utilização constante de normas penais com termos imprecisos e genéricos, minimizando as garantias individuais sustentadas pelos princípios constitucionais.

Com o advento da Lei de Drogas 6368/76 (Brasil, 1976), que é de natureza puramente repressiva com anacronismos e conceitos controversos, quando confrontados com o momento político-social do país, consolida-se o alinhamento com modelos supranacionais, sendo inseridos, gradativamente, dois discursos distintos. O discurso médico-sanitário (estereótipo da dependência) e o discurso político-jurídico (estereótipo da criminalidade), com predominância do último. Esses discursos importados estabelecem a ideologia da diferenciação entre o doente e o delinqüente, que se manterá até a atualidade (Carvalho, 1996).

De acordo com Carvalho (1996), o estereótipo da dependência entende que existe um vínculo necessário entre consumo, irreversibilidade da dependência e formação de carreira criminal. Esse estereótipo se estende para a categoria do inimigo interno, visualizado na droga e no traficante, assim como no inimigo externo, localizado nos países terceiro-mundistas, produtores e exportadores de drogas. Impõe-se, assim, ao senso comum a idéia de que esse inimigo deve ser de qualquer forma eliminado através de ação conjunta, pois representa perigo social a toda comunidade internacional. O estereótipo da criminalidade se funda na idéia de uma realidade intrínseca do comportamento que é desviante em si e preexiste ao controle social e penal.

Com esses pressupostos, segue Carvalho (1996), organiza-se a "demonização" do discurso das drogas propiciada nos anos setenta, pelos Estados Unidos, com a pretensão de erradicar o tráfico internacional. Passam, então, a influenciar a política nacional dos países latinos e orientais, com medidas extremamente repressivas, dissociadas da realidade e estruturadas numa ótica da política de guerra. Alia-se a isto a idéia da segurança pública como campo de batalha contaminado com premissas como eliminação, neutralização e erradicação, periculosidade, reeducação, personalidade do agente, prevenção da reincidência. Essas designações decorrentes do positivismo de "Ordem e Progresso", lema da bandeira nacional, passam a fazer parte da política criminal de drogas, do sistema penal e influenciam as abordagens terapêuticas no campo das drogas, ponto que será retomado mais adiante.

Assinala-se, também, a implantação em nosso país da justiça terapêutica, nos moldes das cortes de drogas norte-americanas. Essa prática entende que os adolescentes envolvidos em algum delito, e que também fazem uso de drogas, são freqüentemente encaminhados pelo Juizado da Infância e Adolescência para tratamento das toxicomanias, mesmo sem haver motivação ou uma toxicomania em causa. Esse encaminhamento é resultado de um acordo legal que visa à substituição da pena pelo tratamento.

Apesar de não haver consenso entre os operadores da lei sobre a prática da justiça terapêutica, de forma geral, o mais recorrente aponta para o fato de que é a droga a responsável pelo delito, tendo como conseqüência efeitos de desresponsabilização subjetiva. O fato de que a lei não faz distinção entre uso e dependência, e também não distingue narcotraficante, traficante-usuário e traficante-dependente, determina que se instale a idéia de que todo uso se caracteriza como dependência e todo tráfico deve ser enquadrado como crime hediondo sem progressão de regime, desconsiderando que o dependente, muitas vezes, faz pequenos tráficos para sustentar o próprio consumo. Este é um dos maiores problemas dessa lei, pois estipula punição equivalente aos diferentes níveis de inserção no tráfico: do narcotraficante ao "aviãozinho" - este último refere-se ao menor na hierarquia da rede de tráfico, aquele que vende pequenas quantidades de droga.

Por outro lado, criminalizar o dependente de drogas sem oferecer recursos terapêuticos durante a pena, considerando o fácil acesso às drogas nos ambientes prisionais, remete a uma realidade desumana, como foi observado através dos dados de pesquisa com apenados, já citada.

Ao acompanhar o trabalho do Juizado Especial Criminal para onde são encaminhados delitos de menor potencial ofensivo, tais como porte de drogas, lesões leves, ameaças e maus-tratos, pode-se perceber avanços nas mudanças propostas pela Lei 9099/95 (Brasil, 1995), que dispõe sobre as penas e medidas alternativas. Essa mudança se evidencia com a possibilidade de conciliação, antes da caracterização de um processo criminal. A aposta do juiz nessas situações, exigindo-lhe argumentações que convoquem as partes a revisarem suas posições, facilita assim o restabelecimento de trocas e a reparação de danos, através de acordos consentidos. A potencialidade dessa forma de intervenção legal nem sempre tem bons desdobramentos, dependendo das concepções de cada juiz sobre o tema em questão.

Os profissionais da Saúde Pública: qual a posição de escuta?

O problema de álcool e drogas no nosso país tem sido endereçado preponderantemente aos ambulatórios especializados, às inúmeras comunidades terapêuticas de orientação religiosa, aos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) para álcool e drogas, aos hospitais psiquiátricos e aos hospitais gerais. A espera para um atendimento nessa área leva em média de três a cinco meses, e para o adolescente o acesso torna-se bem mais difícil, pelo número reduzido de serviços para essa faixa etária.

Entre os obstáculos à escuta dos toxicômanos nos serviços de saúde mental, elencaram-se alguns aspectos como a ideologia repressiva da política de drogas e o imperativo da abstinência, por considerá-los centrais no seguinte impasse: escutar o que o toxicômano tem a dizer, para além do rótulo e da relação ao produto.

Muitos profissionais constrangem-se ao atender o toxicômano, o que de início vem carregado com o imaginário da marginalidade e da delinqüência, pois acreditam que atendê-lo possa soar como validação de um ato ilícito, confundindo sua função com a do policial. Há, também, a frustração frente à recaída, que pode levar à interrupção do vínculo, produzindo um fluxo de errância entre o hospital e a prisão. O retorno à justiça, com o problema de drogas ou de delinqüência recrusdescido, não é raro.

Em geral, como orientação terapêutica dos serviços que sustentam o imperativo da abstinência, o sujeito fará uma série de tentativas de livrar-se de todos os objetos que estavam marcados pela sua trajetória toxicomaníaca, até mesmo sua história, referências, memórias, para, na condição de "estar limpo", responder a um ideal de recuperação. No imperativo da abstinência, reúne-se então duas formas de controle, a que responde ao apelo legal de eliminação do inimigo e a que está referenciada aos princípios de erradicação do problema, próprias do higienismo.

Partilhamos a idéia de que o sujeito, para advir além da necessidade e da demanda, precisa renunciar ao absoluto do real, recuperando a eficácia da fala e construindo na linguagem sua história psíquica, recuperando memória e marcas em uma série singular que o engaje em formas de cuidado, deveres simbólicos e direitos. Nessa perspectiva o lugar do Outro Real poderá ser civilizado, tolerado, sem que se precise dominá-lo completamente.

Lacan (Julien, 1999) situa em que está preso o homem moderno, ao mostrar sua semelhança com a alienação da loucura, de que tanto para um como para a outra "o sujeito aí é falado, mais do que fala" (p. 18). Trata-se de uma fala do Eu, em sua fixidez e estagnação, que ele associa à paranóia.

Pela desmontagem dos estereótipos do "drogado, marginal, delinqüente" permite-se diminuir as incidências imaginárias para enfatizar as possibilidades simbólicas, abrindo os caminhos da fala. Para tanto, parte-se da formulação lacaniana da falta de objeto, porque não é a droga que desilude o toxicômano lhe produzindo sofrimento, mas sim a falta da falta. Esta o mantém no registro da privação e o expõe a um gozo na privação. Faltaria ao toxicômano e aos profissionais que o escutam concluir que a droga está desde sempre interditada. Quanto mais a droga é apontada como o objeto do qual o toxicômano deve se abster, menos chances ele terá de aceitar que o que ele empreende é da ordem do impossível e não resultado de uma proibição que venha do campo do Outro, da lei ou do analista.

Se o toxicômano já se encontra em uma recusa de linguagem, o que leva a um empobrecimento discursivo, como propõe Chassaing (2000), e uma vez que seu ato está apartado da palavra, quais as condições necessárias para retomar um lugar de enunciação? Alguns psicanalistas indicam essas possibilidades: desintoxicar a droga, diz Freda (1990), desintoxicar a exacerbação decorrente do discurso imperativo da ciência, indica Chassaing (2004), desconstruir as representações sociais da toxicomania, e ainda, acrescenta Jacques (2001), é preciso desintoxicar o discurso do legislador, do perito, da opinião pública e do próprio clínico.

Despreender-se da identificação com a toxicomania e da fixação da droga como objeto da necessidade exige intenso trabalho de luto, lento e laborioso, tecendo o buraco da droga com uma série de significantes. Além disto, na interface saúde-justiça tem-se que produzir uma necessária desmontagem de discursos tais como "não posso mais com ele", "não tem saída", que vêm tanto dos profissionais como da família, e sua contrapartida emergindo no discurso do adolescente, "não dá nada", resultado da inoperância de várias instâncias (Mello, 2003).

Chama-se a atenção no campo da Saúde Pública para a redução de danos no Brasil como uma perspectiva importante. Ela acompanhou os avanços promovidos pela Reforma Psiquiátrica, o que significou o reconhecimento de direitos e deveres dos "loucos" (Tenório, 2001) e, junto a eles, o dos toxicômanos. Tem-se afirmado como uma diretriz da Política de Saúde Mental do Ministério da Saúde e, em alguns Estados, faz uma aproximação com as formulações psicanalíticas das toxicomanias, o que tem auxiliado na necessária desconstrução citada há pouco do imaginário em torno do usuário de drogas e do imperativo de abstinência, como única forma de abordagem voltada aos toxicômanos. Na sua origem, a Redução de Danos chegou a ser identificada apenas pela prática de trocas de seringas e, progressivamente, passou a ser compreendida pela essência de seus princípios: o respeito aos usuários de drogas, sua demanda, seu tempo de elaboração da experiência e a flexibilidade no contrato. Esses aspectos viabilizam uma escuta no contexto de condições preliminares para a formulação de uma demanda, favorecendo o reconhecimento de riscos e a construção de estratégias, singulares e consentidas, de autocuidado. A Redução de Danos tem sua importância, como contribuição ao campo social, por servir de ponte entre o sujeito e o laço social do qual está apartado, provocando nos profissionais de saúde o desejo de investimento voltado aos sujeitos toxicômanos, e propondo um diálogo com outras instâncias, tais como a Justiça e a Educação.

Concorda-se que a clínica das toxicomanias desde a perspectiva da psicanálise não encontrará momentos fáceis: a construção da demanda, as condições para o estabelecimento da transferência, e, sobretudo, a abstinência do lado do analista, já que competir com a droga é um dos impasses que expõe o paciente a um recrudescimento do consumo de drogas (Conte, 2003).

Um lugar de fala

José, 24 anos, foi encaminhado pelo juiz para tratamento e freqüenta há alguns meses o grupo de Alcóolicos Anônimos. Refere, ao ser convidado a dar seu depoimento, que se sentiu impedido, pois sua palavra de nada vale se está cumprindo pena. Esta terá valor somente após a prestação de contas com a lei, refere José à psicóloga que o escuta na 3ª Vara do Juizado Regional da Infância e da Juventude de Porto Alegre/RS/Brasil.

Este exemplo convoca-nos a pensar: em que implica o uso da fala?

Czermak (1987) nos diz que é da escuta que depende aquilo que se diz. E o que se desembaraça varia segundo aquele que escuta e questiona, seja magistrado, teólogo ou psicanalista e mesmo se eles colocam eventualmente as mesmas questões, aquelas do direito romano: Quem? Como? Por quê? Na perspectiva da psicanálise não se prescreve e não se legisla, mas propõem-se meios e apreciações, permitindo a um sujeito saber, se ele o quer, com o que ele está disposto a se confrontar e quais os limites que se impõe.

Uma aposta no sujeito terá eficácia se há um desconhecimento em causa, sem previsibilidades e prognósticos, deixando para o sujeito o campo da construção de soluções que lhe permitam um arranjo menos destruidor com a vida.

Luiz, aos 16 anos, chegou a tratamento em um ambulatório de saúde mental para adolescentes, Pró-Jovem, da Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS/Brasil, encaminhado pelo PEMSE (Programa de Execução de Medidas Socioeducativas), pois, segundo a terapeuta ocupacional que o atende, ele estava fazendo "receptação" de objetos roubados e usando pó, loló e crack. Nas palavras de Luiz, "receptação" é diferente de roubo, mostrando que seu envolvimento com o crime está amparado por alguns obstáculos. Submeteu-se a várias internações psiquiátricas. Chegou a concluir a pena de prestação de serviços à comunidade e estava em regime de liberdade assistida. Vinha mantendo controle sobre o uso de drogas até ocorrer o fato de perder o vínculo com o estágio, o qual conseguira através de um programa de acesso ao trabalho proporcionado pelo serviço de saúde. Desorganizou-se com isto, voltando a usar crack; tentou, então, assaltar um bar e foi preso. O que se pode colocar em relevo é que ele encontrou alguns arrimos através do vínculo com o serviço de saúde mental e no trabalho como estagiário, na função de restaurar documentos. Estabeleceu um bom relacionamento com os colegas e, naquele tempo, conseguiu "restaurar", de maneira provisória, sua identidade, deslocando-se do lugar de dejeto da família para uma outra inscrição social. No tratamento, passou de uma posição de ficar perguntando ao profissional quanto tempo ele ainda tinha que continuar vindo ali, para uma posição de implicação subjetiva, passando a falar de como vivia a fragilidade do pai, do descrédito que tinha em relação a ele, questionando seu lugar de depositário dos problemas familiares e da invasividade da mãe.

Luiz viveu uma mudança de medida judicial, e esses marcos na vida seriam muito importantes se pudessem ser acompanhados de rituais e de palavra. A conclusão de uma medida (em meio aberto) tem um valor simbólico como rito de passagem, em que a fala e a voz do juiz ao pronunciar seu reconhecimento em relação a uma pena saldada abririam a possibilidade de o adolescente sentir-se livre do compromisso legal.

Um dos grandes impasses do profissional da saúde mental é quando o tratamento fica fixado na idéia de um pagamento de pena, não havendo condições transferenciais de engajamento subjetivo, para além da responsabilidade legal que permitisse uma ressignificação da experiência com a lei.

Operadores de borda: somente limites não bastam, é preciso "passes"

O sujeito é sempre uma incógnita, e para não naufragar ele precisa de um ponto fixo, bordas, que se organizam desde uma série de atributos e identificações, a partir de como o sujeito é falado. Essa fala sobre o sujeito se traduzirá na aposta de que ele tem um valor e na possibilidade de se interrogar sobre a sua implicação naquilo do qual padece.

Para fazer borda é preciso um corte que constitua um furo que seja enlaçado pelo simbólico. É pela veiculação da fala e voz do Outro que se podem constituir bordas. É quando o Outro lança a hipótese de que há um sujeito, que se estabelece um corte que lhe permite lançar-se no risco de viver (Fleig, 2005), com alguma segurança. Vários aspectos interventivos, quando articulados entre os profissionais e, especialmente, com a concordância do interessado, podem promover bordas: da escuta singular, o acompanhamento terapêutico, a internação hospitalar, o contato com a família, os recursos socioeducativos e culturais, entre outros.

Para os "operadores de borda" é fundamental o cuidado para que as intervenções não se organizem em torno de um discurso "reeducativo", pois isto assujeita o adolescente desde a mesma posição na qual a lei e a droga o interpelam, isto é, através de imperativos. Ao permitirmo-nos não assumir uma posição superegóica, de quem tudo sabe, deixamos alguma chance para o adolescente compartilhar as suas fragilidades, usando seu sintoma na invenção possível de um discurso em que seu desejo não seja obturado por passagens ao ato, sempre decepcionantes em seus efeitos. A partir de uma relação descontraída, as palavras do adolescente em conflito com a lei poderiam ser recolocadas e partilhadas com uma crítica da objetividade e da subjetividade, levando-o a encontrar um pouco de saber sobre sua própria natureza de sujeito desejante (Rassial, 1999, p. 84).

Existem lugares, no contexto cultural e social, e, também, na interface saúde-justiça, sustentados por diálogos transdisciplinares, que auxiliam na desmontagem de discursos intoxicados e alienantes.

Para concluir, limites só não bastam, é preciso que haja "passes", licenças de trânsito de um lugar a outro, que permitam ao adolescente explorar outras vias, nas quais ele encontre uma inscrição que possa ser legitimada pelo coletivo e "encorajadas pelo trabalho de todos aqueles que estão engajados como sujeitos no exercício de suas posições simbólicas" (Forget, 2005, p. 3).

Versão inicial recebida em agosto de 2007

Versão aprovada para publicação em outubro de 2008

Marta Conte

Doutora em Psicologia Clínica; ex-professora e pesquisadora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (São Leopoldo, RS, Brasil); Coordenadora de Ensino da Escola de SaúdePública/RS (Porto Alegre, RS, Brasil); membro do Comitê de Ética da Escola de Saúde Pública/RS.

Rua Coronel Corte Real, 573

90630-080 Porto Alegre, RS, Brasil

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Ronaldo César Henn

Doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP (São Paulo, SP, Brasil); professor do PPG de Comunicação Social, Pesquisador da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (São Leopoldo, RS, Brasil).

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Carmen Silveira de Oliveira

Doutora em Psicologia Clínica; professora e pesquisadora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (São Leopoldo, RS, Brasil); subsecretária de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (Brasília, DF, Brasil).

QI29, conjunto 16, casa 21 - Lago Sul

71675-205 Brasília, DF, Brasil

e-mail: coliveira@unisinos.br

Maria Palma Wolff

Doutora em Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais; professora e pesquisadora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos (São Leopoldo, RS, Brasil); vinculada ao Instituto de Acesso à Justiça - IAJ (Porto Alegre, RS, Brasil).

Rua Veríssimo Rosa 757/503

90610-280 Porto Alegre, RS, Brasil

e-mail: palmaw@redemeta.com.br

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  • *
    Trabalho apresentado no 2º Rencontre Franco-Bresilienne de Psychanalyse et Droit L'enfant en danger, l'enfant dangereux: acte et enjeux actuals de responsabilité. Organizado pelo Ministère de la Santé et des Solidarités Français, Paris, outubro de 2005.
    Grupo de pesquisa: Grupo de Estudos Transdisciplinares sobre Violência e Criminalidade da UNISINOS.
  • 1
    . Instância que acolhe processos julgados que indiquem penas alternativas (tratamento, prestação de serviços à comunidade ou limitação de fim de semana, entre outras).
  • 2
    . Instância que acolhe delitos de menor potencial ofensivo, entre eles o porte e uso de drogas, brigas, ameaças, lesões corporais e maus-tratos, antes que constituir processo criminal.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jan 2009
    • Data do Fascículo
      Dez 2008

    Histórico

    • Recebido
      Ago 2007
    • Aceito
      Out 2008
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