Acessibilidade / Reportar erro

Apresentação

RESENHA DE LIVROS

Apresentação

Marco Lucchesi

Apresentação de Medicina teológica (1794)

Francisco de Melo Franco

Rio de Janeiro: Ministério da Cultura/Fundação Biblioteca Nacional, 2008. 152 p

Francisco de Melo Franco publicou em 1794 um livro polêmico na história da medicina em língua portuguesa. O título era um programa: Medicina theologica; ou, Supplica humilde, feita a todos os senhores confessores, e directores, sobre o modo de proceder com seus penitentes na emenda dos peccados, principalmente da lascívia, cólera e bebedice. A obra tendia mais para a medicina do que para a teologia, em que pese a força do título. Afrânio Peixoto e Affonso Arinos consideravam Melo Franco – não sem uma dose de exagero – como o antecessor de Freud, em virtude de certos aspectos psicossomáticos que despontam em sua difusa medicina. O fato é que o livro provocou grande escândalo e a edição foi apreendida, sem que se descobrisse ao certo quem o escrevera. Cinco anos depois, frei Manoel de Santa Anna responde àquela obra, publicando as Dissertações Theologicas Medicinaes para que não se contaminem com os abominaveis erros de um livro intitulado Medicina Theologica cujos erros refuta nesta obra.

A vida de Francisco de Melo Franco é bem conhecida e aparece em verbete de Sacramento Blake. Nascido em Paracatu, Minas Gerais, em 1757, começou seus estudos aos doze anos de idade, no seminário de São Joaquim, no Rio de Janeiro, e os concluiu em Coimbra, em cuja universidade se bacharelou em Medicina. Seu poema O reino da estupidez circulava em cópias manuscritas desde 1785, tendo como personagens a Raiva, a Superstição, o Fanatismo e a Estupidez, que pareciam tomar conta de Portugal depois da queda de Pombal:

— Muito ilustres e sábios acadêmicos!

Por direito divino e por humano,

Creio que deve ser restituída

À grande Estupidez a dignidade

Que nesta Academia gozou sempre.

Acusado de nutrir ideias contrárias à religião, Melo Franco "foi preso pelo Santo Ofício, em cujos cárceres viveu por quatro anos, acusado de herege naturalista, dogmatista e por negar o sacramento do matrimônio, sendo também presa uma jovem – a quem amava e com quem se casara depois de livre". Designado mais tarde como médico da Real Câmara, segue para o Brasil, acompanhando a arquiduquesa Maria Leopoldina, que seria esposa do príncipe regente. Em virtude de suas ideias liberais, deixou de ser bem visto no Paço, falecendo em Ubatuba, no ano de 1823.

A paisagem da Medicina teológica aponta para o quadro de mudanças da ciência hipocrática na segunda metade do século XVIII.

Houve como que um primeiro distanciamento da visão cartesiana, segundo a qual as funções do corpo formavam um complexo de movimentos químico-mecânicos, dependentes de princípios matemáticos. Ainda com Boerhave, o corpo era uma rede de tubulações, feita de canos e vasos, que encerravam todos os líquidos do organismo. Foi preciso abandonar a ideia de uma machina carnis para alcançar um debate sobre a vitalidade com Hunter ou Boissier – no trânsito da teoria dos humores para a química médica ou iatroquímica. E nessa mudança, a alma – mais que simples fantasma da máquina cartesiana – havia de ser o veículo da fisiologia, sempre em guarda contra as doenças. O que antes pertencia apenas à teologia, deslocava-se – com outras e mais diversas feições – para a medicina. Foi apenas em 1818 que Heinroth cunhou pela primeira vez o conceito de psicossomática, elaborando um painel abrangente sobre as assim chamadas doenças da alma. Os tratados anatômicos da melancolia e da saudade voltariam a ocupar um lugar discreto neste cenário. A partir de A interpretação dos sonhos, em 1900, Freud seria a pedra limiar de todo esse processo.

A obra de Melo Franco fica assim mais associada a seu tempo e mais compreensível, dentro da história social da medicina, tal como a entende Roy Porter.

Dirigida aos confessores – mais como estratégia, para ocupar um espaço científico livre, além da teologia ou da medicina pura, mas entre ambas as ciências – "médicos do espírito", Melo Franco estabelece uma relação de interdependência entre a "medicina do corpo e da alma". A neurologia – a natureza dos nervos, sua estrutura e disposição – inaugura e promove a sua concepção médico-teológica. Os nervos "são uns cordões que tomam a sua origem do cérebro e da medula espinhal, e se distribuem por todas as partes do corpo". Eis o atlas a que os confessores devem ter acesso, o mapa-múndi de uma linguagem mecânica e hidrostática, tornada mais sutil à medida que as doenças da alma tomavam parte nessa geografia. Não havia como reduzir a saudade a uma deficiência mecânica ou matemática.

Os transtornos da alma eram diversos e deviam ser atacados a partir de drogas que atuavam sobre os nervos, fossem aquelas antiafrodisíacas ou vitriólicas, interpoladas com absorventes e alcalinos.

Para Melo Franco, a saudade é doença do amor em geral: "Um grande amor, uma grande saudade, uma grande cólera, quase sempre são sintomas nervosos mais funestos e horríveis". A saudade simples não apresenta maiores dificuldades. A pior de todas é a saudade complexa, seguida por febre terçã e outros graves sintomas.

À erotomania, ou loucura amorosa, reserva-se um capítulo especial, protagonizado por Dom Quixote, que via por toda parte a sua Dulcineia – resultado de um grande poder da imaginação associado aos nervos. E as receitas variam e quase todas servem, pelo amargor de que são dotadas, como matéria de penitência. Usavam-se papoulas brancas e vermelhas. Tampouco faltavam limões e açafrão. Mas já não era aquele o tempo das receitas poéticas do doutor Curvo Semedo e de sua maravilhosa Polianteia medicinal, cujos ingredientes barrocos formavam um misto de beleza e excesso, medicina prática e alquimia.

Melo Franco busca a panaceia geral, que para ele vive na alegria do coração.

Temos nesta obra uma rara contribuição para o debate do saber médico na passagem do século XVIII para o XIX e o lugar possível, dramático e necessário da subjetividade – como lembra Canguilhem – desafio que não cessa de crescer dentro do que se espera de uma prática médica mais atenta e sensível.

MARCO LUCCHESI

Professor de literatura italiana e comparada na pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil). É membro do Pen Club, da Sociedade Brasileira de Geografia, da Sociedade de Estudos Clássicos, da Sociedade de Literatura Comparada e da Academia Fluminense de Letras. Colabora eventualmente com diversos jornais e revistas, como Jornal do Brasil, O Globo, Folha de S. Paulo e O Estado de S. Paulo. Entre as várias honrarias recebidas estão a medalha da Camera di Commercio di Lucca, o Mérito da União Brasileira de Escritores, a medalha Tiradentes e a medalha Geraldo Bezerra de Menezes.

e-mail: marlucchesi@aol.com

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jul 2009
  • Data do Fascículo
    Mar 2009
Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental Av. Onze de Junho, 1070, conj. 804, 04041-004 São Paulo, SP - Brasil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: secretaria.auppf@gmail.com