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"Uma quietude e um quase contentamento": revisitando os transtornos alimentares

"Uma quietude e um quase contentamento": revisitando os transtornos alimentares

Guilherme Gutman

Psychology: a reality check

(editorial) Oct, 15. 2009

Nature, v. 461, n. 7266, p. 847.

Holm-Denoma, J.; Scaringi, V.; Gordon, K.; Orden, K.; Joiner Jr., T.

Eating Disorder Symptons Among Undergraduate Varsity Athletes, Club

Athletes, Independent Exercisers, and nonexercisers.

International Journal of Eat Disorders, v. 42, p. 47-53, 2009.

Rastmanesh, R.; Gluck, M.; Shadman, Z.

Comparison of Body Dissatisfaction and Cosmetic Rhinoplasty With

Levels of Veil Practicing in Islamic Woman.

International Journal of Eat Disorders, v. 42, p. 339-345, 2009.

Lee, S.

Self Starvation in Context: towards a culturally sensitive understanding of anorexia nervosa.

Social Science Medicine, v. 41, n. 1, p. 25-36, 1996.

Lee, S.

Reconsidering the Status of Anorexia Nervosa as a Western Culture-Bound Syndrome.

Social Science Medicine, v. 41, n. 1, p. 21-34, 1996.

Ainda estudante de medicina, já flertando com a psiquiatria, folheando jovialmente as páginas quase virgens do recém-adquirido Compêndio de Psiquiatria, de Kaplan & Sadock, ficava então especialmente intrigado com s, assim classificadas, "síndromes ligadas à cultura". Ao lado de quadros clínicos estranhíssimos, tais como o koro, estava a hoje familiar anorexia nervosa. Naquele tempo, esse transtorno alimentar era uma espécie de representante antropológico da América do Norte. Assim, ao menos nesse ponto de meu primeiro livro de psiquiatria, os norte-americanos eram um povo tão particular quanto os esquimós, e capazes da produção de síndromes tão exóticas quanto piblokto ou histeria do Ártico!

A conexão estreita entre a anorexia e uma dada cultura, bem como a maior prevalência desse transtorno, ao lado da bulimia nervosa, nos países ocidentais desenvolvidos parece, de saída, indicar causalidades socioculturais no âmbito da discussão etiológica dos transtornos alimentares. De fato, em nenhum outro grupo de transtornos os dados epidemiológicos sugerem tão fortemente fatores causais, dentre os quais as hipóteses biologizantes não ocupam o centro da cena. E isso, mesmo no contexto de uma psiquiatria standard, o que desde finais da década de 1980 significa, na alternância histórica entre somatistas e psiquistas,1 1 . Para a retomada do fio dessa discussão, vale lembrar o obrigatório livro de Paul Bercherie (ver as outras referências bibliográficas indicadas ao final deste texto), que também pode ser revisitado sempre com muito proveito. a prevalência de uma psiquiatria de orientação predominantemente organicista.

Ao lado da informação de que "vários estudos vêm consistentemente demonstrando um aumento da incidência (da anorexia nervosa e da bulimia nervosa) nas sociedades industrializadas do Ocidente entre os anos de 1950 e 1980, quando parecem ter atingido um platô (Nunes, 2006, p. 52), surgem como dados epidemiológicos sólidos a maior prevalência em mulheres (numa proporção que varia de 6:1 a 20:1) jovens (na faixa dos 15 aos 19 anos para a anorexia e dos 20 aos 24 anos para a bulimia) que - associados à notícia de que "de modo geral, confirma-se a impressão de que, atualmente, muitas mulheres fazem dieta e sentem-se insatisfeitas com o seu corpo, mesmo quando não estão acima do peso normal" (ibid.) - parecem confirmar a impressão de que esses transtornos seriam mesmo filhotes típicos de nossa época.

Todavia, o primeiro relato clínico mais substancial da então batizada anorexie histérique foi feito por Charles Lasègue (1816-1883), em 1873. Nesse texto inaugural, partindo da observação de oito mulheres entre os 18 e os 32 anos, Lasègue elabora mais uma de suas primorosas descrições clínicas,2 2 . Há uma excelente tradução desse texto de Lasègue publicada na Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 1, n. 3, p. 158-171, set. 1998, acompanhada de uma apresentação elaborada por Mário Eduardo Costa Pereira, a qual lança luz sobre os pontos mais relevantes do texto original. embora não avance significativamente na discussão etiológica. Na verdade, Lasègue aborda a anorexia fundamentalmente como uma modalidade de histeria, e não chega a fazer menção àquilo que a posteridade passará a reconhecer como o traço central do transtorno: a insatisfação com o próprio corpo ou, como propõem as classificações psiquiátricas atuais, a distorção da imagem corporal. Tampouco fará referência ao desejo de emagrecer - ou ao medo de engordar - como sintomas iniciais, fundamentais ou obrigatórios.

Ao se traçar o perfil epidemiológico de uma anorética ou de uma bulímica,3 3 . Permito-me aqui a utilização do gênero feminino em função de, como foi vista, a enorme diferença de incidência dos transtornos alimentares entre homens e mulheres. em função das correlações entre as exigências por vezes tirânicas de um padrão de beleza no qual um dos itens centrais é a presença de um corpo esbelto, e o desencadeamento de sintomas alimentares, chegaremos a uma questão bem geral que gravita em torno das relações entre a psicologia, a psicanálise, a psiquiatria e uma medicina baseada em evidências. Nosso editor - Manoel Tosta Berlinck - chamou atenção para um recente editorial da prestigiosa revista Nature, na qual há um ataque frontal à psicanálise e a uma psicologia que, porventura, não seja orientada pela pesquisa empírica sistematizada (estilo ensaio duplo-cego randomizado). Em um determinado trecho desse editorial, pode-se ler:

Qualquer um lendo os trabalhos originais de Freud poderá muito bem ser seduzido pela beleza de sua prosa, pela elegância de seus argumentos e pela acuidade de sua intuição. Mas aqueles fundamentados na ciência ficarão igualmente impactados pelo desprendimento com o qual ele elaborou as suas teorias baseado, essencialmente, na ausência de evidências empíricas. Essa é uma das razões principais pelas quais a psicanálise freudiana saiu de circulação: seu alto custo - o tratamento pode prolongar-se por anos - não é sustentado por evidências de eficácia. (Nature, 2009)

Para, ao final, oferecer uma suposta solução: "Há um imperativo moral de mudar a prática da psicologia - sob o risco de sair, ao modo de Freud, de circulação - em uma ciência robusta e valorada, informada pela melhor pesquisa válida e pela evidência econômica (ibid.).

Há, no tom e no desenvolvimento desse editorial da Nature, ao lado de uma condenação das práticas e teorias elaboradas "ao modo de Freud" (ainda que o editor reconheça que há nos escritos freudianos beleza, elegância e acuidade), o desejo (comprometido com certa ética, que parece servir a uma cruzada ou orientar um inquisidor do porte de um Torquemada) de uma psicologia pura, científica e livre das escamoteações do sedutor estilo de Freud. Nota-se, aí, a expectativa quase explícita de que, na sonhada psicologia robusta de evidências, as práticas psicológicas empurrariam para a periferia tudo aquilo que não correspondesse aos ideais do bom método científico, ou que não se curvassem aos rigores do empirismo: filosofia, literatura, sociologia, antropologia, e outras disciplinas estrangeiras à ciência.

Mas o que acontecerá quando a própria pesquisa fundada no método empírico e na coleta de dados epidemiológicos parece, em função dos resultados obtidos, requisitar métodos e habilidades reflexivas que encaminham justamente a investigação a paragens pouco familiares a um modo de produzir conhecimento que se quer pouco flexível?

Passeando pelos estudos epidemiológicos de uma psicologia "robusta e séria"

Passando os olhos pelos artigos produzidos em 2009 e publicados no periódico que, talvez mais do que qualquer outro, represente uma psiquiatria (ou psicologia) baseada em evidências e voltada aos transtornos alimentares - International Journal of Eat Disorders - decidi me debruçar sobre os textos predominantemente epidemiológicos, dentre os quais pude destacar dois.

No primeiro deles, os autores (Holm-Denoma et al., 2009) investigaram 274 mulheres, dividindo-as em quatro grupos de acordo com seus hábitos de prática esportiva: atletas universitários, "atletas de clube" (isto é, estudantes que representam um clube vinculado à universidade que frequentam), estudantes que se exercitam de forma independente, e estudantes que não se exercitam (da total ausência de exercícios à prática pouco exigente de até duas vezes por semana). Os quatro grupos representam, em ordem decrescente, diferentes níveis de exigência de competitividade, em função do grau de importância da competição. O estudo leva em conta também um segundo parâmetro: os níveis de um tipo de ansiedade relacionado à prática esportiva que, tudo indica, os autores gostariam de isolar como uma espécie de ansiedade: sports anxiety. Ora, a hipótese central do artigo é a de que quanto maior grau de cada um dos dois parâmetros considerados e, naturalmente, a combinação de ambos, maior o risco potencial para o desenvolvimento de transtornos alimentares.

Inúmeras questões poderiam ser levantadas sobre o tema, mas pelo menos uma delas se apresenta em primeiro plano. Após a constatação algo previsível de que as mulheres mais ansiosas e as mais compromissadas com algum esporte em nível competitivo estão mais sujeitas à sintomatologia alimentar, os autores se arriscam em hipóteses etiológicas a propósito das quais se perguntam pela possibilidade de que essas mulheres que desenvolveram síndromes alimentares teriam, na verdade, desencadeado o transtorno em função de uma predisposição tornada sintomatologia, em razão da exposição à "ansiedade dos esportes", em mais uma reedição do hegemônico modelo causal "estresse-diátese". Não se perguntam, por exemplo, se as mulheres mais interessadas em um certo nível de prática esportiva já teriam questões anteriores, ou se as questões proporcionadas pelo segmento específico - universitárias e atletas - não é capaz de imprimir destinos psicopatológicos que não estavam escritos nas estrelas.

No segundo artigo (Rastmanesh et al., 2009), ao contrário do primeiro, as perguntas formuladas a partir da hipótese fundamental dos autores articula a presença da sintomatologia alimentar e seus equivalentes à imersão em um dado círculo cultural. Nesse estudo, uma certa população de mulheres iranianas islâmicas que, em comum, apresentariam o hábito de utilização do véu religioso (Chador), é subdividida em três conjuntos determinados pelo grau de adesão ao uso do véu: uso voluntário e ideológico, uso "não completo" e não utilização. Em cada um desses três conjuntos foram investigadas as correlações entre o uso do véu, a insatisfação com o corpo e o desejo pela rinoplastia de natureza estética. A hipótese central - confirmada pelos resultados obtidos - revela que o conjunto no qual as iranianas aderem mais firmemente ao véu há menor presença de baixa autoestima relacionada à própria aparência e, como decorrência disso, menor desejo por reformulações estéticas. Segundo os autores, no Irã (um dos países com os mais altos níveis de rinoplastia estética no mundo), a utilização ideológica do véu pode representar uma espécie de resistência cultural aos valores ocidentais, entre eles, a adesão e o desejo pelos cânones de beleza estabelecidos pelos Estados Unidos ou por alguns países da Europa.

A lição de Lasègue e a diversidade de experiências nos transtornos alimentares

Nos dois artigos, embora do nosso ponto de vista haja entre eles um degrau de maior ou menor complexidade na discussão dos resultados, a metodologia segue um padrão que, sinteticamente, pode ser considerado afinado aos imperativos do editorial da Nature. Entre as exigências de uma "psicologia séria" está a utilização de escalas - amplamente utilizadas em ambos os artigos - e de balizas que, por assim dizer, autorizam, na mesma medida em que regulamentam, qualquer voo imaginativo nas hipóteses e na análise dos resultados. Dentre essas balizas normativas, obviamente estão presentes esses itens fundamentais para o diagnóstico dos transtornos alimentares que são o desejo de emagrecer e a insatisfação com o próprio corpo.

Todavia, vimos que esses mesmos itens sine qua non estão ausentes no clássico de Lasègue. Este fato não passa despercebido nos artigos de Lee (1995, 1996) sobre as características sintomatológicas dos transtornos alimentares em certa população de mulheres chinesas. Na verdade, esse autor é habilidoso em revelar as pretensões totalitárias das classificações psiquiátricas hegemônicas - CID e DSM - na circunscrição das entidades nosológicas da anorexia nervosa e da bulimia nervosa, segundo critérios rígidos e ocidentalizados. É um pouco como se, aplainando o vocabulário psicopatológico e fixando os parâmetros diagnósticos, o sistema classificatório impusesse a todos um cânone nosológico que é, ele mesmo, produto do cânone de beleza no Ocidente. A questão, no entanto, é que esta manobra não reconhece a sua filiação à própria cultura da qual emergiu. Com isso, perde-se muito; perde-se, por exemplo, o cintilar intuitivo de Lasègue ao notar, no estado psíquico das anoréticas que atendeu, "uma quietude e um quase contentamento". Muitas vezes, perde-se também a beleza da prosa de Freud, frequentemente substituída por um texto sem sabor; e, finalmente, perde-se a "elegância dos argumentos", em troca de uns poucos grãos de reflexão que não chegam a encantar e, muito menos, a encher o papo.

Até a próxima edição!

Outras referências

GUILHERME GUTMAN

Psiquiatra e psicanalista; doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ (Rio de Janeiro, RJ, Brasil); professor adjunto do Departamento de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (Rio de Janeiro, RJ, Brasil)

Rua Visconde de Pirajá, 595/905 - Ipanema

22410-003 Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Fone: (21) 9106-7009

e-mail: guilhermegutman@gmail.com

  • BERCHERIE, P. Os fundamentos da clínica: história e estrutura do saber psiquiátrico. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
  • LASÈGUE, C. De la anorexie histérique. Archives Générales de Médicine, Avril, 1873.
  • NUNES, M. A. et al. Transtornos alimentares e obesidade 2 ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.
  • 1
    . Para a retomada do fio dessa discussão, vale lembrar o obrigatório livro de Paul Bercherie (ver as outras referências bibliográficas indicadas ao final deste texto), que também pode ser revisitado sempre com muito proveito.
  • 2
    . Há uma excelente tradução desse texto de Lasègue publicada na
    Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 1, n. 3, p. 158-171, set. 1998, acompanhada de uma apresentação elaborada por Mário Eduardo Costa Pereira, a qual lança luz sobre os pontos mais relevantes do texto original.
  • 3
    . Permito-me aqui a utilização do gênero feminino em função de, como foi vista, a enorme diferença de incidência dos transtornos alimentares entre homens e mulheres.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Jan 2010
    • Data do Fascículo
      Dez 2009
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