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Um certo corpo

RESENHA DE LIVROS

Um certo corpo

Guilherme Gutman

O corpo incerto: corporeidade, tecnologias médicas e cultura contemporânea

Francisco Ortega

Rio de Janeiro: Garamond, 2008, 254 págs.

Nada mais sólido do que um corpo, certo? Errado.

Tal parece ser o cerne das muitas e interessantes reflexões sobre a fisicidade, presentes no livro de Francisco Ortega. O autor obtém inspiração e apoio teórico em uma frase do filósofo William James (1842-1910), presente em seus Os princípios de psicologia (1890): "Nosso corpo é o exemplo mais destacado do ambíguo". Vale ampliar e explicitar em que medida a posição de James em relação ao conceito de corpo serve a Ortega como ponto obrigado, por onde ele faz passar, portanto, as suas investigações, e também de onde emergem os seus achados.

Em James, a referida ambigüidade do corpo está, sobretudo, na duplicidade conceitual que recebe em seus escritos. De um lado, há todo um desenvolvimento da idéia de que não haveria uma delimitação clara entre o que é "corpo" e o que é "psiquismo" - portanto, James, como tantos, deixa o seu rasto na eterna questão mente e cérebro. De outro lado, na montagem daquilo que James define como self ou "eu", o corpo recebe enorme importância, o que lhe reserva nos escritos jamesianos um lugar único e central. A conseqüência mais importante dessa segunda vertente do estatuto do corpo em James é a de que, qualquer que seja a solução dada para a velha questão de Descartes, o conjunto de nossas experiências mentais - a nossa própria condição de ser subjetivo - é algo que, digamos, inicia-se e termina no corpo. É talvez em torno desse ponto que se encontrem, entre outros autores, os maiores equívocos a respeito do que James escreveu, afinal, colocar o corpo, por assim dizer, no centro do eu, não equivale necessariamente a dizer que o psiquismo é, em última instância, matéria, como gostariam os fisicalistas reducionistas.

Quando James discorre sobre a sua "teoria das emoções" - idéia contra-intuitiva, segundo a qual uma determinada experiência afetiva, como o medo, por exemplo, não antecederia ou corresponderia às modificações corporais que habitualmente a acompanham (tremores, rubores, palpitações etc.), mas, ao contrário, seria exatamente a percepção subjetiva de tais alterações fisiológicas - ele parece dizer algo como "no final, é tudo biológico mesmo"; quando, na verdade, ele quer dizer algo mais próximo a "não é real que se dispense o corpo para a elaboração de qualquer descrição daquilo que somos, ainda que estejamos falando primordialmente de nossas experiências do espectro psíquico". Este fluxo e refluxo entre a materialidade corporal e seus espectros definitivamente não propõe, no viés adotado por Ortega, a eterna tripartição entre mente, corpo e cultura. Ao contrário, oferece um panorama sortido das irredutibilidades de um extrato ao outro e, no limite, sugere um retorno às interrogações filosóficas que tomam por objeto de análise o estatuto das linhas demarcatórias entre o que é da ordem de cada um dos extratos em questão.

Como reconhecer James em O corpo incerto? Em um dos capítulos de seu livro, Ortega discorre sobre as "biossociabilidades" - conceito de filiação foucaultiana, desenvolvido pelo filósofo Paul Rabinow, e assim definido:

A biossociabilidade é uma forma de sociabilidade apolítica constituída por grupos de interesses privados, não mais reunidos segundo critérios de agrupamentos tradicionais como raça, classe, estamento, orientação política, (...) mas segundo critérios de saúde, performances corporais, doenças específicas, longevidade, entre outros. (p. 30)

Recorrendo a um exemplo simples, podemos imaginar um menino em torno de 12 anos de idade que, em oposição a um grupo de outros meninos de sua sala no colégio, não é habilidoso no futebol, isto é, não apresenta uma determinada performance corporal. O que à primeira vista poderia parecer um dado banal - tanto quanto preferir um tênis de cadarço a calçados de outro tipo - torna-se, no país do futebol, algo que pode condicionar a sua subjetividade de modo impressionante. Em síntese, o menino fará parte de um grupo - o dos que não são "bons de bola" - naturalmente tratado como inferior aos do que compõem o grupo de esportistas da turma. Em função disso, eventualmente não será convidado para festinhas de aniversário, ficará deslocado na hora do recreio, não terá chances com as meninas da sala e enfrentará, cotidianamente, as evidências de que é uma espécie de menino de segunda categoria. Não pensem, também, que é algo que passa, passada a infância. Na verdade, são histórias recorrentes no divã doanalista. É um quadro cruel? Bem, nesse caso, o que dizer de outros núcleos definidores de biossociabilidades apresentados no livro: menopausa e velhice, o "corpo sarado", a disciplina na regulação dos próprios hábitos de saúde etc.? Em torno de cada um desses núcleos, alegrias e tristezas bem conhecidas de quem atua clinicamente.

Contudo, Ortega não se debruça sobre histórias e dramas individuais; seu argumento é desenvolvido em linhas mais amplas, oferecendo uma matriz reflexiva da qual podem servir-se abundantemente psiquiatras, psicólogos e psicanalistas, para a elaboração clínica. É preciso notar também que as sociabilidades e definições do eu que têm o corpo como centro não são algo como "o inimigo a combater", mas fatos de cultura; e, como tal, não precisam ser rechaçados, mas investigados para que se trabalhe sobre eles.

Cabe ainda dizer que, ao longo dos capítulos, o autor segue utilizando o pensamento de Foucault com a mesma propriedade e rigor presentes em livros anteriores - alguns dos quais, como Amizade e estética da existência em Foucault (1999), têm como tema principal determinados aspectos do pensamento do filósofo francês. Sem recorrer a fórmulas foucaultianas gastas; sem repetir os resultados de pesquisas anteriores; Ortega consegue, mais uma vez e de modo brilhante, aliar o trabalho árduo de pesquisa à busca permanente de articulações, de ressonâncias e de efeitos entre o seu pensamento e o mundo em que vivemos. E assim, com um olho no texto e com um olho na vida, Ortega vem incomodar, na melhor acepção do termo, as "verdades terminais" - termo empregado para designar aquelas certezas que, embora filhas de seu tempo, soam nos ouvidos contemporâneos como dados da realidade. Os incomodados que iniciem as mudanças.

Guilherme Gutman

Psiquiatra e psicanalista; professor adjunto do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (Rio de Janeiro, RJ, Brasil)

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e-mail: guilhermegutman@gmail.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Jan 2009
  • Data do Fascículo
    Dez 2008
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