RESENHA DE LIVROS
Estridente Strindberg
Daniella Amaral Diniz da Silva
Estridente Strindberg
Gisálio Cerqueira Filho
Rio de Janeiro: NPL, 2008, volume 2.
Composto de um ensaio e do prefácio em português e em alemão, e da tradução da peça O pai de August Strindberg, Estridente Strindberg, de autoria de Gisálio Cerqueira Filho, traz mais uma valiosa contribuição para o campo da ciência política associado aos estudos da psicopatologia fundamental. Cientista político, sociólogo e humanista de longa data, Gisálio recorre mais uma vez ao uso de uma interpretação rica em detalhes da peça de Strindberg, utilizando o recurso à psicopatologia, como método de análise da dramaturgia de cunho intimista do autor sueco.
O recurso ao teatro, como universo para análise, torna-se interessante, do ponto de vista das referências estéticas, e crucial, para se absorver os aspectos simbólicos que envolvem arte e poder, criação e intenção artística e crítica. A peça O pai, comentada e prefaciada por Gisálio, destaca-se ao expor de maneira aguda, "estridente", como o título sugere, a questão do autoritarismo e do absolutismo afetivo que circundam as relações familiares (na época, bem como nos dias de hoje). Strindberg, que influenciou diretamente a obra de Ingmar Bergman (1918-2007) conforme Gisálio vem ressaltar , trabalhou as relações de poder dentro do núcleo familiar e soube explorar na sua dramaturgia elementos subjetivos do cotidiano. Estes elementos convertidos em episódios que poderíamos chamar de manifestações de insuficiência imunológica psíquica nos termos propostos por Manoel T. Berlinck (2000) correspondem a sintomas que indicam estados psíquicos imbricados com estados físicos e orgânicos. Tais estados, ao serem analisados e submetidos à análise, servem como sintomas de manifestações do pensar, do agir e do sentir, que merecem investigações críticas no campo da ciência política.
Como método, a psicopatologia exige atenção e a imersão do pesquisador para se perceber aspectos da vulnerabilidade do indivíduo, que estão atrelados a um comportamento social e político específico. Através da observação de detalhes, a princípio irrelevantes, e da vivência de experiências sensoriais, o investigador percorre os traços mais leves e os aspectos mais sutis, que traduzem as relações de poder no universo mais íntimo do indivíduo. Estes aspectos e traços, que extravasam nas contradições e paradoxos das relações familiares, assumem um papel particularmente interessante na obra de August Strindberg.
Inserido num contexto histórico e político de destaque, Strindberg, que era sueco (tal qual Bergman), percorreu uma boa parte da Europa norte-ocidental, e incorporou algumas características-chave do intelectual e artista da virada para o século XX. Os conflitos e contradições, imersos no ambiente cultural da intelectualidade nesse período, que dizem respeito à conformação da identidade nacional, da identidade de classe (burguesa) e que envolvem as mudanças mais significativas no que tangem às relações entre Estado, Igreja e família, deveras atingiram muitos dos artistas contemporâneos a Strindberg. O drama existencial da peça O pai acompanhou estas questões, seguindo os padrões estéticos e o formato da dramaturgia da época, promovendo no leitor a experimentação de uma sensação de sufocamento e introspecção que são trabalhadas por Gisálio no texto.
Para o leitor desavisado, a sensação despertada pela peça é de intenso desconforto. Semelhante talvez àquele provocado pela obra de Franz Kafka O processo, O pai promove o envolvimento do leitor (público) com o personagem principal, o capitão (Adolf), que, ao longo da peça, desenvolve um quadro de obsessão com a questão da paternidade de sua filha (Bertha). O personagem transmite a sensação de angústia e de que está sendo traído. Ambas as sensações se relacionam com a presença da esposa (Laura) na peça. A insegurança e a dúvida, questões centrais para Strindberg, permanecem através dos diálogos, com recorrentes perguntas sem respostas e elucubrações. A repetição da mesma dúvida "sou ou não sou o pai" acompanha o drama do início ao fim, colocando o leitor indeciso. A trama nos faz recordar Dom Casmurro (de Machado de Assis), embora o formato e padrão estéticos sejam diferentes (esta se dá em primeira pessoa, e não no formato de uma peça, tal qual O pai). A trama consegue envolver o leitor num nível de proximidade com o personagem, de forma que ele se relaciona afetivamente com o público, e, com ele, chega a acompanhar as emoções que levam o personagem à loucura.
Os demais personagens (com a exceção da esposa) exercem papéis que oscilam entre dúvida e impotência, e os diálogos travados pelos personagens Nojd e pela enfermeira Margret deixam escapar alguns aspectos da relação de amor e submissão, de sofrimento e gozo vivida no intimismo da peça de Strindberg.
Do ponto de vista analítico, a entrada para a leitura da peça O pai se dá por quatro diferentes portas, anunciadas por Gisálio, no ensaio. São elas: 1) o absolutismo afetivo; 2) a ignorância simbólica da lei; 3) a misoginia; 4) a expiação da culpa a partir da encenação do sofrimento (p. 37). O objetivo é desvelar o que há de excesso e absolutista nas relações de poder encobertas pelo véu do afeto e circunscritas nas relações sociais e familiares.
O absolutismo afetivo torna-se transparente, na relação de autoridade e autoritarismo que se materializam na figura do capitão, no seu desejo de controle absoluto, de amor como posse e obediência suprema dos amados; percorre também a relação do capitão com a esposa, e os empregados, e o casamento como instituição indissolúvel, inatingível, reificada pelos símbolos de submissão e rendição ao outro. O casamento é retratado como uma prisão, uma relação doentia, manipulada pela figura da mulher, e da mãe, que detém o conhecimento e mantém-se sob o símbolo da incerteza. A máxima perinde ac cadaver (obediência como um cadáver) de Inácio de Loyola e dos jesuítas da Companhia de Jesus (p. 38), lida por Gisálio nas entrelinhas da peça, invoca os contornos religiosos dessas relações de poder. E invoca a relação do homem, como pai e marido, ao redor de um absoluto cuja obediência se faz pela anulação dos sentidos de ouvir e ver ("obediência cega e surda"), conforme menciona o próprio personagem do capitão.
A ignorância simbólica da lei, como entrada do texto, pode ser lida num desdobramento desse mesmo absolutismo afetivo, apontado por Gisálio. A imagem totêmica, conforme sugere, onipresente e avassaladora, se iguala a uma ausência, a um vazio afetivo. De absoluto torna-se abstrata a simbologia do pai e do marido. O controle completo do outro se configura numa abstração, numa ambivalência de extremos que anula a materialização. De tão grave, tão intenso, tão violento, tão "estridente", o poder se dilui e evapora. Simbolicamente, as repercussões da análise do autoritarismo, no viés da ignorância simbólica da lei, assumem contornos preciosos para a análise do poder na sociedade brasileira. Os excessos de submissão e absolutismo que Gisálio vem trabalhando na investigação do fenômeno sociopolítico da violência no Brasil se tornam exemplarmente vivos na leitura da peça. O capitão de O pai pode encontrar paralelos nas relações de poder da figura paterna representada pelo Estado e metaforizada nas relações familiares. O autoritarismo, resumido pela obsessão pelo controle total e irrestrito não assegura a paternidade do capitão. A dúvida, que ele não consegue responder é: como se pode ser pai, se o desejo de controle absoluto ultrapassa a materialidade das relações humanas?
A misoginia, enquanto temática e recorrência no aprofundamento das questões de poder, também é uma das entradas mais visíveis e mais nítidas da peça, observadas também por Gisálio. O signo da misoginia vem com a caracterização dúbia ou ambígua que se associa com o gênero feminino a partir do personagem principal com sua esposa. Não somente pela dúvida sobre a paternidade que acompanha a obsessão do capitão ao longo do texto, mas também pela associação da performance desempenhada pelos personagens femininos com características de dubiedade, entre a obediência e a insurgência, entre a fidelidade e a traição. Não somente a esposa, mas também a enfermeira, com quem o capitão desenvolve, pelo afeto, o desejo de submissão e a perda do controle, a partir do qual exacerba sua loucura.
Por fim, a expiação da culpa a partir da encenação do sofrimento, enquanto entrada para o texto da peça, retoma, ao mesmo tempo, pelo viés religioso, a relação de dor, autoflagelo, prazer e redenção, que atravessam a relação de poder e que podem ser enxergados exemplarmente na atuação dos empregados, Margret e Nodj. Além de confirmar a dicotomia que atravessa toda a peça (ser ou não ser pai, obedecer ou não obedecer, amar ou não amar, intervir ou não o capitão), ambos decidem em favor da esposa, pela intervenção de Adolf. Ambos, requisitados por Laura exatamente pelo afeto pelo capitão e pelo acesso mais fácil ao superior, hesitam num primeiro momento, mas decidem por concordar e ajudar a imobilizá-lo na camisa de força. O gesto é associado à prática de amor, a uma manifestação de sofrimento com intenções afetivas, por parte de ambos. Socialmente, ambos representam empregados, função de subordinação e obediência. Entretanto, até que ponto a reação e o ato voluntário de concordância com Laura não podem representar exatamente a liberação, a exacerbação de um prazer (exercitado na sensação de culpa, manifestada pelas repetidas frases de Margret), de vingança e revogação da submissão ao poder autoritário do "pai"? A peça se inicia exatamente com a discussão, projetada para o empregado Nodj, de quem o capitão e o pastor querem cobrar uma atitude, depois de acreditarem que ele tenha engravidado uma moça da região. De maneira enfática, o capitão exige que o pastor faça uso do poder de confessor e autoridade para aplicar um castigo ao empregado (poder esse que o próprio capitão irá negar, por se crer ateu e avesso a crenças religiosas). É a partir da dúvida suscitada pelo próprio Nodj que toda a insegurança do capitão começa a se desenvolver. Margret, como veículo de retomada e ligação de Adolf entre afeto e razão, ao mesmo tempo trai de fato o seu desejo, repetidamente obedece ao patrão, mas de forma sutil o trai, quando se coloca afetivamente no comando das ações contra o desejo do capitão. Juntamente com a esposa e a filha, que, mais ao fim da peça, vem a materializar a traição, reificam o que Strindberg sustenta como a lógica fundamental da obra. A ideia de duplicidade, que acompanha a caracterização do capitão acerca do universo feminino, é também o elemento que decide, pela intervenção e, em última instância, pela própria morte. O absolutismo de Adolf não aceita a dúvida e sucumbe à morte. Em diálogo com a filha, o personagem de Adolf (capitão) extravasa seu absolutismo num momento, quando, ameaçado e fora de si, se dirige à filha: "Mas você deve apenas me amar! Você deve ter uma alma ou nunca terá paz, nem eu tampouco. Você precisa apenas ter um pensamento que é filha do meu pensamento; você deve ter uma vontade que é a minha" (p. 106).
É esta a imagem, em última instância, que, até ser verbalizada, acompanha muitas das relações de poder, afetivas e formais, instituídas ou não. A fala que atravessa o discurso do poder e da autoridade, o desejo do absoluto, do completo, do ideal, do perfeito e transcendental, que ultrapassa os limites do humano (imperfeito). O que muitas vezes não pode ser captado ou percebido senão pela vivência da loucura, da perda da consciência completa da racionalidade, episódios da insuficiência imunológica psíquica, muitas vezes escapam e vêm à tona, de maneira mais sutil, no discurso, nos gestos e na performance social. Entretanto, na maior parte das vezes, o absolutismo afetivo que acompanha as relações sociais (familiares, políticas) não chega ao extremo da loucura, tampouco ao exagero sugerido na peça; atravessa as relações no nível do aceitável, e passa desapercebido ao olhar crítico do leitor e do investigador social.
Strindberg, que esteve preocupado em traduzir o sofrimento (pathos) das relações afetivas às quais ele mesmo se submeteu com algum grau de absolutismo, soube, através do recurso à dramaturgia, imergir o leitor numa experiência sensorial e psíquica que percorresse o caminho dos personagens num grau de intimismo e envolvimento. Do ponto de vista analítico das questões relativas à teoria política, o recurso à estética do teatro, escolhido por Gisálio, oferece novamente uma atualização metodológica de uma temática cuja importância não se esgota nos dias atuais. Strindberg, como autor do século XIX, continua atual e vivo, muito mais além das questões estritamente individuais no âmbito do poder. Ao falar do pai, e da obsessão pela paternidade, Strindberg também fala do sofrimento provocado pelo desejo de mandar, de fazer-se soberano, absoluto, imortal, embora morto.
DANIELLA AMARAL DINIZ DA SILVA
Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil); mestre em História pela Universidade Federal Fluminense UFF (Niterói, RJ, Brasil), aluna do doutorado do programa de Espanhol e Português na Universidade de Columbia.
Rua Voluntários da Pátria, 305/106 Botafogo
22270-000 Rio de Janeiro, RJ, Brasil
e-mail:dani_ads@yahoo.com.br
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Jul 2009 -
Data do Fascículo
Mar 2009