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Narcisismos

RESENHA DE LIVROS

Narcisismos

João Ezequiel Grecco

Narcisismos

Oscar M. Miguelez

São Paulo: Escuta, 2007, 156 págs.

Os escritos de Freud conferiram amplas dimensões e profundidade à psicanálise.

É inegável que a forma, o estilo e a preocupação pedagógica alcançaram um grau de excelência nos textos de Freud, cuja leitura é sempre prazerosa.

Desde o início de suas publicações, os leitores puderam ter acesso, a partir das próprias possibilidades, ao conteúdo das hipóteses freudianas.

Com A interpretação dos sonhos (1900) abrem-se perspectivas inéditas para a compreensão do ser humano. O inconsciente emerge como sede do imaginário, objeto da psicanálise. Inaugura-se uma dimensão livre das amarras do tempo e nãocontrolada pela consciência. É criada uma metodologia para dar conta dos enigmas do inconsciente. O sonho, o chiste e os atos falhos são os fenômenos onde num primeiro momento Freud detecta as pistas do inconsciente.

Mesmo diante de uma leitura atual, sua escrita conserva a novidade, a consistência e o rigor científico, contribuindo para o conhecimento teórico e a formação do psicanalista.

Vários exemplos clínicos utilizados por Freud provêm de sua própria clínica, da sua experiência psicanalítica e de suas próprias inquirições pessoais.

A "Introdução ao narcisismo" (1914) não fugiu à regra. Trata-se de um texto não só relevante como indispensável.

Um dos pontos mais importantes refere-se à distinção entre narcisismo primário e secundário, conceitos relacionados à diferenciação das estruturas neurótica e psicótica.

A riqueza do texto deve-se, para além de seu aspecto inquiridor e o desafio do tema, também às divergências e confrontos em relação a Jung e Adler, tanto em relação a questões clínicas como teóricas.

Desse encontro surgem idéias e conceitos que, convergentes ou divergentes, conduzem Freud à elaboração de novos conceitos, principalmente às relações de objeto conforme vinculadas ao narcisismo primário e secundário, e ao ideal do eu. O tema do narcisismo, abordado pioneiramente por Freud no texto acima referido, é retomado pelo último livro de Oscar M. Miguelez, Narcisismos, publicado em 2007 pela Editora Escuta, de São Paulo.

O meu propósito, mais do que comentar o texto freudiano, é reportar-me ao livro de Oscar M. Miguelez, psicanalista, mestre e doutorando em Psicologia Clínica pela PUC-SP, professor do Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e pesquisador do Laboratório de Psicopatologia Fundamental da PUC-SP, argentino de nascimento, paulista de coração.

O livro de Miguelez revela os resultados de um pensamento maduro, amparado em vasta experiência clínica.

O livro se baseia em sua dissertação de Mestrado, acrescido de outros textos, fruto de sua reflexão.

A Editora Escuta é responsável pela edição e publicação, com o cuidado e o esmero de sempre: papel cartão Royal, impressão perfeita, numeração clara na paginação e na capa a estampa, de forma estilizada, do quadro O Espelho, de Pablo Picasso (1932).

O livro tem como apresentação um sumário que se inicia com a introdução: o autor comenta a proposta do livro, dividido em oito capítulos, e assinala a relevância do tema. Há muitos olhares, reflexões e atravessamentos clínicos que se referem ao mesmo.

Segundo Miguelez:

Também nos corredores da psicanálise é possível acompanhar certo esgarçamento conceitual do termo. Quando os analistas falam informalmente "narcisista", fazem-no quase sempre com um sentido pejorativo. Também é curioso escutar, naqueles corredores, frases nas quais o narcisismo se relaciona a algo que se "tem" ou "não se tem" e que pode ser "quantificado" como muito ou pouco, talcomo aconteceu com o complexo de Édipo. Hoje, frases como "tem muito Édipo"ou "pouco Édipo" são motivo de piadas, e seu emprego sinaliza "psicanálise selvagem". (p. 9-10)

O autor se propõe a analisar no texto "Introdução ao narcisismo" o amplo aspecto da abordagem freudiana.

Freud constrói uma análise de fundamental importância que, incorporada à psicanálise, estabelecerá as relações fundamentais inaugurais das relações de objeto, pulsão e destino das pulsões, as idealizações do eu ou eu ideal, abrindo caminho nesse percurso para a compreensão das bases da estrutura psíquica e da transferência narcísica e objetal.

Como o próprio autor do livro indica, o conceito em questão "é uma dobradiça" que abre e fecha na implicação das relações da libido sexual ou objetal.

No primeiro capítulo aborda-se o luto, a partir de um caso clínico, a escolha de Sofia. No relato coloca-se em questão o luto e o narcisismo. O caso clínico é bem apresentado, bem como o manejo do psicanalista em relação à demanda narcísica da paciente.

No segundo, o autor trata de uma questão relevante na interlocução de Hannah Arendt, sua análise da esfera pública, das massas, o advento do nazismo e do fascismo, de um lado, de outro a análise do mal, conduzida por Freud, sua inquirição acerca do comportamento das massas, o conceito de identificação, o ideal do eu típico das relações de grupo (ou massa) com o objeto idealizado.

No terceiro capítulo são retratadas pelo autor as relações entre narcisismo, religião e cultura. É uma análise de situações ligadas à subjetividade. Para tanto, o autor toma por referência a conceituação freudiana relacionada à fé e à religião.

Miguelez toma em sua análise raciocínios desenvolvido em "O futuro de uma ilusão", "Mal-estar na civilização" e "Por que a guerra?", que elabora em conjunto com noções de outros autores.

Entretanto, embora a religião seja uma construção cultural assentada no que o ser humano tem de mais potente, seus desejos, ela fracassa na realização de seus objetivos. O pessimismo pode ser atribuído em relação aos textos ora citados. A

Introdução ao narcisismo

conceitua formalmente aspectos para uma interpretação na formação de um Ideal do Eu, quer dizer, um conjunto de normas e valores que orienta as ações de um sujeito, dependia da existência de um eu ideal narcisista. (p. 41-42)

No quarto capítulo, o comentário incide sobre o amor transferencial, de forma pertinente e precisa. A transferência, questão metapsicológica fundamental, é aqui pontuada como questão relevante em relação à teoria das pulsões. Uma condição narcísica para o sonhar, para o sujeito do inconsciente.

O capítulo seguinte subdivide-se em relação à temática. Primeiramente, o autor aborda a histeria e a paranóia, retratando as incursões freudianas, e posteriormente centra seu interesse no texto "As neuropsicoses de defesa", de 1894. São comentados e analisados os primeiros casos clínicos freudianos, em que aparecem as primeiras menções a conceitos como investimento da libido do eu, e auto-erotismo.

A segunda parte do capítulo, histeria ou paranóia II, descreve a relevância concedida por Freud às fantasias homossexuais na paranóia, e o caso Schreber.

Miguelez procura fundamentar com precisão a utilização do conceito narcisismo em relação à psicose, a partir do auto-erotismo, onipotência de pensamento, paranóia e homossexualidade.

No capítulo seguinte são descritas as condições subjacentes ao conceito narcisismo. São abordadas as desavenças entre Freud e Jung, e a discordância em relação às teses de Adler. O narcisismo surge, assim, na teoria psicanalítica, como um conceito baseado não somente na experiência clínica mas também enquanto resultado dos embates teóricos a respeito do conceito de libido.

O sétimo capítulo focaliza as relações entre narcisismo e metapsicologia. O autor esboça as vicissitudes do narcisismo em relação à teoria das pulsões.

A pulsão sexual e a relação de objeto correspondente são comentadas pelo autor em um item separado, dedicado à condição narcísica no sonho e na esquizofrenia. Representação de coisa e de palavra, na terminologia freudiana.

Para esse fim, o autor vale-se mais uma vez de A interpretação dos sonhos, assinalando a proximidade entre narcisismo e a manifestação onírica, que é encerrada com uma análise metapsicológica da melancolia.

Essas duas manifestações são analisadas por Freud no âmbito das relações de objeto da libido. Em particular, a da melancolia, que mais adiante será abordada por Lacan na formulação teórica do objeto "a".

Chegamos ao último capítulo, no qual são retratados os avanços e impasses do conceito de narcisismo na teoria psicanalítica, que abrangem o período de 1917 até 1938.

Fazendo jus ao título, Miguelez descreve as inúmeras passagens nas quais o narcisismo se vincula à psicanálise. A "dobradiça" participa da articulação de várias questões conceituais, que são descritas principalmente a partir do ângulo das identificações do eu e as alternâncias na escolha do objeto.

Identificação e escolha de objeto constituirão duas modalidades de aproximação ao objeto, modos de focalizar o vínculo com o outro. "Ser" o objeto e "ter" o objeto, como escreve Freud no seu texto "Psicologia das massas e análise do ego".

O tema seguinte: seria o auto-erotismo expressão do narcisismo? é abordado por intermédio dos "Três ensaios para uma teoria da sexualidade" e o "Caso Schreber", bem como a clínica da esquizofrenia.

Finalizando, o autor comenta o narcisismo e o novo dualismo pulsional: o modelo constituído em torno à oposição entre a pulsão de autoconservação e a pulsão sexual entra em crise a partir da noção de narcisismo, precipitando a mudança da teoria das pulsões, ocorrida em 1920.

Nesse caso, a "dobradiça" do conceito opera em relação às duas teorias das pulsões. Com efeito, o eixo do conflito desloca-se para a oposição libido do eu versus libido do objeto (mas sempre a libido).

Oscar M. Miguelez apresenta com profundidade as diversas nuanças do tema. Trata-se de um livro recomendável para todos os que desejam estudar e pesquisar o conceito em questão.

João Ezequiel Grecco

Psicanalista.

Rua José Getúlio, 217/23

01509-001 São Paulo, SP

e-mail: jegrecco@uol.com.br

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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