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Saber clínico e saber teórico

EDITORIAL

Saber clínico e saber teórico

Manoel Tosta Berlinck

No momento em que o Conselho Federal de Psicologia - CFP do Brasil comemora "o ano das psicoterapias" é pertinente e relevante um retorno ao método clínico e às bases epistemológicas do saber articulado a esse método.

O tratamento e a prevenção sempre foram considerados um saber prático, derivado de vivências clínicas. Em outras palavras, o tratamento e a prevenção precedem o saber, que é sempre post-factum.

O método clínico que se distingue do método experimental e do método probabilístico, acaba por produzir um conhecimento que pode ser chamado de teórico. Entretanto, a palavra "teoria" deve ser empregada com todo o cuidado, pois deve nomear algo que não é o entendido, por exemplo, na obra de Aristóteles. Na visão do estagirita, a teoria é perene, possui uma longa duração e, diversas vezes, é eterna. Entretanto, o método clínico, sendo eminentemente prático, ocorre no âmbito da finitude do humano. Não há como se esperar que o humano se mantenha incessantemente em sua ligação com aquilo que é para sempre, porque tal relação só é pensável para algo que possua a mesma natureza. Somente algo dotado de uma substancialidade perene poderia alcançar uma contemplação da verdade concebida como presença constante e imutável, o grande objetivo de Aristóteles.

O método clínico, por sua vez, permite um conhecimento adquirido por vivências que se transformam em experiência. Este conhecimento é fundamentado em processos de generalização das ações, ou seja, como decidir o mais propriamente possível o que precisa ser feito no interior de uma certa situação e diante de uma coisa específica e como se coaduna ao mesmo tempo com a essência de um sujeito radicalmente finito.

A teoria daí resultante não é, portanto, perene, e sua significação precisa ser buscada em outra tradição.

É necessário, aqui, resgatar uma outra noção grega de teoria, muito diferente do que se entende atualmente, sob influência da obra de Aristóteles. Hoje, depois do neopositivismo e do estrututral-funcionalismo nas ciências humanas, a noção de teoria se refere a uma construção hipotético-dedutiva que requer comprovação empírica. A ligação da teoria com a realidade empírica é sempre problemática e supõe uma correlação epistêmica. Ela é, pois, uma construção abstrata que não supõe um necessário vínculo com a realidade. Esse vínculo é algo que precisa ser revelado pela pesquisa propriamente empírica. Já nesta outra tradição, mais adequada ao método clínico, a teoria é uma configuração fantasmagórica: o caso clínico e a metapsicologia que dele decorrem são fantasmas das projeções proporcionadas pela situação clínica, pela transferência e contratransferência que ocorrem na clínica psicoterapêutica.

Na Grécia clássica, as noções de theoria e revisio estão etimologicamente ligadas à idéia de fantasia e fantasma. No sentido grego, a afirmação teórica era um pronunciamento que implicava um ato complexo de re-visão, envolvendo um grupo de testemunhas profissionais cuja função consistia em assegurar que um dado evento tinha ocorrido e podia assim tornar-se tema para consideração no âmbito da pólis. Por definição, os ouvintes desse pronunciamento não tinham presenciado o evento referido pelos theoroi; era a credibilidade de sua posição a responsável pelo ato suplementar de conferir veracidade ao relato. Tal autoridade era atribuída a fim de disciplinar os efeitos do discurso na organização da pólis, mediante uma distinção precisa entre "reivindicações" e "afirmações teóricas". Aquelas podiam ser feitas por qualquer indivíduo; já estas, eram prerrogativa dos oficiais designados para a função pública de theoros. Em suma, o theoros tem de relatar um evento por ele testemunhado a uma audiência que não estava presente à circunstância a ela relatada. Tal cena, vale frisar, produz na verdade dois atos de re-visão. O primeiro, realizado pelo theoros, dá origem a uma afirmação propriamente fantasmagórica, uma vez que fantasmas vêm sempre após alguma coisa. Nesse caso, o ato de relatar vem após o de testemunhar um evento realmente ocorrido - muito embora o processo de ver/escutar/contar jamais coincida com o evento em todos os seus múltiplos aspectos. Neste sentido, o relato de caso clínico é verossímil, mas não é empiricamente verdadeiro como pretende a ciência empírica, neopositivista, estrutural-funcionalista. O segundo ato de re-visão refere-se aos ouvintes. Seus fantasmas re-vistos vêm após coisa alguma, pois são simultâneos ao discurso do theoros. O ouvinte não tem a memória de ter presenciado um evento real, mas precisa projetar no relato do theoros a credibilidade associada ao caráter público da função. Desse modo, a memória do ouvinte é não apenas social, mas secundariamente engendrada, tornando-se um fato na medida em que é aceita como representação fiel de uma realidade prévia (Rocha, 2003).

Tendo por base essa tradição, Pierre Fédida argumentava que o psicopatológico não solicita e nem produz um discurso racional, mas mito-poiético-epopéico que, à medida que produz experiência, é terapêutico. Em seu livro Clínica psicanalítica. Estudos (1988), publicado exclusivamente no Brasil, afirma que o psicopatológico contém uma terapéia no sentido empregado por Platão em O banquete. Porque, em suma, faz parte da medicina como a arte de se ocupar dos fenômenos do amor. Quem se ocupa disso - os psicopatólogos - são médicos, no entender de Erixímaco. "É com efeito a medicina, diz ele, para falar em resumo, a ciência dos fenômenos do amor, próprios ao corpo" (p. 28).

O médico, como nos lembra Platão, está constantemente na relação com o amor porque as doenças físicas, em sua evolução, se apresentam como pathos, paixões amorosas.

O médico cuida de Eros doente.

Terapéia

, em grego, é o cuidado exercido sobre Eros doente. O médico deve restabelecer o equilíbrio do corpo para que Eros, doente pelo excesso do amor, seja liberado desse excesso pelo amor que lhe traz o médico. Amor de médico é amor justo: estabelece uma contrapartida, um novo equilíbrio com a parte doente de Eros. (Fédida, 1988, p. 28)

Tal movimento é possível porque pathos pode ser dosado, pois tanto ele como as ações são movimentos e, como tais, contínuos, isto é, grandezas que podem ser divididas sempre em partes e em graus menores, de tal forma que, quando age, é sempre possível ao ego fixar a intensidade patológica apropriada à situação desde que com a ajuda de um médico.

A teoria, nesta perspectiva, é, então, uma construção cujo gérmen encontra-se no caso clínico, no caso único, ele mesmo uma "teoria em gérmen". Para se distinguir da teoria estrutural, neopositivista, seria interessante denominá-la "metapsicologia". Entretanto, este nome só se aplicaria às construções decorrentes da clínica psicoterapêutica, mas não se aplicaria, por exemplo, à física. Esta, sendo em grande parte uma ciência eminentemente empírico-indutiva, parte de situações únicas - a mítica queda da maçã sobre a cabeça de Isaac Newton - para amplas generalizações - a teoria da gravidade que, a partir da queda da maçã, Newton construiu.

O método clínico é, pois, eminentemente indutivo e é um caminho do conhecimento científico cujo ponto de partida é o caso único.

Manoel Tosta Berlinck

Sociólogo; psicanalista; Ph.D. pela Cornell University; professor aposentado da Universidade Estadual de Campinas - Unicamp (Campinas, SP, Brasil); professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, onde dirige o Laboratório de Psicopatologia Fundamental (São Paulo, SP, Brasil); presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (20022004, 2006-2008, 2008-2010; São Paulo, SP, Brasil); editor responsável de Pulsional Revista de Psicanálise e da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental; membro da World Association of Medical Editors - WAME; diretor da Editora Escuta e da Livraria Pulsional - Centro de Psicanálise; autor de Psicopatologia fundamental (São Paulo: Escuta), entre outros.

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  • FÉDIDA, P. Clínica psicanalítica Estudos. Trad. de Claudia Berliner, Martha Prada e Silva e Regina Steffen. Rev. Técnica de Durval Checchinato. São Paulo: Escuta, 1988.
  • ROCHA, J. C. de C. Nenhum Brasil existe: poesia como história cultural. In: ROCHA, J. C. de C. (Org.). Nenhum Brasil existe Pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: UERJ/ Topbooks/Univercidade, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009
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